a remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · a remuneração dos...

26
A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira mundial DR. JORGE ANDRÉ CARITA SIMÃO SUMÁRIO: Introdução. § 1– A crise financeira 2007/2010: 1.1. O seu surgimento; 1.2. As implicações do presente e do futuro; 1.3. A actualidade do debate sobre a remune- ração dos administradores e o seu contributo para o despoletar da crise. § 2– Deveres gerais dos administradores: 2.1. Posição jurídica dos administradores; 2.2. Poder de administrar ou de gerir. § 3– A remuneração dos administradores: 3.1.A remuneração como fonte de con- flito de interesses; 3.2. Corporate governance e a remuneração: 3.2.1.Teoria da agência; 3.2.2. Competência para a definição da remuneração; 3.3.A crescente regulação em maté- ria de remuneração. Síntese conclusiva. Introdução O tema da remuneração dos administradores ocupa lugar de destaque no problema mais amplo do governo das sociedades, não tendo sido ainda objecto de um estudo significativo por parte da doutrina portuguesa. A crise financeira de 2007-2010 e os recentes escândalos financeiros ocor- ridos em algumas empresas confirmaram a existência de deficiências na gestão e na prevenção de conflitos de interesses no seio do tema do governo das sociedades, sendo um dos seus centros de debate ocupado pelo tema da remu- neração dos membros dos órgãos da sociedade, em particular dos administra- dores 1 . RDS II (2010), 3/4, 795-820 1 Diversas intervenções legislativas recentes têm vindo a ensaiar respostas ao problema. Vide, nos EUA, o caso do Emergency Economic Stabilization Act de 2008; na Alemanha, a VorstAG alemã de 31 de Julho de 2009; e, no nosso ordenamento jurídico interno, a Lei n.° 28/2009, de 19 de

Upload: others

Post on 19-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

A remuneração dos administradores das sociedades e as suasimplicações no contexto da crise financeira mundial

DR. JORGE ANDRÉ CARITA SIMÃO

SUMÁRIO: Introdução. § 1.° – A crise financeira 2007/2010: 1.1. O seu surgimento;1.2.As implicações do presente e do futuro; 1.3.A actualidade do debate sobre a remune-ração dos administradores e o seu contributo para o despoletar da crise. § 2.° – Deveres geraisdos administradores: 2.1. Posição jurídica dos administradores; 2.2. Poder de administrar oude gerir. § 3.° – A remuneração dos administradores: 3.1.A remuneração como fonte de con-flito de interesses; 3.2. Corporate governance e a remuneração: 3.2.1.Teoria da agência;3.2.2. Competência para a definição da remuneração; 3.3.A crescente regulação em maté-ria de remuneração. Síntese conclusiva.

Introdução

O tema da remuneração dos administradores ocupa lugar de destaque noproblema mais amplo do governo das sociedades, não tendo sido ainda objectode um estudo significativo por parte da doutrina portuguesa.

A crise financeira de 2007-2010 e os recentes escândalos financeiros ocor-ridos em algumas empresas confirmaram a existência de deficiências na gestãoe na prevenção de conflitos de interesses no seio do tema do governo dassociedades, sendo um dos seus centros de debate ocupado pelo tema da remu-neração dos membros dos órgãos da sociedade, em particular dos administra-dores1.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

1 Diversas intervenções legislativas recentes têm vindo a ensaiar respostas ao problema. Vide, nosEUA, o caso do Emergency Economic Stabilization Act de 2008; na Alemanha, a VorstAG alemã de31 de Julho de 2009; e, no nosso ordenamento jurídico interno, a Lei n.° 28/2009, de 19 de

Page 2: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

A necessidade de prevenir comportamentos em conflito de interesses levaa que este seja um tema que suscita algumas questões, nomeadamente a desaber quem é que tem o poder de definir a remuneração de um determinadoórgão de administração e de que forma é que o poderá fazer.

Neste ensejo, o presente estudo visa oferecer um contributo para a com-preensão da importância que a remuneração dos administradores ganhou como despoletar da crise financeira de 2007/2010. Assim, iniciaremos o trabalhocom a exposição dos motivos que levaram ao surgimento da crise e quais sãoas suas implicações no presente e no futuro da sociedade. Faremos então umenquadramento do nosso tema relacionando-o com o surgimento da crise.

O propósito que nos guia não é o de analisar os problemas gerais relativosà responsabilidade civil dos administradores ou de aprofundar o estudo acercados seus deveres fundamentais, já que tal propósito extravasaria o âmbito dopresente trabalho. No entanto, faremos as referências necessárias a tais proble-mas no âmbito do §2.°, já que será necessário compreender as suas funçõespara se poder prosseguir o estudo da sua remuneração.

Após percorrer esse caminho, iremos centrar-nos na remuneração dosadministradores: falaremos desta como fonte de conflito de interesses, analisa-remos o modelo da teoria da agência, bem como os principais modelos decompetência para a definição das remunerações.

Por fim, concluiremos esta temática com a referência das principais inter-venções legislativas que têm efectivado uma maior regulação nesta matéria.

Na síntese conclusiva, iremos extrair algumas conclusões, resultado doestudo que nos propusemos desenvolver.

§ 1.° – A crise financeira 2007/20102

1.1. O seu surgimento

Nos últimos anos do século XX, países como os Estados Unidos, o ReinoUnido, a Irlanda, a Espanha e Portugal, aumentaram exponencialmente os seus

796 Jorge André Carita Simão

Junho. A Comissão Europeia também aprovou recomendações sobre a matéria remuneratória(Recomendações n.os 2004/913/CE, 2005/162/CE, 2009/384/CE e 2009/385/CE), às quaisfaremos menção no decorrer do presente estudo.2 A propósito desta crise financeira, vide ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da nacionalização doBPN”, Revista de Direito das Sociedades,Ano 1, N.° 1, 2009, 57 ss.; ANTÓNIO MENEZES COR-DEIRO, “A crise planetária de 2007/2010 e o governo das sociedades”, Revista de Direito das

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 3: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

níveis de endividamento, acumulado essencialmente pelas famílias para a aqui-sição de habitação própria e consumo3. Para entendermos os factores que ori-ginaram a crise financeira4, temos de identificar os motivos que estiveram pordetrás desse endividamento das famílias e o modo como o Estado se posicio-nou em relação a tais comportamentos.

Através dos mercados financeiros, os empreendedores encontram o finan-ciamento que lhes permite criar e desenvolver determinado projecto de negó-cio, possibilitando-lhes o ponto de partida para a “destruição criativa”5 emdeterminado sector de mercado, a qual caracteriza o funcionamento do sistemacapitalista.

Contrariamente ao início do século XX, em que a poupança e um modode vida austero caracterizavam a política de vida das famílias e das empresas, ocrédito ao consumo constituiu uma inovação do século XX que esteve na baseda criação do consumo de massas.

O aperfeiçoamento dos instrumentos financeiros e das formas de protec-ção contra o risco permitiu alargar o acesso ao crédito a um número cada vezmaior de famílias. Para além disto, a renitência das famílias em recorrerem aocrédito foi ultrapassada pelas campanhas de marketing dos bancos americanos:

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 797

Sociedades,Ano 1, N.° 2, 2009, 263 ss.; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Ban-cário, 4.ªed., 2010, 127 ss.; FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA

ANDRADE/PAULO RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, 2009,7 ss.; PIERRE LECONTE, La Grande Crise Monétaire du XXIe Siècle a Déjà Commencé!, Éditions Jean--Cyrille Godefroy, Paris, 2007, 9 ss.; LOÏC ABADIE, La Crise Financière en 2008/2010: Mode d’Em-ploi pour la Décrypter et l’Exploiter, 2008, 10 ss.3 Parece-nos importante referir, a propósito da crise económica, a declaração de Alan Greens-pan, presidente da Reserva Federal dos EUA de Agosto de 1987 a Janeiro de 2006, numa entre-vista no programa “This Week”, da ABC News, de Setembro de 2008: “(…) este é um eventoque ocorre uma vez em cada meio século, provavelmente uma vez em cada século. (…) Não hádúvida que irá ultrapassar tudo o que já vi, e ainda não está resolvido, e ainda tem muito queandar. E, efectivamente, continuará a ser uma força corrosiva até que o preço das habitações nosEstados Unidos estabilize”.4 PIERRE LECONTE, La Grande Crise Monétaire du XXIe Siècle a Déjà Commencé!, op. cit., 38, realçaque apenas ultrapassaremos esta crise se for instaurada uma troca livre e equilibrada de produtose se for registada uma estabilização da moeda a nível mundial: os EUA, regidos por todo o tipode práticas manipuladoras, fizeram com que a questão se complicasse e que instituições regula-doras ao seu serviço como o FMI ou a OMC tivessem perdido o controlo dessa situação. Estesprocessos levaram a situações extremas de concentração e de monopólios, arruinando a concor-rência e fazendo com que tivessem que ser postos em prática os mecanismos de correcção domercado.5 Expressão do conceituado economista austríaco JOSEPH SCHUMPETER (1883-1950).

