a responsabilidade dos pais e a proteção da pessoa dos filhos
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A responsabilidade dos pais e a proteção da pessoa dos filhos
Fabíola Albuquerque Lobo*
Sumário: Considerações iniciais. 1 Princípios constitucionais e seus
reflexos no poder familiar. 2 O poder familiar e a proteção da pessoa
dos filhos. 3 O princípio da convivência familiar e a estreita relação
com o instituto da guarda. 4 O princípio da afetividade nas relações de
família. Conclusões.
Considerações iniciais
É inquestionável que a família brasileira se encontra em franca transformação, por
conseguinte o direito de família também absorve todas as vicissitudes deste processo de
evolução social. Mas o grande divisor se situa a partir da Constituição Federal de 1988, com a
tábua axiológica materializando novos valores da sociedade brasileira.
A dignidade da pessoa humana e a solidariedade ganharam status de princípios
estruturantes do ordenamento jurídico brasileiro. Seus reflexos são expandidos às relações
jurídicas de família e fomentam uma compreensão de família como base da sociedade, mas
sem estabelecer nenhum tipo específico destinatário da tutela legal. Ao contrário, os novos
paradigmas contemplam as características da pluralidade das entidades familiares, da
repersonalização e da funcionalização.
A repersonalização deve ser compreendida como o processo de elevação da
pessoa como centro das destinações jurídicas, da capacidade de ver a pessoa humana em toda
a sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. 1
A funcionalização exprime a ideia de que a família na atualidade tem uma função
prestante de garantir a realização existencial e o desenvolvimento de cada um dos integrantes
do grupo familiar, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana.
A dignidade de cada um apenas se realiza quando os deveres recíprocos de
solidariedade são observados ou aplicados. [...] A solidariedade familiar é fato e direito; realidade e norma. No plano fático, as pessoas convivem, no ambiente
familiar, não por submissão a um poder incontrariável, mas porque compartilham
1 LÔBO, Paulo. A Repersonalização das Relações de Famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, a.VI,
nº 24, jun-jul, 2004, p. 152.
afetos e responsabilidades. No plano jurídico, os deveres de cada um para com os
outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos. 2
Deste modo a família “passou a ser tutelada como instrumento de estruturação e
desenvolvimento da personalidade dos sujeitos que a integram”.3 Portanto, esta
funcionalização da entidade familiar consiste na realização de todos os seus membros.
1 Princípios constitucionais e seus reflexos no poder familiar
Segundo Canotilho, os princípios designados por estruturantes, constitutivos e
indicativos das “ideias directivas básicas de toda a ordem constitucional ganham
concretização através de outros princípios (ou subprincípios) que densificam os princípios
estruturantes, iluminando o seu sentido jurídico-constitucional e político-constitucional,
formando, ao mesmo tempo, com eles, um sistema interno”.4
Assim, ao lado dos princípios estruturantes, outros princípios consolidarão o
arcabouço jurídico, de modo a permitir uma coerência interpretativa dos ditames
constitucionais. Neste sentido destacamos alguns dos princípios constitucionais que se
harmonizam diretamente com o instituto do poder familiar, ou seja, a partir da incidência dos
princípios percebe-se a modificação ocorrida no conteúdo do clássico instituto do pátrio poder
ao atual instituto do poder familiar. De objeto de direito o filho alça à condição de sujeito de
direito, tal mudança provoca uma inversão no foco, quer dizer, os principais interessados
quanto ao exercício do poder familiar passa a ser os filhos e não mais os pais.
Para fundamentar esse estreito elo entre os princípios constitucionais e os reflexos
no poder familiar, especial destaque deve ser dado para os princípios da liberdade, do melhor
interesse da criança, da paternidade responsável, da convivência familiar e da afetividade.
O princípio da liberdade proclamado na lei e oriundo das relações de afeto, entre
pais e filhos diz respeito a uma situação relacional, ou seja, a liberdade do filho encontra
limites nos direitos dos pais, bem como a liberdade dos pais encontra limites nos direitos dos
filhos. Não é uma liberdade desmedida, ao contrário, é uma liberdade contida na
2 LÔBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, a.
IX, out-nov, 2007, págs. 145, 146 e 149. 3 PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil -Direito de Família.Tânia da Silva Pereira
(atualizadora). Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, p.50. 4CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1998, p.1099.
responsabilidade; afinal, em relação aos filhos, que são pessoas em desenvolvimento, há de se
levar em conta o grau de maturidade e a capacidade em função da idade.
