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A reorganização dos serviços sanitários do Império em 1886: a questão dos vinhos falsificados e dos gêneros alimentício como um imperativo MARIANA DA HORA ALVES 1 1.0 Introdução A história das políticas públicas e das instituições de saúde ao longo século XIX tem sido objeto de diferentes estudos. Considerando a saúde ou a doença, a um só tempo como fenômeno político, biológico e social essas linhas de pesquisas buscam analisar, sobretudo as políticas públicas e privadas destinadas a salvaguardar a sociedade dos efeitos das doenças, como também abordam a correlação do desenvolvimento de diferentes teorias biomédicas, ao longo do tempo, às ações políticas no campo da saúde. Em períodos de surtos epidêmicos, quando a necessidade impera, as barreiras entre público e privado desmoronam e a doença transforma-se em experiência social onipresente, que o Estado, os médicos e outros atores sociais buscam controlar, às vezes com êxito, outras vezes não. O presente artigo busca problematizar a reorganização dos serviços sanitários do Império em 1886 e tem em vista compreender as controvérsias concernentes às práticas e teorias biomédicas e o posicionamento dos diversos atores políticos, econômicos e sociais, que contribuíram para a formulação e adoção do novo código sanitário. Parto da assertiva que em 3 de fevereiro de 1886, pelo decreto nº 9.554, foi instituída a reorganização dos serviços sanitários do Império. Criou-se o Conselho Superior de Saúde Pública, composto por membros de órgãos do governo e de instituições da capital do Império que interferiam em algum grau na saúde da população inclusive a Academia Imperial de Medicina a Faculdade de Medicina 2 . A função desse Conselho era elaborar pareceres e propor soluções acerca das questões de higiene e salubridade em todo território do Império. Outra disposição importante do decreto de fevereiro de 1886 foi a separação dos serviços sanitários 1 Mestranda em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz - Fundação Oswaldo Cruz. COC/FIOCRUZ. Bolsista pela mesma instituição. Orientador Prof. Dr. Jaime Larry Benchimol. 2 O Conselho Superior de Saúde era formado pelo: ministro do Império, inspetor Geral de Higiene, inspetor- geral de Saúde dos portos, cirurgião-mor do Exército, diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cirurgião-mor da Armada, inspetor da Alfândega, presidente da Câmara Municipal, inspetor das Obras Públicas, presidente da Academia Imperial de Medicina, diretor do Hospital da Misericórdia, dois engenheiros do Ministério do Império, um lente de farmacologia da Faculdade de Medicina e um secretário. As sessões do Conselho poderiam contar com eventuais convidados. (Gazeta de Notícias, 20 de março de 1886, nº 79, p.2)

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A reorganização dos serviços sanitários do Império em 1886: a questão dos vinhos

falsificados e dos gêneros alimentício como um imperativo

MARIANA DA HORA ALVES1

1.0 – Introdução

A história das políticas públicas e das instituições de saúde ao longo século XIX tem

sido objeto de diferentes estudos. Considerando a saúde ou a doença, a um só tempo como

fenômeno político, biológico e social essas linhas de pesquisas buscam analisar, sobretudo as

políticas públicas e privadas destinadas a salvaguardar a sociedade dos efeitos das doenças,

como também abordam a correlação do desenvolvimento de diferentes teorias biomédicas, ao

longo do tempo, às ações políticas no campo da saúde. Em períodos de surtos epidêmicos,

quando a necessidade impera, as barreiras entre público e privado desmoronam e a doença

transforma-se em experiência social onipresente, que o Estado, os médicos e outros atores

sociais buscam controlar, às vezes com êxito, outras vezes não.

O presente artigo busca problematizar a reorganização dos serviços sanitários do

Império em 1886 e tem em vista compreender as controvérsias concernentes às práticas e

teorias biomédicas e o posicionamento dos diversos atores políticos, econômicos e sociais,

que contribuíram para a formulação e adoção do novo código sanitário.

Parto da assertiva que em 3 de fevereiro de 1886, pelo decreto nº 9.554, foi instituída a

reorganização dos serviços sanitários do Império. Criou-se o Conselho Superior de Saúde

Pública, composto por membros de órgãos do governo e de instituições da capital do Império

que interferiam em algum grau na saúde da população – inclusive a Academia Imperial de

Medicina a Faculdade de Medicina2. A função desse Conselho era elaborar pareceres e propor

soluções acerca das questões de higiene e salubridade em todo território do Império. Outra

disposição importante do decreto de fevereiro de 1886 foi a separação dos serviços sanitários

1 Mestranda em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz - Fundação Oswaldo Cruz. COC/FIOCRUZ. Bolsista pela mesma instituição. Orientador Prof. Dr. Jaime Larry Benchimol.

