a regulação da instanciação religiosa na capoeira angola ... · homens e entidades espirituais,...

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1 A regulação da instanciação religiosa na capoeira angola globalizada: A relação entre o Grupo Irmâos Guerreiros e o Ilê Obá Silekê de Berlim, Alemanha 1 Celso de Brito (UFPI) Palavras-chave: Capoeira. Religiosidade. Transnacionalismo. Introdução Pensar no início do processo pelo qual a capoeira brasileira transpôs as fronteiras nacionais nos remete ao surgimento do Sistema Nacional da Cultura (SNC), em plena ditadura militar, através do qual o estado buscou manter o controle da produção e circulação artística e cultural no país com o objetivo de reforçar a integração nacional. Na esteira do SNC surge o Sistema Nacional de Turismo (SNT) e, dentro do órgão oficial, cria-se o Centro Folclórico em Salvador como apêndice da Superintendência de Turismo de Salvador (SUTURSA) que, ao seu turno, almejou incrementar a indústria cultural do turismo com práticas culturais da Bahia relacionadas à tradição afro-brasileira, como capoeira, samba de roda, maculelê, puxada-de-rede e danças do Candomblé. Para os capoeiristas desse período, os espatáculos passaram a ser parte de sua profissão, ao comporem o quadro de artistas de grupos parafolclóricos que alimentavam um mercado étnico transnacional incipiente. O precursor desse empreendimento foi Miecio Ascanasy, um Judeu alemão que vivia em Viena e que durante a 2° Guerra Mundial, guerra fugiu para o Rio de Janeiro e fundou o grupo de dança étnica Brasiliana. Miecio realizou apresentações de capoeira e dança de orixás no teatro Frederichstadt-Palast em Berlim, ainda no final dos anos 60’s, início dos 70’s (Fernandes, 2014). Religiosidade, globalização e etnopolítica (1970-2000) No início da década de 1980, quando o regime ditatorial do Brasil arrefece, a capoeira passa por uma reconfiguração. Os movimentos sociais ganham notoriedade e entre eles está o Movimento Negro Unificado. Parte da força desse movimento se deve a articulação entre os representantes nacionais do Movimento e os intelectuais africanistas norte- americanos que estavam no Brasil para estudar as manifestações culturais da diáspora africana nas Américas (Brito, 2015). 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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1

A regulação da instanciação religiosa na capoeira angola globalizada: A relação

entre o Grupo Irmâos Guerreiros e o Ilê Obá Silekê de Berlim, Alemanha1

Celso de Brito (UFPI)

Palavras-chave: Capoeira. Religiosidade. Transnacionalismo.

Introdução

Pensar no início do processo pelo qual a capoeira brasileira transpôs as fronteiras

nacionais nos remete ao surgimento do Sistema Nacional da Cultura (SNC), em plena

ditadura militar, através do qual o estado buscou manter o controle da produção e

circulação artística e cultural no país com o objetivo de reforçar a integração nacional. Na

esteira do SNC surge o Sistema Nacional de Turismo (SNT) e, dentro do órgão oficial,

cria-se o Centro Folclórico em Salvador como apêndice da Superintendência de Turismo

de Salvador (SUTURSA) que, ao seu turno, almejou incrementar a indústria cultural do

turismo com práticas culturais da Bahia relacionadas à tradição afro-brasileira, como

capoeira, samba de roda, maculelê, puxada-de-rede e danças do Candomblé.

Para os capoeiristas desse período, os espatáculos passaram a ser parte de sua profissão,

ao comporem o quadro de artistas de grupos parafolclóricos que alimentavam um

mercado étnico transnacional incipiente. O precursor desse empreendimento foi Miecio

Ascanasy, um Judeu alemão que vivia em Viena e que durante a 2° Guerra Mundial,

guerra fugiu para o Rio de Janeiro e fundou o grupo de dança étnica Brasiliana. Miecio

realizou apresentações de capoeira e dança de orixás no teatro Frederichstadt-Palast em

Berlim, ainda no final dos anos 60’s, início dos 70’s (Fernandes, 2014).

Religiosidade, globalização e etnopolítica (1970-2000)

No início da década de 1980, quando o regime ditatorial do Brasil arrefece, a capoeira

passa por uma reconfiguração. Os movimentos sociais ganham notoriedade e entre eles

está o Movimento Negro Unificado. Parte da força desse movimento se deve a articulação

entre os representantes nacionais do Movimento e os intelectuais africanistas norte-

americanos que estavam no Brasil para estudar as manifestações culturais da diáspora

africana nas Américas (Brito, 2015).

