a retorica do oboe nas cantatas de bach

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES MESTRADO EM MSICA

O OBO E A REPRESENTAO DA CONFIANA NAS RIAS DAS CANTATAS SACRAS DE J. S. BACH

KATIA REGINA KATO JUSTI

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Msica do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Msica sob a orientao da Profa. Dra. Helena Jank.

CAMPINAS 2007

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

J983o

Justi, Katia Regina Kato. O Obo e a representao da Confiana nas rias das cantatas sacras de J.S.Bach. / Katia Regina Kato Justi. Campinas, SP: [s.n.], 2007. Orientador: Helena Jank. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de

Campinas, Instituto de Artes.

1.Bach, Johann Sabastian, 1685-1750. 2. Cantatas. 3. rias. 4. Obo. 5. Retrica. I. Jank, Helena. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Artes. III. Ttulo. (lf/ia)

Ttulo em ingls: The Oboe and the representation of Trust in the sacred arias ofthe cantatas from J.S.Bach

Palavras-chave em ingls (Keywords): Bach, Johann Sabastian, 1685-1750 Cantatas Arias Oboe Rethorics Titulao: Mestre em Msica Banca examinadora: Prof. Dr Mnica Isabel Lucas Prof Dr. Paulo M. Khl Prof Dr. Marcos Pupo Nogueira Prof Dr. Esdras Rodrigues da Silva Data da defesa: 20 de Janeiro de 2007 Programa de Ps-Graduao: Msica

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minha famlia

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Agradecimentos

Prof. Helena Jank, pela orientao; Mnica Lucas , por toda ajuda e entusiasmo contagiante; aos Professores Parcival Mdolo e Paulo Khl pelos ensinamentos; Lcia Carpena, pela imensa amizade e apoio; a Cassiano Barros, pela ajuda; ao meu tio Dlson Dias, o expert em Excel; aos colegas da Ps, com quem tanto aprendi; ao Paulo Justi, meu eterno agradecimento pelo constante companheirismo, apoio e enorme estmulo.

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Disse, ouviste, tendes os fatos, julgai. Lsias

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Resumo

Este trabalho prope a investigao, do ponto de vista da retrica, da utilizao do obo, obo dAmore e obo da Caccia, nas rias sacras das cantatas de Johann Sebastian Bach. Para tanto, iniciamos nossos estudos a partir do Movimento da Reforma Protestante, suas origens e fundamentos e sua grande influncia na msica. Procuramos fazer, nos diversos perodos da vida de Bach, um levantamento de todas as rias compostas para obo, com especial nfase nas rias compostas para um instrumento obbligato. Avaliamos tambm a grande importncia das doutrinas da Musica Poetica e da retrica na vida e no pensamento musical alemo e como essas doutrinas influenciaram as composies de Bach. Finalmente buscamos traar relaes entre os aspectos retrico-musicais e a utilizao do obo obbligato nas rias sacras com os afetos da confiana e do temor.

Palavras-chave: J.S. Bach; cantatas; rias; obo; retrica; afetos.

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Abstract

This work aims at investigating, from a rhetoric point of view, the use of the oboe, oboe d'Amore and oboe da Caccia in the sacred arias of Johann Sebastian Bach cantatas. For this, we started our study from the Protestant Reform Movement, its origins and bases and its great influence in the music. Treating the different periods of Bach's life, we tried to gather all of his arias composed for the oboe, with special emphasis in the arias composed for an obbligato instrument. We also evaluated the great importance of the

doctrines of Musica Poetica and of life rhetorics to the musical German thought. We also Finally, evaluated we tried how to these trace doctrines the influenced Bach's the

compositions.

relationships

between

rethorical musical aspects and the use of the obbligato oboe in the sacred arias with the affects of trust and fear.

Keywords: J.S. Bach; cantatas; arias; Oboe; rethoric; afeccts.

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Sumrio

Introduo .......................................................................................................................... 1

Captulo 1. A Reforma e suas influncias na Msica ..................................................... 3 1. A Reforma Protestante, causas e conseqncias um breve histrico ................................................................................................................... 3 2. A Msica na Reforma ........................................................................................... 8 2.1. A relao de Lutero com a msica ....................................................... 9 2.2. A msica no culto reformado ............................................................. 11 2.3. Lutero e Bach ....................................................................................... 19

Captulo 2. A Cantata e Bach ......................................................................................... 23 1. A Cantata Origem ........................................................................................... 23 1.1. A Cantata Alem ................................................................................ 23 1.2. As cantatas de Bach ............................................................................. 27

2. Dos perodos das composies das cantatas ...................................................... 28 2.1. O perodo Mlhausen (1707-1708) ..................................................... 28 2.2. O perodo Weimar (1708-1717) ......................................................... 30 2.3. O perodo Cthen (1717-1723) ........................................................... 35 2.4. Perodo de transio ............................................................................ 40

3. O perodo Leipzig (1723 1750) ...................................................................... 42 3.1. A prtica litrgica em Leipzig ............................................................. 43 3.2. Caractersticas das Cantatas do Perodo de Leipzig ............................ 45 3.2.1. Primeiro Ciclo ...................................................................... 45 3.2.2. Segundo Ciclo ...................................................................... 46 3.2.3. Terceiro Ciclo ...................................................................... 48

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3.2.4. Quarto e Quinto Ciclos .................................................................... 50 4. Grupos Instrumentais e Vocais em Leipzig ...................................................... 51 4.1. Stadtpfeifer e Kunstgeiger .................................................................. 52 4.2. Grupos Vocais .................................................................................... 55 4.3. Instrumentos, instrumentistas e construtores ...................................... 56 4.3.1. Obo ..................................................................................... 56 4.3.2. Obo dAmore ...................................................................... 58 4.3.3. Obo da Caccia ................................................................... 59 4.3.4. Obostas e Construtores de Leipzig ..................................... 59

5. rias para Obo(s) no perodo de Leipzig ................................................... 60

Captulo 3. A Musica Poetica e a importncia da retrica as cantatas sacras ............. 71 1. A Virtude e o justo meio ................................................................................... 75 2. Aspectos retricos nas rias ............................................................................. 77 3. O afeto da confiana e seu contrrio, o terror, nas rias com obo de Bach ...................................................................................................... 82 4 rias com obo .................................................................................................... 86

Concluso ........................................................................................................................ 105

Bibliografia .................................................................................................................... 107

Anexo 1 rias totais com obo ................................................................................... 111

Anexo 2 rias com um instrumento obbligato ......................................................... 121

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IntroduoO conjunto das cantatas de Johann Sebastian Bach constitui, provavelmente, o exemplo mais ntido de um compositor a servio de sua f religiosa. Este um fato reiterado pelos estudiosos e verificado amplamente em sua biografia. A sua f dedicada aparece, por exemplo, nas singelas inicias SGD (Soli Deo Gloria), colocadas no final da composio e que indicava que a obra tinha sido realizada Para maior glria de Deus. Esta f deve-se sua ligao com o protestantismo, que ocorre tanto na sua formao quanto na sua atuao de compositor, e foi esta ligao a responsvel pelas principais caractersticas encontradas nas cantatas. Bach seguiu risca todos os preceitos pregados por Lutero em relao msica e isso fez com que ele se tornasse o mais luterano entre todos os compositores luteranos. O Movimento da Reforma Protestante foi iniciado por um monge agostiniano, de formao catlica e, portanto, Humanista italiano. Sabe-se que o Humanismo foi uma fonte jorrada do Renascimento, que por sua vez recebeu dos pensadores gregos, especialmente Aristteles, as bases de seu pensamento. Como este conjunto de fatores influencia a composio das rias das cantatas de Bach, tomando como exemplo, as rias com obo obbligato, a proposta deste trabalho. Pretende-se verificar e situar historicamente a Reforma Protestante e a importncia da msica para Lutero. Em seguida, um estudo das cantatas sacras de Bach sob a tica da utilizao do obo como instrumento obrigatrio e que se contrape a voz solista. Decorre disto a necessidade de constatarmos a importncia da Musica Poetica e do pensamento de Johann Mattheson, terico contemporneo de Bach, que coloca a retrica como guia da msica, que serviria tambm para a realizao do sermo sonoro protestante. Procura-se evidenciar a influncia de Aristteles no pensamento retrico, assim como em outros aspectos filosficos. Finalmente constata-se que h elementos musicais que podem ser declarados francamente retricos, tanto nas diversas divises do discurso musical, quanto nos afetos que o compositor queria representar na msica, fossem eles na forma de um apelo de confiana ou numa manifestao de temor.

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Captulo 1. A Reforma e suas influncias na Msica

1. A Reforma Protestante, causas e conseqncias um breve histrico

Por volta de 1500, os fundamentos da velha sociedade medieval estavam ruindo e uma nova sociedade, com uma dimenso geogrfica mais ampla e com transformaes nos padres polticos, econmicos, artsticos, intelectuais e religiosos comeava a surgir. As mudanas ocorridas em todos estes nveis foram realmente revolucionrias, tanto por sua natureza quanto pela fora de seus efeitos sobre a ordem social. A nova teologia reformatria de Martinho Lutero (1493-1546) encontrava-se, j no ano de 1517, em parte desenvolvida e em parte em seus fundamentos, mas o potente eco de seu surgimento, a rpida disseminao e o fortalecimento do movimento da Reforma, s foram possveis porque encontram na Idade Mdia tardia um ambiente propcio para tal fortalecimento e desenvolvimento. A sociedade europia estava vivendo um perodo de incertezas e de grande inquietude religiosa. Todos se sentiam culpados e o temor do castigo eterno traduzia-se nas imagens terrveis dos pintores e dos poetas. As vrias guerras e a crescente ameaa turca gerada pelas cruzadas, acentuaram nos indivduos a culpa e a responsabilidade por tamanhas desgraas. Uma angstia coletiva, que caracterizava uma poca de f profunda, dominou todas as camadas sociais. Nos fins do sc. XV, difundiu-se a crena de que ningum entraria no paraso depois do Cisma do Ocidente. Esta atmosfera angustiante foi ainda reforada por pregadores e telogos populares, que preocupados com a gravidade do pecado, viam os ltimos anos da Idade Mdia como o prembulo do Apocalipse. Havia na Igreja Catlica um desequilbrio entre sua funo primordial de sustentculo religioso e espiritual para seus fieis e a preocupao com questes polticas e econmicas, distanciando-se assim de seus ideais de instituio orientada por Deus para propiciar aos homens a salvao. Diante desta situao catica, pequenos grupos, formados por alguns membros do clero catlico e por laicos, comearam a estudar novas vias espirituais,

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preparando discretamente uma reforma religiosa. O misticismo1 foi uma primeira tentativa de distanciar o divino das regras ordinrias. Os msticos catlicos2 Mestre Eckhart (12601327) e Johann Tauler (c. 1300-1361) pregavam uma maior meditao individual atravs do mtodo pelo qual a alma, atravs da intuio, poderia ser preparada para a unio com Deus, sendo o xtase o grau supremo de tal unio. A segunda tentativa foi a humanista3 proposta pelos escritos de John Colet, Erasmo de Roterdam (1460-1536) e Lefvere dEtaples. Era fundamentada numa idia otimista da natureza humana e de sua aptido ao bem como resposta para a salvao. Lutero inicialmente viria a influenciar-se fortemente por tais fundamentos humanistas, sobretudo pelas teorias de Erasmo de Roterdam que mostrava que a sabedoria humana deveria ajudar o homem a compreender as leis divinas; expunha tambm a conduta ideal do cristo, confirmando que a verdade s encontrada no evangelho, isto , na filosofia pura e simples de Cristo. Os humanistas acreditavam na bondade natural do homem e no valor de seus atos positivos associados ordem divina. Erasmo de Roterdam publicou em 1524 o De Libero Arbirtrio, defendendo a liberdade do homem de poder aproximar-se ou afastar-se dos meios que levam salvao eterna, o valor de suas obras e a idia de que o pecado original corrompeu, mas no aniquilou a natureza humana (EICHER, 1993, p.468). Lutero respondeu brutalmente e rompe com Erasmo quando escreve em 1525 o De Servo Arbitrio, onde pregava que a liberdade do cristo estava em reconhecer a sua total incapacidade de remeter-se a Deus, atingindo a salvao no por suas obras, mas pela graa divina, ficando verdadeiramente livre para agir por amor.