2 O Conselho Superior de Saúde era formado pelo: ministro do Império, inspetor Geral de Higiene, inspetor-geral de Saúde dos portos, cirurgião-mor do Exército, diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cirurgião-mor da Armada, inspetor da Alfândega, presidente da Câmara Municipal, inspetor das Obras Públicas, presidente da Academia Imperial de Medicina, diretor do Hospital da Misericórdia, dois engenheiros do Ministério do Império, um lente de farmacologia da Faculdade de Medicina e um secretário. As sessões do Conselho poderiam contar com eventuais convidados. (Gazeta de Notícias, 20 de março de 1886, nº 79, p.2)

2

dos portos e o terrestre – ambos desde 1851 sob a jurisdição da Junta Central de Higiene

Pública3: o primeiro ficou a cargo da Inspetoria Geral de Saúde dos Portos e o segundo, da

Inspetoria Geral de Higiene.

Decerto, a mudança na legislação nem sempre representa modificações nos hábitos e

costumes. No universo das práticas novos regulamentos podem, ou não redundar em

transformações concretas. Identificar as forças e processos que levaram à modificação da

legislação e de aparelhos do Estado é fundamental para compreender em que medida as novas

disposições alteraram na prática, as formas de fiscalização dos espaços públicos e privados,

dos gêneros alimentícios, das embarcações, enfim, de tudo o que pudesse apresentar risco à

boa saúde da população e da cidade como um todo.

A partir de uma análise crítica inicial das fontes primárias4 é possível perceber que o

empreendimento de organizar um novo código sanitário foi movido por duas destacadas

forças motrizes: a necessidade de formular uma legislação precisa com relação à fiscalização

dos gêneros alimentícios, em especial os vinhos e os preparados farmacêuticos e delinear

medidas eficazes para fiscalização dos portos a fim de impedir que a pandemia do cólera

reinante desde 1882, chegasse aos portos brasileiros. Nesse ponto entende-se que o cerne das

discussões giravam em torno das medidas quarentenárias e das políticas que o Brasil adotaria

para enfrentar o grande pânico criado em cima da expectativa da possível chegada do cólera.

Nesse artigo influirei maior atenção às mudanças de ordem prática que pude observar

acerca da fiscalização dos gêneros alimentícios, no esforço de compreender como o modus

operandi da fiscalização do comércio de gêneros foi modificado com advento da medicina

experimental e dos laboratórios de análise química. Um capítulo a parte, mas que estava

intrinsecamente relacionado a esse processo foi a demissão, em 26 de janeiro de 1886, da

Junta Central de Higiene Pública. As controvérsias políticas desse evento que envolveram

3 O decreto nº 828, de 29 de setembro de 1851(p. 2-5) incorporou a Inspeção de Saúde dos Portos e Inspeção de Vacinação, o serviço de polícia sanitária e de fiscalização do exercício da medicina “debaixo da direção da Junta Central de Higiene Pública”.

4 Aqui refiro-me de uma forma geral ao regulamento de 1886; as atas das reuniões da Inspetoria Geral de Higiene; relatórios anuais dos inspetores gerais e dos presidentes de províncias acerca do estado sanitário do Império; periódicos de grande circulação como O Paiz, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Folha Nova, Revista Illustrada e ainda os periódicos médicos como União Medica e O Brazil-medico; os Annaes da Academia de Medicina; Annuario Medico Brasileiro; Revista dos cursos praticos e theoricos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

3

disputas de poder entre os membros da Junta de Higiene, em especial do seu presidente

Domingos Freire e o ministro do Império, Barão de Mamoré; interesses comerciais; proteção

de uma incipiente indústria nacional de vinhos artificiais e de afirmação de teorias científicas

cujo foco foi discutir a proibição, ou não, dos vinhos artificiais5 foi o pano de fundo para a

demissão da instituição e a subsequente reorganização dos serviços sanitários, em fevereiro de

1886.

A historiografia referente ao último quartel do século XIX e das primeiras décadas do

século XX lançou luz sobre a cidade e seus habitantes e o processo modernizador que

transformou a vida urbana nas grandes capitais. No contexto de processo industrial, de

dissolução das relações escravistas, do aumento do fluxo migratório e de modernização dos

meios de transporte e comunicação e de outros equipamentos e serviços urbanos, são clássicos

hoje certos estudos a respeito das habitações populares e da evolução da cidade do Rio de

Janeiro com tônica no sanitarismo, nas práticas higienistas e no processo civilizador (Abreu,

1988; Benchimol, 1990; Carvalho, 1995; Rocha, 1995). Ainda nesse período, historiadores

como Edler (1992), Benchimol (1999) e Gomes (2013) buscaram desmistificar a ideia

constituída de que a ciência experimental e os postulados da bacteriologia só tomam forma,

no Brasil, a partir das primeiras décadas do século XX com Oswaldo Cruz a frente desse

processo. Além disso, são mais expressivos os estudos que remontam o processo de

institucionalização da medicina, da higiene e da profissão médica durante a primeira metade

do século XIX, com a fundação das primeiras instituições médicas brasileiras6 e os que

buscam compreender o processo de centralização dos serviços sanitários do Império com a

criação, em 1850 da Junta (Central) de Higiene Pública (Delamarque, 2011; Fernandes, 1999;

Ferreira (1996); Fonseca, 2008; Pimenta, 2004).