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto

de 2016, João Pessoa/PB.

2

Com essa articulação, a luta política do Movimento Negro passa a ocorrer no campo da

cultura, de modo que, as manifestações entendidas como parte de uma mesma matriz

africana passam a servir como ferramentas “etnopolíticas” (Agier, 1992).

Alguns grupos de capoeira angola se reconstroem em oposição à capoeira nacionalista

com base em um discurso étnico afro-religioso que os legitimasse como descendentes

africanos, aproximando-se dos terreiros de Candomblé (Vassalo 2009).

O grupo que mais fortemente encabeçou esse movimento foi GCAP que reivindicava uma

relação ancestral com o principal expoente da capoeira angola baiana, Vicente Ferreira

Pastinha, o Mestre Pastinha. Mestre Pastinha por sua vez, havia aprendido com Africano

Betinho e isso os conectava diretamente à matriz africana.

Gradativamente, os angoleiros se fixaram nos EUA e depois em Berlim, para daí se

espalharem para toda a Europa e o mundo, através de um sistema de ajuda mútua pautado

na noção de ancestralidade. Esse sistema foi melhor definido como “sistema de linhagem”

que opera duas mediações complementares: 1° entre capoeiristas de diversas partes do

globo e, 2° entre uma dimensão física e outra metafísica.

No primeiro tipo de mediação, o “sistema de linhagem” opera através do mestre e de sua

relação com mestres do passado considerados seus ancestrais africanos o que corresponde

às concepções dos intelectuais africanistas norte-americanos que vinculam todos os

negros das Américas em um pan-africanismo. As diversas formas de interação entre os

capoeiristas do mundo passaram a obedecer, gradativamente a esse “sistema de linhagem”

funcionando mesmo como uma grande “comunidade imaginada transnacional” (Brito,

2010).

No segundo tipo de mediação, o “sistema de linhagem” é experienciado no ritual através

de um instrumento musical chamado “berimbau”. O berimbau passa a ser entendido como

um objeto envolto de uma aura “sagrada” por ser ele uma via de conexão entre os

capoeiristas e seus mestres do passado, funcionando como uma “antena” que conecta

homens e entidades espirituais, tal qual funciona o atabaque para o Candomblé.

A instância religiosa passou a ser uma fonte de símbolos que, no campo da capoeira,

legitima a identidade étnica afro-brasileira.

Dessa forma, algumas instanciações ocorridas em grupos de capoeira europeus têm

provocado questionamentos na comunidade transnacional da capoeira angola acerca de

sua legitimidade.

3

Nos anos 2000, surgia na França grupos de capoeira que produziram sentidos distintos

daqueles defendidos pelos mestres brasileiros (Vassalo, 2003). Em Lyon, a capoeira

angola foi ressignificada como uma espécie de religiosidade “new age”.

O discurso religioso sincrético da capoeira angola francesa formou-se através da

expressão do posicionamento etnopolítico do primeiro líder do grupo que era coreógrafo

e ativista do movimento anti-racismo lyonês. Seu sucessor, passou a dar outro sentido à

capoeira, misturando signos da religiosidade afro-brasileira com um tipo de

“religiosidade maia”, mais tarde, sua sucessora, estabelecia relações entre a religiosidade

afro-brasileira e a religiosidade induísta.

Signos de pertencimento afro-religiosos, como “colares de contas” (de Ogum e Oxum)

eram utilizados durante os rituais de roda de capoeira em Lyon, mas dividiam espaço com

colares de “números de kins” (“serpente magnética espectral”); imagens de orixás

dividiam espaço com imagens de deuses hindus (Shiva, Ganesha e Buda). O critério para

a escolhas dos símbolos era a origem ter uma origem “não-ocidental”, de modo que tanto

a capoeira angola, quanto a cultura hinduísta ou “maia” passavam a representar uma

sociabilidade alternativa à uma concepção de sociabilidade danosa própria, segundo o

ponto de vista nativo, da cultura ocidental hegemônica.

Na dinâmica de instanciação do sentido religioso da capoeira angola lyonesa, o sentido

religioso afro-brasileiro tende a se tornar discursivo (verbalizado, porém mais

enfaticamente escrito nas teses acadêmicas dos capoeiristas), o que torna a percepção do

ritual um campo mais propício para imaginação ancorada em uma mescla de referências

religiosas percebidas localmente como “aparentadas” à capoeira, ou seja, manifestações

religiosas cujas lógicas de funcionamento sejam postas numa relação de oposição à

sociedade ocidental moderna.

