a rua é minha e a casa é de vocês

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A RUA É MINHA E A CASA É DE VOCÊS: ASPECTOS PSICOSSOCIAIS NO ATENDIMENTO DE PESSOAS VIVENDO EM SITUAÇÃO DE RUA Clara Miranda Santos 1 Regis Henrique Albuquerque 2 João Jackson Bezerra Vianna 3 RESUMO Este artigo pretende levantar aspectos psicossociais a respeito da população identificada como de rua, que representa hoje um segmento populacional urbano em crescimento, principalmente nas grandes metrópoles, no entanto, não restrita a elas. Nesse sentido, buscou-se investigar os processos psicológicos e subjetivos deste grupo social, considerando as especificidades desta categoria em seu contexto, relacionando com as possibilidades de atendimentos voltadas para a atenção dessa população com a finalidade de subsidiar políticas públicas capazes de encarar o problema em uma perspectiva que considere o sujeito e suas singularidades. O estudo é um relato de experiência resultado de atendimentos psicológicos oferecidos a população em situação de rua, que têm nas arquibancadas de um campo de futebol da cidade de Porto Velho, Rondônia, um local de encontro e “moradia”. 1 Psicóloga, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Acre. 2 Psicólogo, Universidade Federal do Acre. 3 Mestrando em Antropologia, Universidade Federal do Amazonas.

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A RUA MINHA E A CASA DE VOCS: ASPECTOS PSICOSSOCIAIS NO ATENDIMENTO DE PESSOAS VIVENDO EM SITUAO DE RUAClara Miranda Santos[footnoteRef:2] [2: Psicloga, Instituto Federal de Educao Cincia e Tecnologia do Acre.]

Regis Henrique Albuquerque[footnoteRef:3] [3: Psiclogo, Universidade Federal do Acre.]

Joo Jackson Bezerra Vianna[footnoteRef:4] [4: Mestrando em Antropologia, Universidade Federal do Amazonas.]

RESUMOEste artigo pretende levantar aspectos psicossociais a respeito da populao identificada como de rua, que representa hoje um segmento populacional urbano em crescimento, principalmente nas grandes metrpoles, no entanto, no restrita a elas. Nesse sentido, buscou-se investigar os processos psicolgicos e subjetivos deste grupo social, considerando as especificidades desta categoria em seu contexto, relacionando com as possibilidades de atendimentos voltadas para a ateno dessa populao com a finalidade de subsidiar polticas pblicas capazes de encarar o problema em uma perspectiva que considere o sujeito e suas singularidades. O estudo um relato de experincia resultado de atendimentos psicolgicos oferecidos a populao em situao de rua, que tm nas arquibancadas de um campo de futebol da cidade de Porto Velho, Rondnia, um local de encontro e moradia.PALAVRAS CHAVES: Populao de Rua Atendimentos Psicolgicos Populaes Excludas

A EXCLUSO SOCIAL, O ESTADO E OS MORADORES DE RUA

A problemtica, moradores de rua, no se encerra em si mesma, e assim muitas cincias e disciplinas tm se dedicado a compreender este fenmeno no somente por ele mesmo, mas tambm porque visualizam no tema uma janela para se analisar outras questes que extrapolam a condio dessas pessoas. A sociologia e as cincias sociais, de modo geral, analisam a relao, modos de produo capitalista e excluso social, vendo o morador de rua como um sintoma desse sistema. Estes estudos discorrem sobre a pobreza e a excluso social sob uma tica sociolgica e econmica, apontando pra um problema de ordem poltica, fruto da forma histrica de organizao social (MENDONA, 2006). Apesar da grande relevncia que estes trabalhos possuem e das questes que levantam, eles acabam por deixar uma lacuna, ao no observar a singularidade em que essas pessoas vivenciam a pobreza em sua condio. A falta de informaes aprofundadas a respeito dos processos psicolgicos deixa um vcuo que impossibilita o entendimento da histria desses indivduos, tornando difcil realizar polticas pblicas concretas, capazes de atingir o cerne do problema. Nesse sentido, Lopes apud Mendona (2006) comenta que a dificuldade de implantar polticas pblicas efetivas e transformadoras encontra-se no desconhecimento de configuraes subjetivas, uma vez que, este desconhecimento no permite perceber a variedade de manifestaes da pobreza, homogeneizando, equivocadamente, o que heterogneo. Demonstra-se, desta forma, imprescindvel a apropriao do fenmeno populao de rua por parte da psicologia, que pode realizar trabalhos que no se isentem de descrever a condio psicolgica e subjetiva na qual estes sujeitos esto imersos. Neste trabalho o fenmeno de populao de rua interpretado essencialmente como produto de um processo de excluso social permeado por trajetrias psicolgicas de vulnerabilidades e fragilidades, incluindo rupturas de vnculos da existncia humana em sociedade. Entende-se, assim, por excluso social a definio de Escorel (1999),processo no qual no limite os indivduos so reduzidos condio (estado) de animal laborans, cuja nica atividade a sua preservao biolgica, e na qual esto impossibilitados do exerccio das potencialidades da condio humana (p. 75).