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 4: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

estes começaram a vender o crédito como uma prova de confiança nas famí-lias que a ele recorriam6.

Contudo, no caso do mercado subprime, que esteve na origem da crisefinanceira internacional, os bancos emprestavam dinheiro a quem não tinhacondições de receber tal empréstimo7. Do ponto de vista social, tal atitude era,aparentemente, positiva, já que permitia a que famílias com rendimentos muitobaixos pudessem adquirir habitação própria. Os benefícios sociais resultantesdeste acesso ao crédito por parte das famílias com menores rendimentos cons-titui uma das explicações para a omissão e complacência dos Estados na regu-lação e supervisão dos mercados financeiros nas últimas décadas.

Esta universalização do acesso ao crédito funcionava como um instru-mento de redistribuição do rendimento, o qual permitia às famílias de maisbaixos rendimentos beneficiar no presente dos rendimentos mais elevados queo “sonho americano” lhes prometeria no futuro. Este sentimento de esperançafoi partilhado por famílias e empresas de muitos outros países, incluindo Por-tugal.A longa expansão que caracterizou o comportamento da economia ame-ricana e dos países industrializados desde os anos oitenta contribuiu para refor-çar a confiança na realização daquelas expectativas.

No entanto, a crise financeira demonstrou que a redistribuição de rendi-mento entre o futuro e o presente tem que respeitar alguns limites. Com efeito,o consumo no presente dos rendimentos futuros só é sustentável quando estesefectivamente se materializam8. Quanto tal não acontece, os contratos estabe-lecidos com os credores deixam de ser cumpridos, desvanecendo a confiançano mercado, gerando um anormal funcionamento dos mercados financeiros eda actividade económica.

O ponto de partida para a crise do século XXI consubstanciou-se emJunho de 2003. Nesse mês, a Reserva Federal Norte-Americana, presidida porAlan Greenspan, decidiu fixar em 1% a taxa de juro do dólar, tendo equivalidoesta decisão, em termos práticos, a uma distribuição gratuita de capital9-10.

798 Jorge André Carita Simão

6 Cf. FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO

RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit., 12:“Ter crédito pas-sou a ser uma qualidade digna de afirmação”.7 Vide, desenvolvidamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “A crise planetária de 2007/2010 eo governo das sociedades”, op. cit., 267 e 268.8 Cf. FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO

RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit., 14 e 15.9 PIERRE LECONTE, La Grande Crise Monétaire du XXIe Siècle a Déjà Commencé!, op. cit., 11 e 12.É interessante notar que, desde 2000, os EUA têm criado mais dólares do que desde a fundaçãoda sua Nação no ano de 1776.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 5: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Contudo, Pierre Leconte entende que, já desde os anos 70, o sistema actualem vigor tem vindo a sofrer de três grandes problemas. Em primeiro lugar, ageneralização das moedas fictícias sem contrapartida real. Por outro, uma cria-ção de moeda em moldes excessivos, a qual não poderá gerar outra realidadese não o fenómeno de “bolha/crash”, entendendo o Autor que a única soluçãopara este problema se traduz no regresso a um sistema monetário em que ainjecção de liquidez seja efectuada em proporção de uma mercadoria rara,como o foi, em tempos, o ouro. Por fim, as manipulações nas taxas de câmbio,que levam a instabilidades constantes da moeda.

A crise iniciada em 2007 constitui o exemplo mais recente da dinâmica deexpansão e contracção das economias, motivada pelo crescimento excessivo doendividamento das famílias.

Os problemas iniciaram-se com os mercados de crédito e as intervençõesdos bancos centrais a estarem na ordem do dia. As bolhas especulativas dasempresas de novas tecnologias de informação e comunicação (conhecidascomo dotcoms) nos anos 90, a bolha da habitação nos primeiras anos do séculoXXI, o desequilíbrio externo da economia americana e os excedentes das eco-nomias emergentes sugeriam aos economistas e decisores de política econó-mica a inevitabilidade de uma recessão ou crise à escala mundial.

Os custos da crise financeira actual, traduzida em perdas elevadas no patri-mónio das sociedades, tornam-na na mais grave desde a Grande Depressão dosanos 3011.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 799

10 Nesta sede, é necessário fazer uma referência à política keynesiana: Keynes, o pai espiritual do“grande desastre do século XX”, defendia que o Estado deve assumir uma política interventivana economia, estimulando a criação monetária através da baixa das taxas de juro, já que esta enco-rajaria os sujeitos económicos a aumentarem o seu consumo, bem como a investirem o seu capi-tal. De acordo com essa política, o Estado deveria ainda aumentar as suas despesas públicas, lan-çando, v.g., programas de grandes obras públicas, o que faria com que fosse relançada ainda aprocura da força de trabalho. Keynes teve um papel determinante: por um lado, influenciandohomens da política, tanto de direita como de esquerda, que viam na sua tese a justificação teó-rica das suas políticas; e, por outro, influenciando os bancos centrais, que necessitavam de agirsobre a economia, manipulando taxas de juro e criando uma elevada liquidez.Contudo, são normalmente apontadas a essa política algumas falhas, tais como de acreditar queo Estado poderia resolver problemas económicos; rejeitar a ideia que o melhor estado teórico daeconomia, como haviam formulado os economistas da escola austríaca, é o da concorrência, oque o leva a preferir a constituição de todo o tipo de monopólios e oligopólios que determinemo preço dos produtos no mercado; e o de acreditar que o aumento da massa monetária em cir-culação, passando por cima de um aumento real do PIB, poderia trazer efeitos benéficos no cres-cimento económico.11 Esta constituiu um exemplo notável de crise financeira que tinha sido antecedida por períodosde grande euforia nos mercados financeiros e por aumentos exponenciais de endividamento. Esta

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 6: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

A questão que é muito abordada neste contexto é a de saber se os bancoscentrais, e em particular a Reserva Federal dos EUA, poderiam ter tomadomedidas para moderar a euforia vivida nos mercados financeiros e da habita-ção e, dessa forma, limitar os danos na economia resultantes do fim repentinodas bolhas12.

No entanto, a aparente facilidade com que a economia americana superouo crash da bolha dotcom em 2001, surpreendeu a maioria dos analistas econó-micos e decisores de política económica, dada a amplitude da queda dos pre-ços das acções – cerca de 70% do índice NASDAQ no espaço de 1 (um) ano13.A Greenspan foi, pela terceira vez, atribuído o papel principal no salvamentoda economia americana14.

800 Jorge André Carita Simão

crise terminou numa longa e profunda recessão, mas, no período que a antecedeu – os “loucosanos vinte” nos EUA – a economia americana apresentava taxas de crescimento muito elevadas,acompanhadas de um sentimento de euforia generalizado.Tal sentimento reflectia uma elevadaconfiança no futuro e nas potencialidades da economia. Exemplo similar parece ser o que se passacom a crise que se vive nos dias de hoje: um desenvolvimento da bolha dotcom e da bolha nomercado da habitação, como resultado de períodos de euforia no mercado financeiro, com umconsequente aumento significativo do nível de endividamento das famílias e das empresas.12 Neste contexto é fulcral relembrar que os bancos centrais são, no essencial, uma novidade doséculo XX, tendo sido criados especificamente com o objectivo de evitar as crises bancárias (v.g.,a Reserva Federal dos EUA – também conhecida por FED – foi criada na sequência da gravecrise financeira de 1907). Um estudo atento da crise actual deve relançar a crítica sobre o papeldos Bancos Centrais na eficácia e coerência das suas políticas. Empréstimos subprime ou liquidezinjectada pela actuação destes Bancos leva a resultados contrários aos supostamente pretendidos,inflacionando a oferta monetária mundial, que progrediu num ritmo avassalador, por contrapo-sição ao ritmo de crescimento do PIB, encorajando a especulação. É relançada novamente a ques-tão já muito debatida entre os economistas (“Moral Hazard”): os actores económicos dos merca-dos financeiros sabendo que, em caso de crise financeira grave, os bancos centrais “correrão” emseu socorro, são encorajados a tomar riscos nunca dantes considerados, aumentando a probabili-dade de aparecimento de anomalias sobre os preços e formação de bolhas especulativas.PIERRE LECONTE, La Grande Crise Monétaire du XXIe Siècle a Déjà Commencé!,op. cit., 55, refereque os Bancos Centrais, após o abandono progressivo do padrão ouro/padrão câmbio ouro, nãoprosseguiram mais objectivos de política monetária. Deste modo, provocam arranques e paragenssucessivas da economia, deixando as massas monetárias crescer praticamente sem qualquer con-trolo, a ritmos bem superiores relativamente às necessidades reais dos seus utilizadores.13 Cf. FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO

RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit., 78.14 A primeira foi por ter evitado uma crise financeira, poucos meses depois de ter sido nomeadopresidente da Reserva Federal, quando a bolsa americana caiu 22,5% no dia 19 de Outubro de1987, tendo consubstanciado a maior queda do Dow Jones num só dia. A segunda foi na crisedas instituições financeiras Saving and Loans, iniciada em 1989, e que terá sido até essa data a maisgrave desde a Grande Depressão, tendo movido a insolvência de bancos de pequena e médiadimensão.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 7: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Nesses contextos de início de graves crises económicas, a prioridade daReserva Federal foi assegurar liquidez ilimitada ao mercado15, de forma agarantir que todas as instituições financeiras continuavam a cumprir as suasobrigações, mantendo assim os mercados financeiros em funcionamento16-17.Porém, taxas de juro baixas significam menores custos para os devedores,incentivando ainda mais a despesa e a actividade económica e implicandomenos rendimentos para os credores18.

O aumento, entre 2000 e 2006, de cerca de 80% dos preços da habitaçãonos EUA e a expansão do mercado subprime, coincidiram com taxas de juroreais historicamente baixas19.

A par da descida do preço das habitações, a queda das bolsas reduziu o valorda riqueza, tanto das famílias como das empresas, tornando mais difícil o acessoao crédito. Por um lado, os activos que poderiam ser apresentados como garan-tia perderam valor, aumentando a incerteza quanto ao seu valor futuro. Poroutro, as instituições financeiras viram o seu balanço deteriorar-se, consubstan-ciando a venda de activos e a diminuição da concessão de crédito factoresnecessários para compor o balanço.

Nesta sede, tem sido utilizada a expressão “credit crunch”, que se traduznuma redução do crédito disponível para clientes em condições de o receber.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 801

15 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, op. cit., 129.16 Veja-se, igualmente que, na crise actual, entre Agosto de 2007 e Março de 2008, a ReservaFederal reduziu a sua taxa de juro de referência em 300 pontos base, de 5,25% para 2,25%. (Cf.FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO RABELLO DE

CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit., 80).17 No entanto, tal política não está isenta de críticas por parte dos economistas: muitos delesdefendem que este tipo de políticas favorece a tomada de posições de maior risco pelos investi-dores. Por consequência, esta actuação poderá contribuir para o desenvolvimento de bolhas espe-culativas, já que os investidores sabem que, se as coisas não correrem de feição, os bancos centraisfarão tudo ao seu alcance para que os mercados recuperem rapidamente.18 Conforme notam FERNANDO ALEXANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA

ANDRADE/PAULO RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit.,81, os credores, ao alcançarem menores rendimentos, procurarão aplicações alternativas para o seucapital, tornando-os receptivos a investimentos mais arriscados, que poderão incrementar aindamais a “bolha” especulativa já existente. Nessa perspectiva, a política monetária expansionistaimplementada com o objectivo de reduzir os danos na actividade económica do fim de umabolha especulativa, irá lograr um efeito perverso e contrário aquele que seria o pretendido.19 Daí que sejam frequentes as críticas lançadas aos responsáveis pelos bancos centrais (maxime,a Alan Greenspan), no sentido de terem sido as suas políticas que fizeram com que a crise finan-ceira surgisse e se acentuasse nesse espaço temporal.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 8: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

1.2. As implicações do presente e do futuro20

Como já foi supra referido, o excesso de endividamento21 constitui a prin-cipal causa responsável pela origem da crise financeira. Desde meados dos anos90, assistiu-se a um aumento exponencial do endividamento das famílias, empaíses como os EUA, a Irlanda, a Espanha e Portugal22.As famílias e as empre-sas endividaram-se com base nos rendimentos que esperavam auferir, os quaisutilizariam para pagar as dívidas entretanto contraídas. No entanto, se taisexpectativas forem demasiado optimistas, tornar-se-á muito difícil o cumpri-mento dessas obrigações. Um banco, quando aprova um crédito, fá-lo com baseno risco associado a tais expectativas23.

Por sua vez, a China tem-se revelado um dos principais actores da eco-nomia mundial, consubstanciando, talvez, o mais importante acontecimentoeconómico do início do século XXI. As elevadas taxas de crescimento eco-nómico desde o início dos anos 80, permitiram retirar milhões de chineses da

802 Jorge André Carita Simão

20 LOÏC ABADIE, La Crise Financière en 2008/2010: Mode d’Emploi pour la Décrypter et l’Exploiter,op. cit., 120 ss., entende que todas as crises têm um fim e esta não é o fim do mundo, nem o fimda economia de mercado, nem o fim do crescimento mundial a longo prazo.A dicotomia exis-tente no presente (países desenvolvidos em fim de ciclo e países emergentes em crescimento)deverá ser favorável à categoria de investimento para a saída da crise: as matérias-primas. Con-tudo, este investimento só deve ser feito na fase de início de subida das taxas, o que significará oinício de um novo ciclo inflacionista. Por agora, o Autor entende que “guardar o dinheiro” é aúnica solução proteccionista possível.Entre as matérias-primas que devem ser as mais procuradas, uma delas deve reter a nossa aten-ção: o petróleo e os seus substitutos (como a transformação do carvão em petróleo). Este tem agrande vantagem de ter chegado ao ponto onde 50% das reservas mundiais já terem sido consu-midas. Para mais, as novas descobertas de fontes petrolíferas não compensarão o nível de con-sumo existente.As tensões observadas no preço do petróleo desde 2002 (o preço do barril pas-sou em 6 anos de 18 a 100 dólares) mostram que, em todo o caso, o problema já se situa ao nívelda oferta. Contudo, esse problema não se irá colocar na fase de recessão, já que o consumo dospaíses industrializados vai reduzir e, provavelmente, o dos países emergentes também.21 Para maiores desenvolvimentos acerca deste excesso de endividamento de alguns países, o qualapenas é possível devido à poupança que outros países tinham acumulado, vide FERNANDO ALE-XANDRE/IVES GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO RABELLO DE CASTRO/PEDRO

BAÇÃO, A Crise Financeira Internacional, op. cit., 89 ss.22 Repare-se nestes números: o défice comercial anual dos EUA passou de 10 biliões de dólaresem 1971, a 100 em 1994, a 440 em 2000 e a 850 em 2006.23 A propósito da assunção de riscos, existe algum consenso em torno do papel que as três gran-des agências de rating – Moody’s, Standard and Poor’s e Fitch – tiveram na origem da crise finan-ceira, tendo sido discutida a avaliação excessivamente optimista de activos de risco elevado noperíodo que precedeu a crise.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 9: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

pobreza e tornar várias indústrias do país quase em monopolistas em termosmundiais24.

No entanto, o crescimento económico da China baseou-se no investi-mento e nas exportações de produtos para os países desenvolvidos (maxime, aEuropa e os EUA, que absorvem mais de 70% dos produtos chineses)25.

É importante referir ainda que a China, sendo um país com excesso depopulação face aos recursos disponíveis, se tornou um grande importador dematérias-primas e de petróleo. O aumento da procura resultante da sua entradanos mercados internacionais contribuiu para o aumento dos preços das maté-rias-primas, do petróleo e também dos cereais. Isto motivou, conforme já refe-rimos neste trabalho, um aumento das taxas de juro pelos bancos centrais, naaltura em que a crise financeira estava prestes a despoletar.