As formas de instanciação religiosa que capoeiristas contemporâneos vem promovendo

em diferentes partes do globo, passaram a ser entendidas por muitos mestres como

consequências negativas da globalização, por instaurar deturpações na “tradicional”

conexão entre a prática da capoeira e os significados da religiosidade afro-brasileira.

Na comunidade transnacional da capoeira angola há um tipo de “controle de qualidade

informal” pautado em uma dinâmica de expiação constante em relação aqueles que fogem

da “pureza dos fundamentos tradicionais” exerce uma força centrípeta que atraí os grupos

dissidentes a se inserirem aos moldes dos grupos hegemônicos (Brito, 2010).

Enquanto que no Brasil há alguns há mestres evangélicos e candomblecistas que

gerenciam pequenos conflitos em rodas de capoeira (Brito, 2011), atualmente, com a

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recém consideração da capoeira como “Patrimônio da Humanidade” (2014), a

preocupação maior tem girado em torno do status da capoeira praticada fora do território

nacional, fazendo com grupos sediados fora do território brasileiro se tornam mais

fragilizados.

Muitos grupos sediados na Europa começam a ser taxados (em eventos ou nas redes

sociais) como representantes da deturpação da tradição afro-brasileira e, como

consequência perdem status perante a comunidade transnacional da capoeira e acabam

caindo no ostracismo.

Tal contexto tem mobilizado alguns mestres de capoeira angola na busca de estratégias

de manutenção ou invenção da tradição religiosa afro-brasileira, preferencialmente, o

Candomblé2.

Esse é o caso do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros sediado em Bremen,

Alemanha. Esse grupo atingiu uma forte legitimidade através de uma conexão com um

dos representantes do Candomblé na Alemanha, Babalorixá Muralemsibe.

Babalorixá Muralemsibe e sua estratégia de sensibilização dos alemães à religiosidade

afro-brasileira

A aura comercial das danças de orixás na Alemanha, herdeira do mercado cultural étnico

inaugurado pelos espetáculos promovidos por Miecio Ascanasy na década de 1960, ainda

reluz no começo do século XXI, como parte de uma estratégia maior, como diz

Babalorixá Muralemsibe, do Ilê Obá Silekê sediado em Berlim: “minha dança e meus

espetáculos não são apenas para que eu possa ganhar dinheiro e viver aqui, mas servem

como um caminho para ensinar os alemães a entenderem, quer dizer, a sentirem a religião

afro-brasileira”.

Murah Soares, o Babalorixá Muralemsibe, é responsável pelo primeiro templo de

Candomblé em Berlim, reconhecido pelo estado alemão em 2003. Em 2005 ele funda

Forum Brasil Interkulturelle Zentrum (Forum Brasil Intercultural Center)3. Babalorixá

Muralemsibe separa seu trabalho na Europa em duas dimensões: a cultural e a religiosa.

Para promover seu trabalho na Alemanha, Babalorixá Muralemsibe fez um curso de

gestão cultural através do qual aprendeu a representar os aspectos culturais do Brasil e

transformá-los em mercadoria para sua companhia de dança étnica.

2 Como Frigerio (1989) aponta, a capoeira regional tem sido associada à umbanda pelo caráter sincrético

de ambas e a capoeira angola tem sido associada ao Candomblé pela sua “pureza” africana. Para um estudo

sobre a relação entre capoeira regional e a umbanda em Portugal ver Nascimento (2013, 2015). 3 O Ilê Oba Silekè e o Forum foram também estudados por Bahia (2014) e Graeff (2013).

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No Fórum Brasil, ele ministra oficinas chamadas de “força dos orixás” onde ensina, além

dos passos característicos da dança dos orixás, os significados dos movimentos, os mitos

do panteão sagrado e o funcionamento do Candomblé. Quanto ao seu trabalho, ele diz:

Eu separo a religião da cultura para ensinar os alemães a sentir o

que nós, brasileiros do Candomblé, sentimos. Eles são muitos

racionais, sabe? Eles precisam de informação antes de sentir, e eu percebi que os espetáculos de dança e as oficinas ajudam a

fazer eles entenderem as festas religiosas do Ilê. Aí eles chegam,

assistem e, só depois que alguns se interessam pela religião, bem

devagarinho... assim que conquisto meus filhos de santo aqui.