5 Vinho é o líquido alcoólico resultante da fermentação do suco da uva. “Como esse líquido não é sempre

uniforme em suas propriedades, que dependem das proporções dos elementos que entram em sua composição, daí é necessário indicar-lhe a espécie, dizendo vinho de Lissa, Madeira, Porto, Constança, Xerez, Malaga, Jurançon, Champagne, Rheno, Bordeaux, etc.” (PAZ, 1886, p.V).

6 “Junta Vacínica da Corte (1811); Academias Médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e de Salvador (1813);

Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829); Academia Imperial de Medicina (1835); o Instituto Homeopático (1843), o Instituto Vacínico (1843) e a Junta Central de Higiene Pública (1850)” (Ferreira, 1996, 10)

4

No entanto percebo a existência de uma lacuna na narrativa histórica sobre os serviços

de saúde pública no Brasil. A reorganização dos serviços sanitários em 1886, geralmente é

citada como um dado inócuo, sem que haja reflexão a respeito dos sujeitos e políticas

envolvidas nesse processo. Somente o fato da Junta de Higiene ter sido demitida, não justifica

tamanha reorganização. Esse episódio em específico, só explica a nomeação de novos

médicos7 para ocupar os cargos da antiga Junta, que com o regulamento de 1886, passou a ter

nova estrutura e titulação, sendo denominada Inspetoria Geral de Higiene. De forma alguma o

evento que envolveu disputas que se tornaram públicas, entre Domingos Freire e Barão de

Mamoré são capazes de dar conta de explicações plausíveis para a reorganização geral dos

serviços sanitários do Império.

Nesse sentido, avento a hipótese, que cada fez mais se confirma que esta reorganização

é fruto de um projeto muito maior, que não buscava somente atender a questões de cunho

nacional como, por exemplo, a concessão de maior autoridade administrativa, como há

tempos os órgãos de saúde pública reivindicavam; nem tampouco é fruto de um

desentendimento político pontual entre autoridades científicas e o ministro do Império.

Suponho que a reorganização dos serviços sanitários do Império em 1886, pensada desde

1884, estava intimamente ligada a questões de caráter internacional que envolviam tanto a

questão da regulamentação da vida portuária que convergia na tentativa de universalização

dos códigos marítimos e modernização das práticas quarentenárias, levando-se em

consideração o tempo de incubação das doenças cuja etiologia vinham sendo redefinam, afim

de melhor atender à saúde pública e de interferir em medida menor, na dinâmica do comércio,

quanto ao esforço de coibir o comércio de gêneros ilícito e de má fé, alinhando-se as práticas

já adotadas por países como a França. Nesse contexto a análise química dos gêneros

alimentícios, dos preparados medicinais e das águas dos mares, baías e lagoas, rios e fontes,

no Brasil, torna-se um assunto importante na agenda sanitária do Governo que buscava,

sobretudo, afinar-se com as práticas de controle já executadas por alguns países europeus e

assim, modificou a legislação sanitária, imprimindo um novo código cujo um dos objetivos

era melhor legislar a respeito da fiscalização e controle da qualidade do comércio de gêneros.

7 João Batista dos Santos, o Barão de Ibituruna foi nomeado o diretor da Junta Central de Hygiene Pública e posteriormente Inspectoria Geral de Hygine, já José Souza Lima, Francisco Marques de Araújo Goés, Bento Gonçalves Cruz e José Ricardo Pires de Almeida foram nomeados membros da Junta. (Ibituruna, 1887, p.3)

5

Então, neste artigo procurarei esboçar respostas que ainda estão em construção, a

questionamentos como: por que a Junta Central de Higiene Pública foi demitida em janeiro de

1886? Por que os serviços sanitários do Império foram reestruturados em fevereiro de 1886 e

um novo código sanitário foi adotado? Quais as principais prerrogativas do código sanitário

de 1886? O código sanitário adotado no Império estava afinado com as discussões de caráter

internacional acerca da fiscalização dos gêneros alimentícios e de proteção de irrupção de

epidemias através dos portos?

2.0 – A criação de uma agenda sanitária para o Brasil: da medicina dos miasmas à

medicina dos micróbios

Por força das revoluções liberais e da decadência das monarquias absolutistas

européias, a transmigração da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, transformou aquela

colônia no centro administrativo do Império português.

A instalação da corte no Rio de Janeiro “rompeu o equilíbrio da cidade” – escreve

Benchimol (1990, p. 21-27). Urbanisticamente, não se encontrava preparada para, que, em

menos de duas décadas, tivesse seu contingente habitacional duplicado. A abertura dos portos

às nações amigas contribuiu para o aumento do fluxo de pessoas, mercadorias e

consequentemente das doenças. Tornou-se imperiosa a adoção de medidas que promovessem

o saneamento da capital voltada principalmente para a atividade portuária.

Nesse contexto foi criada no Brasil, uma rede de instituições educacionais8,

administrativas e culturais, que transformaram a antiga colônia, não apenas em “sede

provisória da monarquia portuguesa, mas sim em um centro produtor e reprodutor de cultura e

memória” (Schwarcz, 1993, p.32).