Desse modo, o sujeito que passa pelo processo de excluso social encontra-se na ausncia de lugar, o que envolve a anulao social, que reveste seu cotidiano com um misto de indiferena e hostilidade. No difcil, assim, a partir da definio, situar os moradores de rua nesse processo que os anulam socialmente, e os prendem em uma condio limitante. A excluso social, no um evento descontextualizado e isolado, corresponde a um processo, isto , uma srie dinmica de acontecimentos que possuem alguma seqncia e culminam em um rompimento, no caso dos moradores de rua, por exemplo, atravs da sada de casa. Para entender esse fenmeno de fato como um processo, necessria uma contextualizao da pobreza em nossa ordem econmica atual. Os problemas sociais e a excluso sempre existiram, desde quando a explorao do homem pelo homem foi utilizada como meio de produo e organizao social (MENDONA, 2006). No entanto, ganha contornos especficos na nossa sociedade, que na ultimas dcadas tem acompanhado um crescimento acentuado de problemas sociais, que podemos considerar como um sinal emergente das mudanas scio-poltico-econmicas (VARANDA, 2004). Diante de um resgate histrico compreende-se que a sociedade ao adotar o capitalismo dividiu-se diametralmente em dois: o grupo que explora e o grupo dos que so explorados. Estes dois grupos, porm, so marcados por desigualdades determinantes, dado que o primeiro grupo muito menor, mas em compensao acumula muito mais riqueza, e o segundo grupo, que demasiadamente maior, possui um nmero muito menor de riqueza. Para a sociedade capitalista que concebe o mundo pela lgica de mercado, o primeiro grupo tem muito mais valor do que o segundo, uma vez que, o primeiro tem mais mercadorias. Este sistema produtivo tem revelado atravs do fenmeno de excluso social a existncia de indivduos descartveis que fogem inclusive das duas categorias propostas acima e no podem se quer assumir a posio de explorados, exemplo dos moradores de rua. Estes no chegam a formar um terceiro grupo, pois luz do conceito acima so simplesmente excludos dessa ordem social, no possuindo nenhuma mercadoria para oferecer ao mercado e, portanto, no possuem valor qualquer, so como diz Escorel (1999) desnecessrios e suprfluos, ou ainda, inteis ao mundo. Ressalta-se que esta ideologia no s determinante no modo de como se produz a pobreza, mas na maneira de como se lida com ela. Nesse sentido, aponta-se que o capitalismo, j caracterizado pela acentuada diviso do trabalho, ao adotar o modelo neoliberal reduz o poder do Estado, tornando as pessoas livres para concorrer lgica do mercado. Este modelo, todavia, desloca os problemas sociais que outrora fora responsabilidade do Estado para o mercado. A ausncia do Estado no se manifesta, deste modo, s na economia, mas tambm nas polticas sociais, que passam a ser subsidiada pela a idia de que a pobreza um problema individual, sendo cada um responsvel por seus xitos e tambm por seus fracassos. (Mendona, Buarque, Escorel).H um processo de substituio do Estado como principal provedor de polticas sociais que promove um incremento do papel dos setores, informal, voluntrio e mercantil - lucrativo ou no, como o caso das ONGs. E, desta forma, as polticas sociais passam a ser conduzidas no pela demanda social, mas pelas normas do mercado, que concebe os problemas sociais como processos exgenos e desvinculados do seu sistema (MENDONA, 2006). Esta substituio joga nas mos das ONGs, instituies religiosas, e da iniciativa privada (como em projetos de responsabilidade social) a tarefa de cuidar das polticas sociais. No entanto, estes setores por no se articularem de forma coesa levam a uma srie de iniciativas isoladas, motivadas, em geral, por questes que fogem a resoluo concreta dos problemas. O termo polticas sociais, ento, entendido como polticas pblicas tornam-se cada vez menos utilizado, quando no, inadequadamente empregado, diante de iniciativas sociais caracterizadas por aes emergenciais e descontnuas, e no polticas concretas contnuas e planejadas. (Mendona, Buarque)As instituies dos setores voluntrios e informais so, hoje, necessrias, mas no suficientes na busca de solues reais. Estas instituies ao compactuarem com a lgica privatista na ateno ao bem-estar e ao substiturem o Estado tornam-se funcionais ao sistema, que por sua vez entende a pobreza como problema individual. Esta concepo acaba por conduzir o trabalho pelo prisma do clientelismo, do assistencialismo e do religioso, confirmando queles que recebem o servio sua submisso e dependncia a uma lgica perversa e legitimadora das desigualdades e da excluso social (MENDONA, 2006). Na prtica a utilizao desse prisma ao contrario de buscar solues atua na contramo, cristalizando o fenmeno, justamente por acreditar da mesma maneira que a sociedade na pobreza como um problema individual, ou seja, como um fracasso do sujeito que no foi forte o suficiente. A concepo religiosa na assistncia social dos moradores de rua muito presente nas instituies filantrpicas como um todo, mesmo que estas no sejam mantidas por uma instituio religiosa. H nas aes realizadas uma ntida preocupao moral, motivada muitas vezes pela expiao da culpa, sendo o trabalho voluntrio uma oportunidade de compensar os pecados cometidos. No se v nessa nesta concepo diferenas na maneira de observar o fenmeno de rua e a pobreza.Em uma visita nossa ao Centro Esprita Irmo Jacob, instituio religiosa que trabalha com assistncia social para a populao de rua e que intermediou nossos primeiros contatos, um morador de rua ao ser entrevistado questionou nossa motivao em fazer aquele trabalho, pensando que ramos vinculados ao referido Centro porque vocs esto fazendo isso hein? Vocs to com problema ? Porque vocs sempre vem falar com a gente quando vocs esto com algum problema. Demonstrando plena conscincia do aspecto moral/cristo que permeia o trabalho assistencial.

AS REPRESENTAES SOCIAIS SOBRE AS PESSOAS EM SITUAO DE RUA.