As doutrinas da proteção integral e da primazia do melhor interesse foram as
opções escolhidas para tutelar crianças e adolescentes segundo o ordenamento jurídico
brasileiro, tanto em sede constitucional (CF, art. 227) como infraconstitucional (art. 4º do
ECA e Código Civil, arts. 1574 § único, 1584 § único e 1.586).
Ressalte-se, entretanto, que a fundamentação do mencionado princípio remonta à
Declaração Universal dos Direitos das Crianças (1959), a qual foi ratificada pela Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989).
A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) reafirma a família como
elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar
de todos os seus membros, e em particular das crianças; que para o desenvolvimento
harmonioso da sua personalidade a criança, deve crescer num ambiente familiar, em clima de
felicidade, amor e compreensão. Reconhece ainda que devido à vulnerabilidade das crianças,
estas necessitam de uma proteção e de uma atenção especiais, e sublinha de forma particular a
responsabilidade fundamental da família no que diz respeito aos cuidados e proteção com
àqueles.
Depreende-se, assim, que a adoção do princípio “da proteção integral veio
reafirmar o princípio do melhor interesse da criança”.5 Este é um dever jurídico imposto à
família, à sociedade e ao Estado, que deve ser observado “tanto na elaboração quanto na
aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como
pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade”.6
A paternidade responsável é um balizamento ao princípio do livre planejamento
familiar. O Estado não interfere na decisão/liberdade do casal quanto ao projeto parental, mas
em contrapartida impõe aos pais a obrigação de exercer o múnus público decorrente do poder
familiar em relação a cada um dos filhos, independentemente da origem, se biológica ou
socioafetiva.
Quanto aos princípios da convivência familiar e da afetividade serão
oportunamente analisados.
2 O poder familiar e a proteção da pessoa dos filhos
5 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. A família na
travessia do milênio. Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 204. 6 LÔBO, Paulo. Direito Civil-Famílias. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 53.
Os filhos menores estão sujeitos ao poder familiar7. Sua forma conduz a
interpretação de que “os pais são os únicos titulares ativos e os filhos os sujeitos passivos
dele”,8 porém a melhor orientação é no sentido de que compete aos pais exercê-lo,
conjuntamente, na constância do casamento ou da união estável e sua essência consiste em
um poder-dever, um múnus público, funcionalizado ao melhor interesse do filho. Nada mais
natural, entretanto, na história do direito de família, prevalecia à antítese desta concepção,
pois prevalecia o entendimento que o pátrio-poder era ínsito ao interesse do pai.
O exercício do poder familiar decorre das relações de parentesco e não das
relações de conjugalidade; portanto uma dimensão não se confunde com a outra. Nestes
termos, o exercício do poder familiar, pelos genitores, se mantém intacto, independe do
vínculo jurídico que haja entre eles.
Assim temos que o poder familiar é constituído por um conjunto de direitos-
deveres, dos quais a guarda dos filhos menores desponta como uma das dimensões mais
importante diante da ruptura dos pais.
O ponto fundamental é compreender que o instituto da guarda tem por finalidade
a proteção da pessoa dos filhos. Esses são os verdadeiros destinatários da medida. Afinal,
como justificar, para o principal interessado, que em razão da dissolução do vínculo jurídico
dos pais será obrigado a aceitar que viverá apenas com um dos genitores e passará a ser
visitado pelo outro?
A guarda na visão de Orlando Gomes, “compreende o poder de reter o filho no
lar, de tê-lo junto a si, de reger sua conduta nas relações com terceiros [...], bem como, o
poder de lhe dirigir a criação no aspecto da formação moral do menor”.9
A partir deste conceito, se extrai a proximidade da guarda com outros elementos,
como: a companhia e a vigilância dos pais em relação aos filhos.
Com base na legislação civil temos duas modalidades de guarda: a unilateral ou
exclusiva e a compartilhada. 10
Aquela acomoda a situação do guardião e do não guardião, restando a este o
direito de visita e de ter o filho em sua companhia, bem como fiscalizar sua manutenção e
7 Art. 1630 8 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do poder familiar. Direito de família e o novo código civil. 3ª ed. Maria Berenice
Dias & Rodrigo da Cunha Pereira.(coods.). Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 183. 9 Cf. Direito de família. 10ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.395. 10 Art. 1.583.
educação. Assim, temos a guarda exclusiva associada ao direito de visita. É a também
chamada guarda jurídica e guarda material.