As transformações subsequentes nas esferas administrativa, econômica e cultural desse

evento já foram extensamente trabalhadas pela historiografia. Abordarei aqui, de uma forma

resumida os desdobramentos desse processo no tocante à saúde e à medicina ao longo do

século XIX, com o objetivo de demonstrar o processo de criação de uma agenda sanitária para

o país e das primeiras instituições de pesquisa, de institucionalização da medicina e da

8 Lilia Schwarcz (1993, p.31) aponta que no período colonial o ensino na colônia portuguesa era controlado pelos jesuítas restringindo-se apenas às escolas elementares. Os centros de pesquisas e formação superior inexistiam.

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profissão médica e da coexistência de diferentes teorias médicas uma vez que a forma de

percepção e construção da doença no âmbito das ciências biomédicas sofreu considerável

modificação ao longo do oitocentos. Da década de 1830 até 1860 a grande controvérsia

científica sobre as formas de contaminação opôs contagionistas e os anticontagionistas

(Ackerknet, 1948), estes imbuídos pelo neo-hipocratismo enquanto que em fins da década de

1870 e início de 1880 observa-se o desenvolvimento e instituição da microbiologia,

parasitologia e zoologia médica a partir de estudos empreendidos por Louis Pasteur, Robert

Koch e muitos outros investigadores na Europa, nas Américas e em outras partes do mundo; a

reorganização dos currículos das escolas médicas, inclusive a do Rio de Janeiro, a expansão

da medicina experimental no Brasil e descoberta de novos elementos e constituição de novos

paradigmas no campo das ciências químicas.

As três primeiras décadas do século XIX foi marcada pelo processo de

institucionalização e profissionalização da medicina. Foi o momento de instauração das

primeiras instituições médicas em território luso brasileiro como, por exemplo, a fundação da

Escola de Cirurgia da Bahia (1808) e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de

Janeiro (1811)9 e criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro10, de tentativa de

demarcação das artes legítimas e oficias de cura frente às populares, uma vez que as “camadas

subalternas” como cirurgiões barbeiros, sangradores, curandeiros, parteiras, boticários

também participavam desse quadro, contando com o licenciamento oficial conferido pela

Fisicatura-mor. Este processo foi acirrado depois da independência do Brasil, em 1822,

quando cada vez mais o país buscou a emancipação das instituições médicas portuguesas.

Nessa conjuntura, como escreve Pimenta (2004, p.68)

As mudanças na regulamentação são evidentes. Em 1828 foi extinta a Fisicatura-

mor – órgão do governo responsável pela fiscalização e regulamentação de todas as

9 Em 1813, as Escolas Cirúrgicas foram reorganizados à luz do projeto do Dr. Manuel Luis Alvaro de Carvalho, que preconizava a fundação de três academias médico-cirúrgicas: no Rio de Janeiro (1813), Bahia (1816) e em São Luís do Maranhão, esta nunca criada. A transformação da Escola em Academia implicou maior institucionalização dos cursos médicos e, em certa medida, a hierarquização da profissão médica. No entanto, essas modificações no estatuto da instituição de ensino não significaram a proibição imediata, por parte da Fisicatura-mor, do licenciamento de profissionais não diplomados, como cirurgiões barbeiros, cirurgiões sangradores e parteiras. Em 1829 fundou-se da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, organizada aos moldes da Academia francesa. O grupo de médicos em torno da Sociedade conseguiu emplacar a reforma do ensino médico em 1832, que transformou as Academias da Bahia e do Rio de Janeiro em Faculdades de medicina diplomando médicos, farmacêuticos e parteiras. 10 Em 1835 foi transformada em Academia Imperial de Medina. Ver sobre isso em Ferreira, 1996.

7

atividades relacionadas às artes terapêuticas. Os curandeiros e os sangradores foram

desautorizados, excluídos do conjunto de atividades legais. As parteiras foram

desqualificadas para uma posição subalterna e tiveram as suas atividades

apropriadas, o que serviu à expansão do mercado para os médicos.

As atribuições desse órgão foram transferidas, em 1828, para as câmaras municipais e

ao cargo destas ficou incumbido o controle de todos os serviços sanitários, iniciando o que

Fonseca (2008, p. 39) compreende pelo processo de descentralização Imperial.

Ao mesmo tempo, como analisa Ferreira (1996) ao longo das décadas de 1830 e 1840

os médicos compilados em torno da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e da Faculdade

de Medicina do Rio de Janeiro, fizeram o esforço de criar uma agenda sanitária para Brasil, de

delimitar as doenças que aqui reinavam no sentido de promover uma “leitura original” do

estado sanitário do país, bem como discutiam quais eram as razões pelas quais as epidemias,

que estavam no centro das controvérsias entre contagionistas e anticontagionistas e grassavam

na Europa de forma epidêmica, não chegavam ao Brasil, que não obstante sua condição de

país ‘tropical’ o tornava em tese vulnerável a essas doenças. Delamarque (2011, p. 13)

também demonstra que esse período foi marcado por amplos debates tanto na Academia

Imperial de Medicina, quanto na Câmara dos Deputados a respeito da necessidade de

sistematização dos serviços sanitários do Império uma vez que, as municipalidades os

prestavam de forma negligente. Em diferentes momentos propuseram a criação de um

Conselho Superior de Saúde, com o fim, de melhor assistir e precaver a sociedade das

doenças pestilenciais (2011, p. 13). A década de 1840 foi representada pela gradativa

desmunicipalização dos serviços sanitários, passando eles à esfera do Ministério de Negócios

do Império11.