Encontramos cotidianamente pelas ruas pessoas que nelas vivem e, com relao a estes sujeitos, ns, domiciliados, involuntariamente estabelecemos uma relao de contato. Para a maioria das pessoas esse contato no ultrapassa o limite visual, no entanto, mesmo assim, so capazes de emitir uma srie de opinies e conceitos a respeito dessa categoria social. Inicialmente esta relao marcada pelo espanto e estranhamento, mas com o tempo transforma-se em indiferena, e ento as pessoas que tinham asco e temor passam a negligenciar inclusive o contato visual e os moradores de rua deixam, assim, simplesmente de existir para elas, tornando-se invisveis ou transparentes.O sistema produtivo, descrito acima, influencia no s a produo da pobreza e da excluso social, mas tambm a produo das representaes sociais que as pessoas tm a respeito dos moradores de rua. Jodelet (2001), seguindo os passos de Moscovici define representaes sociais como uma forma de conhecimento, elaborada socialmente e partilhada com um objetivo prtico, e que contribui para a construo de uma realidade comum a um conjunto social. Essas representaes so importantes, pois mediam as nossas relaes cotidianas em um nmero incontvel de situaes, pessoas e grupos sociais. E, dessa maneira, o estudo da relao, sociedade e ordem econmica vigente, mostra-se imprescindvel, uma vez que, pode iluminar questes a respeito dessas representaes que de outro modo tendem a ficar obscurecidas. Nesse sentido, j foram identificados em pesquisas (MATTOS; FERREIRA, 2004) as principais representaes sociais que a sociedade tem sobre eles, e descobriram uma srie de representaes pejorativas, como: vagabundas, sujas, loucas, perigosas e coitadas. importante atentar para este ponto, pois essas representaes so determinantes na formao de identidade dos moradores de rua. A identidade entendida, assim, como uma construo ininterrupta a partir das relaes sociais em um contexto histrico determinado, manipulado pelas representaes sociais, que funcionam como tipificaes externas pessoa, que no caso dos moradores de rua, acabam por atrofiar sua possibilidade de autonomia (MATTOS; FERREIRA, 2004). O trabalho de atendimento psicolgico a moradores de rua que sero aqui descritos pde confirmar esse fenmeno. Em dia de atendimento, polcias militares abordaram a ns do grupo, questionando o que fazamos l, aps explicaes sobre o trabalho, perceberam que no havia razes para a desconfiana inicial, e por fim o comandante da viatura declarou tudo bem entendi que vocs to aqui fazendo um trabalho, mas esses a n tm muito jeito no, no vai adiantar muito, mas tudo bem e foram embora. Constata-se com comentrios como este de que h tambm alm das j descritas a representao social de que as pessoas em situao de rua so irrecuperveis, e de que no h nada o que possa ser feito. Esta declarao ganha ainda mais significado se analisarmos que foi deferido por um policial, representante do estado, o qual se insere em um aparelho ideolgico da mesma natureza (Althusser, 1998). Estes contedos, segundo Guareschi (1997), so simblicos de cunho ideolgico, na medida em que favorecem a cristalizao de relaes de explorao e dominao.Entretanto, a violncia simblica tal como descrita por Pierre Bourdieu no a nica resposta da sociedade e dos cidados domiciliados ao fenmeno dos moradores de rua. Como tem se constatado nos ltimos anos, o conjunto dessas tipificaes a respeito dos moradores de rua suscita no cidado domiciliado no s indiferena total, mas tambm violncia fsica, a exemplo do ndio Galdino, morto em Braslia (1997), enquanto dormia em um banco, a justificativa dos criminosos que o ndio fora confundido com um mendigo (MATTOS; FERREIRA, 2004). Percebe-se que as representaes sociais tm funcionado como legitimadora da agresso que outrora se dava apenas no campo simblico, mas que agora tambm passa para uma dimenso concreta sem mediao de signos. Assim, retornando ao campo simblico, pode-se notar que com o tempo h por parte dos indivduos uma apropriao das representaes sociais, isto , o prprio sujeito introjeta o conhecimento compartilhado socialmente do qual ele alvo. Dois moradores de rua afirmaram para ns:

vocs to vendo? [apontando para outro morador chegando ao campo com uma garrafa de cachaa na mo] a gente no tem jeito no, s tem bebum aqui, no adianta nada no. [...] eu no preciso de atendimento no, eu sou um caso perdido. melhor atender outro.

Essas representaes passam a integrar e nortear a identidade dessas pessoas, a concepo de que so inteis e descartveis, vagabundos e bbados, sujos e loucos, ou ainda coitados e no confiveis, em certa medida, transformam eles exatamente nessas categorias, atravs de um processo que ocorre de fora para dentro, que comea nas representaes sociais, processo exgeno, e termina cristalizado na identidade, em um movimento endgeno, que culmina, por fim, na aceitao deles dessa condio. Para Escorel (1999), a posio de excludos sociais, mantm o indivduo prisioneiro do prprio corpo, pois o no pertencimento a nenhum topos social torna a existncia limitada a sobrevivncia singular e diria. Nesse sentido, a relao das pessoas em situao de rua com a sociedade se d tambm de forma limitada.