1.3. A actualidade do debate sobre a remuneração dos administradores e o seucontributo para o despoletar da crise

Com a reforma de 2006 do Código das Sociedades Comerciais, a projec-ção da corporate governance, enquanto ideologia, foi intensa nas grandes empresas.Isso permitiu reformulações nos esquemas de retribuição dos administradores,na arrumação dos conselhos de administração e, com menor efectividade, nareorganização das fiscalizações26.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 803

24 Conforme nota PIERRE LECONTE, La Grande Crise Monétaire du XXIe Siècle a Déjà Commencé!,op. cit., 59 ss.: “Enquanto que os EUA já usaram o padrão dólar para sugar todo o dinheiro domundo, a China utiliza agora a mundialização desequilibrada para sugar todo o trabalho domundo. Contudo, a América já consumiu, ou, melhor dizendo, perdeu, os capitais que obtiverapelo seu velho «Estatuto Imperial».Agora, a China conserva a criação de riqueza obtida pelo tra-balho dos seus concidadãos, que na maioria não consome mais do que o mínimo essencial à suasobrevivência, acumulando níveis de poupança extraordinários (cerca de 50% dos seus ganhos).Começa a perceber-se que o trabalho Chinês permite cada vez mais captar o dinheiro mundial,sendo uma excelente ilustração de como a produção competitiva (e não a manutenção artificialde actividades económicas ultrapassadas – como o caso Europeu; ou a criação de dívida – comoo caso Americano) cria riqueza a longo prazo” (tradução nossa).25 Embora sem números oficiais, estima-se que os valores das reservas oficiais chinesas já ascen-diam a mais de 2 biliões de dólares no final de Junho de 2009. (Cf. FERNANDO ALEXANDRE/IVES

GANDRA MARTINS/JOÃO SOUSA ANDRADE/PAULO RABELLO DE CASTRO/PEDRO BAÇÃO, A CriseFinanceira Internacional, op. cit., 101).26 Com efeito, esta reforma de 2006 conduziu a um alargamento dos modelos e sub-modelosde governação, reforçando de maneira significativa a autonomia estatutária das sociedades anó-nimas.A pluralidade de modelos de governação reflectiu-se também no âmbito da competência

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 10: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

A crise financeira iniciada em 2007 tem vindo a revelar um número signi-ficativo de casos de remuneração avultada em empresas em situação financeiraprecária, relançando a crítica em direcção a esquemas de incentivos indutoresde risco excessivo ou baseados em indicadores de curto prazo.

Com efeito, a remuneração dos administradores é hoje o centro de acesosdebates sobre a corporate governance. Este assunto tem captado, em larga escala, aatenção dos órgãos de comunicação social, em detrimento de qualquer outroassunto relacionado com o Direito das Sociedades.

Muito já se tem ouvido falar sobre a regulação do conflito de interesses,sendo a remuneração dos membros dos órgãos sociais um dos seus pontos deinteresse.

Qualquer sociedade visa a maximização do lucro e do valor da sociedade.Contudo, é perceptível que os administradores dessas sociedades possam des-virtuar tais objectivos, subordinando-os a outros fins (maxime, a interesses pró-prios), contrapostos ao interesse da própria sociedade.

A remuneração dos administradores é fundamental para se garantir que,por um lado, se consiga captar e fidelizar gestores com talento (através de umaremuneração adequada e justa) e, por outro, se evitem remunerações excessiva-mente altas, de tal forma que se origine uma erosão do património societário27.

A separação entre os accionistas e os gestores é uma das características rele-vantes das grandes empresas nos países desenvolvidos, provocada sobretudopelo facto das empresas por acções permitirem uma maior dispersão do riscoentre investidores e, deste modo, uma maior captação de fundos para investir.Daí que este crescimento das empresas tivesse levantado problemas de coorde-nação, exigindo uma delegação da autoridade por se ter verificado um acen-tuado aumento do know-how associado à gestão empresarial, a qual se profis-sionalizou28.

Do ponto de vista teórico, levanta um conjunto de problemas enquadrá-veis no âmbito da denominada “teoria da agência”. O governo das empresas

804 Jorge André Carita Simão

para fixar as remunerações dos titulares dos órgãos sociais. (Cf. PAULO CÂMARA , “Conflito deinteresses no direito financeiro e societário: um retrato anatómico”, op. cit., 43).27 A propósito da admissibilidade de uma remuneração variável de um gerente de sociedadespor quotas em função das vendas, justificada, desde logo, no princípio da liberdade contratual eno facto do artigo 255.°, n.° 3 do CSC não o proibir, proibindo apenas a participação dos geren-tes nos lucros, quando não esteja previsto no contrato, vide LUÍS BRITO CORREIA, “Admissibili-dade de remuneração variável de um gerente de sociedade por quotas”, Direito das Sociedadesem Revista,Ano 1,Vol. 2, 2009, 9 ss.28 PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, 4.ª ed., 2010, 779 ss.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 11: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

(corporate governance) analisa as múltiplas formas de resolver os potenciais con-flitos que podem decorrer dessa separação, atendendo a que os objectivos dosproprietários e dos gestores nem sempre são coincidentes.

A questão da assimetria de interesses entre os accionistas e os gestores temsido muitas vezes focalizada na questão da remuneração destes últimos.Toda-via, apesar de ser bastante importante, a remuneração não é o único factor queatrai e fideliza os gestores talentosos. Por outro lado, a divulgação dos saláriosde muitos executivos de empresas cotadas tem surpreendido, pelo seu elevadovalor, a opinião pública e reclamado a intervenção de autoridades reguladoras.

Existem aspectos a montante do estabelecimento do esquema remunera-tório – nomeadamente os relacionados com a clara definição dos objectivos ecom o nível e a qualidade da informação que circula entre o agente e o prin-cipal – que são a condição necessária para que a redução dos custos de agên-cia se torne possível.

Deve ser privilegiado uma maior qualidade e profundidade das informa-ções que são divulgadas para se conseguir alcançar algum resultado práticoneste domínio.

§ 2.° – Deveres gerais dos administradores

2.1. Posição jurídica dos administradores

A propósito de saber se os administradores devem estar ao serviço dossócios ou da sociedade, é necessário abordarmos a temática dos interesses daspartes em presença.Assim, torna-se imprescindível relembrar o que nos é ensi-nado por Menezes Cordeiro:“[e]m sentido subjectivo, o interesse traduz umarelação de apetência entre o sujeito considerado e as realidades que ele consi-dere aptas para satisfazer as suas necessidades ou os seus desejos. Em sentidoobjectivo, o interesse traduz a relação entre o sujeito com necessidades e osbens aptos a satisfazê-las”29. Na sua opinião, no que a lei permite, cabe aossócios definir os “interesses” da sociedade e os seus próprios, sendo a referên-cia aos “interesses” da sociedade uma referência infeliz.

Do nosso ponto de vista não acompanhamos por inteiro essa posiçãodefendida por Menezes Cordeiro. Efectivamente, parece-nos defensável que

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 805

29 Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I: Das Sociedades emGeral, 2.ª ed., 2007, 791.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 12: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

hajam “interesses” de uma sociedade diferentes dos “interesses” dos seus sócios.Isto porque, normalmente, o interesse destes últimos é pensado numa perspec-tiva de curto prazo, enquanto que no primeiro caso o interesse é de sustentabi-lidade e de longo prazo, sendo assim perfeitamente autonomizáveis.

2.2. Poder de administrar ou de gerir

Em termos jurídicos, os administradores têm o poder de gerir ou de admi-nistrar e ainda o poder de representar30. Apenas nos interessa tecer algumasconsiderações a propósito do primeiro deles. Este é um direito potestativo enão um “dever”31, caracterizando-se como situações jurídicas absolutas, “nãooriginando quaisquer direitos correspectivos por parte da sociedade”32.

O CSC não nos dá uma noção explícita de administração da sociedade.Assim, ela aparece referida em vários preceitos (maxime, o artigo 406.°, que nosfala dos poderes de gestão).

O artigo 64.° do CSC33, na redacção que lhe foi dada com a reforma de2006, veio articular, ainda que em alíneas separadas: os deveres de cuidado e delealdade; explicitar o conteúdo dos deveres de cuidado, de acordo com a dili-gência de um gestor criterioso e ordenado; desenvolver o teor dos deveres delealdade, inserindo, entre os elementos a ter em consideração, a referência adiversos interesses34.

806 Jorge André Carita Simão

30 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I, op. cit., 794.31 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I, op. cit., 797:“(…) a admi-nistração é um direito potestativo: traduz a permissão normativa que os administradores têm dedecidir e de agir, em termos materiais e jurídicos, no âmbito dos direitos e dos deveres da socie-dade. Embora se trate de um direito – os administradores são autónomos, ou teriam de ir pro-curar a administração noutra instância – é um direito funcional ou fiduciário: os administrado-res devem observar regras e agir na base da lealdade”.32 Vide ADELAIDE MENEZES LEITÃO, “Responsabilidade dos administradores para com a socie-dade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, Revista de Direito das Socie-dades,Ano 1, N.° 3, 2009, 661.33 A propósito da análise da natureza da situação jurídica dos administradores, considerando que“(…) o artigo 64.°/1 do CSC apresenta-se como uma disposição incompleta, que não tem san-ção estatuída na própria disposição, mas cuja previsão normativa, conjugada com as disposiçõessobre responsabilidade dos administradores (artigo 71.° e seguintes), permite enquadrar a respec-tiva sanção”, ADELAIDE MENEZES LEITÃO, “Responsabilidade dos administradores para com asociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, op. cit., 660 e 661.34 Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I, op. cit., 802.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 13: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Assim, a redacção de 2006 (que consagrou os “duty of care” e os “duty ofloyalty”), faz com que seja necessário ter em consideração que “(…) o direitodas sociedades comerciais beneficiou de uma viragem no sentido anglo-saxó-nico ou, melhor dito, anglo-americano”35.