O decênio de 1850, sobretudo depois da grande epidemia de febre amarela no verão de

1849-1850, foi singular por se empreender a centralização dos serviços sanitários do Império.

A criação em caráter emergencial da Comissão Central de Saúde (1849) e posteriormente a a

Junta (Central) de Higiene Pública (1850), representou pela primeira vez a sistematização de

medidas higiênicas e a fiscalização mais intensa, sobretudo sobre os medicamentos e estado

sanitário dos gêneros postos à venda. Sobre seu comando foi instituída a prática de polícia

sanitária em terra e em mar; foi sistematizado contratos de limpeza das praias, ruas e espaços

públicos; foram efetuadas estatísticas de mortalidade; foi organizado e melhor articulado o

sistema de vacinação e revacinação anti-variólica. Isto é, a criação da Junta, segundo

11 A esse respeito ver os capítulos um e dois da dissertação de mestrado de Delamarque (2011).

8

Benchimol (1990) e Machado et all (1978), delimitam a institucionalização de um novo tipo

de medicina: a medicina social que é calcada em práticas preventivas incidentes não

diretamente sobre o corpo mas sobre os meios de existência, isto é, ar, fermentos, água e

muitas outras coisas que conformam as condições de vida, especialmente nas cidades, uma

vez que doenças epidêmicas são atribuídas aquilo que cerca o indivíduo que vive no meio

urbano (Foucault, 1979, p. 90).

Então, a história da saúde pública e a organização da profissão médica ao longo do

século XIX, ganhou diferentes configurações conforme diferentes contextos políticos,

econômicos, sociais e diversificadas tessituras das relações no campo das ciências

biomédicas. Até a década de 1860 o paradigma reinante era a medicina dos miasmas, de

caráter ambientalista. Ao final da década de 1870, a medicina foi atravessada por novas

teorias que ambicionavam tornar-se o novo paradigma dominante, teorias relativas a

microrganismos como agentes específicos de doenças, de base experimental que lançam luz

sobre diferentes formas de lidar com a saúde e a doença. O ambiente não deixa de ter

importância, uma vez que age sobre a fisiologia dos microrganismos. Nesse contexto de

decolagem do novo paradigma, e de reforma nas bases curriculares das faculdades de

medicina aos moldes germânicos (Edler, 1992) pretendo compreender o papel do Laboratório

de Higiene, ligado a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especialmente no controle dos

gêneros alimentícios, como novidade no campo da higiene pública.

3.0 - A exoneração da Junta Central de Higiene Pública e a questão dos vinhos

falsificados: analise crítica inicial.

Pelo que parece, o que levou à exoneração do químico e bacteriologista Domingos

Freire do cargo de presidente da Junta e dos outros médicos que compunham o quadro de

funcionários foi um evento específico, a questão dos vinhos artificiais (Benchimol, 1999, p.

110). Este episódio precisa ser melhor investigado. Julgo leviano atrelar tamanha

reorganização somente aos desentendimentos entre Freire e o Barão de Mamoré12, ministro

dos Negócios do Império, cuja pasta estava a Junta subordinada.

O controle da qualidade dos gêneros alimentícios e da alimentação pública, durante o

século XIX, sempre esteve na agenda das ações do governo, no entanto, a maneira de

inspecionar as possíveis adulterações e irregularidades nos produtos mudou conforme as

12 A respeito dos motivos que levaram a exoneração da Junta, ver a discussão nos Annaes da Assembléia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro, sessão de 27 de agosto de 1886, p.20.

9

conjunturas político-institucionais e os avanços nas ciências biomédicas. Juliana Teixeira

Souza (2011), em estudo sobre fiscalização do comércio de gêneros na Corte Imperial entre

1849-1889, afirma que era comum, no Rio de Janeiro, a prática de falsificar ou vender

produtos impróprios para o consumo. As penalidades para essas práticas estavam inscritas nos

códigos de postura da Câmara Municipal – seria multado qualquer indivíduo que cometesse

esse tipo de delito, podendo ele estar sujeito à prisão em caso de reincidência, o que não

coibia a prática dos delitos.

A inspeção da qualidade dos gêneros era função dos fiscais de freguesia. Estes

avaliavam a condição dos alimentos, embora não dispusessem de nenhuma habilitação

específica para exercer tal atividade. Precisavam apenas saber ler e escrever, a profissão em si

não exigia nada além do bom senso nas avaliações. Isso não significa que o juízo dos ficais

não fossem passíveis de contestação. Os protestos eram comuns, e para atestar a competência

dos julgamentos,

os fiscais procuravam reforçar a validade de seus pareceres, em geral buscando o

apoio da população consumidora. Particularmente nas ocasiões que eram chamados

a esclarecer sua conduta diante a uma autoridade superior, costumavam mencionar o

testemunho da população para amparar seu julgamento, na expectativa de que a

aprovação dos cidadãos lhes fosse suficiente para atestar sua competência. (Souza,

2011, p.1040)

Nesse cenário o fiscal de freguesia mantinha estreito relacionamento com a freguesia

local, ouvia as queixas da população e agia em função de denúncias. A sua figura

representava um ponto de articulação entre Câmaras Municipais e as demandas sociais. Ter

uma rede de sociabilidade e ser bem quisto a nível local era fundamental para legitimar a

competência no exercício daquela função, uma vez que a todo instante era contestado pelos

comerciantes, insatisfeitos com as multas aplicadas.