OS ATENDIMENTOS PSICLOGICOS E OS DADOS

Este estudo um relato de experincia resultado de atendimentos psicolgicos oferecidos a populao em situao de rua, que tm nas arquibancadas de um campo de futebol da cidade de Porto Velho, Rondnia Brasil, um local de encontro e moradia. Inicialmente o trabalho tinha como objetivo nico oferecer um servio psicoteraputico a comunidade escolhida, contudo, ganhou outra dimenso ao constatar-se h escassez de trabalhos que compreendam o fenmeno de um ponto de vista psicolgico e que abordem enquadramentos, caractersticas e particularidades no atendimento a populaes de rua capazes de orientar a atuao de profissionais da psicologia nessa situao especfica, fato agravado se localizar estes estudos na cidade de Porto Velho, que so praticamente inexistentes. Desta maneira, veio tona a necessidade de juntamente aos atendimentos fazer registros criteriosos para termos no trabalho uma sistematizao que permitisse a anlise dos dados produzidos, obtendo assim, um panorama de como vivem e quem so os moradores de rua de Porto Velho, atravs da experincia dos atendimentos da comunidade assistida. Esses atendimentos eram oferecidos semanalmente, s quintas-feiras das 17h00m as 19h00m. O primeiro contato com as pessoas em situao de rua foi mediado por uma instituio religiosa que presta assistncia social. No entanto, buscando uma proposta de trabalho distanciada da institucionalizao, optou-se por um contato sem intermedirios, a fim de evitar associaes entre o nosso trabalho e o dessas instituies, que so de naturezas profundamente diferentes. Assim, escolheu-se a rodoviria municipal onde transitam muitos moradores de rua, contudo, o trabalho neste local mostrou-se infrutfero, pois as pessoas atendidas em uma semana no eram encontradas na semana posterior, uma vez que este no era um local de referncia para eles, e sim de passagem. Ento, atravs de entrevistas feitas na prpria rodoviria, surgiu a indicao do Campo, local no qual se deu a maior parte dos atendimentos, pois preenchia um perfil de local para o modelo de atendimentos que pretendamos prestar. Este perfil caracterizava-se principalmente por possibilitar atendimentos mais ou menos contnuos, ao molde do que acontece em uma clnica psicolgica tradicional, neste local haviam pessoas que quase sempre estavam presentes e com a quais foi possvel estabelecer um rapport. Desta forma, apesar de ser um grupo marcado pela alta rotatividade, pode ser caracterizado tambm por possui um grupo cerne, que permanece mais ou menos fixo. O trabalho se deu com os dois grupos, todavia, as anlises aqui elaboradas so decorrentes principalmente dos atendimentos ao grupo cerne pela possibilidade de interpretaes menos superficiais fruto da ateno mais continuada. Os dados aqui utilizados foram produzidos atravs da transcrio dos atendimentos psicolgicos, que eram sistematicamente elaborados aps os atendimentos. Em uma fase posterior as transcries eram analisadas a fim de levantar os aspectos psicossociais presentes. Essa metodologia auxiliou tanto nos atendimentos, pois qualificou o grupo de estudo e de superviso, quanto na elaborao das anlises aqui presentes. O Campo a denominao utilizada pela prpria populao de rua ao se referir sobre o local onde se encontram e dormem, e aonde fazamos os atendimentos. Chamam assim o local, pois se trata das arquibancadas de um campo de futebol. Convivem de forma constante com as pessoas que freqentam o campo de futebol, seja para jogar ou assistir, porm, sem nenhum contato mais estreito, como uma conversa. Eles dormem na arquibancada ou debaixo dela, no cho ou ento em um espao cedido por comerciantes das redondezas. Vale ressaltar que na cidade de Porto Velho existem outros pontos nos quais se concentram pessoas em situao de rua, no entanto, o Campo possui um contexto especfico, dada em parte pela freqncia e a regularidade da presena dessas pessoas em situao de rua e tambm pela convivncia at certo ponto tolerante e harmoniosa com os domiciliados. Assim, tal como em um estudo de caso, no se pretende aqui generalizar as anlises. As caractersticas, a seguir descritas, no so de toda a populao em situao de rua de Porto Velho, mas do grupo do Campo, o que no descarta que este panorama possa ser considerado como um indicativo de um plano mais amplo.

O QUE SOBROU PRA ELES? CARACTERIZAO DAS RELAES SOCIAIS ESTABELECIDAS NO CAMPO.

No Campo as pessoas em situao de rua que ali se situam acabam por estabelecer uma rede de relaes pequena, que s no menor porque a sobrevivncia biolgica depende de algumas relaes especficas, a seguir descritas. Essa rede social caracterizada por ocorrer basicamente em trs sentidos principais: (1) com as instituies filantrpicas (2) com a polcia e (3) entre eles mesmos. A relao com as instituies filantrpicas marcada pela ambivalncia dos moradores de rua que, de maneira geral, se pudessem no as freqentariam, todavia, a sobrevivncia deles depende de lugares que fornecem refeies e outros servios, mas em contrapartida acabam exigindo, implicitamente, a participao em palestras ou sermes. Este um dos pontos que provoca neles sentimentos contraditrios com relao s instituies, pois eles, em sua maioria, reconhecem que tem acesso a alimentao atravs destes lugares, no entanto, sentem-se desconfortveis e at mesmo incomodados com as atividades propostas, mas como precisam se submetem. Mas no somente isso, pois tambm percebem a representao social que estes lugares formam sobre eles, a de coitadinhos. Para Mattos e Ferreira (2004), esta uma concepo que procura explicar a situao de rua como uma oportunidade de expiao dos erros cometidos em vidas passadas. Mesmo existindo uma piedade sincera, o aspecto pernicioso subjacente a esta concepo o de contribuir para formao da identidade do indivduo em situao de rua como algum inferior e digno de pena por suas mazelas. Os moradores, de alguma forma, identificam essas representaes e resistem at certo ponto o contato com esses lugares. interessante notar que muito recorrente nos atendimentos, por parte dos moradores de rua a utilizao de passagens bblicas, menes a deus ou explicaes divinas para uma srie de eventos, contudo, isso no se mostra suficiente para a vinculao com qualquer instituio religiosa, seja as filantrpicas e ou as prprias igrejas. J a relao com a polcia tem na hostilidade a principal caracterstica, muito comum ouvir queixas com relao a abuso de autoridade e de acusaes injustas por parte dos policias contra os moradores de rua. No dia do atendimento em que fomos abordados por policiais, tivemos que por um momento interromper o atendimento para prestar esclarecimentos, e ento um morador disse antes de irmos em direo viatura policial no vo desistir da gente no, no deixe eles fazerem sua cabea, aps abordagem o atendimento continuou normalmente, este paciente que antes estava fazendo indagaes retricas sobre o que ignorncia, conclui, aps o evento, falando viu? isso ignorncia!. Nesse sentido, a populao do campo faz tambm relatos de agresses. Segundo eles, houve um dia em que foram convidados para ficarem em um local prximo ao Campo que era coberto e tinha instalaes sanitrias, esse convite teria sido motivado, pois neste dia estava chovendo e uma pessoa sensvel a situao resolveu abrig-los. Eles diante da situao aceitaram e dormiram no local, porm prximo ao amanhecer a viatura da polcia chegou, como se tivessem dando um flagrante, Ramalho diz ento aprontaram uma armadilha pra gente , chamaram pra gente entrar num lugar ali e massagearam ns a massagem citada pelo morador refere-se agresso sofrida, com o evento Chico, um dos moradores atendidos por ns, ficou bem machucado, durante os dias de atendimento percebeu-se que este estava mesmo com dificuldades de caminhar e com muitas dores. Com o evento ficaram todos indignados e se indagando porque os policias fizeram isso, assim Ramalho desabafa: [...] No sei por que eles fizeram isso, ao invs de ir prender os bandido a, pegar os traficantes, a no prefere pegar ns que bbado e nem tem como enfrentar eles, um bando de armrio com colete e arma, a gente nem pode fazer nada e se faz vo falar que ns somos bandidos, eles tem medo de bandido e bate na gente. H claramente um embate, uma oposio entre policias e moradores de rua, e que no parte de um lado contra outro, mas sim dos dois lados simultaneamente, no entanto, os moradores relatam maus tratos, tortura e abuso, enquanto os policias relatam apenas eles no tm jeito.Por fim, a rede de relaes sociais constitui-se com a relao entre eles mesmos no campo, que considerando suas devidas limitaes tem um significado de conforto e consolo diante da dura realidade que enfrentam no dia-a-dia, seja para aqueles que moram ou para aqueles que vo ao local somente para beber e no para dormir. Sobre a situao no campo Chico disse:Prefiro ficar na arquibancada do que em casa, pois em casa fico sozinho e no campo tenho meus amigos, aqui todo mundo gente boa, no tem bandido, a gente s gosta de beber mesmo e ficamos bebendo, porque uma maneira de esquecer essas coisas que tem na cabea.H no grupo das pessoas em situao de rua do Campo, um modo de relacionamento harmonioso, todos os que se conhecem tratam-se com afeto, no somente isto, h um sentimento de coletividade, assim, o grupo ativado sempre que surge algum conflito ou ameaa, sobre isso outro morador comenta:No deixo ningum falar mal daqui no, nem mesmo minha companheira, todo mundo aqui amigo, sei que ela no gosta daqui, mas tem que respeitar, sei tambm que isso no vida, uma pindaba, mas aqui todo mundo bom no faz mal a ningum.