Uma outra questão relacionada diz respeito à natureza contratual (ou não)da relação administrador/sociedade.

Pedro Pais de Vasconcelos afirma que a relação entre os gestores e a socie-dade é de natureza contratual, já que tal decorre do contrato de sociedade e docontrato de gestão36. Desde logo, na sua opinião, o artigo 72.°, n.°1 do CSCestatui nesse sentido, uma vez que os gestores são responsáveis salvo se provaremque actuaram sem culpa. Esse regime de presunção de culpa é característico daresponsabilidade civil contratual. Desde 2006, o gestor de uma sociedade estáonerado com uma presunção de ilicitude na sua actuação de gerir, cabendo-lhe elidir essa presunção, demonstrando que agiu de acordo com as normas ecumpriu o comportamento devido.

O Autor discorda assim de António Menezes Cordeiro37, que por sua vezcarreia argumentos tendentes a demonstrar que “não é viável, no Direito posi-tivo português vigente, laboralizar a situação jurídica dos administradores”.E conclui sustentando que se trata de uma situação jurídica absoluta (não de umarelação jurídica), no essencial composta por posições potestativas (poderes derepresentar e de gerir, tal como já vimos), completada por múltiplas relações(direitos e deveres, legais, estatutários, convencionais ou deliberados). Consi-dera a “situação jurídica de administração” como “uma realidade autónoma, decariz societário, com factos constitutivos múltiplos, privada, patrimonial, com-plexa, compreensiva e nuclearmente absoluta. O seu conteúdo deriva da lei,dos estatutos e de deliberações sociais, podendo ainda ser conformado porcontrato ou por decisões judiciais”38.

Para rejeitar a natureza contratual da eleição-aceitação, Menezes Cordeiroinvoca a “mais simples e definitiva das razões: não se lhe aplica o regime dos

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 807

35 Vide PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Responsabilidade civil dos gestores das sociedadescomerciais”, Direito das Sociedades em Revista,Ano 1,Vol. 1, 2009., 17 ss.36 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Responsabilidade civil dos gestores das sociedades comer-ciais”, op. cit., 21.37 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das SociedadesComerciais, 1997, 384 ss. e 393.38 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das SociedadesComerciais, op. cit., 396.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 14: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

contratos mas antes, um conjunto preciso de regras de natureza deliberativa esocietária”39.

Discordando deste argumento, também Luís Brito Correia40, invocandouma série de razões: a complexidade do regime da deliberação de eleição nãoé suficiente para esconder que ela não passa de um processo de formação eexpressão da vontade da sociedade (pessoa colectiva), enquanto parte da suarelação com o administrador. A deliberação não é um contrato, sendo apenasuma das manifestações do contrato de administração: a outra é a aceitação doadministrador. Para mais, entende que Menezes Cordeiro também olvida a rea-lidade social que precede a eleição-aceitação: um processo de negociação entreaccionistas dominantes (membros de um órgão social) e o candidato a admi-nistrador, tal como o que precede a celebração de qualquer outro contrato.

Os poderes de gestão e representação, embora incluam posições potestati-vas, são poderes funcionais (poderes-deveres), que não podem ser impostos poruma pessoa privada (a sociedade) a outra pessoa privada (o administrador), semo consentimento desta.Tal consentimento é o elemento essencial do conjuntoeleição-aceitação, sem o qual os efeitos jurídicos da constituição da relação deadministração não podem desencadear-se.

Por fim, a extraordinária multiplicidade e variabilidade de poderes, direitose deveres dos administradores não impede nem esconde a fundamental uni-dade da sua fonte (o contrato) e da sua função, no contexto de uma única rela-ção jurídica.

§ 3.° – A remuneração dos administradores

3.1. A remuneração como fonte de conflito de interesses

No que toca à remuneração dos administradores, importa desde já referirque “remuneração” é o termo correcto para definir a contrapartida que osadministradores auferem: a “remuneração” engloba todas as prestações de con-teúdo patrimonial e não apenas uma contrapartida pelo serviço prestado noseio de certa sociedade41-42.

808 Jorge André Carita Simão

39 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das SociedadesComerciais, op. cit., 395.40 Cf. LUÍS BRITO CORREIA, “Admissibilidade de remuneração variável de um gerente de socie-dade por quotas”, op. cit., 14.41 Neste sentido, partindo da concepção germânica de SCHWERDTNER (conhecida como teoriada remuneração), ainda que a propósito da distinção entre retribuição e remuneração num contrato

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 15: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Como já foi referido no início do presente trabalho, a remuneração dosadministradores é um tema que está muito em voga, devido aos abusos que setêm vindo a verificar a nível internacional e nacional, no que diz respeito aossalários e prémios praticados no nosso País43.

Para mais, veja-se que também poderá suscitar outro tipo de conflitos. Ima-gine-se o confronto que poderá, potencialmente, existir, entre o interesse parti-cular da sociedade e o interesse público, no sentido de saber se o Estado detémlegitimidade para controlar os rendimentos dos administradores, na lógicasegundo a qual mais do que garantir o funcionamento da autonomia privada, énecessário saber se não fará também sentido tutelarem-se os mercados, dado quea gestão por objectivos de uma certa sociedade pode potenciar a assunção de ris-cos (num horizonte temporal superior ao do mandato), podendo a materializa-ção destes riscos prejudicar o mercado (entra aqui um dos contributos destacrise, que se deveu ao facto de em algumas situações os agentes e os gestoresreceberem bónus pelos créditos que angariavam, fossem estes subprime ou não).

3.2. Corporate governance e a remuneração

3.2.1. Teoria da agência

No contexto dos deveres gerais dos titulares dos órgãos de gestão das socie-dades comerciais é necessário ter em consideração a relação entre ownership emanagement, segundo o panorama anglo-saxónico da agency44.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 809

de trabalho, MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, parte I (dogmática geral),2.ª ed., 2009, 429.42 Cremos que é pacífico na doutrina a utilização deste conceito para designar a contrapartidaauferida pelos administradores das sociedades, consagrado, desde logo, na epígrafe do artigo 399.°do CSC.43 Em Espanha, PILAR MONTERO GARCÍA-NOBLEJAS, “Procedencia y alcance de la constanciaestatutaria de la retribución de los adminstradores de sociedades cotizadas consistente en pro-gramas de opciones sobre acciones y sistemas similares”, Revista de derecho de sociedades, CizurMenor, N.° 3, 2008, 171: “En nuestro Derecho no es una tarea sencilla determinar claramentequé debe entenderse por «retribución de administradores», fundamentalmente porque la ley nofacilita una definición que permita determinar los elementos que integrarían este concepto”.A Autora entende que “(…) dentro del concepto de retribución de administradores, se debeincluir cualquier atribución patrimonial que obtenga el administrador de la sociedad como con-traprestación por el ejercicio del cargo” (173).44 Cf. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Responsabilidade civil dos gestores das sociedades comer-ciais”, op. cit., 11.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 16: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Por ownership refere-se a posição de todos aqueles que investiram numacerta sociedade através da subscrição do capital inicial ou de subsequentesemissões, na qualidade de sócios, de titulares de participações sociais. Já aexpressão management designa a posição dos titulares dos órgãos de administra-ção de gestão da sociedade e também dos próprios órgãos de gestão.

A agency, típica do direito anglo-saxónico, menciona a relação existenteentre alguém que gere os interesses ou bens alheios e os titulares desses inte-resses ou bens. Esta relação espelha aquela que existe entre a sociedade (princi-pal) e os gestores (agents), devendo os gestores exercer a sua função por contae no interesse dos sócios que investem no negócio: este sistema é apelidado deshareholder primacy45.

O problema principal dos incentivos à eficiência em organizações com-plexas, como o funcionamento de uma sociedade, é o da sintonia de interessese de condutas entre pessoas que dividem entre elas o trabalho e são, por isso,obrigadas a confiarem umas nas outras. Os accionistas de uma empresa ganhamem dividir o trabalho com gestores especializados, os quais, ao exercerem ocontrolo da empresa, ficam colocados numa posição de assimetria informativaque os privilegia face aos accionistas46. Por sua vez, os accionistas ficam colo-cados numa posição informativa que os impossibilita de aferirem, de forma efi-ciente, o desempenho dos gestores.