Em 184113com a reformulação do Código do Processo Criminal foi estabelecido que a

Secretaria de Polícia da Corte ficaria encarregada de providenciar, entre outras coisas, o

cumprimento dos assuntos de polícia previstos no Código de Posturas, incluindo a polícia dos

mercados. A disputa de autoridade entre a Secretaria e a vereança das Câmaras é uma história

a parte, que se insere na conjuntura de centralização do poder pretendida pelo regresso

conservador, durante a década de 1840, com a consequente tentativa de esvaziamento das

funções camarárias.

13 Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841.

10

O Código de Posturas de 1832, na seção destinada à Saúde Pública, estabelecia que às

Câmaras cabia a administração dos enterros, cemitérios, hospitais e o enfrentamento das

moléstias contagiosas, como também, o controle da venda de medicamentos, alimentos, do

asseio de currais e matadouros, do funcionamento das fábricas, cabendo-lhe ainda

providenciar o aterramento das áreas pantanosas. Como observa Souza (2011, p.1042)

tratava-se, portanto, de aspectos estreitamente relacionados à produção, ao comércio e a

ocupação do espaço. Os vereadores tinham “jurisdição sobre pontos estratégicos da economia

da maior e mais rica cidade da América do Sul”.

Com a criação da Junta de Higiene Pública, em 1850, as funções pertinentes à saúde

pública inscritas no Código de Posturas de 1832 passam à jurisdição deste órgão. A

administração da coisa pública ligadas ao ramo da saúde passou a ser função da Junta, mas o

poder de penalização e licenciamento, continuaram na instância das Câmaras, no entanto esta

dependia do parecer científico daquela. Permaneceram na verdade duplicidades, assimetrias e

uma dependência mútua, no qual, era necessária a ação conjunta de ambas as instituições.

Esta foi razão de constantes conflitos ao longo da segunda metade do século XIX, o diálogo

entre municipalidades e a Junta se estabelecia de forma conflituosa. Os presidentes da

instituição em diversos relatórios reclamavam que as Câmaras Municipais não cumpriam as

suas funções, que era necessário esse suporte ou ainda, que sem a ação conjunta de nada

serviam os pareces da Junta de Higiene.

O esvaziamento de poder das Câmaras foi objeto de diversas discussões no Senado e na

Câmara dos Deputados, que por vezes questionavam a legalidade da institucionalização da

Junta Central de Higiene Pública14.

Da criação desta, à reorganização do sistema sanitário do Império em 1886, não é

possível identificar grandes alterações no que tange às funções práticas concernentes à saúde

pública no Brasil. Mantiveram-se as principais incumbências: apresentar pareceres sobre o

estado sanitário, fiscalizar o bom estado da saúde da população, da cidade e dos alimentos,

licenciar preparados medicinais e zelar pela saúde do porto. Ocorreu sim, maior

especialização no âmbito da fiscalização e com a criação do Conselho Superior de Saúde em

1886, parece ter-se diálogo mais amplo e eficaz entre as diversas esferas administrativas que

de alguma forma interferiam na saúde pública. A separação dos serviços prestados em terra e

em mar conferiu maior autonomia a essas instâncias, que alinhadas aos avanços da ciência da

14Delamarque (2011, p. 74-82) aborda a discussão que remetia a inconstitucionalidade da Junta.

11

higiene e da medicina após a década de 1870, modernizaram a arte de fiscalizar, controlar e

vigiar. A higiene pública passou a ter o suporte do laboratório de Higiene da Faculdade de

Medicina, que produzia laudos acerca da qualidade dos vinhos e dos gêneros alimentícios que

adentravam o país pelas alfândegas, assim como daqueles fabricados localmente. Se antes

esses juízos eram formulados por fiscais de freguesias e confirmados através da asserção do

povo, agora é o laboratório e o laudo químico que dão o veredicto final.

Nesse sentido, a medicina experimental permeou os estatutos do novo código sanitário.

Essa talvez seja a grande diferença entre os decretos de 1850 e 1886: as múltiplas

delimitações legais concernentes à fiscalização e polícia sanitária praticamente se

mantiveram; o que se modificou foi a calibragem e fundamentação médico-científica de

muitas dessas ações e a maneira de enfrentar as epidemias. Foi exatamente por esses motivos

que, durante a década de 1880, se discutiu a necessidade de reorganizar os serviços sanitários

do Império.