PERFIS SUBJETIVOS. A SITUAO DE RUA PARA AQUELES QUE ESTO NO CAMPO

As pessoas que esto em situao de rua no so necessariamente moradores de rua, como o caso de Chico que deu o depoimento acima, comentando que prefere o campo a sua casa, ou seja, ele possui residncia, no entanto, experimenta o fenmeno da rua, vivendo em situao de rua. A nossa experincia nos atendimentos no Campo, possibilitou observar que o grupo da populao de rua que l se situa bastante heterogneo. Nesse sentido, Snow e Anderson (1998) apontam que se h um ponto de concordncia em relao aos moradores de rua, que eles no constituem uma populao homognea. Desta forma, vamos dividir o grupo do Campo em dois, de acordo com um critrio de permanncia e condio, entre os: que h um tempo considervel moram nas ruas, de maneira que estejam estabelecidos ao modo de vida, sem vnculos familiares fortes e sem residncia ou referncia fixa e estvel de moradia, seriam estes de fato os moradores de rua; o outro grupo formado por aqueles que esto flertando com a condio de morador de rua e, portanto, no se estabeleceram totalmente nessa condio e mantm, ainda, laos tnues com familiares ou esposa (o), encontra-se em uma zona de transitoriedade, que pode ou no se confirmar.As classificaes nos estudos variam conforme a natureza do olhar, seja de fora ou de dentro desse meio, ou da abordagem terica ou ainda da tica institucional. Nesse caso podem predominar critrios emocionais religiosos, mdicos ou sanitaristas (VARANDA, 2004). Assim, a classificao utilizada neste trabalho, pretende servir como guia na atuao profissional em psicologia, a fim de orientar-se preventivamente, no caso das pessoas em uma zona transitria, ou ento, em uma interveno mais ativa, apropriada para as pessoas que se encontram estabelecidas como moradoras de rua. uma distino que marca diferenas subjetivas significantes e que modificam a forma de atuao dos profissionais principalmente os psiclogos. O caso do senhor Erasmo pode ilustrar bem a situao do grupo dos que esto flertando com a condio de moradores de rua, ao dizer durante o atendimento:eu no quero dinheiro nem nada eu quero mesmo um apoio moral, pois sei que tem algo de errado comigo, algo no est encaixando, sabe? Preciso mesmo de um apoio moral [...] minha mulher no me deixa dormir em casa, diz pra eu ir pra rua e eu digo que no tem problema, eu vou e durmo no quintal!Ele explica, ento, que a sua mulher no gosta quando ele bebe, e assim, sempre que chega embriagado em casa ela no permite que ele durma l, e nessas ocasies ele dorme no quintal ou no Campo, as pernoites no campo nas ltimas semanas eram bem freqentes, em partes porque estava desempregado em partes porque estava bebendo muito. difcil, neste ponto, determinar se ele bebe porque est desempregado ou desempregado porque bebe, ou ainda, se est no campo porque bebe ou bebe porque est no campo, ao que parece so fenmenos que acontecem juntos e acabam num sistema de retroalimentao, na qual a reciprocidade uma marca caracterstica. O fato que, no depoimento anterior, pode-se vislumbrar, com o conceito de Escorel (1999), a excluso social como um processo, e no como uma ruptura abrupta ou um desvinculamento repentino e isolado. No caso do Erasmo, h uma srie de experincias traumticas, e no necessariamente um grande trauma causador da situao de rua, impostas a um sujeito que no possui uma rede social forte capaz de exercer uma funo suportiva, o que pode culminar na ruptura dos vnculos e na situao de rua, como em um processo. Vale definir que se compreende aqui por ruptura a um evento diretamente relacionado com ao fenmeno de excluso social, seria como uma etapa desse processo, talvez a ltima, quando definitivamente o sujeito encontra-se excludo, margem. Pensando neste processo como uma srie dinmica de acontecimentos que culminam em algum ponto, a ruptura seria este ponto, funcionando como um marco ou divisor da vida do indivduo. Entre as pessoas em situao de rua, este conceito ilustrado pela sada de casa, que de modo geral, marca o rompimento com todos os laos sociais at ento estabelecidos.Com relao aos moradores de rua, estes apresentam-se psicologicamente mais estveis, uma vez que, esto estabelecidos e acostumados ao modo de vida tpica dessa populao. Com relao a isso o morador de rua Raul disse, Gosto de ser sozinho e tambm no quero ningum e por isso no tenho casa, no gosto de ficar parado, gosto de estar sempre andando e mudando, apesar de j estar muito tempo aqui [ele se refere ao Campo] na verdade no sei por que ainda estou aqui [...] vim de Braslia, tinha mulher, era casado e morava com meus filhos, mas separei nem quis dividir nada, ela ainda quis vender a casa e dividir o dinheiro, eu no aceitei, no queria nada, e sai s com minha boroca [bolsa], pra no ter assim nenhuma cobrana depois.

