a resistencia ao terror da ocupação em paradise now

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1 A resistência ao terror da ocupação em Paradise Now A “guerra contra o terror”, declarada após o fatídico setembro de 2001, é fato até hoje não consumado. O mundo desde então teme e sempre está à espera do próximo atentado deflagrado por mais um extremista, geralmente muçulmano e, geralmente, árabe. Este caráter fundamentalista, cruel e ameaçador que os povos árabes carregam é amplamente difundido e conta com diversos aliados que otimizam tal difusão: a produção intelectual, artística, literária, a mídia e suas mais diversas derivações. O presente texto irá analisar uma destas produções, ambientada no oriente médio, e que tem como tema central justamente o combate ao terror, (talvez seja mais adequado dizer a resistênciaao terror) investigando os elementos nesta produção que, em certa medida, legitimam ou justificam a luta do oprimido contra seu opressor. Embora, como ficará mais claro no desenvolvimento desta análise, a perspectiva ou o lugar de onde está falando o objeto escolhido não seja muito recorrente. Ao menos não aqui no ocidente. Antes de analisarmos propriamente o filme, será pertinente refletirmos sobre a relação entre o cinema e a história, reflexão esta que nos conduzirá naturalmente a uma discussão acerca do ponto de vista que o “engenheiro” da construção cinematográfica e da construção histórica possui para que então possamos admiti-lo (o ponto de vista) como algo indissociável de suas produções. 1. O cinema e a história A relação entre história e cinema pode ser desenvolvida de três maneiras: o cinema na História, a História no cinema e a História do cinema. Na primeira o cinema é tido como fonte primária da análise, na segunda o cinema assume o papel de produtor do discurso histórico e a terceira maneira estuda a evolução do cinema (técnica, linguagem, condições de produção e etc.) na História. 1 O objeto desta análise encaixa-se na segunda delas, pois funciona como intérprete de acontecimentos e combina os diversos elementos que a produção cinematográfica permite (verbais, não verbais, imagéticos, sonoros, simbólicos) para construir seu discurso. Uma discussão muito recorrente na utilização do cinema na apreensão histórica é a subjetividade transmitida através da possibilidade de manipulação de 1 Para estudo mais aprofundado cf. NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

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O texto trata-se de uma análise do filme "Paradise Now" à luz do contexto de ocupação da Palestina pelo Estado de Israel.

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    A resistncia ao terror da ocupao em Paradise Now

    A guerra contra o terror, declarada aps o fatdico setembro de 2001, fato

    at hoje no consumado. O mundo desde ento teme e sempre est espera do

    prximo atentado deflagrado por mais um extremista, geralmente muulmano e,

    geralmente, rabe. Este carter fundamentalista, cruel e ameaador que os povos

    rabes carregam amplamente difundido e conta com diversos aliados que

    otimizam tal difuso: a produo intelectual, artstica, literria, a mdia e suas mais

    diversas derivaes. O presente texto ir analisar uma destas produes,

    ambientada no oriente mdio, e que tem como tema central justamente o combate

    ao terror, (talvez seja mais adequado dizer a resistncia ao terror) investigando os

    elementos nesta produo que, em certa medida, legitimam ou justificam a luta do

    oprimido contra seu opressor. Embora, como ficar mais claro no desenvolvimento

    desta anlise, a perspectiva ou o lugar de onde est falando o objeto escolhido no

    seja muito recorrente. Ao menos no aqui no ocidente. Antes de analisarmos

    propriamente o filme, ser pertinente refletirmos sobre a relao entre o cinema e a

    histria, reflexo esta que nos conduzir naturalmente a uma discusso acerca do

    ponto de vista que o engenheiro da construo cinematogrfica e da construo

    histrica possui para que ento possamos admiti-lo (o ponto de vista) como algo

    indissocivel de suas produes.