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Filosofia espiritual que defende a f como sua prpria justificao e afirma a validade suprema da experincia ntima, tentando apreender a essncia divina ou realidade ltima das coisas e, por conseguinte, consumar a comunho com o altssimo (LOYN, 1990, p. 258). Etmologicamente, mstica provm do grego my cujo verbo significa o procedimento de fechar os olhos e olhar para o interior. Da se deriva, sobretudo, o tipo de mstica do mergulho no divino. (EICHER, 1993, p. 564). 2 A mstica do ponto de vista teolgico-cristo no esotrica (EICHER, 1993, p. 564) 3 Em geral, qualquer filosofia que enfatize o bem-estar e a dignidade humana, e que seja otimista quanto aos poderes do entendimento humano per se. Em particular, o movimento caracterstico do Renascimento, que esteve aliado ao estudo renovado das literaturas grega e romana: uma redescoberta da unidade dos seres humanos e da natureza, e uma celebrao renovada dos prazeres da vida, dados como perdidos no mundo medieval. O humanismo, nesse sentido renascentista, era bastante consistente com a crena religiosa, supondo-se que Deus havia nos colocado aqui precisamente para aprofundar as coisas que os humanistas achavam importantes. Mais tarde, o termo acabou por se tornar apropriado aos movimentos sociais e polticos anti-religiosos (BLACKBURN, 1997, p. 187).

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Este perodo histrico que ficou conhecido como Humanismo Renascentista, provocou transformaes intelectuais, ao norte e ao sul dos Alpes, criando assim um clima que favoreceu o desenvolvimento do protestantismo. Segundo MORA (2001, v.4, p.2510), costuma-se chamar Renascimento a um perodo da histria do Ocidente caracterizado por vrios elementos: retomada dos valores da Antigidade clssica; crise de crenas e idias; desenvolvimento da individualidade; descoberta do homem como homem, etc. Apresentava como caracterstica fundamental a exaltao do valor humano, como meio e como finalidade, na certeza de se reviver uma poca considerada um modelo uniforme: a Antigidade clssica. Os humanistas propunham o direito de verificar, luz da filosofia clssica,a Palavra de Deus. Para isto sonhavam com o retorno simplicidade evanglica, valorizando as obras espirituais e rejeitando as formas mecnicas de devoo. Assumindo tal postura, ajudavam a preparar os espritos para as propostas luteranas. Os humanistas renascentistas neoplatnicos assemelhavam o homem a Deus. Assim, atravs das realizaes humanas (pintura, escultura, poesia, cincia e arquitetura), Deus se exprimia, tornando os homens seus prprios mensageiros. Porm, esta nova postura humanista e a volta do homem para si mesmo causaria um questionamento do prprio Deus e, conseqentemente, da autoridade religiosa dominante, a Igreja catlica. Esta poca tambm foi marcada pelas Grandes Navegaes Intramarinas, pelo desenvolvimento cientfico e pelo surgimento da imprensa. As Universidades surgidas no sculo XII, se desenvolvem fortemente e ajudam a deslocar o centro do ensino para as cidades, fazendo com que a Igreja deixasse de ter o monoplio da educao e do saber. A nova burguesia rica das cidades, em ascenso, desenvolve uma economia com fins monopolistas e lucrativos, enriquecendo-se cada dia mais, criando assim o sistema capitalista. Em contrapartida, houve o empobrecimento dos camponeses e dos nobres inferiores, que continuavam apegados uma economia relacionada aos meios naturais. Atravs do fortalecimento econmico os novos burgueses buscavam, alm da riqueza, tambm a ascenso social que era alcanada, dentre outras maneiras, pelo acesso educao e cultura. Desta forma, se desenvolvem intelectualmente e voltam a ateno para a criao e manuteno de uma cultura profana feita atravs do patrocnio de artistas, poetas, arquitetos e artesos. Porm, o novo mundo rico e laico que estava se formando, via

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freqentemente com maus olhos o grande poder econmico da Igreja, que possua grandes riquezas que foram conseguidas, entre outras maneiras, atravs de isenes de impostos, taxas abusivas, venda de indulgncias, etc. Este descontentamento apareceu sobretudo na Alemanha, que era a nao responsvel pelo envio de grandes somas de dinheiro para a Igreja em Roma. Os novos ricos encontrariam no movimento da Reforma uma maneira possvel para o rompimento com Roma. Como conseqncia deste fato houve, por parte da populao, um vislumbre de melhoria econmica: o campons humilde acreditava que no pagaria mais o dzimo (imposto sobre a produo agrcola) Igreja; os prncipes acreditavam que haveria a possibilidade de tomar para si as terras da Igreja. Diante de tal situao, fcil acreditar que houvesse um apoio geral s causas da Reforma (RANDELL 1995, p. 11). Do ponto de vista poltico-religioso, na Europa de 1500 a estrutura de poder estava dividida entre dois plos: o poder civil, representado por um monarca (rei ou imperador), e o poder eclesistico, exercido pela Igreja, liderada pelo papa, em Roma. Esses dois poderes competiam entre si, mas nenhum dos dois conseguia dominar o outro por muito tempo. O conceito poltico medieval de um estado universal estava dando lugar ao novo conceito de nao-estado. Os estados, a partir do declnio da Idade Mdia, comearam a se organizar em bases nacionais, com um poder central e com governos fortes, servidas por uma fora militar e civil, de forte cunho nacionalista e, sobretudo, com forte oposio ao domnio de um governo religioso universal. Muitos monarcas, sobretudo os alemes, estavam insatisfeitos com o enorme poder que o papa exercia, assim, uma das causas da Reforma ter ocorrido pode ser baseada no primeiro exemplo de nacionalismo alemo surgido neste perodo. Este nacionalismo representava um amplo movimento de recusa de uma situao na qual estrangeiros, principalmente italianos que viviam em Roma, controlavam muitos aspectos da vida na Alemanha e extorquiam boa parte da riqueza do pas. Com a Reforma, os prncipes luteranos passariam tambm a influenciar a Igreja, tirando o poder das mos do papa. Ao mesmo tempo em que as questes polticas ocorriam, muitos telogos criticavam a doutrina e as prticas da Igreja Catlica. Alm da prtica da venda de

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indulgncias, era comum tambm nas cortes eclesisticas a compra e venda de justia. Era possvel tambm conseguir, embora fosse proibido pela lei cannica, uma dispensa para se casar com parentes, obtida atravs de pagamento. Muitos sacerdotes viviam em pecado aberto ou mantinham concubinas. Colees de relquias tornaram-se moda4. Os fiis das dioceses eram abandonados pelos bispos que geralmente negligenciavam a superviso de seus sacerdotes para verificar se realmente cuidavam do rebanho. Por isto, muitos procos descuidaram-se da pregao e da visitao, limitando-se apenas a rezar a missa, por eles proclamada como um rito mgico capaz de comunicar a graa a todos (CAIRNS, 2005, p. 227). Enfim, as atitudes da Igreja Catlica para com o feitio organizacional e para com a f, foram motivos para o surgimento de uma srie de razes controversas e idias distintas que levariam a origem de diversas comunidades eclesiais novas. Em conseqncia da Reforma, a unidade religiosa da cristandade na Europa ocidental foi eliminada depois de ter existido por mais de mil anos. Essa mudana constituiu marco importante na histria europia porque abriu a porta para uma incerteza espiritual generalizada. Onde antes havia apenas um conjunto de crenas amplamente aceitas como corretas, agora havia dois. Todos podiam ver que um dos dois deveria estar errado, e muitos comearam a se perguntar qual deles (RANDELL, 1995, p.13). A partir de 1520, os ensinos reformadores dominaram rapidamente a Alemanha. A maioria dos monges deixou os claustros para pregarem as boas-novas do Novo Testamento. Muitos dos sacerdotes das parquias tornaram-se luteranos e, em muitssimos casos, seus paroquianos os seguiram. Quando no encontravam clrigos para pregar, os leigos o faziam. Os livros de Lutero tiveram enorme divulgao e influncia. O movimento luterano espalhou-se como um forte reavivamento espiritual. A nova doutrina era fundamentada em trs princpios bsicos: a supremacia das Escrituras sobre a tradio; a supremacia da F sobre as obras; e a supremacia do Povo Cristo sobre um sacerdcio exclusivo (NICHOLS, 2004, p.164). O homem podia agora confessar seus pecados diretamente a Deus e dele receber o perdo, no necessitando mais dos ritos dos sacerdotes; poderia ser justificado atravs da f sem se submeter s exigncias da Igreja papal; poderiaO simples olhar em uma das 5005 relquias de Frederico da Saxnia era tido como capaz de reduzir o tempo do pecador no purgatrio em 2.000.000 de anos (CAIRNS, 2005, p. 227).4

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entender as Escrituras pela iluminao da f e por elas conhecer a vontade de Deus. Por sua grande doutrina bblica do sacerdcio de todos os cristos, Lutero libertou os homens do temor e, libertos do medo, eles foram igualmente libertos do poder da igreja medieval. Segundo Nichols (2004, p.164) a Reforma do sc. XVI , depois do advento do Cristianismo, o maior acontecimento da Histria. Assinala o fim da Idade Mdia e o incio da era moderna. Partindo da religio, ela deu, direta ou indiretamente, um poderoso impulso a todo movimento progressista e tornou o protestantismo uma fora propulsora na histria da moderna civilizao.

2. A Msica na Reforma

Pode-se acreditar que, durante o sc. XVII, o foco musical europeu se transfere da Itlia para a Alemanha. O poderoso crescimento e desenvolvimento da msica alem durante este perodo, que culminaria com os criativos trabalhos de Bach, no podem apenas ser explicados nem pela histria poltica dos alemes, nem por sua filosofia mas, sobretudo, ao movimento da Reforma e dos diversos movimentos religiosos que em conseqncia dela surgiram. A msica, em relao ao movimento luterano, ocupou um lugar to importante quanto ocupavam as artes visuais no catolicismo. A iconoclastia surgida em conseqncia do movimento Protestante5 fez com que as artes visuais religiosas fossem abandonadas nos pases onde a Reforma se instaurou. A msica ento, por sua vez, toma o seu lugar tornando-se a expresso da f. De certa forma podemos acreditar que o movimento musical ocorrido durante a Reforma na Alemanha foi anlogo ao movimento da 2. Prtica italiana que levaria, mais tarde ao desenvolvimento das rias da pera italiana. Na Alemanha ocorre um fato parecido, quando, devido ao desenvolvimento musical ocorrido durante a Reforma houve o

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desenvolvimento das rias das cantatas sacras que atingem o seu apogeu com as rias de Bach, como veremos adiante no captulo 2. NETTL (1948, p.2) afirma que o sentimento religioso do perodo Gtico catlico, sobretudo na Itlia, estava incorporado na arquitetura e nas artes visuais, enquanto a msica era comparativamente considerada menos elaborada e menos importante. Mesmo nas composies de Palestrina, em cujos trabalhos religiosos se podem encontrar a sua mais profunda expresso, parecem dever em significncia quando colocados prximos a Bach. Por sua vez, a arte dos sons foi a nica forma de arte dos protestantes e seu sentimento pio encontrou na msica sua melhor expresso artstica. A f jubilante de Lutero, sua experincia de Deus plena de alegria, seus ensinamentos de salvao pela graa, causaram nele uma irreprimvel exultao perante o seu Deus, e seus sentimentos puderam encontrar expresso somente pela msica.