Se seguirmos essa divisão estabelecida por Muralemsibe vemos que há uma dupla

inscrição do Candomblé na Alemanha que podemos estender para outras culturas afro-

brasileiras como a capoeira: por um lado, um mercado étnico onde o exótico permanece

latente e agrega valor estratégico ao trabalho disseminador do Candomblé na Alemanha

e, por outro lado, uma instância onde a cultura deixa de ter seu valor advindo da

exotização e passa a fazer um sentido mais profundo para os participantes, um sentido

religioso.

Uma forma análoga a essa dupla inscrição foi descrita por Domínguez e Frigerio (2002)

ao estudarem a inserção da capoeira na Argentina. Os autores definiram duas categorias

de análise: “vendedores de cultura exótica” e “trabalhadores culturais”.

A primeira categoria se refere aos imigrantes brasileiros que fazem uso da cultura sem se

preocupar com a anulação do exotismo, apenas vendem o que é mais comercializável, a

“cultura exótica”; já a segunda categoria se refere aos imigrantes brasileiros que

constroem ligações entre a cultura de origem e os participantes locais produzindo vínculos

identitários transnacionais que necessariamente passam pela ruptura com a exotização.

A atuação de Babalorixá Muralemsibe poderia ser entendida a partir de um continuum

entre essas duas categorias analíticas de Domínguez e Frigerio (2002) no sentido de que

as oficinas de dança de orixás mantêm um apelo à experiência superficial relacionada à

venda de espetáculos exóticos, justamente para seduzir os participantes e fazê-los

realmente entenderem e sentirem a religiosidade afro-brasileira, rompendo com a

exotização e estabelecendo vínculos com o Ilê Obá Silekê.

Na década de 1980, Babalorixá Muralemsibe trabalhou na Academia Jangada, a primeira

academia de capoeira angola da Europa, sediada em Berlim. De lá para cá manteve uma

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ligação com a capoeira angola de diferentes grupos ao ser convidado para ministrar

oficinas em eventos de capoeira.

A relação entre Márcio Araújo, Mestre Perna (Grupo Irmãos Guerreiros de Capoeira

Angola), e Babalorixá Muralemsibe começou em 2006 quando Mestre Perna participou

no Carnaval da Culturas em Berlim, onde Balalorixá Muralemsibe realiza anualmente

uma apresentação do Afoxé Loni. O Grupo Irmãos Guerreiros na Europa tinha três anos

de existência e contava apenas com o núcleo em Bremen.

Mestre Perna e Babalorixá Muralemsibe se tornaram amigos e nos anos seguintes, Mestre

Perna foi suspenso4 como ogã, incumbido de tocar os atabaques nos rituais do Ilê Obá

Silekê.

Assim como Mestre Perna exerce a função de ogã no Ilê Obá Silekê, Babalorixá

Muralemsibe é considerado um dos mestres do Grupo Irmãos Guerreiros, apesar de não

praticar a capoeira angola, e se faz presente em todos os eventos organizados pelo Grupo

nos diferentes países onde existem seus núcleos. Sua função é expandir sua estratégia de

disseminação da religiosidade afro-brasileira aos capoeiristas europeus, sensibilizando-

os para a dimensão espiritual da capoeira angola5: ele ensina sobre os movimentos, os

mitos e o funcionamento do Candomblé e, gradualmente, introduz os capoeiristas

europeus no universo da religiosidade afro-brasileira.

Hoje o grupo nascido em Bremen, na Alemanha, conta com mais de 10 núcleos

espalhados por 8 países da Europa.

A sensibilização afro-religiosa dos capoeiristas europeus e os “modos somáticos de

atenção”

A abordagem teórica da corporeidade em Csordas (2008) refere-se ao corpo não como

um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas como um sujeito da cultura. Essa

teoria se assenta em um corpo socialmente informado que conduz a análise a uma ruptura

das dualidades corpo-mente e sujeito-objeto.

4 A suspensão e um ogã é parte do ritual do Candomblé, no qual um orixá incorporado escolhe um homem

presente o convida a andar ao seu lado e é levado junto a uma cadeira para se sentar, ao lado dos ogãs da

casa já confirmados, para ser “suspenso” tanto fisicamente (dois ogãs elevam a cadeira e o homem a ser

suspenso) quanto simbolicamente (a partir desse ato ele é considerado um portador do título de ogã da

casa). 5 Essa relação entre capoeira e religiosidade afro-brasileira na Europa também foi tema de estudo de

(Nascimento, 2013, 2015) ao tratar da capoeira em Portugal. Entretanto, a descrição de Nascimento não

nos permite pensar em uma relação institucionalizada como a que ocorre no grupo alemão.