    1. O cinema e a histria

    A relao entre histria e cinema pode ser desenvolvida de trs maneiras: o

    cinema na Histria, a Histria no cinema e a Histria do cinema. Na primeira o

    cinema tido como fonte primria da anlise, na segunda o cinema assume o papel

    de produtor do discurso histrico e a terceira maneira estuda a evoluo do cinema

    (tcnica, linguagem, condies de produo e etc.) na Histria.1 O objeto desta

    anlise encaixa-se na segunda delas, pois funciona como intrprete de

    acontecimentos e combina os diversos elementos que a produo cinematogrfica

    permite (verbais, no verbais, imagticos, sonoros, simblicos) para construir seu

    discurso. Uma discusso muito recorrente na utilizao do cinema na apreenso

    histrica a subjetividade transmitida atravs da possibilidade de manipulao de

    1 Para estudo mais aprofundado cf. NAPOLITANO, Marcos. A histria depois do papel. In PINSKY,

    Carla Bassanezi (org). Fontes Histricas. So Paulo: Contexto, 2008.

  • 2

    contedo e de sentidos. Por conta da edio, do corte de imagens, da encenao da

    realidade e principalmente quando se trata de fico, que justamente o caso do

    filme a ser analisado da facilidade em construir um discurso ideolgico, evidente

    ou no, a produo cinematogrfica pode ser desvalorizada nos meios intelectuais

    de investigao histrica. A crtica pouca validade histrica no atinge com muita

    fora o cinema-documentrio, pois seus fragmentos so tidos como apreenso

    primria do passado.2 J os filmes encenados

    [...] em contraste com os filmes documentais, sua utilidade como fonte histrica tem valor reduzido se os fragmentamos na ordem inversa da sua criao: da produo completa para a sequncia e o plano. Sua utilidade maior quando ele est editado e completo. Ao contrrio, materiais no editados de filmes documentados so mais valorizados como fontes primrias do que um filme documental editado e completo, exceto que este, assim como o filme de fico editado, tem valor simplesmente como afirmao do ponto de vista do seu criador.

    3

    Marcos Napolitano afirma que essa preferncia pelo documentrio em

    detrimento dos filmes ficcionais (ou da objetividade em detrimento da subjetividade)

    pode ser atribuda a Marc Ferro, um dos primeiros historiadores a pensar o cinema

    como objeto de representao do passado. Entretanto a nova historiografia tem

    questionado tal posio que estabelece os dois tipos de produo em lados opostos

    (enquanto objetos de investigao). Tem-se refletido acerca da manipulao como

    carter prprio da linguagem cinematogrfica, como decorrncia de escolhas

    intencionais (ou at inconscientes), quer estejamos falando dos filmes ficcionais ou

    no. 4 Aceitar tal condio deste tipo de objeto, condio esta indissocivel do

    produtor e at mesmo do prprio historiador, crucial para analisa-lo de forma a

    estabelecer reflexes sobre questes que ele (o filme) oferece respostas.

    Conclumos com a afirmao de Napolitano:

    [...] a questo da autenticidade e da objetividade do registro [...] pouco

    importam. Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser

    sintetizados na dupla pergunta: o que um filme diz e como o diz?5

    2 Idem, p. 242

    3 Idem, p. 242

    4 Idem, p 243

    5 Idem, p 245

  • 3

    Posto isto, ser importante refletirmos brevemente sobre a inevitvel

    existncia do ponto de vista, bem como acerca de sua contribuio, terica e

    prtica, para ambos os ofcios (do cineasta e, claro, do historiador).

    2. A historiografia por seu ponto de vista

    A histria objetiva? Os documentos permitem apreenso objetiva dos fatos?

    Mesmo considerando que este ou aquele documento seja o mais puro e verdadeiro

    vestgio do passado, como garantir que o homem encontre a sua verdade pura e

    objetiva? No o homem o mais complexo resultado da combinao de suas

    experincias, paixes, modos de enxergar o mundo, das circunstncias sociais

    (econmicas, polticas e ideolgicas)? Alis, o que a verdade? a verdade (ou

    objetividade) aquela construda por homens carregados de subjetividades,

    investigando documentos produzidos por outros homens que, por sua vez, tambm

    estavam carregados de subjetividades? Refletir sobre tais questes (e perceber o

    quanto estamos distantes da objetividade e da verdade) seria torturante para um

    historiador, no fosse essa uma experincia enriquecedora.