Em termos ideais, os gestores actuariam sempre no interesse dos accionis-tas, beneficiando-os invariavelmente com as suas decisões47; contudo, os gesto-res poderão não ter muito a ganhar com o benefício dos accionistas, bem comopoderão não ter muito a perder com os prejuízos que provoquem, na medidaem que os accionistas não estejam em posição de detectar e aferir tais prejuízos48.

O alinhamento de interesses administrador/sociedade é fundamental,sendo importante trazer aqui à colação a noção do que se entende por “teo-ria” ou “problemas” de agência49.

810 Jorge André Carita Simão

45 Sobre esta relação vide, desenvolvidamente, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Responsabilidadecivil dos gestores das sociedades comerciais”, op. cit., 12 e 13.46 FERNANDO ARAÚJO, Introdução à Economia, 3.ª ed., 2005, 426.47 E, de acordo com essa perspectiva, num mercado eficiente, os administradores menos leais ediligentes seriam ultrapassados por administradores mais leais e diligentes, capazes de garantir umdesempenho superior a custos inferiores. (Cf. JOÃO SOUSA GIÃO, “Conflitos de interesses entreadministradores e os accionistas na sociedade anónima…”, op. cit., 280 e 281).48 Para maiores desenvolvimentos, FERNANDO ARAÚJO, Introdução à Economia, op. cit., 427 ss.49 Já se pode consultar bastante doutrina a propósito da remuneração a partir do ângulo da teo-ria da agência. Vide, nomeadamente, FRANCISCO TUSQUETS TRIAS DE BES, La Remuneracion de losAdministradores de las Sociedades Mercantiles de Capital, 1998, 49 ss. e LUCIAN A. BEBCHUCK/JESSE

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 17: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

A articulação entre accionistas e administradores, no contexto de funcio-namento da sociedade, poderá originar problemas de risco moral (“moralhazard”), i.e., quando no decurso de uma relação contratual uma das partes, emfunção de uma assimetria informativa, detendo mais conhecimentos técnicosdo que a contraparte, abusa dessa vantagem e cumpre defeituosamente a suaprestação, já que a contraparte dificilmente o saberá50.

No caso, a qualidade da prestação desenvolvida pelo administrador não éfacilmente perceptível pela maioria dos accionistas. Isto leva-nos à temática doreforço dos deveres de transparência (tanto perante os accionistas, comoperante as entidades que tutelam o interesse dos accionistas, como perante osmembros de órgãos de fiscalização e auditores externos).

A teoria da agência baseia-se nesta ideia de risco moral. Existe um princi-pal (in casu, os accionistas) e um agente (os administradores). Estes últimosdevem defender os interesses dos primeiros. Deverá procurar-se uma soluçãoque procure cativar e alinhar os interesses do agente com os do principal.

3.2.2. Competência para a definição da remuneração

Em Portugal, a Lei n.° 28/2009, de 19 de Junho, veio impor um dever deapresentação à assembleia geral de uma declaração sobre política de remunera-ção,“say on pay”51-52, dos membros dos órgãos de administração e de fiscaliza-ção de entidades de interesse público.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 811

M. FRIED, Executive Compensation as an Agency Problem, Harvard University, 2003, disponível paraconsulta SSRN: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=438720.50 Daí que este constitua um dos domínios em que é fundamental se proceder a um reforço dosdeveres de transparência, tanto na relação administrador/accionistas, como na relação adminis-trador/órgãos de fiscalização e auditores externos.51 Esta designação cobre todas as normas jurídicas que permitam, promovam ou obriguem apolítica de remunerações societária, ou uma declaração a esta relativa, a ser submetida a um votoexpresso em assembleia geral, com uma periodicidade pré-determinada, em regra anual. Nestesentido, vide PAULO CÂMARA,“«Say on pay»: o dever de apreciação da política remuneratória pelaassembleia geral”, Revista de Concorrência e Regulação,Ano 1, N.° 2, 2010, 324.52 A propósito do “say on pay”, BRIAN R. CHEFFINS/ RANDALL S.THOMAS, Should Shareholdershave a Greater Say over Executive Pay?: Learning from the US Experience,Vanderbilt Law, Joe C. DavisResearch Paper No. 01-6, 2001. Disponível para consulta SSRN: http://ssrn.com/abstract=268992 e ROLF WATTER/KARIM MAIZAR,“Structure of executive compensation and conflicts ofinterests – legal constraints and practical recommendations under Swiss Law”, Conflicts of interest.Corporate governance and Financial Markets, LUC THÉVENOZ/RASHID BAHAR (eds.), 2007, 31 ss.(maxime, 71). Vide ainda NATASHA BURNS/KRISTINA MINNICK, Does Say on Pay Matter? Evidencein the U.S. (Fevereiro 2010). Disponível para consulta SSRN: http://ssrn.com/abstract=1558435.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 18: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Complementarmente, foram publicados alguns regulamentos sectoriaisrelevantes: o Regulamento n.° 1/2010 da CMVM, o Aviso n.° 1/2010 doBanco de Portugal e a Norma Regulamentar n.° 5/2010-R do Instituto deSeguros de Portugal – dirigidos, respectivamente, às sociedades cotadas, às ins-tituições de crédito e sociedades financeiras gestoras discricionárias de activos,e às empresas de seguros e de resseguros e sociedades gestoras de fundos depensões.

No sistema jurídico inglês53, o “say on pay” não impediu o aumento dosníveis remuneratórios, sendo raras as oposições accionistas às arquitecturasremuneratórias submetidas a escrutínio.

Existe uma pluralidade de enquadramentos de governação quanto ao pro-cesso decisório ligado à fixação do quantum remuneratório, identificando-sequatro modelos principais no que toca à competência da fixação da remune-ração dos administradores:

(i) Administradores independentes não reunidos formalmente emcomissão54;

812 Jorge André Carita Simão

53 Recorde-se, a este respeito, a experiência inglesa. O Greenbury Committee, nas suas delibera-ções sobre executive pay, analisou o papel que deveria ser atribuído aos accionistas, pronunciando--se no sentido de os investidores poderem usar o seu poder de influência para dar um contri-buto na matéria. No entanto, não colocou a ênfase na atribuição de um poder directo de pro-núncia (direct say) mas antes na transparência (disclosure), defendendo uma “filosofia de totaltransparência”. Em certas circunstâncias, no entanto, seria admitido o voto directo: assim, nassociedades votadas, os accionistas deveriam ser anualmente chamados a votarem o relatório sobrepolíticas de remuneração. Nesta linha, o Combined Code veio atribuir à administração a respon-sabilidade de assegurar este exercício anual. No entanto, o Hampel Committee viria considerar ina-propriado requerer a aprovação dos accionistas numa matéria relativa a um aspecto individual dapolítica societária. Mais tarde, o Department of Trade and Industry (DTT) Consultation Paper onExecutive Pay determinou que o comité de remunerações deveria estabelecer a política de remu-nerações mas os accionistas teriam um papel no controlo de abusos. Para tanto, haveria duas hipó-teses: a facilitação da apresentação de propostas pelos accionistas em assembleia geral; a atribui-ção do direito de votar anualmente a política de remuneração, sendo o voto não vinculativo.A proposta suscitou reacções diversas: algumas positivas, outras neutrais e outras negativas, expres-são do receio de que assim se afastassem os administradores mais competentes, atento o risco devoto negativo dos accionistas em assembleia geral. Em 2002, o Directors’ Remuneration Report(DRR) atribuiu aos accionistas um direito de voto não vinculativo: as recomendações do DRRseriam, por fim, absorvidas pelo Companies Act 2006, que consagra a necessidade de aprovação dapolítica remuneratória pela assembleia geral, mas com natureza não vinculativa (como resulta dasec. 439). Ainda assim, considera-se que o voto negativo pode ter efeitos importantes, já querepresenta um voto de não confiança na política remuneratória e no próprio comité de remu-nerações.54 Estes administradores não executivos, em particular, independentes, são vistos como sendo

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 19: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

(ii) Comissões delegadas do Conselho de Administração55;(iii) Comissões delegadas do órgão de fiscalização ou no próprio órgão de

fiscalização56;(iv) Comissões delegadas da assembleia geral ou na própria assembleia

geral57.

No nosso sistema jurídico, devemos tomar em consideração o que nos dizo artigo 399.° do Código das Sociedades Comerciais (CSC):“(n.° 1) [c]ompeteà assembleia geral de accionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remu-nerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e asituação económica da sociedade; (n.° 2) [a] remuneração pode ser certa ou consistir par-cialmente numa percentagem dos lucros de exercício, mas a percentagem máxima desti-nada aos administradores deve ser autorizada por cláusula do contrato de sociedade;(n.° 3) [a] percentagem referida no número anterior não incide sobre distribuições dereservas nem sobre qualquer parte do lucro do exercício que não pudesse, por lei, ser dis-tribuída aos accionistas”58.