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O autor constrói uma teoria da corporeidade a partir da complementariedade entre as

perspectivas de Merleau-Ponty e de Pierre Bourdieu.

Merleau-Ponty debruçou-se sobre a constituição da percepção e, para ele, a percepção

começa no corpo e, pela via de um pensamento reflexivo, chega aos objetos. Dessa forma

Merleau-Ponty propõe que a análise comece com um ato “pré-objetivo” da percepção e

não com os objetos já constituídos, mostrando que a percepção está sempre incluída no

mundo da cultura de um modo que esse ato pré-objetivo não implique num ato pré-

cultural.

Aqui, a perspectiva de Bourdieu sobre o corpo socialmente informado como base para a

vida coletiva é introduzida na abordagem de Csordas (2008). Para unir a compreensão de

Bourdieu acerca do habitus como um conjunto de práticas inconscientes à noção de

Merleau-Ponty de “pré-objetivo”, Csordas (2008) afirma que o embodiment não precisa

ser restrita a uma microanálise associada à fenomenologia, mas pode ser entendido como

um fenômeno visível através da prática dos grupos sociais. O embodiment torna-se um

campo metodológico inaugurado a partir da concepção de um movimento dialético entre

consciência perceptiva e práticas sociais. É essa dialética que nos permite pensar na noção

de “modos somáticos de atenção”.

A atenção, segundo Merleau-Ponty, constitui um universo fora de um horizonte

indeterminado e, Csordas (2008), por sua vez, sugere que esse lugar da atenção é o ponto

ambíguo no qual o ato de constituição do objeto e o objeto constituído encontram o

horizonte fenomenológico. Assim, os processos nos quais nos prestamos atenção e

reificamos nossos corpos não são nem arbitrários nem biológicos, mas culturais e esses

são os processos definidos com a noção de “modos somáticos de atenção”.

Como a atenção implica um engajamento sensorial e um objeto, ela se refere a uma

atenção “com” o corpo e “para” o corpo. Apontar para uma sensação corporal não

significa apontar para o corpo como um objeto isolado, mas a situação do corpo no

mundo, indicando um meio intersubjetivo que origina aquela sensação.

Os “modos somáticos de atenção” podem ser associados a muitas práticas e fenômenos

culturais, inclusive, Mauss (2003) já havia escrito sobre algo parecido com o que Csordas

(2008) chama de “modos somáticos de atenção”, associado a aquisição de técnicas

corporais e que eles estariam localizados no horizonte cultural onde essas técnicas eram

desenvolvidas.

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Uma das categorias enfatizadas por Csrodas em sua teoria da corporeidade é a “sensação”.

A sensação é entendida como algo tipicamente empírico que abre espaço para uma

concepção de significado cultural como referência imposta sobre um substrato sensorial.

Creio que a construção processual da sensibilização transcendental ligada a estados afro-

religiosos dos capoeiristas europeus também poderia ser analisada dentro nesse campo.

Tal construção, como veremos, é resultado de um processo de objetificação corporificada

a partir de um “imagético multissensório”, ou seja, “imagens complexas em mais de uma

modalidade sensorial ao mesmo tempo” (Csordas, 2008:124), por meio de uma

impregnação lenta e gradual, que instaura, no corpo do sujeito, a experiência de ser um

capoeirista, no momento mesmo em que constrói o sentido desse “ser capoeirista”

enquanto objeto cultural.

A sensibilização religiosa dos capoeiristas europeus através uma “desconstrução” de um

corpo cotidiano, tomado como duro e sem mandinga é parte fundamental do processo,

aliado às construções de sentido coletivas, promovidas no espaço das histórias contadas

durante as oficinas, nos comentários sobre a movimentação de uns e de outros, no

aprendizado de uma sensibilidade estética específica, onde vão-se estabelecendo os

critérios para que se considere uma atuação exitosa nesse universo, e onde os sentidos de

uma religiosidade afro-brasileira incorporada vão sendo coletivamente construídos e

individualmente agenciados. Assim se reconstrói um corpo solto e mandingueiro do

capoeirista.

Mais do que pensar os aspectos expressivos como meras representações de uma afro-

religiosidade reivindicada pelos capoeiristas, trato aqui de compreendê-los como a

materialização instauradora de uma identidade que se constrói com referência à religião

afro-brasileira.