    Reinhart Koselleck, em sua obra Futuro Passado, desenvolve uma anlise

    interessante sobre o comportamento da historiografia e seus efeitos no prprio

    desenvolvimento do conhecimento histrico. Os mtodos pr-modernos de se fazer

    Histria eram fundamentados na certeza de se conseguir alcanar a verdade, a

    despeito do historiador, que, para cumprir o seu papel com excelncia, deveria estar

    sob abstrao de si, ou seja, deveria ser objetivo e imparcial. Somente assim a

    histria fluiria, falaria por si mesma. Koselleck afirma que esse mtodo cientfico de

    narrar a histria com imparcialidade, apartidarismo e neutralidade se manteve

    intacto at o sculo XVIII. A histria moderna nasce trazendo consigo uma nova

    contribuio: passa a ser um conceito reflexivo. O autor argumenta:

    Se o historiador tem que interrogar suas testemunhas, levando em conta o depoimento das melhores e colocando de lado as outras, como pode ser que seu prprio ponto de vista no exera influncia sobre a representao que faz dos fatos?

    6

    Essa nova maneira de representar a histria, atravs da reflexo, no poderia

    existir sem que se assumisse determinado ponto de vista. Desta forma o

    conhecimento histrico passa a ter como pressuposto o compromisso com uma

    6 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p 167

  • 4

    posio. No desenvolvimento de sua anlise, aponta esse novo conceito de histria

    como o grande responsvel pelos avanos que essa cincia (cincia?) alcanou. A

    partir do momento em que admitiu-se a impossibilidade de extrair o ser humano do

    historiador era como se se pudesse retirar a alma do pesquisador, transformando-

    o em uma espcie de autmato que, apenas enquanto tal, encontraria a verdade

    nua e crua , ou melhor dizendo, a partir do momento em que admitiu-se a

    inevitvel humanidade do historiador, que abriu-se o caminho para as diversas

    abordagens histricas, pontos de vista, reflexes e explicaes para um mesmo fato.

    Pode-se concluir diante disto, que houve neste perodo um grande avano nesta

    rea do conhecimento: historiadores de diferentes geraes, sem sofrer graves

    condenaes por assumirem seus pontos-de-vista, puderam investigar a histria a

    partir de suas prprias questes, seja refutando ou corroborando as j

    estabelecidas, seja representando a Histria com imagens mais novas e mais

    adequadas apreenso de sua gerao.

    Novas experincias se agregam, antigas so ultrapassadas, novas expectativas se abrem. Logo colocam-se novas questes em relao ao passado, que nos levam a repensar a histria, a observ-la sob outros olhos, a demandar novas investigaes.

    7

    Nos apropriarmos da subjetividade que nos intrnseca, como vimos, de

    suma importncia para construirmos um conhecimento honesto (ou o mais prximo

    disto) embora honestidade e parcialidade paream ter sentidos opostos.

    Podemos, assim, aplicar essa mesma lgica diversidade de pontos de vista

    inevitavelmente presente nas produes cinematogrficas. Ao mesmo tempo em

    que colabora com a evoluo do prprio conhecimento tcnico, enriquece a anlise

    de determinado tema ou evento, uma vez que prope a discusso e surgimento

    novas questes. Pontuado isto, podemos refletir sobre o objeto de nossa anlise a

    partir de seu ponto de vista.

    3. Paradise Now por seu ponto de vista

    O filme Paradise Now foi lanado mundialmente em 2005 tendo Hany Abu-

    Assad (palestino formado na Holanda) como diretor e co-roteirista. A trama tem

    como tema central a resistncia ao terror a que o povo palestino est submetido,

    7 Idem, p 161

  • 5

    desde a ocupao de suas terras (em 1948), pelo Estado de Israel. importante

    que, desde o incio, estabeleamos o local de onde se fala: o terror a que nos

    referimos neste texto aquele sofrido pelos rabes palestinos e causado pelos

    israelenses. Obviamente esta no a nica produo que busca incluir no debate

    sobre a questo palestina a perspectiva dos prprios militantes extremistas, mas foi