Conclui-se, assim que a remuneração é fixada, administrador a administra-dor, pela assembleia geral ou por uma comissão de vencimentos, por elanomeada.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 813

aptos a agilizar a gestão da sociedade, libertando os restantes administradores (executivos) para omanagement diário. Estes também são dotados de know-how em temas mais complexos que recla-mem a intervenção de especialistas, sendo também chamados a dar o seu contributo isolada-mente ou reunidos em comissões a propósito da remuneração dos administradores. (Cf. PAULO

CÂMARA , “Conflito de interesses no direito financeiro e societário: um retrato anatómico”,op. cit., 45).55 Este consubstancia o modelo mais comum: mediante a atribuição de competências a umacomissão, nomeada pelo órgão de administração, que lida com os assuntos relacionados com aremuneração dos seus titulares. Para maiores desenvolvimentos, vide PAULO CÂMARA ,“Conflitode interesses no direito financeiro e societário: um retrato anatómico”, op. cit., 45 e 46.56 Este modelo de governo dualista, que combina a existência de um conselho de administra-ção executivo e de um conselho geral e de supervisão, por regra, confia neste órgão de fiscaliza-ção, ou em comissão composta por alguns dos seus titulares, a competência para a fixação daremuneração dos administradores. Em Portugal, esta eventualidade é prevista na lei, embora seadmita que os estatutos designem como competente a assembleia geral ou a comissão de venci-mentos por esta nomeada – artigo 429.° CSC. (Cf. PAULO CÂMARA ,“Conflito de interesses nodireito financeiro e societário: um retrato anatómico”, op. cit., 46).57 Este é o modelo seguido pelo artigo 399.° do CSC, analisado de seguida no texto principal.58 Vide, a anotação a este artigo em ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comer-ciais Anotado, (coord.António Menezes Cordeiro), 2009, 978 ss.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 20: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Este modelo retira os administradores da decisão sobre remunerações, evi-tando o risco de estes serem parciais, fazendo com que haja uma intervençãode titulares de outros órgãos sociais ou de investidores institucionais no pro-cesso decisório que respeite a remuneração dos titulares do órgão de adminis-tração59.

Com a reforma de 2006 do CSC, passou a ser admitido que a comissão devencimentos seja composta por não-sócios, passando a estar em conformidadecom as recomendações em matéria de independência dos membros da comis-são de vencimentos entretanto aprovadas, das quais falaremos mais à frente.

A fixação de remunerações nas grandes sociedades anónimas pode envol-ver questões muito frágeis, já que pode exigir o recrutamento de especialistasmuito solicitados, mediante compensações adequadas que, no interesse dasociedade, não podem ser discutidas em público, tendo assim a comissão devencimentos um papel delicado60.

O artigo 399.° CSC aponta como elementos a ter em conta as “funçõesdesempenhadas” e a “situação económica da sociedade”. Poderiam acrescen-tar-se outros, nomeadamente61: as habilitações do administrador; as caracterís-ticas do mercado; e os resultados efectivamente obtidos.

A fixação das remunerações da administração pertence ao núcleo forte do(bom) governo das sociedades. Com efeito, instalou-se na sociedade uma prá-tica de remunerações muito elevadas, sempre que a gestão levasse a bons resul-tados e valorizasse a sociedade (as acções). Daí serem apontados 3 óbices a estepropósito62: o facto de serem retribuições exageradas, muitas vezes coinciden-tes com retracções de despesas; corresponderem a valorizações ad hoc não cor-respondentes à criação sustentada de riqueza; e poderem assumir-se comofraudes contabilísticas destinadas a empolar resultados.

Assim, para se evitarem escândalos, é imperativo que se comecem a procu-rar, por um lado, uma publicitação das remunerações e, por outro, a profissio-nalização na sua fixação, bem como e ainda, a ponderação da produtividadeefectiva e a consagração de incentivos a médio e longo prazo63.

As comissões de vencimentos deveriam ser dotadas de autonomia, meiospróprios e especialistas. Isto porque esta comissão é uma emanação da assem-

814 Jorge André Carita Simão

59 Neste sentido, PAULO CÂMARA ,“Conflito de interesses no direito financeiro e societário: umretrato anatómico”, op. cit., 47.60 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, op. cit., 979.61 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, op. cit., 979.62 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, op. cit., 979.63 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, op. cit., 979.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 21: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

bleia geral, sem duração determinada e cujo mandato esta poderá fazer cessara todo o tempo. Contudo, os estatutos poderão disciplinar esta matéria.

A existência de comissões de remunerações nas empresas é encarada comoum mecanismo de governo societário que permite um melhor alinhamentoentre os interesses dos accionistas e da gestão. Em particular, alguns estudosapontam que comissões de remunerações independentes do órgão de admi-nistração (em especial, as que não incluem administradores executivos) estãomelhor habilitadas a desenhar esquemas de incentivos mais apropriados não sóà adequada compensação dos gestores, como também a um desempenho sus-tentado das empresas no longo prazo.

3.3. A crescente regulação em matéria de remuneração

As recomendações sobre a matéria da remuneração constam do Código doGoverno das Sociedades, elaborado e aprovado pela CMVM em 2007, quededica uma secção à matéria da remuneração dos administradores.A título deexemplo, no Ponto II.1.5.1 desse Código, “a remuneração dos membros doórgão de administração deve ser estruturada de forma a permitir o alinha-mento dos interesses daqueles com os interesses da sociedade”.Assim, a remu-neração dos administradores assume uma dupla face: por um lado, como fontede conflito de interesses entre administradores e accionistas; por outro, comoremédio para esse conflito64.

Para além dessas recomendações, é de referir ainda que, em 2009, oAnte-Projecto de Código de Bom Governo das Sociedades, da autoria do Ins-tituto Português de Corporate Governance, continha igualmente várias indi-cações remuneratórias.

Esta evolução regulatória iniciou-se com o Relatório Winter, no qual aComissão Europeia aprovou, em 2004 e 2005, duas recomendações relevantesa propósito da remuneração dos administradores das sociedades cotadas65:

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 815

64 Cf. JOÃO SOUSA GIÃO, “Conflitos de interesses entre administradores e os accionistas nasociedade anónima: os negócios com a sociedade e a remuneração dos administradores”, Con-flito de Interesses no Direito Societário e Financeiro – Um Balanço a partir da Crise Finan-ceira, 2010, 269.65 Neste domínio e, para maiores desenvolvimentos, vide JOÃO SOUSA GIÃO,“Conflitos de inte-resses entre administradores e os accionistas na sociedade anónima…”, op. cit., 270 e 271.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 22: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

(i) A Recomendação n.° 2004/913/CE, de 14 de Dezembro, sobre oregime apropriado para a remuneração dos administradores. Resumi-damente, esta espelha quatro propostas fulcrais:

– A divulgação de informação sobre a política de remuneração dassociedades cotadas em conjunto com os documentos de prestaçãode contas anuais, designadamente sobre a sua estrutura, conteúdo ecritérios de avaliação de desempenho dos administradores;

– A sujeição da política de remuneração dos administradores à apre-ciação dos accionistas em assembleia geral, através de voto consul-tivo ou vinculativo;

– A divulgação, em termos individuais, da remuneração integral (comtodas as componentes e origens) dos administradores;

– A necessidade de aprovação prévia, pelos accionistas, de todos osesquemas de remuneração assentes em acções ou opções sobreacções (v.g., stock options).

(ii) A Recomendação n.° 2005/162/CE, de 15 de Fevereiro:

Para além de outros domínios, esta também inclui recomendações comrelevo específico na área da remuneração dos administradores. O mais relevantenesta recomendação consistiu na proposta de um comité de remuneração,reforçando a eficiência do funcionamento do órgão de administração, com opropósito de assegurar que as decisões tomadas não envolvem conflitos de inte-resses relevantes66.

Por sua vez, a Lei n.° 28/2009, de 19 de Junho, também fez com que otema sofresse algumas alterações, uma vez que inclui normas sobre o regime deaprovação e de divulgação da política de remuneração dos membros dos órgãosde administração e de fiscalização das entidades de interesse público.

Este diploma cria um dever de apresentação à assembleia geral de umadeclaração sobre política de remuneração dos membros dos órgãos de admi-nistração e de fiscalização. Este regime cobre todas as entidades de interessepúblico e ainda as sociedades financeiras e sociedades gestoras de fundos decapital de risco e de fundos de pensões: artigo 2.°, n.° 2 da Lei n.° 28/2009.