Os eventos do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros europeu e a construção

da “mandinga” na conjunção entre capoeira e Candomblé em Berlim

Os eventos do Grupo Irmãos Guerreiros obedecem um mesmo formato onde quer que

ocorra: aulas de dança dos orixás pela manhã; pela tarde acontecem os treinamentos de

capoeira angola e a noite ocorre o ritual da roda de capoeira angola.

O calendário anual do Grupo Irmãos Guerreiros contempla, ao menos, dez eventos: um

para cada pais nos quais o grupo mantém núcleos, com exceção da Áustria onde ocorrem

dois eventos anuais e Alemanha, país onde se concentram três núcleos e o Ilê Obá Silekê.

Assim, uma vez por ano, cada localidade organiza um evento que receberá os mestres e

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professores do Grupo (o que inclui o Babalorixá Muralemsibe) e os capoeiristas dos

outros núcleos, de modo que tanto os mestres e o Babalorixá Muralemsibe quanto os

capoeiristas aprendizes do Grupo Irmãos Guerreiros se mantém em mobilidade num

circuito capoeirístico europeu durante todo o ano todo.

Nessas ocasiões, reúnem-se, em média, entre 50 e 60 participantes, dos 200 capoeiristas

filiados ao Grupo em toda a Europa, eles são homens e mulheres jovens, estudantes

universitários, artistas e profissionais liberais, em sua maioria, entre os 20 e 35 anos de

idade que, ao viajarem, permanecem nas casas dos membros do grupo local que, por sua

vez, organizam-se para receberem todos os participantes. O preço das inscrições gira em

torno de 50 Euros por dia de atividade, sendo que a maioria dos eventos ocorrem nos

finais de semana.

A organização é de total responsabilidade dos capoeiristas locais, sendo que por vezes,

alguns capoeiristas não locais, se adiantam justamente para colaborar na organização. A

arrecadação é utilizada por eles para o pagamento das passagens aéreas e do trabalho

cultural dos mestres ministrantes de oficinas, da alimentação e de eventual aluguel do

espaço onde ocorre o evento. Caso o arrecadado seja maior que o utilizado, forma-se um

caixa que será utilizado para eventos futuros.

Uma vez a programação estabelecida e o local do evento determinado, a etapa seguinte é

a preparação do local com a sua limpeza e ampla decoração.

Quando ocorrem em locais, como, Berlim, Jena, Bremen e Leipzig, na Alemanha; Viena,

na Áustria; Cracóvia, na Polônia; Oslo, na Noruega ou Porto, em Portugal, que são os

locais mais antigos onde o grupo mantém suas atividades, a decoração já é definitiva,

portanto não necessário decorar o espaço. Mas quando ocorrem em locais como Lisboa,

em Portugal ou Presov, na Eslováquia, onde os espaços são sublocados em centros

sociais, há a necessidade instalar as imagens de orixás nas paredes; as palhas penduradas

sob os batentes das portas; as bandeirinhas de papel coloridas de acordo com o orixá do

mestre ou professor local; a preparação dos instrumentos e sua afinação, assim como dos

defumadores.

Algumas das imagens de orixás circulam entre um núcleo e outro de diferentes países,

como a imagem da iabá (orixá feminino) Iansã produzida por Pintinha, a professora

responsável pelo núcleo de Lisboa, em homenagem a sua Iabá e à Iabá do Babalorixá

Muralemsibe.

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Ao menos um desses eventos ocorre no Ilê Obá Silekê, em Berlim, durante alguma festa

religiosa. A maioria das vezes, isso ocorre justamente no dia quatro de dezembro, durante

a festa de Iansã.

A especificidade desse evento é que, nessa ocasião, o ritual da roda de capoeira angola

ocorre como a “parte final” do ritual religioso.

Como já foi dito, os eventos ocorrem segundo uma programação pré-estabelecida: oficina

de dança dos orixás, treino de capoeira angola e o ritual da roda de capoeira. Durante os

eventos no Ilê Obá Slekê, essa programação conta com o adicional da festa do orixá.

Babalorixá Muralemsibe é o primeiro a entrar em cena. Habitualmente, sua oficina sobre

a dança de orixás começa às 8:00 horas da manhã e segue até as 12:00 horas.