4.0 - O advento do Laboratório de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro:

do olho vigilante ao laudo químico

Ao noticiar a inauguração do Laboratório de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio

de Janeiro, no final de 1883, a Gazeta de Notícias (12/01/1884, p.1), declarou que não se

tratava somente de fornecer aos alunos da faculdade mais um campo de estudos práticos,

tratava-se também de servir aos interesses da população. Ao fazer a análise dos gêneros

alimentícios habilitaria as autoridades a punirem comerciantes “que especulam com a

credulidade e a boa fé do consumidor, para lhe vender gêneros falsificados” muitos nocivos à

saúde. Este tipo de serviço prestado à população estava em ascensão na Europa. O laboratório

municipal de Paris, já vinha prestando esse serviço, desvendando, através de análises

químicas, a nocividade de diversos gêneros que antes passavam desapercebidos ao olho nu.

Em 4 de outubro de 1883, Domingos Freire foi nomeado novo presidente da Junta

Central de Higiene Pública, assim, “teve suas funções ampliadas: além de complementar, com

a prática, as lições ministradas na faculdade, passou a cuidar da análise dos gêneros

alimentícios comercializados na cidade”(Benchimol,1999, p.33). Foi nessa gestão, que teve

início a tão controvertida questão dos vinhos artificiais/falsificados15. A Junta de Higiene

15 Vinhos artificiais são aqueles não produzidos pela fermentação do suco da uva, e sim, pela fermentação do

suco de outras substâncias. No Brasil, era comum produzir vinho artificial a partir da fermentação do suco da cana, que, depois de destilada, fornecia a cachaça. No entanto eram adicionados uma série de compostos químicos e até mesmo misturados a vinhos de uva para imitar o sabor e o aroma deste.

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cobrava medidas mais enérgicas do governo contra a comercialização dos produtos, acusados

de serem nocivos à saúde, por desenvolverem doenças cerebrais e o aumento exponencial das

moléstias gástricas, ocupando elas lugar progressivo no quadro das enfermidades mais

comuns que ceifavam as vidas de habitantes do Rio de Janeiro (Paz, 1886, p.2).

O consumo de vinhos era comum no regime dietético da sociedade oitocentista,

prescrito como terapêutica para diversas doenças. Sendo assim o cuidado com a qualidade dos

produtos postos à venda deveria ser de responsabilidade do Governo. Para a Junta de Higiene,

a saúde da população deveria ficar acima dos interesses de mercado, não devendo ficar

exposta ao proveito pessoal dos criminosos que, ao venderem produtos falsificados,

colocavam em risco a saúde da sociedade.

A “caça” a esses produtos, o controle da comercialização e toda uma controvérsia

científica, começaram, pelo que parece, em maio de 1884, quando a turma da Comissão

Vacínica da Glória apreendeu uma carroça com cinco pipas de vinhos artificiais que saia da

fábrica de vinhos artificiais do Sr. Schumann & C., localizada na Rua do Passeio. As

mercadorias foram enviada para o depósito público a fim de serem submetidas ao devido

exame químico analítico da Junta de Higiene, ou da Comissão Especial nomeada pelo

ministro de Império, Barão de Mamoré. Junto com as pipas, foi apreendida uma tabela com o

preço dos vinhos, cujo título era “vinho branco imitando perfeitamente o francês”. Mediante

prova tão clara, de que a fábrica promovia falsificações, a turma da Glória enviou um parecer

ao ministro do Império requerendo as seguintes providências:

1º proibição completa de todas as fábricas de vinhos artificiais de todo e qualquer

gênero e espécie; 2º instituição de um laboratório de higiene municipal à disposição

das classes comercial e industrial para o exame de produtos alimentares sólidos e

líquidos, como se faz na Europa; 3º nomeação de uma comissão especial de médicos

peritos químicos para o exame de tais produtos; e que finalmente fosse intimado

todos os fabricantes de vinhos nacionais, para dentro de 48 horas, apresentassem

seus títulos de privilégios e licenças legais para semelhante comércio reprovado, diz

a turma, pela higiene e moralidade pública (Gazeta de Notícias, 21 de maio de 1884,

p. 1)

Ao invés de serem cumpridas, ou ao menos discutidas essas disposições, as pipas de

vinhos foram restituídas por ordem superior à companhia Schumann & C., antes mesmo de

serem submetidas à análise química. Em nota, os proprietários da empresa declararam que as

denúncias contra vinhos seriam esclarecidas futuramente, quando submetessem seus produtos

Vinhos falsificados eram os vinhos artificiais vendidos com rótulos de vinhos importados, ou até mesmo como produtos naturais. Isto é, nem todo vinho artificial era falsificado, desde que viesse indicando sua natureza artificial, caso contrário era considerado falsificado.

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aos exames, provando, assim, que não eram nocivos à saúde. A Gazeta afirmava que nos

periódicos choveram críticas à Comissão Vacínica da Glória. Deu-se a entender que o

governo, e parte da impressa era de posição a favor das lastimáveis falsificações que

colocavam em risco a saúde da população, protegendo assim, negócios fraudulentos e de má

fé, que, ao invés de fabricar ou vender vinhos feitos diretamente do suco da uva, consumiam

xaropadas com os mais diversos ingredientes – melaço, água, açúcar e diferentes ácidos e

substâncias químicas como: os ácidos tartárico, acético, tânico, o alume, os sulfatos de ferro e

de chumbo, os carbonatos de potássio e de soda e ainda variados de materiais corantes.