Ele fala abertamente sobre sua situao, o que mais comum neste grupo, dos que moram h muito tempo na rua, no deixa, no entanto, como os outros de mostrar descontentamento com seu modo de vida, ainda que de modo diferente, h nele uma resignao maior do que naqueles que esto em uma zona transitria. Outro caso que reflete este grupo o de Jorge, ele fala da sua situao de rua relacionando-a com o consumo excessivo de lcool em virtude da com a morte de sua ex-mulher (primeira esposa), pois desde ento, passou a desenvolver uma espcie de amnsia que, segundo ele, seu grande problema causador de sua condio atual, j que partir deste fato perdeu o bom desempenho que tinha no trabalho, o que fez perder seus empregos e atividades laborais. Expressa vontade de fazer um tratamento para amnsia, para assim sair da rua, falando dessa situao de rua sem grande pesar ou desconforto, e projetando uma sada da rua sem perspectiva, sem apontar maneiras de como fazer isso, como se esse fosse um sonho distante e impossvel.Neste relato, ao contrrio do depoimento do Erasmo, ele faz uma relao direta entre causa e conseqncia, no caso a morte da mulher, como motivo bsico para sua condio. No entanto, isto aqui relativizado, uma vez que, seus vnculos sociais poderiam no estar fortemente estabelecidos, de maneira que, no representavam uma rede de apoio social, suportiva nesse momento de crise. Ao incio do trabalho pretendamos, investigar as causas da sada dessas pessoas de casa, categorizando as motivaes mais recorrentes, dividindo-as em grupos. Porm, essa se mostrou uma tarefa praticamente impossvel e incua. O que constatamos que as causas se localizam no sujeito em uma gama de possibilidades, muitas vezes caracterizada por uma rede social frgil que torna o sujeito vulnervel. Assim, no se pode determinar o que de fato provoca a ruptura, a moda de um padro universalizante. Sobre isso Varanda (2004) aponta que a realidade brasileira revela pessoas que j nasceram em um contexto familiar cujos membros estavam fora do mercado de trabalho formal, numa realidade de ausncia de polticas de suporte social. Pessoas que sobrevivem na pobreza esto distantes de uma suposta rede de proteo social e experimentam vnculos sociais extremamente frgeis, que tendem a se fortalecer ou se romper de acordo com as dificuldades que a realidade lhes apresenta e conforme o acmulo de experincias desestruturantes ao longo da vida. Paugam (1999), nesse sentindo, remete a um processo de desqualificao social ao identificar a desestabilizao das relaes com o outro, a situao de fragilidade, e finalmente a ruptura dos vnculos sociais, para o autor quando as pessoas saem das malhas da proteo social e deparam-se com situaes de grau crescente de marginalidade, onde a misria sinnimo de dessocializao. Apesar da impossibilidade de determinar as causas, dado que essas encontram-se espalhadas por toda a histria do sujeito de forma multifatorial, pode-se descrever o contexto no qual esse momento ocorre, que de modo geral, no ambiente familiar, o qual funciona como palco principal dos conflitos, onde culmina a sada do sujeito de casa, seja da dos pais ou da esposa (o) e filhos.