As oficinas não são divididas entre momentos teóricos e momentos práticos, Babalorixá

Muralemsibe alterna entre movimentos corporais e pausas quando acha necessária

alguma explicação para o que está sendo ensinado. Gradativamente, ele explica o modus

operandi do Candomblé, estabelecendo, enfaticamente, a relação dos orixás com os

tambores no ritual religioso e seus paralelos estruturais com a relação entre os capoeiristas

e o berimbau.

Ao situar os mestres/ogãs junto aos atabaques, ele ensina um primeiro passo de dança e

todos o repetem, ensina o segundo passo e todos o repetem, ensina o terceiro passo e todos

o repetem. Em seguida, ele faz uma sequência dos três passos e se certifica de que todos

memorizaram minimamente para, finalmente, dizer:

Agora vocês vão dançar, mas vocês têm que ouvir o atabaque, mesmo se não conseguirem realizar o movimento perfeitamente,

obedeçam ao ritmo do atabaque! É ele quem orienta a dança dos

orixás, assim como o berimbau é quem orienta o jogo do capoeirista. O atabaque e o berimbau são instrumentos sagrados

para a cultura afro-brasileira por que são eles que fazem a ligação

entre nós e os nossos ancestrais, não se desliguem dele!

Os atabaques começam a tocar e todos tentam repetir a sequência coreográfica

acompanhando os movimentos de Babalorixá Muralemsibe. Gradativamente, os passos

vão se acumulando, até que o repertório para aquela aula forme uma coreografia completa

e a repetição se delonga por mais algumas horas ao som dos atabaques e das músicas

cantadas pelos mestres/ogãs.

As oficinas de Babalorixá Muralemsibe têm como objetivo desenvolver duas

“capacidades” nos capoeiristas, uma estritamente física e outra espiritual. Soltar o corpo

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é a primeira delas, por que, como ele próprio explica, o corpo do europeu é duro, não tem

a mandinga que os brasileiros aprendem desde criança e isso é necessário tanto para a

capoeira quanto para o Candomblé.

Os movimentos ensinados por Babalorixá Muralemsibe são extremamente articulados,

baseados em giros e balanços dos ombros e quadris que são dificilmente incorporados

pelos capoeiristas europeus e por isso, ele trabalha com apenas uma coreografia baseada

nos movimentos de alguns orixás durante todos os eventos. Os movimentos são repetidos

por cerca de quatro horas, durante todos os eventos desde que ele começou a participar

do Grupo em 2006.

O salão do Ilê Obá Silekê é repleto de máscaras africanas, imagens de orixás, plantas,

palhas, pratos de comida e velas, além de alguns assentamentos característicos do

Candomblé, tudo servindo como estímulos sensórios visuais que compõe o ambiente afro-

religioso.

Além das imagens de orixás nas paredes, o Ilê Obá Silekê propicia outros estímulos

sensoriais. Ao lado do salão onde ocorre a oficina, há uma ampla cozinha de onde emana

o cheiro da comida que estava sendo preparada para os orixás e se mistura ao cheiro dos

defumadores contribuindo na formação de um m “imagético multisensorial” (Csordas,

2008) afro-religioso.

Na oficina, Babalorixá Muralemsibe mostra alguns movimentos de Ogum atentando para

a força dos golpes de sua espada representados pelos movimentos dos braços. Em seguida,

ele mostra um movimento de Oxum enfatizando a sedução de um movimento de visada

no espelho e constrói uma ponte entre a dança dos orixás e o jogo de capoeira, da seguinte

maneira: “Os capoeiristas devem ser assim, mandingueiros (...) devem aprender com os

orixás como se movimentar, vocês têm que dançar bonito e mostrar ao mesmo tempo que

tem poder. O mandingueiro é assim, não é? Poder e sedução, Ogum e Oxum”.

Na capoeira, a ideia de poder e sedução é uma das mais comuns definições do que se

nomeia de “mandinga”. O termo “mandinga” é usado nas religiões afro-brasileiras como

sinônimo de trabalho espiritual e tem, para os capoeiristas, um duplo significado: 1º

movimento do corpo, segundo um padrão estético específico que remete à estética das

danças dos orixás e um padrão de eficácia durante o jogo da capoeira, no sentido de tornar

o capoeirista ágil e capaz de se defender e atacar com grande precisão e, 2.º força

espiritual que protege o capoeirista da má sorte e da mandinga de outros capoeiristas.

A oficina termina e os capoeiristas tem uma hora para comer algo leve e retornarem para

a oficina de capoeira ministrada por Mestre Perna.