Fundada nessa distinção, ensina a doutrina que tão-somente a guarda material ou
custódia, a qual encerra a ideia de posse (art. 33, § 1º, do Estatuto da Criança e do
Adolescente) ou cargo, refere à imediatidade do exercício da guarda pouco restando ao
genitor não guardião, a não ser fiscalizar esse exercício à distância por aquele com quem viva
o menor; enquanto a guarda jurídica encerra as relações parentais de caráter pessoal
emergentes do poder familiar (sustento, criação, educação, representação, proteção, correção,
controle, guia moral e intelectual, vigilância, respeito, honra, afeição, etc.).
A segunda modalidade reporta-se a guarda compartilhada que deve ser
compreendida como o chamamento da responsabilização conjunta, quanto ao exercício de
direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder
familiar dos filhos comuns.11
Inclusive, com base na lei, este modelo de guarda passou a ser a regra, como
forma de garantir o direito fundamental da criança à convivência familiar e a manutenção dos
vínculos de afetividade com os genitores e demais membros da família.
Como sabido o exercício do poder familiar abrange os filhos menores, portanto
quando se fala em guarda dos filhos há de se ter claro que o instituto repousa na proteção da
pessoa dos filhos e não nos interesses dos pais.
É indiscutível que toda e qualquer separação gera sofrimentos, traumas,
transtornos e decepções para todos os envolvidos. É um projeto de vida que se esvai são
anseios e expectativas frustradas, mas se para os adultos os efeitos são negativos, nas crianças
esta repercussão pode ser ainda mais devastadora para o seu desenvolvimento emocional.
Estudos psicanalíticos dos distúrbios emocionais da vida adulta comprovaram
que, em grande medida, estes se originavam nos primeiros anos de vida e estavam
relacionados com eventos realmente cruciais da infância e o período em que eles seriam mais
desastrosos, como por exemplo: perda e separação na primeira infância.
O processo de absorção da perda é internalizado, diferentemente, nas crianças,
pois, elas dependem física e psiquicamente dos adultos cuidadores. Os pais representam a
ancoragem indispensável para o sadio e pleno desenvolvimento da pessoa do filho, em
particular durante seu processo de formação, de identificação e de sujeito situado em uma
sociedade.
11 Art. 1583 § 1º CC
A depender da maneira como esta mudança de realidade seja enfrentada pelos
pais, pode propiciar uma melhor elaboração da situação ou um agravamento pelos
desentendimentos que podem ocorrer após a separação e, consequentemente no poder familiar
é que talvez sofra variações em seu conteúdo e em sua forma de exercitar.
Para que a separação não gere maiores transtornos emocional nas crianças, bem
como não represente uma intensa perda dos referenciais e dos vínculos de afeto construídos
com os genitores é fundamental compreender o sentido e alcance do princípio da convivência
familiar.
Oportunas às reflexões de Paulo Lobo sobre o tema:
Importante ressaltar que o direito de visita tem feição constitucional (art. 227) é direito recíproco de pais e dos filhos à convivência, de assegurar a companhia de uns com os outros, independentemente da separação. Por isso, é mais correto dizer
direito à convivência, ou à companhia, ou ao contato (permanente) do que direito
de visita (episódica). [...]. O direito de ter o filho em sua companhia é expressão do direito à convivência familiar, que não pode ser restringido em regulamentação de
visita. Uma coisa é a visita, outra a companhia ou convivência.12
Neste sentido, o “direito à companhia” é relativo e não pode ser exercido
contrariamente ao interesse do filho, que deve ser assegurado o direito à
companhia do pai ou mãe que não seja o guardião. Em suma, o direito de um não exclui o direito do outro e o filho tem direito à companhia de ambos.13
O direito de visita deve ser compreendido sob nova roupagem e não de modo
reducionista, pelo contrário o convívio pressupõe direito à criança de ser visitado e de manter
contato com seus familiares e com todos aqueles com quem mantém relação de afetividade.
Assim há a persecução da manutenção dos laços afetivos e a preservação da identificação do
menor com seu grupo familiar.