2.1. A relao de Lutero com a msica A educao formal de Martinho Lutero no quadrivium6 medieval tinha especial nfase na musica speculativa, atravs da qual a msica era entendida como cincia e se baseava nos fundamentos gregos de propores numricas. Por esta teoria se chega, durante o perodo Humanista, ao conceito de que Deus se revelava atravs das propores numricas, e consequentemente, pelas propores dos intervalos musicais. Lutero acreditava ser a msica a disciplina mais importante dentre as sete artes liberais (BARTEL, 1997, p.4). A msica enquanto cincia se aproximaria da matemtica, estando portanto mais distante das disciplinas retricas. Porm, a nova nfase da teologia luterana na prdicaO movimento iconoclasta da Reforma surge no ano de 1522 em Wittemberg com a publicao da Da Abolio das Imagens de Andreas von Karlstadt, que pregava a destruio das imagens como forma de libertao dos valores catlicos. Alm disso os reformadores seguiam as escrituras onde o prprio Deus por intermdio de Moiss (xodo 20:4) diz No fars para ti nenhuma imagem gravada, nem reproduo de nada que exista no cu ou na terra.(COLLINSON, 2006, p. 210-11). 6 Conjunto de disciplinas que, juntamente com o trivium, formavam a base para a educao na Idade Mdia. O quadrivium era composto pela aritmtica, geometria, astronomia e msica; o trivium era composto pela gramtica latina, retrica e dialtica (LOYN, p. 128).5

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(Palavra de Deus) conduz Lutero a uma redescoberta destas disciplinas retricas. Agora, na nova teologia, as disciplinas do trivium, principalmente a retrica, passariam a ter um lugar de destaque e a msica, por sua vez, comearia a ter uma nfase muito maior como composio e tambm performance, tendo alm do carter speculativo, ou seja, meramente terico, um carter pratico. E era esta msica, com uma viso reformada, que Lutero gostaria que fosse usada nos seus cultos. O envolvimento de Lutero com cada aspecto da msica7 com o qual ele virtualmente tinha entrado em contato, reflete seu entendimento dela como arte prtica e performtica que tinha grande potencial na vida e na venerao de todos os Cristos (SCHALK, 1988, p.30). Mas, mesmo com toda a exaltao de Lutero pela msica, preciso lembrar que ela era serva do texto, estando portanto subordinada palavra. Mdolo (2005, p. 124), em seu artigo Impresso ou Expresso, refora esta idia quando diz que: preciso compreender que, apesar do grande amor de Lutero pela msica, era a teologia a fonte de suas convices sobre o propsito e o uso da msica no culto. Sua conscincia era de que a msica era um dom para ser recebido com gratido e apreo, e que devia ser usado para a glria de Deus e o bem da humanidade. Nada parecia mais natural para ele do que o fato que a msica devia ser juntada Palavra. Do ponto de vista pedaggico, Lutero, que recebe clara influncia aristottlica quanto ao ensino da msica nas escolas, pregava o princpio da Edificao e Educao e era seu desejo que a msica se tornasse instrumento de ensino. Uma de suas preocupaes iniciais era a de us-la na educao para crianas e jovens. Ele acreditava que a msica era uma parte indispensvel na boa educao, no somente por suas prprias causas, mas tambm pela maneira como poderia afetar a vida dos jovens e tambm como, atravs dela, eles poderiam participar dos atos de venerao (SCHALK, 1988, p.29). Desta maneira ento, ele faz com que ela se torne parte do currculo da Lateinschule luterana. Para Lutero a msica deveria ser ensinada e treinada tanto nas escolas quanto nas igrejas e ele era inflexvel sobre a necessidade de treinamento em msica para pastores e professores, pois7

O prprio Lutero cantava, tocava flauta e ao que parece sua habilidade no alade era muito mais que modesta (SCHALK, 1988, p. 20).

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eles eram os responsveis pelo ensino dos jovens e pelos servios religiosos. Lutero era particularmente desdenhoso com aqueles que queriam ser telogos quando no sabiam nem ao menos cantar, mas fazia grandes elogios para aqueles que ensinavam os jovens a cantar e praticar a Palavra de Deus (SCHALK, 1988, p. 30). Lutero via claramente adequado, como uma boa obra para a Glria de Deus, o apoio financeiro msica, organizaes musicais e msicos. Para ele, a falta deste apoio seria uma traio ao uso do bom presente de Deus ao servio de Sua gente. Para tanto ele era eminentemente prtico na sua insistncia na qual os reis, prncipes, lordes (bem como se possvel as pessoas comuns) deveriam apoiar e dar suporte aos Kantoren e aos Coros (SCHALK, 1988, p. 25). O interesse de Lutero na msica como uma arte prtica fez com que ele prprio engajasse seu interesse e ateno em compor hinos, cantos e, em menor quantidade, msica polifnica. Em cada uma destas reas, Lutero deu sugestes especficas de como complas, no hesitando em comp-las ele mesmo, de acordo com o que ele tinha em mente. Segundo Dreher em Martinho Lutero Obras Selecionadas vol. 7, (LUTERO, 2000, p. 476) no final do sc. XVI chegou-se a afirmar que Lutero teria composto 137 hinos, mas este nmero no comprovvel e at hoje tema de controvrsia.

2.2. A msica no culto reformado

Para Lutero a msica era uma ddiva divina que ocupava, depois da teologia, o mais alto lugar e honra, pois era uma criao e um presente de Deus para a humanidade. Ele acreditava ser a msica a nica arte capaz para proclamar o Evangelho e deveria ser usada no novo culto reformado como prece para glorificar o Criador, especialmente atravs da proclamao de Suas palavras. Na venerao catlica do perodo, a Bblia tinha pouqussima importncia. Poucos trechos essenciais eram lidos em latim durante os servios. A congregao no necessitava saber o significado das palavras, pois deveria apenas testemunhar o servio religioso e no participar dele. No era conveniente que os leigos estudassem e

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interpretassem a Bblia, esta funo era dada aos padres. Lutero discordava desse princpio e acreditava que o papel do padre era ajudar cada pessoa a entrar em contato direto com Deus e para isso deveriam compreender a Bblia8 o mximo possvel. A partir disso ele resolve traduzi-la para o alemo e, buscando a participao direta dos fiis nos cultos, ele inova o servio religioso passando-o para o vernculo, desta forma todos poderiam entender e participar do culto. Na nova teologia reformada houve a absoluta prioridade da pregao da Palavra9 sobre o sacramento. Os sacramentos foram questionados e Lutero, baseando-se nas Escrituras10, aceitava apenas dois: o batismo e a eucaristia. A Salvao no seria outorgada nem recebida pela mera realizao do sacramento, mas pela Palavra que era a viva voz do Evangelho (viva vox evangelii) (EICHER, 1993, p. 762). Agora, com a incumbncia da Salvao dada a Palavra, a msica aliada a ela tem tambm uma enorme responsabilidade no novo culto luterano, pois era tambm com ela que o sermo seria realizado. A msica passa a ser um veculo da Palavra e assume a funo de Sermo sonoro (Sonora praedicatio). Lutero acreditava que o uso da msica nas prdicas faria com que o ouvinte (fiel) fosse levado a um estado de receptividade s palavras faladas, suscitando a calma e tranqilizando os coraes, tornando-os receptivos Palavra e s verdades de Deus (BARTEL, 1997, p.8). O texto falado poderia ser entendido intelectualmente, mas, tanto os textos quanto os afetos poderiam ser expressados mais enfaticamente atravs da adio da msica. Neste ponto fez-se o uso da arte da retrica, que era usada como instrumento de persuaso, com a finalidade de edificar a congregao. Os compositores deveriam lanar mo de todos os artifcios possveis para edificar o texto musical. Seguindo orientao do prprio Lutero, a msica deveria centrar todas as suas notas e seus cantos no texto, a msica vivificaria e carregaria o texto, estando a seu total servio.8

Baseada na justificao pela f, no sacerdcio universal e na nica autoridade da Bblia, a Reforma protestante coloca o fiel em relao direta com Deus, cuja Palavra est na Bblia, que se deve ler e interrogar diariamente (ARIS, 2004, p. 102). 9 Muitas vezes Lutero frisou que Palavra, no sentido bblico e teolgico do termo, seria algo de totalmente diverso do que aquilo que esteve ligado com este conceito na filosofia desde Aristteles. Ao contrrio de Aristteles, Lutero concederia que Palavra Deus mesmo na sua perfeio, e que Palavra e Jesus Cristo so idnticos (EICHER, 1993, p. 762). 10 Para Lutero somente Deus pode ter a Palavra e ele fala pela Escritura, por isso a Bblia a regina (rainha) (EICHER, 1993, p. 762).

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Para Mdolo (2005, p. 124) a msica do culto reformado apresentaria a funo de msica de expresso 11, ou seja, msica que no valoriza o fenmeno musical em si, mas sim aquela cujos textos tinham sido elaborados e escolhidos para que a mensagem neles contida seja compreendida, absorvida e fixada pelos participantes, e cujo sentido seja reforado pela prpria msica. Msica, portanto, que deve ser serva do texto e veculo para que este seja bem compreendido pela comunidade. Do ponto de vista da liturgia, Lutero era muito conservador e desejou alterar a Missa catlica, da qual ele tinha muito apreo, to pouco quanto possvel. Segundo Bainton (1950, p. 265), um dos pontos principais da mudana era a excluso das partes da Missa que fizessem aluso ao sacrifcio. Lutero comea a fazer em 1523 algumas revises mnimas essenciais no culto. Ainda em latim, ele modificaria a nova missa em alguns pontos, como por exemplo, excluindo o cnone pois esta era a parte na qual ocorria a referncia ao sacrifcio. Lutero restauraria a nfase da Igreja primitiva sobre a Ceia do Senhor como um ato de agradecimento a Deus e companheirismo atravs de Cristo com Deus e com cada um. A primeira missa Luterana era somente um ato introspectivo de adorao, no qual os verdadeiros cristos estavam engajados em orao e louvor. Mas, rapidamente, Lutero veio a reconhecer que um ato de adorao sem explanao no era possvel para a maioria da congregao. A Igreja envolvia a comunidade e a congregao consistia no povo da cidade de Wittenberg e nos camponeses das vilas em volta. Quantos destes camponeses poderiam entender sua reviso da missa se ela se mantivesse em latim? Eles poderiam, claro, reconhecer algumas mudanas, como a troca envolvida em dar-lhes o vinho, assim como o po, e perceberiam que alguma coisa tinha sido alterada sobretudo quando as partes inaudveis fossem descontinuadas. Mas, uma vez que a missa estava ainda toda numa lngua estrangeira, eles poderiam, somente com muita dificuldade, perceber que a idia do sacrifcio tinha desaparecido. A missa, portanto, precisava ser em alemo e

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Diviso da msica em duas funes bsicas: msica de expresso e impresso, criada e proposta pelo grupo de pesquisadores alemes da Westflische Landeskirchenmusikschule (Escola de Herford) que, durante a 2. Metade do sc. XX, era responsvel por elaborar toda a msica da Igreja Luterana Alem. Diferentemente da msica de expresso, a msica de impresso era a msica emotiva e de efeito contagiante que, embora possa vir acompanhando o texto, dele no depende nem com ele se preocupa. Sua finalidade alcanar os presentes emocionalmente, criando um ambiente preparatrio, suposto ou verdadeiramente litrgico (MDOLO, 2005, p. 122).