CASOS DE RUPTURA: UM OLHAR CLNICO SOBRE O PROBLEMA

importante compreender como se deu a sada para a rua, ou seja, como se deu a ruptura, pois muitas vezes esses acontecimentos nos do um panorama da dimenso psicolgica na qual essas pessoas se encontram. Esses casos de ruptura podem ser constatados na histria de vida da grande maioria dos atendidos. Pois estes em algum momento se viram fora e excludos de uma rede que em um momento anterior estavam includos, perceberam que assim que tinham rompido com a famlia, amigos, emprego, estado e sociedade. Estes rompimentos so de natureza variada, alguns abruptos e outros graduais que representam uma grande rede intrincada de eventos motivadores possuindo grande influncia na subjetividade desses sujeitos. Como por exemplo, no caso de Regina, uma mulher oriunda de uma famlia de classe mdia que vive nas ruas h mais de dez anos, sua ida para as ruas foi ocasionada pela rejeio da famlia sua postura ante a vida, tornando freqente os conflitos familiares. Ela em sua fala protestava contra a discriminao experimentada nas ruas, segundo ela todos olham quem vive assim como ladres, drogados e vagabundos. Alm dessas representaes negativas disse vivenciar intenso sentimento de insegurana por medo da violncia a qual est vulnervel, tanto de pessoas com o mesmo estilo de vida, como de policiais e ainda sofrimento gerado pelo preconceito por ser portadora do vrus HIV. Por essa razo seu companheiro no mais conseguiu trabalho, agravando a situao de ambos e obrigando-os mendicncia. Esse um dos casos em que se pode observar muitas rupturas, principalmente no que concerne sade, famlia e relaes sociais. Um outro caso o de Gilberto., um homem de 38 anos que aps sua separao, devido ao alcoolismo, passou a morar nas ruas e a ser desprezado pelos familiares meus irmos nem falam mais comigo, porque eu vivo assim, bebendo,[...] sabe aqueles prdio ali [...] so tudo da minha famlia, meu tambm, meu irmo tomou de mim [...]. Elencados esses e outros fatos, acrescentou que tentou suicdio vrias vezes e buscou ajuda em centros de recuperao. No discurso de Gilberto o rompimento com os familiares, que so citados vrias vezes, aparece como marcante ruptura. explcita sua necessidade de ateno e afeto, sobretudo quando disse ser bem tratado e muito querido em qualquer lugar que se apresenta, contou de pessoas que lhe prestam ajuda chamando-os de pai ou me e enumerou vrios lugares e eventos em que bem tratado: entro l e almoo, sou bem tratado, qualquer hora que chego l sento com eles, quando me v choram. Sua fala exprimia orgulho e status por receber acolhimento de pessoas com maior projeo social.Conhecemos tambm Moraes, 29 anos, h dois, utiliza sazonalmente o espao pblico como morada. Para que sua ida s ruas se desencadeasse, seguidas perdas ocorreram: primeiro o av, depois a av, sua nica alternativa foi morar na casa da irm, mas os constantes desentendimentos com o cunhado tornaram a situao insustentvel e culminaram na sua rualizao, apenas quando no falta trabalho que consegue local para morar, geralmente na zona rural, do contrrio seu destino a rua. Moraes disse que as alternncias entre o lar temporrio e a rua o fez romper com vrios hbitos saudveis e essenciais sade como tomar banho, comer e dormir alm da privao de outros direitos. Sua fala denotava hostilidade e desgosto acompanhado de crticas ao nosso trabalho e sociedade:

No adianta nada s falar, no vai resolver nada, o que pode resolver meu problema isso (sinal com as mos significando dinheiro), o governo no faz nada pela gente e podia fazer, vocs no so do governo, vai adiantar do que? [...] esse pessoal arrumadinho que passa a no sente isso aqui, a dor, o medo de dormir na rua e chegar um doido pra te matar, a fome, [...].

Moraes expressou suas perspectivas quanto ao futuro em um discurso marcado pela falta de esperana no volto a estudar, no tem como chegar numa escola sujo, descalo, sem ter comido direito, preocupado quando vai comer de novo, muito difcil algum dar trabalho pra algum desse jeito aqui. Alguns como Ramalho (50 anos de idade) e Moraes (40 anos), foram vtimas da excluso do mercado de trabalho, em razo disso, a imagem maculada de provedores foi afetada como pode ser visto a seguir, respectivamente na ordem: no me do mais emprego por causa da idade, mas olha aqui, posso trabalhar (...) fico aqui porque no tem o qu lev pra casa, tem tudo l,mas tudo por pagar (...). (...) fui l na ... (construtora), conversei com a psicloga, ela mandou eu fazer uns testes (...) no me chamara no (...) j t adulto vivendo na casa da minha me (...). existente em ambos o sentimento de impotncia devido ao rompimento trgico com o significado social do trabalho, preciso acrescentar ainda que por artimanhas dos processos de excluso tais sujeitos encontram-se na condio de desempregados e em zona transitria. O protesto seguido de crticas ao sistema econmico e aos poderes pblicos tambm se faz presente embora no to constante, pois a excluso de direitos que lhes imposta ocorre tambm por desconhecimento das mesmas. Ramalho, alm das crticas ao preconceito sofrido por sua idade e aparncia idosa tambm reclamava os impostos pagos trabalhei e paguei imposto de tudo, quando no pude mais trabalhar, ningum faz nada, o governo no faz nada pra ajudar gente na minha condio depois dagente pagar um monte de imposto (...). Gomes, de 36 anos, nos dias anteriores ao encontro vinha enfrentando o luto pela morte dos pais, justificou sua situao devido a esse fato repentino que abalou sua vida. Em seus comentrios a respeito das aes voltadas s pessoas em situao de rua criticou o modo de funcionamento dos centros de recuperao que poderiam deixar o usurio de seus servios mais livres, incentivar tarefas e atividades produtivas, segundo ele, o Estado deveria providenciar abrigos e gerar trabalho para essa populao. Um caso interessante o de Jorge 48 anos, brevemente citado em outro tpico, que a partir das perdas de pessoas significativas de sua vida, o que implicou numa srie de lutos mal elaborados, iniciou uma peregrinao por vrios estados em busca de trabalho e reinsero social. Ele natural do Esprito Santo onde foi adotado por uma famlia italiana. L viveu por vrios anos at a morte de sua primeira esposa, quando, segundo ele, perdeu o sentido de viver, sua capacidade de adaptao que ficou prejudicada,depois que minha esposa morreu no consegui mais, no deu mais [...]Comecei a me esquecer das coisa sabe? No consegui mais trabalhar, trabalhava fazendo conta, a comeava a fazer uma conta e esquecia, me dava tipo uma amnsia, comecei a beber tambm, esquecia o que eu tava fazendo [...]. Jorge nessa sua trajetria por outros estados em busca de trabalho e novas perspectivas chegou ao Estado de Rondnia, onde conseguiu, segundo ele, algumas propriedades e um novo casamento. Reincidiu no consumo abusivo de lcool ao receber a notcia da morte do filho Quando desci na rodoviria recebi a notcia que tinham matado meu filho, ali mermo, na rodoviria mermo peguei uma garrafa de usque fiado [...] cheguei em casa bbo, no quis mais saber de nada, as terra que tinha pra ele (filho) morar, deixei pra l [...]Desde ento ele tem vivido nas ruas da capital rondoniense subsistindo da mendicncia e de bicos ocasionais em propriedades na zona rural. Chegou a passar dois anos em sua terra natal, mas no se adaptou, retornando ento para as ruas apesar de sofrer humilhaes, violncia e fome, que tem como paliativo o lcool. Interessante ressaltar sua postura face ao grupo do campo, que a de liderana, sendo muito querido e respeitado pelos demais, demonstrando seu status e funo dentro do sistema de funcionamento do campo. No so raros os casos como esse, de lutos mal elaborados, conflitos familiares, doenas crnicas, desemprego e diversas rupturas que trazem extrema repercusso subjetividade desses indivduos como os casos aqui citados e de outros no registrados aqui, mas que como todos, tm histrias, subjetividades e vivncias em construo alm de muitos direitos que lhes so negados. Em tempo, queremos ressaltar que no devem ser levadas em questo de forma isolada as situaes de ruptura, e sim, consideradas um estopim em conjunto a uma srie de elementos imbricados que contriburam para o processo de rualizao. O aspecto tratado neste tpico parece de fato representar ou ilustrar de maneira bem apropriada as caractersticas subjetivas daqueles que por algum motivo moram na rua ou esto em situao de rua. O depoimento a rua minha e a casa de vocs dado por Angenor, morador de rua de aproximadamente 28 anos, andarilho, que intitula este trabalho representa exatamente muitos dos casos de ruptura aqui citados. Ele diante das experincias desestruturantes acumuladas durante sua vida, que nesse caso davam-se principalmente nos conflitos familiares com os pais, resolve sair de casa, pois passa a ver a rua como nica alternativa que lhe restou, tornando-a a partir de ento seu lar, deixando para trs a casa e a famlia, mas no s isso se percebe tambm a tentativa de deixar para l tambm, seus conflitos e sofrimentos no compreendidos e apoiados.