As crianças não podem ser vitimadas pelo chamado dilema da lealdade14,
significa dizer: estarem com um genitor e se sentirem culpadas em querer usufruir o direito de
conviver com o outro. A elas não cabe fazer nenhum tipo de escolha; não é recomendável
prejudicar ou impedir que o filho conviva com o outro genitor pelo fato dos pais não
conseguirem, ou sequer tentarem manter uma relação harmônica.
Outro aspecto que não pode deixar de ser desconsiderado, por ser um dado
relevante da realidade é a chamada família recomposta com as suas variadas configurações e
arranjos. O direito privilegia a dimensão fática ou socioafetiva, cuja moldura capta com maior
12 LÔBO. Paulo Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, pág. 174. 13 LÔBO. Paulo Do poder familiar. Direito de família e o novo código civil. Maria Berenice Dias & Rodrigo da
Cunha Pereira.(coods.). Belo Horizonte: Del Rey. 2001, p. 149. 14LANG, Rosa Sender. A criança frente à ruptura familiar (http://www.pailegal.net/relstemot.asp. Agosto/2010).
acuidade as filigranas dos novos contornos familiares, as quais necessariamente não
coincidem com as relações de parentesco estabelecidas no plano legal15.
Este é um aspecto muito delicado e que suscita ainda mais a responsabilidade dos
pais na condução, na aceitação e na inserção da criança neste universo de vínculos
socioafetivos, até então desconhecidos. Figuras como padrasto, madrasta, “novos irmãos,
novos tios, novos avôs” passam a protagonizar as relações familiares e sem dúvida exercendo
papéis/funções na formação da criança.
Sem dúvida um equacionamento difícil quando de um lado se tem a manutenção
do exercício conjunto do poder familiar com o (a) ex-cônjuge e, de outro a recomposição da
família por parte de um dos genitores, ou de ambos.16
3 O princípio da convivência familiar e a estreita relação com o instituto da guarda
Este princípio decorre diretamente do reconhecimento atribuído à família
enquanto núcleo natural e fundamental da sociedade (Declaração Universal dos Direitos
Humanos - art. XVI, 3/ 1948). Nesta mesma linha de compreensão a Declaração Universal
dos Direitos da Criança (20 de novembro de 1959) 17 e a Convenção sobre dos Direitos da
Criança (20 de novembro de 1989)18, adotaram o referido princípio, o mesmo se verificando
em sede constitucional19; no Estatuto da Criança e do Adolescente integra o rol dos chamados
direitos fundamentais.20 Depreende-se, portanto que as normas de regência do direito à
convivência familiar e comunitária estão localizadas tanto na esfera jurídica internacional
como na nacional.
Como sabido a família é o locus privilegiado para o desenvolvimento e a
realização plena de todos os seus membros. Nestes termos, o princípio da convivência
familiar é um corolário lógico do sentido de família e, por conseguinte é direito fundamental
da criança crescer e se desenvolver na companhia dos pais.
15 No mesmo sentido: Maria Helena Novaes. A convivência entre as gerações e o contexto sociocultural. A ética
da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos Tribunais. Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da
Cunha Pereira (Coords). Rio de Janeiro: Forense, 2006, págs. 215 – 230. 16 Art. 1579 e § único do CC. 17 Princípio 6º - Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor
e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer
hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material... 18 Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num
ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão; 19 CF/88 – art. 227 - 20 ECA - Art. 19. A propósito ver também art. 4º do mesmo diploma
Indiscutível que os pais representam a ancoragem indispensável para o sadio e
pleno desenvolvimento da pessoa do filho, em particular durante seu processo de formação,
de identificação e de sujeito situado em uma sociedade propiciando assim a materialização do
princípio do melhor interesse do filho, cuja expressão é ladeada pelo direito à convivência
familiar.
O vínculo entre eles é reconhecidamente essencial para a higidez física e psíquica
dos filhos, tornando-se preclaro que o direito à convivência familiar e comunitária é essencial
para promover a realização e o desenvolvimento de cada um dos membros integrantes
daquele núcleo familiar e desta maneira garantir a manutenção da relação de afetividade entre
as partes. Mais uma vez enfatiza-se que o vínculo entre pais e filhos não é dependente da
relação jurídica dos genitores.
Conforme Paulo Lôbo a convivência familiar deve ser assim compreendida:
é a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que
compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no
ambiente comum. [...]. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e
solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças21
Pelo exposto defendemos o instituto da guarda compartilhada, a partir do caso
concreto, como o mecanismo adequado, principalmente nos casos de litígio entre os
genitores, para garantir a manutenção dos laços afetivos, da coparentalidade e da participação
efetiva e constante dos pais na vida dos filhos.