816 Jorge André Carita Simão

66 Indicam-se ainda as atribuições genéricas desse tipo de estrutura, das quais poderemos referiralguns exemplos: i) Apresentação de propostas relativas à política de remuneração dos adminis-tradores executivos e não executivos, incluindo objectivos e critérios de avaliação do desempe-nho; iii) Participação no processo de contratação de novos administradores; v) Supervisão e apre-sentação de propostas respeitantes a incentivos com base em acções ou opções sobre acções dasociedade.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 23: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Determina ainda a todas as entidades de interesse público, um dever depublicação pública anual do montante da remuneração auferida pelos mem-bros dos órgãos de administração e de fiscalização, de forma agregada e indi-vidual67.

Assim sendo, nos termos deste diploma, as entidades de interesse públicodeverão – por intermédio da comissão de remunerações ou do órgão de admi-nistração, na falta daquela – submeter,“anualmente, a aprovação da assembleiageral uma declaração sobre política de remuneração dos membros dos respec-tivos órgãos de administração e de fiscalização” (artigo 2.°, n.° 1, da Lei n.°28/2009).

Na opinião de Paulo Câmara, esta possibilidade de o órgão de administra-ção elaborar esse documento representa uma solução dissemelhante com a quedecorre do artigo 399.° do CSC, segundo o qual compete à assembleia geralou à comissão por esta designada a fixação da remuneração da assembleia geral:“[o] ponto essencial a reter é o de que esta recente intervenção legislativa deucausa (inadvertidamente ou não) a uma modificação do sistema de competên-cias orgânicas em matéria da remuneração dos órgãos sociais” e que através daLei n.° 28/2009, se “vem abrir a possibilidade de, em alternativa à comissão deremunerações, ser a administração a apresentar a declaração obrigatória sobrea política de remunerações, para aprovação pelo colégio de accionistas”68.

Tal declaração deve conter, entre outros assuntos, a informação sobre os“critérios de definição da componente variável da remuneração”, a possibili-dade do pagamento da componente variável ocorrer, total ou parcialmente,imediatamente “após o apuramento das contas do exercício correspondentes atodo o mandato” ou a “mecanismos de limitação da remuneração variável, em

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 817

67 Na opinião de JOÃO SOUSA GIÃO,“Conflitos de interesses entre administradores e os accio-nistas na sociedade anónima…”, op. cit., 278 e 279, ainda que inesperada, essa é a grande novi-dade da Lei: “(…) em bom rigor, como se pode avaliar a relação desempenho/remuneração deum administrador, sem conhecer a sua remuneração individual? Ou, como pode haver real com-parabilidade da situação dos administradores sem conhecimento da sua remuneração indivi-dual?”.68 PAULO CÂMARA,“Conflito de interesses no direito financeiro e societário: um retrato anató-mico”, op. cit., 54. Contudo, entende que a política de remunerações se confina ao enunciado dosobjectivos da política remuneratória, sem interferir na concreta fixação da prestação remunera-tória. Segundo o ponto de vista do Autor, com o qual concordamos, parece que o órgão de admi-nistração está melhor posicionado para estabelecer os critérios de desempenho mais adequadose idóneos para a fixação da remuneração variável. Esta nova disciplina possibilita, segundo umolhar mais atento, uma “sintonia mais afinada entre o quantum remuneratório e a avaliação dodesempenho, respondendo a uma das debilidades postas pelo cenário da crise”.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 24: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

caso de “deterioração relevante do desempenho da empresa” [artigo 2.°, n.° 3,b), d), e) da Lei n.° 28/2009].

Paulo Olavo Cunha refere que, se existir rejeição ou não aprovação da pro-posta relativa à política de remunerações submetida à apreciação dos accionis-tas, tal não prejudica as remunerações fixas que lhes sejam determinadas poressa comissão, nem tão pouco prejudica “a decisão dessa comissão sobre a atri-buição da componente variável do exercício encerrado”. Contudo, entendeque “enquanto não for aprovado o critério a que há-de obedecer o pagamentodessa remuneração, os administradores ficam sem direito à mesma”69.

De referir ainda que a política de remuneração aprovada deve ser divulgada“nos documentos anuais de prestação de contas” (artigo 3.° da Lei n.° 28/2009).Contudo, neste âmbito, seria de explorar, de iure condendo, a possibilidade de seuniformizarem os formatos de divulgação relativos à remuneração dos admi-nistradores.

Apenas assim se conseguirá que sejam apreensíveis pelos seus destinatários,favorecendo a sua comparabilidade e a actividade de supervisão dos reguladores.

Deverá ainda apostar-se numa agregação da informação divulgada ao mer-cado, normalizando a política de remuneração dos administradores. Só assim seconhecerão aquele tipo de casos em que, v.g., os administradores recebamacções e/ou opções a título de remuneração, já que esta se trata de uma prá-tica corrente que permite aos administradores anular o efeito de alinhamentode interesses70.

Síntese conclusiva

É evidente que existem administradores de grandes sociedades que sãomuito bem pagos, em desequilíbrio (também) evidente com outros funcioná-rios ou colaboradores.

No entanto, também é necessário ter sempre presente que, numa econo-mia aberta, as remunerações se devem nortear pelas regras de mercado e, noscasos em que tal funcionar bem, o poder político se deve abster de interferircom o seu funcionamento, deixando que os accionistas (ou a comissão que ele-jam para esse efeito) fixem as condições remuneratórias que considerem ade-

818 Jorge André Carita Simão

69 PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, op. cit., 783.70 PILAR MONTERO GARCÍA-NOBLEJAS, “Procedencia y alcance de la constancia estatutaria dela retribución de los adminstradores de sociedades…”, op. cit., 183 ss.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 25: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

quadas ao tipo e complexidade de funções assumidas por um administrador dedeterminada empresa.

Quando não haja coincidência entre a direcção efectiva da empresa e orisco71 do capital, os administradores não devem pretender ser tão bem pagoscomo se fossem verdadeiros accionistas. Em alguns casos, as remuneraçõespoderão afigurar-se excessivas, já que o risco do capital não é dos administra-dores, mas sim apenas e só dos accionistas.

Deverá apostar-se num aprimoramento do sistema com vista a conseguir--se, tal como parece ser adequado à luz do artigo 2.°, n.° 3, a) da Lei n.°28/2009, que o órgão de administração confie um papel importante na exe-cução dessa tarefa de limitar a remuneração dos administradores não-executi-vos, sobretudo, se estes forem independentes. No entanto e, ainda assim, estanão é uma solução isenta de críticas. Efectivamente, o conflito “renasce”, masagora quanto à fixação da remuneração dos próprios administradores não exe-cutivos.

A Lei n.° 28/2009 já constitui um importante avanço, ao prever que apolítica de remunerações possa ser apresentada pela comissão de remunerações,numa solução que está em consonância com o artigo 399.° do CSC.

Deve, no entanto, ser assegurado que a comissão de remunerações seja inte-grada por pessoas com conhecimentos específicos bastantes e ainda que estastenham acesso a toda a informação de que necessitem para uma adequada ava-liação do desempenho dos membros executivos e não executivos do órgão deadministração.

Na perspectiva do controlo dos conflitos de interesses, a separação de fun-ções entre, por um lado, quem avalia o desempenho e, de outro, por quem fixaa remuneração com base nos resultados daquela avaliação, deve ser tida comopositiva, uma vez que introduz um nível de controlo, a saber: os responsáveispela fixação em concreto da remuneração têm de validar os resultados da ava-liação de desempenho. No entanto, esta independência poderá ser limitada epoder-se-á nem sequer considerar a necessidade de verificação do seu cum-primento.

A remuneração dos administ. das sociedades no contexto da crise financeira mundial 819

71 A remuneração dos administradores deverá ser sempre alinhada com base no risco em que oadministrador efectivamente incorre.Veja-se ainda, que os ganhos dos administradores são prati-camente ilimitados, ao passo que as perdas encontram sempre um limite máximo: o nulo valorda componente variável (que não prejudica a componente fixa). Abaixo desse patamar, quemsofre as perdas em virtude do risco incorrido é a própria sociedade e não o património do admi-nistrador.

RDS II (2010), 3/4, 795-820

Page 26: A remuneração dos administradores das sociedades e as suas ... 2010... · A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira

Só a experiência permitirá comprovar em que medida este regime lograrárespostas úteis para este problema. Reflecti-lo criticamente constitui, no futuro,uma missão indeclinável, a qual permitirá que o legislador e a doutrina vãocaminhando no sentido do progressivo aperfeiçoamento do sistema jurídico.

820 Jorge André Carita Simão

RDS II (2010), 3/4, 795-820