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gradualmente Lutero chegou concluso que ele prprio deveria fazer a reviso. No Natal de 1525 ele introduz em Wittenberg a nova Missa Alem12. A idia do sacerdcio universal13 surgida em decorrncia da Reforma, fez com que a antiga Missa latina deixasse de ser a base ao servio. A nova Missa Alem destinava-se gente simples, e muitos que iam assisti-la no eram crentes. Assim, a igreja tornaria-se agora no somente a casa de orao e adorao mas tambm uma sala de aula, pois missa passaria a ter mais escrituras e mais instruo para os fiis (BAINTON, 1950, p. 266). Em sua Missa Alem Lutero deu minuciosas instrues para a parte musical do servio. O servio iniciaria com uma cano religiosa ou salmo que deveria ser cantado por todo o coro, que cantaria novamente antes do Evangelho; durante a celebrao da Comunho Sagrada a congregao cantaria o Sanctus alemo Deus seja Louvado, o hino de Jan Hus (1369-1415) Jesus Cristo Nosso Salvador ou Agnus Dei alemo. (NETTL, 1948, p.79) Na nova liturgia, a mudana principal na frmula da nova missa ocorreu na msica e sobre trs pontos: o canto entoado pelo sacerdote; os corais interpretados pelo coro e os hinos cantados pela congregao. A primeira poro meldica da liturgia a ser reformada foi a parte entoada pelo sacerdote, incluindo a Epstola e o Evangelho. Lutero estava to desejoso que cada palavra da escritura pudesse ser distintamente ouvida e entendida que foi um milagre que ele no tivesse abolido a msica toda em favor da leitura em voz natural. A explicao para o uso da msica no canto do sacerdote se d devido ao fato de que a palavra cantada seria mais condutiva, ou seja, mais facilmente compreendida, que a falada (BAINTON, 1950, p. 267). Lutero empregou cada artifcio para expor o sentido das palavras. Somente uma nota poderia ser usada para cada slaba, e o rgo14 acompanhante no podia sobrepujar as palavras. O texto do evangelho no poderia ser obscurecido e as sete palavras de Cristo na cruz no poderiam ser misturadas com os outros12

Na Missa Alem todas as partes estavam em alemo, exceto o refro grego Kyrie Eleison. As mudanas deixaram intacta a estrutura essencial da antiga missa catlica, retendo muitos elementos papais como, por exemplo, genuflexes, vestimentas, leituras, etc. (BAINTON, 1950, p. 266). As missas dirias foram abolidas. Os cnticos usuais foram mantidos, porm eliminando-se as partes que se referiam aos santos. As festas dos santos tambm desapareceriam e a pregao passaria a ser o elemento principal do culto. 13 Idia pela qual o prprio fiel, sem a intercesso de um pastor, poderia fazer a interpretao das Escrituras, podendo e devendo aproximar o fiel de Deus (NETTL, 1948, p. 72) 14 Durante o servio o rgo era apenas usado nas antfonas (BAINTON, 1950, p. 267).

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quatro evangelhos15. O sentido poderia ser mais enfatizado pelo colorido musical dramtico. Lutero introduziu diferentes registros para a narrativa do evangelista, para as palavras de Cristo e para as palavras dos apstolos. O registro principal ele manteria agudo, pois sua prpria voz era de tenor, mas explicou que se tratava apenas de sugestes, e que cada celebrante poderia descobrir e adaptar as partes musicais para seguir sua prpria extenso vocal. A ateno que Lutero, em todos estes aspectos, devotou ao colocar msica para o texto em prosa da escritura no vernculo, preparou o caminho para os Oratrios. O grau de ajuda que ele recebeu em sua tarefa, aparece em um relato de seu colaborador, o compositor Johann Walther (1492-1548), que escreveu (in, BAINTON, 1950, p.268):

Quando Lutero, 40 anos atrs, quis preparar sua Missa Alem, ele pediu ao Duque Johann eleitor da Saxnia, que Conrad Rupff e eu fossemos convidados para ir a Wittenberg, onde ele podia discutir msica e a natureza dos oito modos dos salmos gregorianos. Ele preparou a msica para a Epstola e Evangelhos, semelhante as palavras da consagrao do verdadeiro corpo e sangue de Cristo; ele as cantou para mim e pediu-me para expressar minha opinio sobre seus esforos. Neste perodo ele me manteve durante trs semanas em Wittenberg, ns discutimos como as epstolas e evangelhos podiam ser adequadamente compostos. Eu passei horas muito prazerosas cantando com ele e descobri, frequentemente, que ele aparentemente no se cansava, nem ficava farto de cantar; alm disso ele sempre estava disposto a discutir msica com eloqncia. Lutero deu grande ateno organizao musical da Missa Alem. Segundo NETTL (1948, p.77) uma olhada em seus escritos sobre a Missa confirmam, no que concerne aos modos musicais, as afirmaes de Praetorius. Como ocorria j na msica da Paixo pr-Luterna, diferentes tretracordes do modo hipoldio foram usados para Vox Personarum (todos os personagens na histria, exceto Cristo) e a Vox Christi. O tom principal o tom central na qual a voz continuamente permanece, ou retorna, depois de pequenos desvios colocada uma quinta acima das Palavras de Cristo para o Evangelista. A partir deste fato ficou o costume, ainda encontrado em Paixes posteriores, do Evangelista cantar na voz do tenor e Jesus no baixo. Esta origem pr-Luterana retoma a15

Esta tradio luterana de no misturar as palavras dos evangelhos explica o porqu de Bach compor a

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concepo que a mais alta dignidade de Cristo melhor expressada pela voz masculina, isto , uma voz grave. Para o canto do Pastor, Lutero manteve o princpio do canto gregoriano, mas com algumas mudanas e simplificaes. Prova de sua compreenso lingstica, musical e psicolgica, o fato de que, ao usar a lngua alem ele dispensou os melismas e ligaduras do canto gregoriano, de tal forma que somente uma nota correspondia a cada slaba. Outra caracterstica o tratamento de Lutero dado pergunta no texto. Uma vez que a pergunta na lngua alem geralmente combinada com a elevao da voz no final do perodo, o final da pergunta no canto tambm terminaria com a nota mais aguda. Um reflexo disto pode ser encontrado nas paixes do sc. XVII e em Bach. Nas reformas litrgicas de Lutero, a estrutura da Missa Latina manteve-se virtualmente intacta, mas o cerne do rito Romano, o Canon da Missa, foi severamente abreviado e teologicamente reinterpretado. Na Missa medieval o Canon era longo, inaudvel e adequadamente interpretado como sacrifcio propiciatrio. Lutero

essencialmente trocou-o pelas Palavras da Instituio (Verba testamenti institutionis), as quais eram no simplesmente para serem ouvidas, mas tambm para serem cantadas pelo celebrante. Para Lutero estas palavras de Jesus Cristo no eram um pedido propiciatrio endereadas a Deus, mas palavras de abertura da proclamao de Deus. Uma vez que estas palavras proclamariam o Evangelho de Cristo, Lutero insistiu que elas deveriam ser cantadas (BUTT, 1997, p. 42). Na Missa Romana as Palavras da Instituio da Sagrada Comunho no eram cantadas mas meramente murmuradas. Lutero sentiu-se assim, obrigado a introduzir uma inovao radical neste ponto e no foi desproposital sua inteno de colocar mais luz nesta parte da Missa. As palavras que se referiam ao significado do corpo de Jesus e as quais se referiam ao sangue no Novo Testamento, foram, da mesma maneira, igualmente tratadas musicalmente. Em alemo as palavras so: Unser Herr Jesu Christ, in der Nacht da er verraten ward, Nam er das Brod, dankt und brachs, und gabs seynen Jungern und sprach:

Paixo Segundo So Joo e So Mateus.

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Nempt hyn und esset, das ist mein leyb, der fr euch gegeben wyrd, solches thut so offt yhrs thut, zu meynem gedechtnis.16 O canto gregoriano da Epstola e o Evangelho foram mantidos para a voz grave at o fim. Assim como os cantos de outros textos que igualmente profundamente o comoviam, este tambm Lutero comea com a nota aguda C, enfatizando a primeira slaba Unser (Nosso). Ento a voz, como que com humildade, desce uma tera, situandose em torno da nota A, descendo depois ao F na segunda slaba da palavra verraten (trair), expressando um profundo desespero pelo delito de Seus discpulos. Aqui, onde o prprio Jesus diz Nempt (Tome), a melodia inicia-se com um F grave, com uma simplicidade concisa, movendo-se em torno do tom principal, elevando at a frase fr euch (para vocs), como para dar uma expresso meldica de salvao pela morte do Salvador. O que vivenciamos, irradiados pela simples seqncia de notas cheia de simbolismo, o quo profundamente pessoal isso era sentido por Lutero, que o sentia com pesar e ainda com consoladora devoo, irradiado pelo mistrio da comunho. (NETTL, 1948, p. 79). Ns encontramos tais sentimentos novamente mais tarde reverentemente expressados nas Paixes de J. S. Bach e no Parsifal de Richard Wagner, entre outras. O segundo elemento a ser revisado foi o coral para o coro. Aqui, um rico acompanhamento musical estava disponvel na polifnica msica religiosa da Holanda, a qual Lutero, acima de tudo, admirava. A melodia do canto gregoriano foi tomada como uma base e acerca dela trs, quatro ou mais vozes rodavam com ornamentos elaborados em contraponto. Lutero, no prefcio para o trabalho musical de 1538, pessoalmente coletou numa simples passagem, tudo de seu louvor da msica junto com a mais adequada descrio jamais contida no coral polifnico holands (in BAINTON, 1950, p.268): Para todos os amantes da arte liberal da msica o Dr. Martinho Lutero deseja a graa e paz de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. Com todo o meu corao eu louvaria o precioso presente de Deus na nobre arte da msica, mas eu raramente sei onde comear ouNosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi trado, toma do po, agradece e parte-o, d aos seus discpulos e diz: Tomai e comei, este meu corpo que vos dado, fazei isso em minha memria.16