No contexto histórico prevalecia a ideia de que a mãe sempre apresentava
melhores condições para ficar com a guarda do filho menor, até porque, via de regra,
encontrava-se adstrita à órbita doméstica, ao homem restava à posição de provedor
econômico e por consequência apenas o direito de visita, ou seja, o arranjo jurídico da guarda
exclusiva.
A respeito disto destacamos, novamente, a opinião de |Paulo Lôbo:
A experiência da guarda exclusiva é a história das tensões e dos conflitos, em
prejuízo do filho, que se vê como joguete dos efeitos do desamor, dos ressentimentos e de chantagens. O direito à visita reduz o papel da coparentalidade
desejada pelo filho. A tendência é o filho perder a convivência com o genitor não
guardião, quando as visitas começam a escassear em razão do estado permanente de conflito, passando a ser entendidas como estorvos e não como momentos de
prazer afetivo.22
21 Cf. Direito Civil-Famílias. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 52. 22 Cf. Código Civil Anotado. Direito de família. Relações de parentesco. Direito patrimonial (arts. 1591 a
1693). Álvaro Villaça Azevedo ( Coord.). São Paulo: Atlas, 2003, p. 121-2.
Este cenário, todavia, começa a mudar, principalmente, quando a mulher se lança
no mercado de trabalho, em plena igualdade de condições com o homem. A realidade social já
acenava para esta mudança de valores e a Constituição Federal/88 culminou este processo
mediante o reconhecimento jurídico da igualdade de direitos e deveres dos
cônjuges/companheiros como pressuposto da entidade familiar.
A igualdade jurídica assegurada e o reforço ao sentido de cooperação entre os
cônjuges quanto à criação/educação de uma criança tornam forçoso concluir que diante da
hipótese de separação do casal, ambos os pais apresentam-se em condições de igualdade para
a medida referente à guarda dos filhos.
Ressalte-se o chamado movimento em prol da Paternidade Consciente, o qual
guarda correlação com o princípio da paternidade responsável e, por via direta embasa
também o instituto da guarda compartilhada.
Significa a tomada de atitude consciente de que a "cria" é parte do homem também. É uma atitude e uma categoria, que demonstra a nova forma, ou uma
outra forma de comportamento do homem, mais sensível, mais entrosado com a
célula social chamada família; é carinho, atenção, observação, atitude proativa,
como pai e como pessoa que cuida, que cria, que educa, que auxilia a companheira/esposa/apenas mãe, de forma constante e íntima em relacionar-se
com aquele que chamamos de filho (a). É o despertar para o fato de que ser pai é
raciocinar o filho (a) conhecê-lo, pensá-lo e esforçar-se ao máximo para ser parte da vida dele, formando-o, reprimindo seus erros (pois pai e mãe podem e devem
exercer autoridade e cobrar disciplina, não importando a orientação que sigam
quanto a seus papéis) amando-o, pois sem isso não há pai
Esta realidade, esta necessidade, que se cria por motivos sociais (o novo papel da mulher na sociedade, e a necessidade da participação ativa da mulher na economia
conjugal), acaba se entrosando com o puro humanismo que devemos buscar e que
tanto nos faz falta no mundo atual.23
O grande desafio do instituto da guarda compartilhada é sua aplicação, sempre
que possível, ainda que não haja acordo entre a mãe e o pai24, quer dizer, a guarda
compartilhada, além de ter passado à condição de regra, conforme dispõe à lei, sua aplicação
não se encontra condicionada a relação harmônica dos pais.
23 Luís Eduardo Bittencourt dos Reis. http://www.pailegal.net/relstemot.asp. Agosto/2010. 24 Art.1584 § 2º CC
Tal condicionamento desvirtua o instituto, ou seja, deixaria de regular a proteção
da pessoa do filho com base no princípio do melhor interesse para atender aos interesses
circunstanciais dos pais.
Acerca do tema, bastante pertinente é o acordão25 assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E
PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA.
CONSENSO. NECESSIDADE. ALTERNÂNCIA DE RESIDÊNCIA DO MENOR. POSSIBILIDADE.