A grande questão posta dali para frente pelos defensores da repressão aos vinhos

artificiais e/ou falsificados era que pelo mero fato de serem artificiais, isto é, produzido com

substâncias e não pelo processo natural de fermentação, já era suficiente para justificar a

proibição do consumo, uma vez que não cumpria a função dietética prescrita pelo regime

higiênico. Por outro lado, o ministro do Império, ao defender a indústria nacional em

ascensão, considerava que o fato de os vinhos artificiais não cumprir a utilidade higiênica e

terapêutica dos naturais, não era motivo suficiente para proibir a comercialização, uma vez

que as análises químicas não encontravam, em muitos deles, substâncias nocivas à saúde da

população (Paz, 1886, p. 18).

A alimentação pública tornou-se importante quesito na agenda governamental. A

questão dos vinhos falsificados e o debate público a esse respeito intensificaram-se ao longo

do ano de 1885. Entre outubro e dezembro de 1885 no O Paiz, na Gazeta de Notícias e na

Gazeta da Tarde, encontramos abundantes notícias sobre o dia a dia da discussão. A

discussão foi levada à Academia Imperial de Medicina e aí debateu-se como na Europa,

sobretudo como o Comitê de Higiene da França, lidava com a questão. A Junta Central de

Higiene Pública não conseguiu estabelecer um acordo com o Ministério dos Negócios do

Império, tendo sido acusada de desacato a autoridade ao enviar para O Paiz , em 1º de

novembro de 1885, uma carta no qual esclarecia os motivos pelos quais considerava os vinhos

artificiais nocivos e denunciava os diversos pedidos enviados ao Governo Central, solicitando

providencias com relação a esta questão sem que houvesse a devida resposta ou atenção por

parte dos Negócios do Império.

No dia 5 de novembro foi publicado no Diario Official, um “aviso censura” à carta

publicada no O Paiz, o ministro Barão de Mamoré, alegava que a Junta tornou público um

assunto que competia somente ao governo. Além disso, acusava que a carta publicada não

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apreciava os motivos legais para que fosse considerada ilegal a produção e comercialização de

vinhos artificiais. Assim a Junta estaria ultrapassando as barreiras de sua função, uma vez que

a decisão final competia ao governo, a alçada da instituição era fornecer o suporte científico,

como por exemplo, as análises químicas dos gêneros.

Por conta dessa disputa em torno dos vinhos a Junta foi demitida, admitindo, porém o

governo “a indeclinável necessidade de coibir abusos que infelizmente já se têm dado e

podem reproduzir-se”. Declarava-se ainda que no projeto do novo regulamento para o serviço

sanitário teriam sido “incluídas disposições que, preenchendo sensíveis lacunas dos

regulamentos atuais, cercam a saúde publica, neste particular como a outros respeitos, das

garantias que reclama tão elevado interesse social” (Paz, 1886, p. 18-19). Isto é, o governo

admite que o novo regulamento trataria de forma mais específica a questão da regulamentação

dos gêneros alimentícios, a fim de inibir o comércio de má fé e salvaguardar a saúde da

população. O meio prático de controle de qualidade passaria a ser o laudo químico conferindo

maior cientificidade e aperfeiçoando o modo de certificar as impurezas e os elementos

químicos prejudiciais à saúde.

5.0 – Conclusão

Então a demissão da Junta, que envolveu a disputa de poder entre autoridades públicas

(Freire e Barão de Mamoré), não explica o estabelecimento, em 1886, de um novo

regulamento sanitário para o Império. A questão dos vinhos falsificados deu a tônica a uma

discussão mais ampla sobre a necessidade de um regimento que melhor regulamentasse a

comercialização de gêneros alimentícios e outros aspectos da vida econômica e social.

Acredito que o regulamento de 1886 veio incorporar diversas reivindicações explícitas

colocas pari passu à ascensão da medicina experimental. Se durante a vigência da Junta, em

particular na gestão do bacteriologista Domingos Freire, a principal justificativa para coibir a

comercialização dos vinhos artificiais era a transgressão ao regime dietético e a produção de

doenças cerebrais e gástricas, o regulamento de 1886 e as discussões empreendidas no seio

dos órgãos destinados a discutir sobre a saúde da população, definiu com maior precisão o

que se pretendia combater: o grande vilão passou a ser o ácido salicílico, e não somente os

vinhos falsificados, mas todos os produtos alimentares que contivessem essa substância em

qualquer quantidade, seguindo disposições adotadas na Europa com relação ao assunto

(decreto nº 9554, de 3 de fevereiro de 1886, arts. 82,83 e 84). Nesse sentido pode-se observar

esse deslocamento quanto à forma de fiscalização, se antes era o olho vigilante dos fiscais de

15

freguesia que atestavam a boa ou má procedência dos gêneros, a partir de 1886, oficialmente

passa ser o laudo químico, isto é o laboratório.

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