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terminar. No h nada na terra que no tenha o seu tom. Mesmo o ar invisvel conta quando atinge duramente um corpo. Entre os animais e os pssaros o canto ainda mais maravilhoso. Davi, ele mesmo um msico, testemunhou com assombro e alegria o canto dos pssaros. O que ento eu diria da voz humana, com a qual nada mais pode ser comparado? Os filsofos pagos tm tentado duramente em vo explicar como a lngua do homem pode expressar os pensamentos do corao na fala e no canto, atravs do riso e da lamentao. A msica para ser louvada como apenas Palavra de Deus, pois atravs dela, todas as emoes flutuam. Nada da terra mais poderoso para tornar o triste alegre e o alegre triste, animar o deprimido, abrandar o arrogante, temperar o exuberante, aplacar o vingativo. At o Esprito Santo paga tributo msica quando registra que o esprito maligno de Saul foi exorcizado quando Davi tocou sua harpa. Os Pais desejam que a msica sempre permanecesse na igreja. por isso que existem tantas canes e salmos. Este precioso presente tem sido conferido aos homens somente para lembr-los que eles foram criados para louvar e engrandecer o Senhor. Mas, quando a msica natural afiada e polida pela arte, ento comeamos a ver com assombro a grande e perfeita sapincia de Deus em seu maravilhoso trabalho da msica, onde uma voz toma uma simples parte e ao seu redor cantam trs, quatro ou cinco outras vozes, saltitando, pulando em crculos, tornando maravilhosamente graciosa a parte simples, como uma dana quadrada no cu, com amigveis reverncias, abraos e voltas amveis dos parceiros. Aquele que no encontra nisso um inefvel milagre do Senhor verdadeiramente um estpido e no vale a pena ser considerado um homem. De acordo com Lutero, a msica no tinha como menor mrito ser matria de discusso. Ele nunca foi controverso em relao ao canto. Os grandes corais polifnicos da Holanda eram catlicos, mas Lutero no via razo para deixar de am-los ou de utiliz-los. Novamente, quando os duques da Bavria tornaram-se seus inimigos mais violentos, ao ponto que se algum recebesse uma carta sua poderia estar em perigo, ele aventurou-se a escrever ao compositor bvaro Ludwig Senfl (in BAINTON, 1950, p. 269): Meu amor pela msica me induz a ter esperana que minha carta no o colocar em perigo de modo algum, quem, mesmo na Turquia, poderia reprovar algum que ama a arte e louva o artista? Por alguma razo eu louvo seus duques bvaros, mesmo que eles

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no gostem de mim, e eu os honro sobre todos os outros, pois eles cultivam e honram a msica. Erasmo visou preservar as unidades polticas europias, Lutero conservou-as na msica. O coral polifnico pedia um coro. Lutero era muito obstinado em seus esforos em favor dos coros treinados. Os coros mantidos pelos prncipes alemes eram dignos de nota, pois eram providos de cantores treinados. Foram formadas as sociedades corais nas cidades e sobretudo as crianas foram treinadas nas escolas. A ltima e maior reforma de todas foi no canto congregacional. Na Idade Mdia a liturgia era quase inteiramente restrita ao celebrante e ao coro. A congregao juntava-se em pequenos responsrios no vernculo. Lutero desenvolveu assim este elemento, podendo ser considerado o pai do canto congregacional. Este era o ponto na qual sua doutrina do sacerdcio de todos os crentes recebeu sua mais concreta realizao. Este foi o ponto, e o nico ponto, ao qual o luteranismo foi totalmente democrtico; todo o povo cantava. O Credo e o Sanctus, partes da liturgia foram convertidas em hinos. Em 1524 Lutero elaborou um livro de hinos com 23 hinos, dos quais ele era o autor das letras e em parte o compositor. Doze eram livres parfrases de hinos latinos. Seis eram versificaes de salmos. Suas prprias experincias de angstia e libertao tornaramno capaz de fazer, com um sentimento muito pessoal, tais interpretaes livres de salmos. O povo de Lutero aprendeu a cantar. Ensaios eram feitos durante a semana para toda a congregao; em casa, aps a hora catequtica, cantar era recomendado para toda a famlia. Um jesuta testemunhou que os hinos de Lutero matavam mais almas que os seus sermes.

2.3. Lutero e Bach

Bach foi um profundo devoto e seguidor de Lutero e esta devoo foi herdada de suas geraes anteriores. Durante toda a sua vida ele se manteve fiel aos princpios ortodoxos luteranos, aplicando tais princpios em suas obras.

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A educao inicial de Bach, sob a guarda de seu irmo mais velho Johann Christoph, foi no ortodoxo Lyceum em Ohrdruf e foi de natureza a no causar qualquer mudana no mbito da estrita tradio ortodoxa luterana, assim como em Arnstadt, cena de suas atividades como organista, onde esta rgida atmosfera tambm seria mantida. Foi no perodo de Mlhausen (1707-1708), onde ele foi organista da St. Blasius-Kirche, que aconteceu uma aproximao direta de Bach com o pietismo17. Por este perodo estava ocorrendo uma disputa envolvendo os pietistas e os ortodoxos da cidade. Bach estava entre esta disputa teolgica, porm posicionou-se a favor dos ortodoxos, ao lado do pastor da Marienkirche, George Christian Eilmar, mesmo tendo em conta que o lder dos pietistas da cidade era o seu superior hierrquico Johann Adolph Frohne. Entretanto, mesmo entrando em conflito muitas vezes com o ncleo luterano pietista, pode-se notar tambm traos de influncia do pietismo em seus trabalhos. Um grande nmero de textos mais tarde usados por Bach nas cantatas, reflete a absoro da linguagem e idias Pietistas e, de fato, a influncia cruzada entre as tendncias pietistas e ortodoxas. Mas, apesar de tudo, Bach nunca se deixou levar pelo conflito agressivo entre Kirchen- e Seelen-Music (msica tradicional da igreja de um lado e msica para a alma de outro) que tinham um efeito sufocante em ambas, tanto na vida musical sacra quanto na secular em qualquer lugar da Alemanha (WOLFF, 2000b, p. 114). As idias pietistas devem ter sido contrrias sua forte franca natureza, sua individualidade e sua filosofia como msico. O exagerado sentimento do pietismo no poderia atrair um carter como o

O Pietismo foi um movimento surgido na Alemanha no sc. XVII, cujo primeiro lder foi o pastor da cidade de Frankfurt, Phillip Jacob Spener. O movimento surgiu a partir do declnio religioso do luteranismo alemo do sc. XVI e XVII, causado pelo excessivo interesse dos telogos ortodoxos em defender a ortodoxia da doutrina luterana em vez de procurarem fortalecer a vida espiritual do povo, induzindo-os ao servio cristo. O Pietismo pregava sermes de carter prtico, fervoroso e simples, evitando aquele estilo rgido de oratria to em moda neste perodo. Insistia na verdade da regenerao, aquela mudana produzida no corao do homem de f, pelo Esprito de Deus; insistia no fato de que, ser nascido de Deus e levar uma vida de santidade e servio, era infinitamente mais importante do que ter pontos de vida ortodoxos quanto doutrina. Spener com o Pietismo reavivou a doutrina bsica da Reforma, o sacerdcio universal dos crentes, e provou que um dos sentidos prticos dessa doutrina era que os leigos deviam participar dos servios religiosos, ensinando e ajudando uns aos outros. O movimento cresceu com muita rapidez e tomou o carter de um forte e grande despertar espiritual. Encontrou severa oposio dos telogos ortodoxos e dos que se opunham aos estritos ensinos morais dos pietistas. Por volta de 1685, o Pietismo tornou-se a influncia dominante no Protestantismo alemo, revigorando-o espiritualmente. Seu segundo grande lder foi August Frank, pastor e professor da Universidade de Halle, cuja cidade, juntamente com a Universidade, tornaram-se o centro do movimento (NICHOLS, 2004, p. 212).

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de Bach, uma vez que a doutrina teolgica pietista havia intencionado proibir a msica como arte nas igrejas, o que era completamente contrrio idia luterana, na qual a msica era um instrumento do Esprito Santo. Teoricamente Bach recusou aceitar o pietismo, mas suas obras foram imbudas com o esprito do misticismo a ele pertencente. Aps sua morte, em seus pertences, foram encontrados muitos trabalhos teolgicos e entre eles estava a edio completa dos trabalhos de Lutero. Fica evidente assim que o grande mestre aderiu estritamente viso luterana. Os ensinamentos de Lutero esto presentes, se no em toda, em grande parte de sua obra e talvez tenha sido ele o mais luterano entre todos os compositores luteranos. Bach fazia sua msica para a maior Glria de Deus e quando colocava a abreviatura SDG (Soli Deo Gloria) em seus trabalhos queria indicar com isso que a obra tambm estava composta em conformidade com os padres luteranos de msica e poderia ser usada nos divinos servios sem problemas. Enquanto a msica de igreja da poca da Reforma colocava em primeiro plano as Escrituras (como as simbolizadas no coral), no barroco inicial (por exemplo com os compositores Schein e Schtz) houve a nfase na interpretao das Escrituras. No perodo ps-Schtz (barroco tardio com Hammerschmidt, Pachelbel e Buxtehude, por exemplo) consolidou-se o uso de interpretaes das escrituras, chegando-se ao uso de textos contemplativos livres. A palavra das Escrituras foi negligenciada e a interpretao do texto tornou-se o trao principal. O resultado produzido foi o surgimento da chamada Erbauungs Kantate (Cantata de Edificao) cuja forma foi cultivada, entre outros, pelos compositores Johann Kuhnau e Georg Boehm (NETTL, 1948, p. 132). Esta interpretao individual alcana seu ponto mximo com Bach, que com sua personalidade superior fez com que a forma cantata fosse identificada consigo mesmo, devido a sua incomparvel inspirao. Deve-se ainda enfatizar a forte personalidade religiosa de Bach. Uma vez que Lutero considerava a msica como legtimo meio de expresso da f, e que a teologia luterana afirmava que a graa recebida como presente aos homens, no merecedores j

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que pecadores, Bach foi estimulado para a criao de uma msica alegre18, bela, jubilosa e que representasse a gratido a Deus. Deve-se reconhecer ainda na Igreja Luterana, uma certa liberdade litrgica que permitiu a evoluo musical desde o seu incio at Bach.

Fig. 1. Painel na Schlosskirche em Wittenberg com inscrio de Lutero (Foto da autora) (Nesta casa de Deus deve ser visto, que o nosso amado Senhor conversa conosco atravs de suas Sagradas Palavras e ns a ele nos voltamos atravs da Orao e do Canto de Louvor- Lutero )

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Esta afirmao no pretende negar a existncia de trechos musicais nas cantatas e paixes, em que Bach intencionalmente representa a dor, a morte o desespero. Mesmo em tais trechos pode-se afirmar que est implcita a esperana e o conforto.

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Captulo 2. A Cantata e Bach1. A Cantata Origem

A palavra cantata aparece pela primeira vez na Itlia em 1620, quando alguns compositores Venezianos, notadamente Alessandro Grandi e Giovanni Berti, publicam um livro de canes seculares chamado Cantade et aria. Grandi adotou o termo para definir trs peas as quais achou inadequado usar a palavra ria. Elas eram essencialmente peas com variaes estrficas, mas se diferenciavam no uso do baixo que se movia regularmente em semnimas e a linha vocal variava em cada estrofe, se assemelhando mais a um madrigal (SADIE, 2001. Vol.5, p.9). A cantata surge, ento, como uma monodia com variao estrfica que se desenvolve numa forma musical composta de sees contrastantes. Na segunda metade do sc. XVII ela assume uma forma mais definida de recitativos e rias alternados, para solista com acompanhamento de contnuo, sobre um texto lrico ou por vezes semi-dramtico, sob a forma de uma narrao ou monlogo. Assim, no seu incio a cantata se assemelhava a uma cena extrada da pera, com a diferena de ser concebida para ser executada numa sala, sem figurinos e cenrios e para um pblico menor e mais seleto que os do teatro. Devido a este carter mais elevado, oferecia aos compositores oportunidades maiores de experimentao de efeitos musicais. O italiano Luigi Rossi (1597-1653), importante compositor de pera da escola romana, foi o primeiro a se destacar nesta nova forma musical.