1. Ausente qualquer um dos vícios assinalados no art. 535 do CPC, inviável a
alegada violação de dispositivo de lei.
2. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que
caminha para o fim das rígidas divisões
de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais. 3. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar
entre pais separados, mesmo que demandem deles
reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico
de duplo referencial.
4. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do
distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim,
dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na
hipótese de ausência de consenso. 5. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de
consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente
por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo
do Poder Familiar que existe para a proteção da prole. 6. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o
período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando
não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal,
letra morta.
7. A custódia física conjunta é o ideal a ser buscado na fixação da guarda compartilhada, porque sua implementação quebra a
monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda
unilateral, que é substituída pela implementação de condições
propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do Poder Familiar.
8. A fixação de um lapso temporal qualquer, em que a custódia física
ficará com um dos pais, permite que a mesma rotina do filho seja vivenciada à luz do contato materno e paterno, além de habilitar a
criança a ter uma visão tridimensional da realidade, apurada a
partir da síntese dessas isoladas experiências interativas.
9. O estabelecimento da custódia física conjunta, sujeita-se, contudo, à possibilidade prática de sua implementação, devendo ser
observada as peculiaridades fáticas que envolvem pais e filho, como
a localização das residências, capacidade financeira das partes, disponibilidade de tempo e rotinas do menor, além de outras
25 STJ REsp 1251000 / MG RECURSO ESPECIAL 2011/0084897-5 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI
Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 23/08/2011.
circunstâncias que devem ser observadas.
10. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia
física conjunta - sempre que possível - como sua efetiva expressão. 11. Recurso especial não provido.
Outro aspecto positivo que a guarda compartilhada pode provocar é o afastamento
ou a inibição dos riscos da alienação parental e a reboque as ações de responsabilidade civil
por abandono afetivo.
Por alienação parental podemos entender como sendo o processo consistente “em
qualquer atitude por parte de um dos genitores (mesmo antes de uma separação conjugal) para
denegrir ou dificultar a relação da prole com o outro genitor”.26 Os efeitos decorrentes da
síndrome, embora sejam externados no comportamento e emoções negativas dos filhos, mas
na verdade são reflexos de litígio estabelecido entre os genitores.
No caso de alienação parental decorrente da separação conjugal os motivos alegados de um genitor-guardião, para negar a convivência entre filhos menores, e
o genitor-visitante são, principalmente: a discórdia quanto à formação de hábitos
na prole, a incapacidade moral para o exercício dos deveres inerentes ao poder familiar e até mesmo comportamentos abusivos física, psicológica ou sexualmente.
As preocupações podem não corresponder à realidade ou exagerar pequenas
diferenças entre os pais, visto que, em alguns casos, não há evidências dos motivos
apresentados pelos genitores-alienadores. A reação de raiva ou desespero demonstrada pela figura alienada é usada para manter o status do pai alienador, que
se coloca em uma posição de superioridade em relação ao outro.
[...] O afastamento da figura de um dos genitores do seio familiar enseja uma orfandade
psicológica no infante, acompanhada de sentimentos negativos como o ódio,
desprezo e a repulsa em face de um dos genitores, sem qualquer razão, tudo com o fim escuso e egoístico do guardião-alienante de exercer com exclusividade este
papel.
A orfandade psicológica pode brotar a partir de um ato isolado do guardião-
alienante ou através de um atuar contínuo. O ato ou a omissão do guardião de alijar o não-guardião pode configurar-se em falsas acusações acerca da sanidade mental
e psicológica do não-guardião; de mentirosa notícia de dependência química e
toxicológica deste; de violência física ou psicológica praticada por este em face do filho; de suposto abandono material e emocional em face do filho (grifo nosso).
Ou seja, as acusações representam informações caluniosas de que o não-guardião
não exerce adequadamente o poder familiar.27
Como se percebe são inúmeros os percalços que podem advir da falta de
habilidade e/ou irresponsabilidade dos pais, na forma de conduzir o processo de separação, de
26 GOLDRAJCH, Danielle, MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade e Valente, SILVA , Maria Luiza
Campos da. A Alienação Parental e a Reconstrução dos Vínculos Parentais: Uma Abordagem Interdisciplinar.
Revista Brasileira de Direito de Família, Nº 37, ago-set. 2006, págs. 5 – 26. 27 Idem, p. 8.
modo a não minorar os transtornos presentes e ensejar distúrbios emocionais na vida adulta
dos filhos.