    selecionada por haver naqueles discursos verbais e no-verbais certa sensibilidade

    e preocupao em transmitir a humanidade e racionalidade desses agentes

    polticos que, principalmente para o ocidente, parecem inexistir. O debate em torno

    das formas pelas quais o Ocidente representa o Oriente foi colocada por Edward

    Said a partir de sua conhecida obra Orientalismo, e nela o autor e militante da causa

    palestina reflete sobre tais representaes embebidas de desconhecimento ou

    incompreenso do que o outro e o quanto essas representaes, apropriadas

    como verdades, tiveram e tm, muitas vezes, claras intenses polticas, imperialistas

    e de inferiorizar aquele que diferente para afirmar sua superioridade. Alm de

    criticar veemente as generalizaes deterministas que ignoram a diversidade

    humana:

    [...] os terrveis conflitos reducionistas que agrupam as pessoas sob rubricas falsamente unificadoras como Amrica, Ocidente ou Isl, inventando identidades coletivas para multides de indivduos que na realidade so muito diferentes uns dos outros, no podem continuar tendo a fora que tm e devem ser combatidos [...]

    8

    Podemos ento considerar o objeto de nossa anlise um conjunto de

    argumentos que permitem ao espectador conhecer, mesmo que limitadamente, o

    outro espectro da questo palestina, sua diversidade e contradies, menos

    difundido no ocidente, mas que pode ser encontrado se procurado. E esse

    conjunto de argumentos, verbais e no verbais, que a partir daqui analisaremos.

    Todos os 90 minutos de filme cobrem o perodo de 3 dias na vida de dois

    jovens palestinos rabes, que residem na cidade de Nablus (Cisjordnia), e so

    convocados para um ataque suicida em Tel-Aviv no dia seguinte. Passaram a ltima

    noite com suas famlias sob a condio de no revelarem os planos e logo pela

    manh se deslocaram at o local de preparao para a misso. Com bombas

    envolvendo seus corpos, esto prestes a entrar em solo israelense, mas o ataque

    acaba no se concretizando. Ao sarem em fuga para retornar ao ponto de encontro,

    8 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. So Paulo: Cia das Letras (Cia de bolso), 2007. p 25

  • 6

    acabam se desencontrando e abortando o plano temporariamente. O perodo entre a

    misso frustrada e sua concretizao no terceiro dia repleto de dilogos e silncios

    que buscam mostrar ao espectador as incertezas, as convices e as razes que

    fazem com que as personagens adotem esta forma de resistncia.

    3.1. Razes econmicas

    Em um primeiro contato com o filme, j fica evidente a diferena entre as

    cidades de Tel-Aviv e Nablus: Enquanto a primeira tem um aspecto facilmente

    comparvel ao ocidente, como suas edificaes, movimentao de pessoas, carros,

    vias asfaltadas, propagandas, limpeza e, enquanto transmite um aspecto tpico de

    grandes cidades bem estabelecidas economicamente; a regio dos refugiados de

    Nablus repleta de runas provenientes de bombardeios, os automveis so

    inferiores, as vias no tm asfaltos, as casas tm aspectos que evidenciam a

    situao econmica predominante na regio. A porta de um carro que emperra, a

    cmera de gravao que falha so constantemente oportunidades de inserir nos

    dilogos reclamaes sobre os altos preos, os baixos salrios, a impossibilidade de

    reparos por falta de dinheiro e, assim, se evidenciar as condies econmicas e

    sociais a que so submetidos os palestinos. Desde a independncia de Israel ou,

    se preferir, a Catstrofe palestina mas principalmente a partir da segunda metade

    do sculo XX, a populao rabe dos territrios ocupados se v obrigada a aceitar

    trabalhos onde recebem salrio 50% menor que o mesmo cargo ocupado por um

    israelense9. Ainda sobre o setor do trabalho Fernando Amigot afirma:

    A incidncia negativa da colonizao na distribuio setorial dos trabalhadores dos territrios rabes ocupados provocou um problema de duplo carter para eles: a formao de um excedente na rea de emprego, principalmente no setor agrcola, vendo-se obrigados a incorporar a outros setores econmicos, tanto em Israel como nos territrios, e, de modo todo especial, ao setor de servios. Esses trabalhadores se converteram numa massa assalariada que depende exclusivamente da criao de novos postos de trabalho ou daqueles mais penosos da economia israelense [...]. O outro problema que, ao no encontrar trabalho, quer nos territrios ou em Israel, esto forados a emigrar da Palestina [...]. Entre 1970 e 1980, cem mil trabalhadores se viram obrigados a deixar a Palestina em busca de trabalho

    10

    9 Cf. AMIGOT, Fernando Ayape. Israel, crnica de uma ocupao. Madrid: Oficina da Liga dos Estados rabes, 1984. p 47

    10 Idem, pp. 44 e 45

  • 7

    O argumento econmico na construo do discurso de Paradise Now talvez

    seja mais sutil que o ideolgico, mas est presente nos detalhes, sobretudo no-

    verbais, que so perceptveis aos olhos do espectador e que servem de

    complemento, inclusive por estarem diretamente associados aos grandes problemas

    causados pela ocupao. Tal argumento nos conduz a uma explicao, muito

    recorrente durante os discursos presentes no filme, em defesa da resistncia radical:

    a inferioridade do poderio blico dos palestinos. O poderio blico de Israel muito

    superior e os palestinos conscientes disto esperam com a resistncia radical de

    violncia poltica encontrar uma possvel sada para esse beco-sem-sada.

    3.2. Razes Ideolgicas

    Um dos discursos mais impressionantes em defesa da causa palestina

    aquele proferido pelo personagem Said (personagem que desde o incio parece

    refletir com alguma incerteza sobre a real eficincia da misso suicida em Tel-Aviv.

    Alm de ser o personagem envolvido em um romance do qual ter que abrir mo

    com a concretizao do ataque) que aps o insucesso do ataque no foi encontrado

    imediatamente e se torna alvo de desconfianas pelos lderes da resistncia, sendo

    excludo da misso. Convidado a retornar ao campo de refugiados pelo risco que

    oferecia misso, Said, que desde o incio pareceu estar consumido por dvidas,

    agora tem suas certezas fundamentadas em argumentos ideolgicos:

    Nasci em um campo de refugiados. S tive permisso para sair do lado ocidental

    uma vez. Eu tinha 6 anos e precisava fazer uma cirurgia. S essa vez. Viver aqui

    como estar preso. Os crimes de ocupao so incontveis. O pior crime de todos

    explorar as fraquezas das pessoas e transform-las em colaboradores. Fazendo

    isso, eles no apenas matam a resistncia como tambm arrunam famlias,

    arrunam sua dignidade e arrunam todo um povo. Quando meu pai foi executado eu

    tinha 10 anos. Ele era uma boa pessoa, mas tornou-se fraco. E eu responsabilizo a

    ocupao por isso. Eles devem entender que, se recrutam colaboradores, precisam

    pagar um preo por isso. Uma vida sem dignidade no vale nada. Sobretudo quando

    ela faz voc recordar diariamente a humilhao e a fraqueza. E o mundo assiste

    covardemente, indiferentemente. Se voc est sozinho enfrentando essa opresso

    precisa achar um jeito de deter a injustia. Eles precisam entender que se no h

    segurana pra ns tambm no haver para eles. No se trata de poder. O poder

    deles no os ajuda. Tentei enviar essa mensagem pra eles, mas no encontrei outro

  • 8

    jeito. Pior ainda, eles convenceram o mundo e a eles mesmos de que eles so as

    vtimas. Como pode ser? Como o ocupante pode ser a vtima? Se eles assumem o

    papel de opressor e vtima ento no tenho escolha, alm de ser vtima e tambm

    assassino.