1.1. A Cantata Alem

A cantata alem teve um desenvolvimento diferente das cantatas dos demais pases da Europa, sobretudo por ter sido cultivada para ser um gnero sacro e tambm por ter na sua origem e no seu desenvolvimento muitas diferenas em relao ao modelo italiano (SADIE, 2001, v. 5, p. 21), como por exemplo, a natureza heterognea dos textos e

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das estruturas musicais, que foi uma marca contrastante com a maioria dos elementos da forma italiana. A cantata de igreja, que desempenhou um papel to vital na produo de Bach, foi um produto tpico do perodo barroco. Resultou do concerto sacro com texto em alemo, uma forma seiscentista em que o fascnio da poca pelo uso de grupos de sons rivais encontrou plena expresso. Os solistas competiam entre si e com o coro, e os cantores com os instrumentistas. O tratamento vocal era freqentemente brilhante e propiciava ampla oportunidade para a exibio de habilidades tcnicas, alm disso, uma interpretao altamente expressiva do texto era encorajada. Aos instrumentos eram tambm confiadas importantes tarefas, no sendo incomum num concerto sacro, uma introduo puramente instrumental. Entre os principais compositores do gnero neste perodo Samuel Scheidt (1587-1654), Franz Tunder (1614-17) e Johann Pachellbel (1653-1706) basearam seus concertos em canes de igreja, outros compositores como Heinrich Schtz (15851672) e Dietrich Buxtehude (1637-1707) preferiam musicar livremente os textos bblicos. Em um uso moderno, a palavra alem Kantate, refere-se tanto forma secular barroca quanto forma Protestante de msica de igreja, que alcanou seu mais alto ponto de desenvolvimento e realizao com as cantatas de Bach. O termo Kantate foi primeiramente usado no sc. XIX pelos editores da Bach-Gesellschaft para designar genericamente as obras de Bach deste tipo. Spitta foi o responsvel por estender esta denominao para as demais obras anlogas no gnero dos outros compositores alemes desde Schtz. Em 1700 Erdmann Neumeister (1671-1756) de Hamburgo, telogo ortodoxo, mas tambm poeta com inclinaes pietistas, criou um novo tipo de poesia sacra destinada a ser musicada, que designou pelo termo cantata (GROUT; PALISCA, 2001, p. 386). At o final do sc. XVII os textos das composies luteranas compunham-se principalmente de passagens da Bblia ou da liturgia da Igreja, juntamente com versos extrados de corais. Neumeister acrescentou a este repertrio estrofes de poesia, versos madrigalescos, que comentavam um dado do texto das Escrituras e explicavam o seu sentido ao fiel, com o intuito de que a poesia musicada os levasse a uma reflexo individual e devota do texto.

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Desta forma, ele iniciou o desenvolvimento dos textos que resultou na funo da cantata como sermo musical. Os textos poticos acrescentados eram concebidos para serem musicados como ariosos ou como rias e com um recitativo introdutrio. Duas novas formas inspiradas na cantata secular e na pera foram adicionadas: o recitativo seco e a ria da capo. O contraste entre os movimentos musicais claramente separados tornou-se regra. Neumeister caracteriza a cantata sacra em 1704 na Geistliche Cantaten statt einer Kirchen-Music19

Se permitis que me exprima sucintamente, uma cantata no parece ser mais do que uma pea extrada de uma pera, sendo composta por estilo recitativo e rias. Quem saiba o que estes dois estilos requerem no achar difcil trabalhar com tal tipo de cano. Ainda assim, pemiti-me que diga alguma coisa sobre ambos, prestando um servio aos principiantes no domnio da poesia. Para um recitativo escolhei um verso jmbico. Quanto mais curto for, mais aprazvel e fcil ser de compor, embora num perodo emotivo possa introduzir-se de vez em quando, com efeito agradvel e expressivo, um par de versos troqueus, ou dactlico. Quanto s rias, direi que podem constar de duas, ou mais raramente, de trs estrofes, contendo sempre alguma emoo, ou moral, ou qualquer afeio especial. Deveis escolher, conforme vos aprouver, um gnero adequado. Na ria o chamado capo, ou comeo, pode ser repetido no fim integralmente, o que em msica produz um efeito extremamente agradvel. A apresentao da cantata ocupa o lugar do moteto evanglico como principal pea musical no servio religioso luterano. Os motetos dos perodos renascentista e barroco eram escritos, primordialmente para um grupo de cantores e no para solistas vocais. Os instrumentos musicais forneciam com freqncia reforo ou apoio para as vozes e no se usavam partes instrumentais independentes. Durante o sc. XVII, o moteto latino foi perdendo gradualmente terreno na igreja luterana. Tornou-se costume executar durante os servios religiosos motetos escritosGrout, DJ, Palisca, CV, Histria da Msica Ocidental. 2. Ed. Lisboa, Gradiva, 2001, p. 387. Cit. in Max Seiffert (ed.), J.P. Krieger, 21 augewhlte kirchen Kompositionen, Ddt. 52-53, Leipzig, 1916, p. IXXVII, trad. para o ingls de C. Palisca; verso para o portugus de Ana Luiza Faria.19

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por compositores mais antigos, e os Kantoren mostravam-se, por conseguinte, relutantes em contribuir com novas obras para a antiquada forma. Por outro lado, o moteto alemo permaneceu em uso geral e era cantado em ocasies especficas como casamentos, porm, era especialmente adequado a servios fnebres. Como textos, preferencialmente eram usados versos corais e textos bblicos que em geral eram usados de maneira alternada, porm algumas vezes, poderiam aparecer falas simultneas, com diferentes vozes apresentando textos diferentes (GEIRINGER, 1985, p. 120) . Como explica Wolff (2000, p. 278), desde a Reforma o moteto passa a ter a funo, dentro da tradio luterana, de aprofundar o entendimento da leitura do evangelho. O moteto, que imediatamente seguia o texto correspondente da leitura do dia, o Prprio da Missa, geralmente ilustrava um ou mais versos bblicos centrais. Por volta do fim do sc. XVII, o moteto evanglico foi substitudo pelo moteto concertato, que teve o acrscimo de rias e coral, e aps 1700 foi substitudo pelas cantatas, cujo maior nmero de partes com poesia permitiam realar enfaticamente o texto bblico. No servio litrgico luterano, o Prprio latino da Missa, que a seo que muda de semana para semana de acordo com o calendrio da Igreja, foi gradualmente substitudo por canes e cantatas em alemo. Uma situao diferente prevalecia no tocante ao Ordinrio, que a seo da Missa que permanece inalterada o ano inteiro. No sc. XVI era freqente que Kantoren luteranos musicassem boa parte do Ordinrio latino. O Credo, porm, era deixado de fora, e algumas vezes era substitudo por uma cano alem. Alm disso, em algumas Missas, fragmentos de textos alemes eram misturados com as palavras latinas tradicionais e com melodias corais protestantes introduzidas na msica. Aos poucos, o servio luterano tornou-se cada vez mais uniformemente alemo, embora para ocasies festivas especficas os textos latinos permanecessem em uso. Em particular, ainda eram empregados a Missa latina ou Missa brevis (consistindo unicamente em Kyrie e Gloria), assim como o Sanctus, reservados para as celebraes mais solenes. Cidades como Nrnberg e Leipzig, onde prevalecia o pensamento religioso ortodoxo, levaram essa tradio at o sc. XVIII (GEIRINGER, 1985, p. 123).

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1.2. As cantatas de Bach

As cantatas sacras formam a maior parte da produo musical de Bach. Ele comps cantatas durante grande parte de sua vida, porm foi nos seus ltimos anos, perodo em que se encontrava em Leipzig, que houve sua maior produo e onde h a maior documentao. De acordo com o seu obiturio, escrito por seu filho Carl Philipp Emanuel e por seu aluno Johann Friedrich Agricola, Bach comps cinco ciclos anuais (Jahrgnge) completos de peas de igreja para todos os domingos e festas (DAVID; MENDEL, 1988, p. 304). Dos cinco ciclos anuais, os trs primeiros esto completos e os dois ltimos fragmentados. Um ciclo anual completo era composto de aproximadamente 65 cantatas, levando a uma soma total de 300 cantatas, das quais cerca de 200 foram preservadas. As peas de igreja referidas no obiturio de Bach foram muito raramente chamadas de cantatas por ele prprio. Ele algumas vezes usou termos como: Ode; Dilogo; Moteto ou Concerto (STAPERT, 2000, p. 20). Na maioria das obras ele no usou nenhum termo para design-las, sendo simplesmente identificadas pelo dia do ano litrgico para a qual foram compostas. Todavia, o termo cantata, que mais tarde veio a ser usado em seu sentido genrico para designar composies sacras para voz(es) e instrumentos, tornou-se a designao geral para as suas peas de igreja. O modelo de texto do poeta-telogo Erdmann Neumeister foi o usado para os textos das cantatas sacras de Bach de Leipzig, que se baseava de maneira severa na dupla funo de pregao da homilia luterana: explicatio e aplicatio, a exegese bblica e a instruo teolgica, e seguiam uma direo de aproveitamento prtico e moral. O libreto normalmente era iniciado com o dictum bblico, usualmente uma passagem prescrita pela lio do Evangelho, que servia de ponto de partida (Erffnungschor - coro de abertura). Depois seguia-se a explanao escritural, doutrinal e contextual da lio (1. par de recitativo-ria), que faziam as consideraes das conseqncias e das advertncias tiradas da lio, e que conduziriam o fiel a uma verdadeira vida Crist (2. par de recitativo-ria). O texto se concluiria com a orao congregacional em forma de hino (Choral) (WOLFF, 2000a, p. 278).

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2. Dos perodos das composies das cantatas

2.1. O perodo Mlhausen (1707-1708) Em junho de 1707 Bach obtm o posto de organista da St. Blasius-Kirche em Mlhausen em Thuringen. Ele se muda para l vindo de Arnstadt, de onde saiu aps srios desentendimentos com o Consistrio da cidade. Logo aps sua chegada, em 17 de outubro do mesmo ano, se casa com sua prima Maria Barbara Bach na pequena cidade de Dornheim. Neste perodo existe o relato da composio de seis cantatas. Em duas ele utiliza Obo, mas em apenas uma delas, na Cantata BWV 131 Aus der Tiefen rufe ich, Herr, zu dir do ano de 1707, sem determinao do perodo litrgico, existe uma ria (ria no. 2 So du willst, Herr, Snde zurechnen - Erbarm dich mein in solcher Last), transcrita originalmente de um coral, para um obo obbligato com dueto de soprano-baixo (WHAPLES, 1971, p.12).