CONSIDERAES FINAISNeste estudo ficou evidente que a maior parte das estratgias para lidar com o fenmeno de rua tem sido empreendida pelas instituies filantrpicas e no pelo Estado. As aes das primeiras, guiadas por uma perspectiva do clientelismo e assistencialismo, no permitiu evolues at hoje no trato da delicada problemtica de pessoas em situao de rua. Percebeu-se que estas instituies percorrem uma trajetria que no ruma para uma busca de solues concretas e duradouras, pelo contrrio contribui para a cristalizao do problema. No entanto, no se pretende culpabiliz-las, uma vez que, a responsabilidade por essa demanda social no delas. Aponta-se o Estado como responsvel pela organizao de polticas pblicas sociais que busquem maneiras de atender essas pessoas, todavia, este, de modo geral, esquiva-se de se apropriar da funo. Diante disso possvel fazer uma relao dessa postura adotada pelo governo com a ordem poltica econmica vigente. Nota-se que o sistema produtivo, influencia no s a produo da pobreza e da excluso social, mas tambm a produo das representaes sociais que as pessoas tm a respeito dos moradores de rua. Por isso importante para os psiclogos, bem como todos os profissionais que pretendem trabalhar com as pessoas que se encontram em situao de rua, compreender a determinao social dos aspectos subjetivos ou psicolgicos, concebendo o psquico no como um aparelho de motivaes prprias, unicamente, mas a partir do contexto social em uma psicologia contextualizada. Ficou claro que a identidade daqueles que moram na rua so, em parte, norteadas pelas representaes que os domiciliados fazem deles.Constatou-se que h entre a sociedade domiciliada uma representao social de que os moradores so irrecuperveis, que se junta a um rol de outras representaes pejorativas j constatadas em outros estudos. Este trabalho pretendeu, assim, mostrar que essas pessoas, ainda que fragilizadas, no so vazias subjetivamente, e desta forma, apontando que estas no so irrecuperveis. A categorizao utilizada neste trabalho entre dois grupos, moradores de rua e pessoas em zona de transio, demonstrou ser muito til ao servir como um guia de atuao para os atendimentos psicolgicos, no entanto, no se sabe a validade desta classificao em outros locais e contextos ou ainda para outros profissionais. Porm, h uma expectativa de que seja tambm til para outras intervenes que no psicolgicas, a exemplo dos profissionais de servio social, e mesmo daqueles profissionais da rea mdica. Por fim, vale ressaltar que as rupturas vivenciadas pelas pessoas em situao de rua, so um dos momentos mais marcantes daqueles que por algum motivo foram excludos, essa talvez seja a marca mais caracterstica daqueles que perambulam pelas ruas vivendo ao lu. Este aspecto subjetivo est permeado por uma srie de conflitos que indicam os caminhos para a rua. Estes caminhos so de natureza heterognea, no entanto, pode-se indicar que na maioria das vezes se d no mbito familiar, seja por conflitos ou pela ausncia de relaes familiares fortes. Percebe-se que estes caminhos esto quase sempre naquelas pessoas em que se acumulam uma srie de experincias desestruturantes e no encontram suporte em nenhuma dimenso de sua vida. A falta de uma rede de apoio social, seja a fornecida pelo estado ou pelas relaes significativas, a exemplo das familiares, demonstrou-se determinante em todo o processo de excluso social.

REFERNCIAS

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