    Nessas poucas linhas fica evidente o quanto a opresso psicolgica qual foi

    submetido o povo palestino determinante para o personagem. Ele filho de um

    colaborador de Israel e lamenta por seu pai ter sido fraco e cedido presso

    israelense que se aproveitou de suas fraquezas, talvez por instinto protetor que

    buscava a segurana de sua famlia (como sugere um dilogo anterior entre ele e

    sua me). Os colaboradores neste contexto, em troca de dinheiro, produtos ou

    sentenas de priso menos rigorosas, agem mantendo israelenses informados sobre

    os grupos de resistncias e suas pretenses. Quando um palestino identificado

    como colaborador geralmente executado11. E assim aconteceu com o pai de Said.

    Naturalmente e evidentemente no decorrer do filme a posio de um colaborador

    no bem aceita na sociedade palestina. Seu pai ser colaborador no atrai a

    censura apenas do resto sociedade, mas tambm de sua famlia. Said trata, ainda,

    da humilhao de ser impedido circular em sua prpria terra. Aqui o sentimento de

    no pertencimento, de sentir-se estrangeiro e excludo em seu prprio territrio faz

    com que o campo de refugiados em que vive se torne uma priso. Uma priso que,

    privando o povo palestino da liberdade, priva-o tambm de sua dignidade, sem a

    qual no possvel viver. Este discurso faz com que Said seja readmitido para a

    misso. Todas essas certezas desenhadas nas palavras de Said parecem objetivar,

    alm de sua readmisso, o autoconvencimento. Chegamos, assim, outra questo

    importante nos discursos ideolgicos: argumentos que, em certa medida, funcionam

    como blsamo uma alma aflita que espera pela morte, que certa. justamente

    aqui que nos deparamos com o discurso ideolgico-religioso que, at ento, estava

    ausente em nossa anlise. Em diversos dilogos, os lderes da resistncia ou os

    prprios militantes, recordam-se de que esto sob os desgnios de Deus e que, se

    continuarem agindo assim, sero recompensados no paraso. Em um ensaio sobre

    submisso e martrio Ezzati afirma que Islam uma total e pacfica submisso

    vontade de Deus. Isso significa estar preparado para morrer (martrio) em funo

    11 Cf. MAGGIOTTI, Pedro H. L.; SERRANO, Daniel B. M. Paradise Now: Representaes de identidades culturais palestinas no cinema. In Lngua, literatura

    e ensino, v. 5, 2010. p 244

  • 9

    desta submisso12. E, ainda, em uma anlise minuciosa acerca dos termos islam

    e martrio, Jair Krischke Filho diz:

    O testemunho verbal ou escrito, sobre assuntos terrenos ou celestes [...]

    importante; todavia, existe ainda outro tipo de testemunho, aquele que dado

    pelo crente com a prpria vida, a sahada, entendida como martrio. 13

    Longe de conseguir esgotar todos os aspectos polticos, ideolgicos e

    religiosos abordados pelo filme, foi possvel verificar, at aqui, que a questo

    palestina oferece argumentos que justificam ou, ao menos, demonstram as

    motivaes desses militantes da resistncia palestina ao abdicarem de si por uma

    causa que julgam ser superior s suas prprias vidas.

    4. Outros elementos no-verbais

    Antes de finalizarmos, julgamos pertinente apontarmos algumas percepes

    acerca elementos sutis presentes no filme e que nos ajudam a compreender

    algumas intenses de Hany Abu-Assad ao inseri-los.

    Um desses elementos a presena do silncio em muitas cenas. Em

    diversos momentos, principalmente aqueles em que os mrtires esto sob a tenso

    que os separam, por algumas horas, do fim de suas vidas, o silncio combinado com

    suas expresses apreensivas, olhares que os transportam para lugares onde no

    podemos ir, pensamentos que vagueiam por palavras que no ouvimos ou por

    imagens que no enxergamos, mas pressupomos, tornam Paradise Now um

    discurso histrico-poltico repleto de contedo reflexivo. um terreno frtil para o

    debate da questo palestina e que, ainda, pe disposio boa quantidade de

    adubo.