Cantatas do perodo de Mhlhausen 1707-1708 BWV 4 Christ lag in Todes Banden BWV 71Gott ist mein Knig Zeit (Actus tragicus) BWV 131 Aus der Tiefen rufe ich, Herr, zu dir BWV XIX Meine Seele soll Gott loben

BWV 106 Gottes Zeit ist die allerbeste BWV 196 Der Herr denket an uns

O fato do obo aparecer em duas das seis cantatas compostas, sugere a presena de pelo menos um par de obostas competentes disponveis. Entretanto, o instrumental disponvel na corte para ser utilizado por Bach era bem pequeno, formado por cerca de 20

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msicos (SCHWEITZER, 1966 p. 104), muitos deles eram alm de msicos, sapateiros, cozinheiros, etc., fato muito comum nesta poca. A Cantata BWV 71 Gott ist mein Knig de 4 de fevereiro de 1708, que foi a primeira cantata de Bach a ser publicada (MARSHAL, 1989, p. 6), foi uma exceo na quantidade de msicos. Ela foi composta para a posse do conselho da cidade, e para a ocasio foi utilizado um grande nmero de instrumentistas divididos em quatro coros instrumentais e dois vocais (WOLFF, 2000a, p. 123):

Coro Instrumental I: Trompetes I III, Tmpano Coro Instrumental II: Violinos I, II, Viola, Violone Coro Instrumental III: Obos I, II, Fagote Coro Instrumental IV: Flautas Doces I, II, Violoncelo Coro Vocal I: S A T B solo Coro Vocal II: S A T B ripieno (ad libitum) rgo

As cantatas de Bach deste perodo apresentam como caracterstica uma forte influncia dos compositores do norte e centro da Alemanha, sobretudo Pachelbel, Bhm e Buxtehude, cujas cantatas sacras serviam de modelo. Os libretos baseavam-se quase que exclusivamente em textos bblicos e em versculos corais, com nfase sobre os contrastes dramticos. A sinfonia instrumental inicial era breve e claramente separada das sees vocais. O princpio concertato governa os coros, que se rivalizam com os naipes instrumentais e grande importncia dada ao arioso (recitativo melodioso acompanhado por instrumentos). O recitativo secco no aparece nas composies deste perodo (GEIRINGER, 1985, p. 151). A permanncia de Bach em Mlhausen, que se iniciara de maneira feliz, logo ficaria conturbada. Uma crise gerada entre os pietistas e os luteranos ortodoxos da cidade fez com que Bach entrasse, ao lado dos ortodoxos, em duros conflitos teolgicos, fato este que gerou profundo descontentamento ao seu superior pietista. Tais conflitos teriam conseqncias negativas para Bach e acarretariam no corte de sua moradia e de diversos

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privilgios. Diante dos fatos e das conseqncias, Bach encaminha, em 25 de junho 1708, seu pedido de demisso, ficando portanto, menos de um ano no cargo.

2.2. O perodo Weimar (1708-1717)

Em julho de 1708 Bach se muda para Weimar. Inicialmente vem para ocupar na corte do duque Wilhelm Ernst o cargo de Kammermusicus. A corte do Wilhelmsburg em Weimar era, pela graa e vontade de seu governante, a mais devota das cortes ortodoxas luteranas da Alemanha, e nesta corte que Bach se instala. No novo cargo estava previsto que ele seria puramente um instrumentista e deveria atuar como organista, cravista ou violinista na pequena orquestra da corte. Mas, encorajado pelo prprio Wilhelm Ernst, que lhe d plena liberdade, ele se concentrou no rgo durante os primeiros anos de sua estada, aproveitando para compor muitos preldios e fugas. Com a capela da corte ele executava msica de cmara francesa e italiana, que serviam de fonte de aprendizado, inspirao e experincia para as suas prprias composies. Por ocasio de sua mudana para Weimar, em quatro meses Maria Barbara fica grvida de sua primeira criana, Catharina Dorothea, batizada em 29 de dezembro de 1708 na igreja St. Peter und Paul. Da mesma forma nasceram em Weimar: Wilhelm Friedemann (1710); os gmeos Maria Sophia e Johann Christoph (1713), que faleceram logo aps o nascimento; Carl Philipp Emanuel (1714) e Johann Gottfried Bernhard (1715). De Weimar, Bach ocasionalmente visitava Weissenfels e foi a que, em fevereiro de 1713, ele toma parte numa celebrao da corte local, que incluiu como parte dos festejos, a apresentao de sua primeira cantata secular, BWV 208 Was mir behagt, ist nur die muntre Jagd!, conhecida como a Cantata da Caa, que foi a primeira cantata de Bach a ser influenciada pelo estilo italiano de composio com recitativo e ria da capo. Ainda em 1713 ele teve a oportunidade de ir para Halle, suceder o falecido organista da Liebfrauenkirche, Friedrich Wilhelm Zachow, mestre de Hndel. Porm, como os honorrios oferecidos seriam menores dos que os de Weimar, ele desiste. Aps este

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episdio ele foi ento, em 2 de maro de 1714, promovido ao cargo de Konzertmeister da corte de Weimar. Agora, como parte de suas obrigaes estava a composio de uma cantata por ms. O que se pode mencionar da srie de cantatas compostas entre 1714 16 a bvia e decisiva influncia dos novos estilos e formas da pera Italiana contempornea, e das influncias das inovaes do Concerto Italiano tais como os compostos por Antonio Vivaldi, em especial os concertos LEstro armonico, coleo de concertos compostos em 1712 que foram em grande parte transcritos para rgo por Bach. Este fato foi um momento decisivo no desenvolvimento de Bach: a partir de ento ele passa a combinar o antigo estilo contrapontstico, com as influncias francesas e do norte da Alemanha, com o plano harmnico e de desenvolvimento temtico de Vivaldi. Bach desenvolveu em suas obras vocais o recitativo, aprimorou a ria e o arioso. Os resultados deste encontro podem ser vistos nas cantatas BWV 182, 199 e 61 de 1714; BWV 31 e 161 de 1715; BWV 70 e 147 de 1716. Sua forma favorita, apropriada dos italianos, foram aquelas baseadas no refro (ritornello) ou esquemas da capo, nas quais a repetio em massa literal ou com modificaes de sees inteiras de uma pea, permitiu-lhe criar formas musicais coerentes, com dimenses muito maiores do que at ento tinha sido possvel. Esta nova tcnica adquirida preponderante em um grande nmero de rias e movimentos de concerto de Bach, bem como em muitas de suas grandes fugas (especialmente as mais maduras para rgo) e tambm afeta profundamente seu tratamento dos corais (MARSHALL, 1990, p. 7). Deste perodo existe o relato da existncia de 26 cantatas. Cantatas do perodo de Weimar 1708-1717 BWV 4 Christ lag in Todes Banden BWV 12 Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen vom Himmel fllt BWV 21 Ich hatte viel Bekmmernis BWV 155 Mein Gott, wie lang, ach lange BWV 161 Komm, du se Todesstunde Hochzeit gehe BWV 163 Nur jedem das Seine

BWV 18 Gleichwie der Regen und Schnee BWV 162 Ach! Ich sehe, jetzt, da ich zur

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BWV 31 Der Himmel lacht! Die Erde BWV 165 O heilges Geist und jubilieret BWV 54 Widerstehe doch der Snde I BWV 63 Christen, tzet diesen Tag BWV 70a Wachet! Betet! Betet! Wachet! BWV 80a Alles, was von Gott geboren Bahn! Leben BWV 150 Nach dir Herr, verlanget mich BWV 152 Tritt auf die Glaubensbahn Wasserbad BWV 172 Erschallet, ihr Lieder,

BWV 61 Nun komm, der Heiden Heiland erklinget, ihr Saiten! BWV 182 Himmelsknig, sei willkommen BWV 185 Barmherziges Herze der ewigen Liebe BWV 186a rgre dich, o Seele, nicht BWV 208 Was mir behagt, ist nur die BWV XXIV Zweite Mhlhuser Ratswechselkantate 1709

BWV 132 Bereitet die Wege, bereitet die BWV 199 Mein Herze schwimmt im Blut BWV 147a Herz und Mund und Tat und muntre Jagd!

Em 12 delas o obo(s)20 foi utilizado em alguma ria, das quais sete rias so para um instrumento obbligato, assim divididas:

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Obo, obodAmore ou obo da Caccia

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Ano

Instrumento

Voz

BWV

Nome Ich Mein schwimmt Blut hatte viel Herze im

Perodo Litrgico

ria No. 3

Nome da ria Seufzer, Trnen, Kummer, Not Stumme Seufzer, stille Klagen Kreuz Krone verbunden und sind

Tonalidade

1714

Obo

Soprano

21

3 Trinitatis

D menor

Bekmmernis 1714 Obo Soprano 199 2 Trinitatis 2

D menor

1714

Obo

Contralto

12

Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen

Jubilate

4

D menor

1714

Obo

Baixo

152

Tritt

auf

die

Sonntag

nach

2

Tritt

auf

die

Mi menor

Glaubensbahn 171521 Obo SopranoTenor 171622 185 Barmherziges Herze ewigen Liebe Obo da SopranoBaixo 1716 Obo Caccia Tenor 186 63 Christen, diesen Tag rgre dich, o tzet der

Weihnachten 4 Trinitatis Coral 11

Glaubensbahn Barmherziges Herze ewigen Liebe der F# menor

1 Weihnachtstag

3

Gott, du hast es wohl gefget Messias sich merken lsst

L menor

3 Advent

3

R menor

Seele, nicht

O grupo instrumental disponvel em Weimar tambm era pequeno. Entre os anos de 1708-1709 a Capela Ducal (Hofkapelle) contava com doze msicos contratados. Porm, de todos os documentos que se tem registro, se deduz que a Capela Ducal, nos diversos anos fora formada por (TERRY, 1932, p. 4):A Capela da Corte de Weimar

Nome Johann Samuel Drese Johann Wilhelm Drese Georg Christoph Strattner Johann Wilhelm Drese Johann Sebastian Bach Johann Paul von Westhoff

Funo Kapellmeister Kapellmeister Vice-Kapellmeister Vice Kapellmeister Konzertmeister/Organista da Corte Violinista/ Kammersecretarius

Perodo Morto em 01/12/1716 1716 Morto em 04/1704 1704-1716 02/03/1714-02/12/1717 Morto em 1705

21 22

WHAPLES, 1971, p.12 WHAPLES, 1971, p.12

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Johann Georg Hoffmann August Gottfried Denstedt Andreas Christoph Ecke Johann Andreas Ehrbach Christian Gustav Fischer Bernhard Georg Ulrich Johann Georg Beumelburg Johann Wendelin Eichenberg Johann Martin Fichtel Johann Christoph Heininger Johann Martin Fase Dietrich Dekker Johann Christian Biedermann Conrad Landgraf Andreas Nicol Johann Philipp Weichardt Michael Wstenhfer Georg H. Romstedt Johann Christian Gerrmann Christian Gerhard Bernhardi Gottfried Blhnitz Adam Immanuel Weldig Johann Dbernitz Andreas Aiblinger Christoph Alt Gottfried Ephraim Thiele Philipp Samuel Alt

Violinista Violinista/Secretrio da Corte Violinista Violonista/ Kunstcmmerer Fagotista Fagotista Trompetista Trompetista Trompetista Trompetista/Cavalario Trompetista Trompetista Trompetista/Vigia do Palcio Trompetista Timpanista Discantista Discantista Discantista Discantista Contralto Contralto Falsetista /Pagem Mestre Tenor/Cantor da Corte Tenor/Secretrio Baixo/(Vice) Cantor da Corte Baixo/Secretrio da Corte/ Mestre dos Pagens Baixo Morto antes de 1714 Morto antes 1716 Admitido em 1714 Admitido em 1714 Morto antes de 1714 Admitido antes 1714 Admitido aps 1714 Admitido aps 1714