4 O princípio da afetividade nas relações de família
A afetividade foi alçada à condição de princípio e como tal um dever jurídico,
representativo do suporte fático das relações de família.
A razão de ser da formação dos vínculos familiares pauta-se na liberdade e no
desejo, portanto na afetividade, não mais no critério econômico-patrimonial e consanguíneo
de outrora.
O princípio da afetividade, apesar de implícito no texto constitucional, é de fácil
revelação e seu conteúdo entrelaça-se com todos os outros princípios que formam o arcabouço
principiológico das relações de família.
O conteúdo do princípio é tamanha densidade que se manifesta em todas as
relações de família sejam àquelas provenientes de relações biológicas ou não. O grande
reflexo desta mudança de conteúdo aplicado às relações de família perpassa pelo
reconhecimento de efeitos jurídico das relações socioafetivas.
Como modelo aberto, o princípio terá seu conteúdo preenchido diante do caso
concreto, impulsionado pela consolidação no tempo e pela recorrência daquele
comportamento, apto a indicar a existência de uma relação familiar fática, ainda que sem
qualquer manifestação expressa de vontade.
Se se reconhece o princípio da afetividade como sendo o elemento identificador
das entidades familiares, muito mais relevante é ao Direito se as relações em foco disserem
respeito à filiação.
Há aqueles que não reconhecem a afetividade como princípio, mas apenas
enquanto elemento anímico estranho ao Direito. Logo, seria descabido o reconhecimento
jurídico, a exemplo da ação julgada improcedente (STJ), cuja causa de pedir era de abandono
afetivo, perpetrada pelo genitor em relação ao filho.28
Em passado recente, o mesmo STJ, enfrentando, igualmente, a temática não
adentrou no mérito se a afetividade era ou não princípio, mas julgou no sentido de condenar
28 STJ REsp 757411 / MG RECURSO ESPECIAL2005/0085464-3 Relator(a) Ministro FERNANDO
GONÇALVES (1107) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento
29/11/2005.
um pai por abandono afetivo fundamentando o acordão no descumprimento objetivo do dever
jurídico de cuidado.
A respeito vejam-se parte do voto da Ministra Nancy Andrigh 29
[...] Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada
em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e
termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF⁄88.
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo,
a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente
percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do
adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a
mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento,
descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana
constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do
dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de
negligência (...)”. Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o
grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a
impossibilidade de se obrigar a amar.
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de
cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou
adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se,
pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo
meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do
amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que
exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não
presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que
serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
[...]
Indubitável a sofisticação dos debates doutrinários e jurisprudenciais em torno da
socioafetividade, a ponto de ser reconhecido, no âmbito do STF, como tema de repercussão
geral quanto à prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade
biológica.30
Conclusões
29 STJ REsp 1159242 / SP RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI
Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 24/04/2012 30 STF- Repercussão Geral. Relator Min. Luiz Fux. Leading Case ARE 692186 Tema 622
Se a formação da família, sua manutenção e seu desfazimento integram o
conteúdo do princípio da liberdade e da autonomia da vontade, em contrapartida o limite
àqueles atos está balizado ao campo da responsabilidade, tanto em relação ao ex-cônjuge
como em relação aos filhos.
O Direito de Família conformado aos princípios constitucionais fomenta um
modelo aberto que se densificará no caso concreto e deste modo sua aplicação se dará mais
rente à realidade dos fatos.
As demandas existenciais, por si só, exigem uma tutela mais humanizada e um
olhar mais detido por parte dos intérpretes, principalmente em relação aos fatos que estão
subjacentes àquelas questões. É neste sentido que a responsabilidade aflora quanto à maneira
de conduzir os processos de família, em particular, diante da dissolução de uma entidade
familiar e, ao mesmo tempo, da necessária e fundamental manutenção dos vínculos afetivos
paterno-filial.
Com base no princípio da solidariedade e numa perspectiva relacional do direito
de família, os pais são responsáveis pelos filhos menores e os filhos tornar-se-ão responsáveis
pelos pais na velhice.31
Como se percebe a ética da responsabilidade perpassa por todas as dimensões das
relações de parentesco. Não por acaso o tripé principiológico das relações de família
encontra-se estruturado nos princípios da dignidade, da solidariedade e da responsabilidade.
31 CF/88 Art. 229