    Outro elemento interessante, como analisa Jair Krischke, o emprego do

    conceito de reconhecimento, presente na cena da ltima ceia. Jair a descreve:

    "Em um ambiente simples, com paredes de pedra, aparece no centro uma mesa comprida, longa, comportando um banquete, dispostas de lado a lado no enquadramento, vista de frente, ao nvel da cmera. Nela treze homens se sentam, Said no meio, com Khaled sua direita e Jamal sua esquerda, e mais cinco de cada lado. Comeam a beber a provvel ltima refeio dos

    12 EZZATI, Abolfazl. 2008. apud KRISCHKE FILHO, Jair Stoduto. O conceito islmico de martrio (shahada) no filme Paradise Now, de Hany Abu-Assad.

    2008

    13 KRISCHKE FILHO, Jair Stoduto. O conceito islmico de martrio (shahada) no filme Paradise Now, de Hany Abu-Assad. 2008. p 8

  • 10

    protagonistas. [...], pode-se afirmar que existe aqui uma releitura da famosa pintura A ltima ceia, de Leonardo da Vinci, na qual o italiano reproduziu a

    ltima refeio de Cristo antes de sua crucificao[...]."14

    A cena descrita acima faz correlao entre o martrio de Cristo e o martrio

    dos personagens, faz referncia, ainda, espera paciente e persistncia diante do

    sofrimento que Jesus e os personagens tambm compartilham. Tal recurso pode ser

    uma ferramenta muito importante para aproximar o espectador que est muitas

    vezes distante culturalmente das sensaes e significados que Abu-Assad tentou

    transmitir.

    5. Consideraes finais

    Como pudemos verificar no decorrer desta anlise, estabelecer o ato

    terrorista geralmente atribudo aos rabes extremistas do oriente mdio uma

    questo de perspectiva. O terror pode ser causado por atos ilegtimos, mas no

    conflito rabe-israelense na perspectiva da populao rabe, os atos de terror so

    praticados pelos israelenses de forma legtima. Como dito por um dos personagens

    eles (Israelenses) convenceram o mundo e a eles mesmos de que eles so as

    vtimas e, portanto, podem e devem reprimir os opressores. Como afirmou

    Hobsbawm

    a convico ideolgica, que desde 1914 domina tanto os conflitos internos quanto os internacionais, de que a causa que se defende to justa, e a do adversrio to terrvel, que todos os meios para conquistar a vitria e evitar

    a derrota no s so vlidos como necessrios. 15

    A grande contribuio do filme Paradise Now foi colocar em debate a

    perspectiva do outro, fornecer elementos que enriqueam o debate da questo

    palestina que, apesar de alguns avanos, ainda est viva nos meios intelectuais e

    polticos, mas principalmente naquela sociedade. Abu-Assad esclarece que esta

    produo no apoia a violncia16 e, realmente, em alguns dilogos entre as

    personagens encontramos o discurso que defende a resistncia pacfica, apesar de

    o discurso predominante demonstrar a motivao da resistncia radical.

    No podemos deixar de mencionar que Abu-Assad, apesar de palestino, teve

    sua formao na Europa e, evidentemente, enquanto homem carregado de

    14 Idem, pp. 23 e 24

    15 HOBSBAWM, Eric. Globalizao, democracia e terrorismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p 127

    16 Cf. ABU-ASSAD, Hany; MACASKILL, Ewen. Una conversacin entre Hany Abu-Assad y Ewen Macaskill, 2005.

  • 11

    subjetividades, experincias e expectativas, no pde deixar de misturar elementos

    que fazem parte de seu ser-homem no sculo XXI - fato este que contribui muito

    com as diversas reas de conhecimento com as quais relaciona a si e seu trabalho.

  • 12

    Fonte

    PARADISE NOW. Hany Abu-Assad (dir.). Frana/Alemanha/Israel/Holanda:

    Augustus Film / Razor Film Produktion GmbH/Lumen Films/arte France Cinema,

    Warner Independent Pictures/Europa Filmes, 2005. 1 filme (90 min.), son. Cor.

    Referncias bibliogrficas

    ABU-ASSAD, Hany; MACASKILL, Ewen. Una conversacin entre Hany Abu-Assad y

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    http://www.golem.es/paradisenow/director.php> Acesso em 14 de setembro de 2013

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