Nos registros oficiais da corte no h relato da existncia do contrato de nenhum obosta. Provavelmente os msicos da cidade eram contratados para tocar quando havia necessidade, reforando assim o grupo da corte. A maioria das cantatas deste perodo no apresentam partes para obo(s), entretanto as cantatas que possuem partes sugerem que Bach tinha pelo menos um bom instrumentista ao seu dispor. A Capela da corte, na qual as cantatas de Bach foram executadas, era mal adaptada para a msica de concerto. O prdio era alto e estreito e o rgo estava colocado

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no alto, numa pequena galeria do telhado, local este muito pequeno e inconveniente para acomodar os cantores. As condies do local ajudam a explicar a instrumentao leve das cantatas do perodo de Weimar. Embora Bach tivesse passado um perodo inicial feliz na corte em Weimar, logo entraria em atrito com o duque. O duque, querendo mostrar seu descontentamento com as atitudes polticas e pouco ortodoxas de seu sobrinho Ernst August, com quem dividia o governo, proibiu que os msicos da corte, sob pena de multas, tocassem no Roter Schloss, castelo de Ernst e onde Bach fazia apresentaes regulares de msica de cmara. Bach, que era amigo e professor de cravo de Ernst, tenta passar por cima da injusta proibio do duque e aproveitou a ocasio do aniversrio de seu aluno para executar em sua corte, uma cantata em sua honra. O duque sentiu-se ofendido e em represlia no o promove a Kapellmeister (cargo muito desejado e esperado por Bach), por ocasio da vacncia do cargo. Indignado e profundamente ressentido com a atitude do duque, Bach passa a no escrever mais nenhuma cantata e passa tambm a mostrar ainda mais sua simpatia e apego ao jovem Ernst. Em 1716 Ernst August casa-se com uma irm do prncipe Leopold de AnhaltCthen que a responsvel pela indicao de Bach ao irmo, que lhe oferece um cargo na minscula corte de Cthen. Aps nove anos de servios em Weimar, finalizados em 1717 com uma conturbada demisso, Bach pode finalmente transferir-se e estabelecer-se em um novo cargo numa nova cidade.

2.3. O perodo Cthen23 (1717-1723)

A corte de Cthen adotara desde 1596 a Igreja Reformada (Calvinista), o que significava que, com exceo de certos dias festivos, a msica permitida no servio religioso era o gnero mais simples de salmodia sem adornos. Em sua nova funo, portanto, no estava previsto que Bach compusesse msica sacra e nem que tocasse rgo.23

Adotaremos os nomes das cidades e de cargos como grafados no perodo.

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Por outro lado, o prncipe Leopold estava profundamente interessado em msica instrumental e, desta maneira, ele esperava plena produo de seu novo contratado. Bach, mesmo que a doutrina religiosa da corte fosse diferente da sua, aceita o novo desafio com entusiasmo. Desta maneira, em 1. de agosto de 1717, seu nome passa a constar da folha de pagamento da corte de Cthen, embora nesta data ainda no tivesse se desligado totalmente da corte de Weimar. Como Kappelmeister ele dirigia uma pequena orquestra, chefiando as cordas, a qual entretinha o soberano no Ludwigsbau. Seu pessoal estava agrupado em trs categorias (TERRY, 1932, p. 5): 1. Kammermusici, (oito pessoas); 2. Musici, (quatro pessoas), que eram msicos locais mantidos em um emprego ocasional por um salrio nominal; 3. Trompetistas e timpanistas (trs pessoas). Os nomes e os cargos dos instrumentistas que serviram na corte de Cthen sob o comando de Bach entre 1717 1723 so (TERRY, 1932, p. 6): Instrumentistas da corte de Cthen (1717-1723)Kammermusici Nome Josephus Spiess Johann Ludwig Rose Martin Fr. Markus Johann Christoph Torlee Johann Heinrich Freitag Christian Ferdinand Abel Johann Gottfried Wrdig Christian Bernhard Linigke Johann Valentin Fischer Christian Rolle Emanuel H. Gottlieb Freitag Musici Johann Freitag Wilhelm Harbordt Violoncelo Sai em 01/1718 Instrumento Violino Obo Violino Fagote Fagote Violino e Gamba ? Violoncelo Violoncelo Violoncelo Violoncelo Admitido em 06/1719 Admitido em 06/1722 Promovido em 1721 ? Morto em 1721 Sai em 06/1722 Datas

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Adam Weber Emanuel H. Gottlieb Freitag Trompetistas Johann Christoph Krahl Johann Ludwig Schreiber Timpanista Anton Unger Copistas Johann Kruser Johann Bernhard Gbel Johann Bernhard Bach Emanuel Leberecht Gottschalk Carl Friedrich Vetter Violoncelo Violoncelo Violoncelo Violoncelo Sai em 12/1717 Admitido em 12/1717 Admitido em 1718/sai em 1719 Admitido em 1718/sai em 1719 Admitido em 08/1719 Violoncelo Promovido em 1721(supra)

Alm dos instrumentistas, Bach contava tambm com um copista, um luxo raro para suas experincias. Dentre os instrumentistas havia msicos vindos de Brandenburgo, alm de seis profissionais, que vieram da extinta Hofcapelle de Berlin. Entre os msicos berlinenses estava o obosta Johann Ludwig Rose que ao que parece, era muito estimado como instrumentista uma vez que fora solicitado, junto com Bach e outros quatro seletos msicos da corte, a acompanhar no vero de 1720, a viagem de quatro semanas do prncipe para a estncia de Karlsbad. Embora a corte de Cthen fosse calvinista, Bach s vezes compunha cantatas sacras para a comunidade luterana local, alm tambm de ter escrito algumas cantatas profanas em homenagem ao prncipe. Entre 1717 e 1723, se tem registro da composio de 13 cantatas. Cantatas do perodo de Cthen 1717-1723 BWV 22 Jesus nahm zu sich die Zwlfe24 BWV 23 Du wahrer Gott und Davids Sohn BWV 66a Der Himmel dacht auf Anhalts Ruhm und Glck24

A cantata da prova de Leipzig

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BWV 134a Die Zeit, die Tag und Jahre macht BWV 173a Durchlauchtster Leopold (Serenada) BWV 184a (Nome desconhecido) BWV 194a (Nome desconhecido) BWV 202 Weichet nur, betrbte schatten BWV IX Dich loben die lieblichen Strahlen der Sonne BWV XII Heut ist gewi ein guter Tag BWV XIII Lobet den Herrn, alle seine Heerscharen BWV XXII Geburtstagskantate BWV XXIII Glckwunschkantate

Em trs delas o obo utilizado em alguma ria, sendo que em duas delas h rias com um instrumento obbligato assim divididas:

Uma para Obo em 1723: BWV 22 com contralto;

Ano

Instrumento

Voz

BWV

Nome Jesus nahm zu sich die Zwlf

Perodo Litrgico

ria No. 2

Nome da ria Mein Jesu ziehe mich nach dir

Tonalidade

1723

Obo

Contralto

22

Estomihi

D menor

Uma para Obo de ano desconhecido: BWV 202 com soprano.

Ano

Instrumento

Voz

BWV

NomeWeichet betrbte Schatten nur,

Perodo Litrgico

ria No.7

Nome ria

da

Tonalidade

Desconhecido, provavelmente Cthen

Obo

Soprano

202

Hochzeitsfeier (Cantata Profana)

Sich ben im Lieben

R maior

Em 17 de julho de 1720 no retorno da viagem que Bach fizera a Karlsbad informado que sua esposa Maria Barbara, morrera de forma sbita em 7 de julho de 1720,

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portanto, dez dias antes do seu retorno. Antes de completar 36 anos, sua esposa partira deixando quatro filhos sob sua guarda. Apesar da dor que ainda sentia pela falta de Maria Barbara, apenas um ano e meio aps sua morte, Bach casa-se, em 3 de dezembro de 1721, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da corte de Weissenfels. Sua noiva era uma excelente soprano e tambm era contratada da corte de Cthen desde o outono de 1721. Aps o casamento ela manteve seu cargo na corte e ganhava metade do que seu marido recebia. A diferena de idade entre os dois, ela com 20 anos e ele com 36, foi compensada pelo interesse em comum de ambos pela msica. Com Bach, Magdalena teve treze filhos, sete dos quais faleceram. Durante os seis anos passados em Cthen, Bach comps: seis sonatas e partitas para violino; seis sutes para violoncelo; algumas sonatas para flauta e cravo; quatro sutes para orquestra; trs concertos para violino e os seis Concertos de Brandenburgo, alm de trabalhar tambm na Paixo Segundo So Joo. Apesar deste grande legado, muita coisa deste perodo infelizmente foi perdida. Neste perodo, Bach encontrou tempo para compilar seus trabalhos pedaggicos para teclado: o Clavier-Bchlein, para seu filho W.F. Bach (iniciado em 22 de janeiro de 1720); algumas das Sutes Francesas, as Invenes (1723); e o primeiro livro do Das Wohltemperierte Clavier (1722). Estes trabalhos estabeleceram um novo padro de procedimento de afinao e exploravam ao mximo esta nova possibilidade. Agora, pela primeira vez na histria do teclado, era possvel se executar todas as tonalidades de maneira igualitria e as possibilidades para a organizao musical sustentadas pelo sistema de tonalidade funcional, um tipo de sintaxe musical consolidada pelos compositores italianos de concerto da gerao precedente e um sistema que foi o que prevaleceu para os prximos 200 anos. Ao mesmo tempo, o Das Wohltemperierte Clavier um compndio das mais populares formas e estilos da poca: tipos de dana, rias, motetos, concertos, etc., que apresentavam, ento, o aspecto unificado de uma tcnica composicional singular: a lgica rigorosa e venervel fuga. Exceto pela morte de Maria Barbara, seus quatro anos iniciais em Cthen foram, provavelmente os mais felizes. Bach era reconhecido e respeitado pelo prncipe Leopold, que era genuinamente um amante da msica, mas esta situao se deteriora e fica

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muito abalada com o casamento, em dezembro de 1721, do prncipe com a princesa Frederica Henrietta de Anhalt-Bernburg. Os festejos do casamento duraram cinco semanas e quando finalmente as coisas se acalmaram em Cthen, a vida assumiu aspectos diferentes. Segundo o veredicto do prprio Bach, a nova princesa era amusa, ou seja, uma pessoa sem amor msica ou as artes e ela requeria tanto a ateno de seu marido que Bach comeou a se sentir negligenciado. Ao que parece, a influncia do regente da corte sobre o prncipe causava cimes na princesa que, por sua vez, estava disposta a romper tal relacionamento. Assim, gradualmente a msica foi retirada do centro das atividades do prncipe e da corte. Com o passar dos meses, no houve melhorias na situao de Bach e ele continuou relegado ao segundo plano, passando a sentir-se intil. Isso faz com que ele comece a questionar sua permanncia em Cthen.

2.4. Perodo de transio Uma nova oportunidade de mudana surge aps a vacncia do cargo de Kantor na Thomaskirche em Leipzig devido morte de Johann Kuhnau, em 5 de junho de 1722. Bach provavelmente comeou a pensar em se mudar para Leipzig, pois l, alm de ser um centro musical importante, ele teria a satisfao de ocupar um cargo com mais responsabilidades e, sobretudo, poderia novamente servir ao Senhor numa igreja luterana. Ele tambm tinha que pensar, sobretudo, na educao dos seus filhos mais velhos, Wilhelm Friedemann e Carl Philipp Emanuel, nascidos respectivamente em 1710 e 1714, os quais no deveriam ser privados, assim como ele prprio havia sido, de uma educao universitria. Mas o cargo ofereceria di