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Os atabaques são substituídos pelos berimbaus e a oficina segue com alguns passos da

dança de orixás para reaquecer o corpo.

Gradativamente, a ginga (movimento característico da capoeira) é iniciada por todos. Em

seguida são acrescidos movimentos de giro e de inversão, onde os capoeiristas continuam

girando e flexionando as articulações, mas alternando a sustentação do corpo pelas mãos

e pernas.

Inevitavelmente, alguns necessitam de um tempo para se recompor da sensação de tontura

que tais rodopios provocam. Enquanto os capoeiristas giram e rodopiam, Mestre Perna

segue na ideia de conectar a capoeira ao Candomblé, a exemplo de Babaloriá

Muralemsibe, através da ideia de soltar o corpo e da noção de mandinga, ele diz: “nosso

objetivo é ser mandingueiro, então solta o corpo como se estivéssemos no Brasil, lá na

Bahia, no Solzão, sintoniza no som do berimbau e deixa ele te levar”.

Vê-se que se trata de um treinamento que visa a desconstrução de uma corporeidade tida

como europeia e dura para a conseguinte reconstrução de outra corporeidade tida como

afro-brasileira e solta.

A ginga é constante e os movimentos são ensinados de forma sequencial: um movimento

por vez: um ataque e uma defesa, ginga, um ataque, uma defesa ginga, e, gradativamente,

o conjunto de ataques e defesas torna-se uma sequência de muitos movimentos

repetidamente realizados durante muitas vezes, sempre intercalados pela ginga. Após essa

etapa, outro processo de formação de sequência se inicia.

Os movimentos repetidos a exaustão acabam por provocar uma sensação de tontura ou

perda de noção de espaço e de tempo aos iniciantes (que fazem as oficinas juntamente

com os mais experientes), enquanto que, aos mais experientes, causa uma sensação

descrita por uma das alunas do Grupo Irmãos guerreiros de Viena, como uma “meditação

dinâmica (...) o tempo para, se esquece de tudo fora daqui e o corpo age por si só”.

O próximo estágio da oficina é mais complexo, no qual a interação dos capoeiristas é

requerida.

A movimentação que até então foi realizada individualmente passa a ser realizada em

duplas. As duas sequências de movimentos ensinadas são previamente pensadas para que

sejam complementares entre si e, nessa etapa, ambos os capoeiristas da dupla devem

realizá-la em um mesmo ritmo, oferecido pelo som dos berimbaus.

Após algum tempo de repetição, algumas alternativas são demonstradas e outras devem

ser exploradas, sobretudo pelos mais experientes, de modo a introduzir ao exercício a

improvisação sem, contudo, abandonar o ritmo imposto pelos berimbaus.

13

De tempos em tempos, as duplas são trocadas para que a mesma sequência seja

experiênciada por pares diferentes, estimulando diálogos corporais mais ou menos

intensos, com mais ou menos improvisação, de acordo com as possibilidades de

movimentação já incorporadas por cada indivíduo que forma a dupla.

A incerteza e a insegurança dos movimentos improvisados criam preocupação em relação

aos ataques que podem realmente atingir seu alvo e isso, consequentemente, acarreta a

ruptura da harmonia dos movimentos dos capoeiristas com o ritmo imposto pelos

berimbaus.

Isso não deve acontecer, alerta Mestre Perna: “o ritmo deve fluir, deixe o corpo solto,

deixa ele obedecer ao ritmo do berimbau, não pense, no movimento que seu companheiro

vai fazer, nem no movimento que você vai fazer (...) aliás (...) não pense, só sinta!”

O didática parece indicar para uma desconstrução e reconstrução de corporeidades através

da memorização, repetição exaustiva e posterior, esquecimento dos movimentos.

O esquecimento da sequência é necessário para que a harmonia com o ritmo dos

berimbaus não seja quebrada, fazendo com que um jogo de capoeira, percebido pelos seus

praticantes como uma luta empolgante e perigosa, seja apreciada por espectadores leigos

como uma coreografia previamente ensaiada, tamanha é a complementariedade dos

movimentos. Para isso, contudo, é preciso lidar com o receio e o medo sem expressar

tensão física ou mental, o corpo deve agir por si só, e os ataques e defesas devem ficar à

mercê de uma lógica inconsciente.

Aqui, Mestre Perna atenta para o papel dos berimbaus e diz:

Essa é a mandinga. O capoeirista não pode ficar tenso, senão ele não houve o que o berimbau está falando e é aí que ele sai do

ritmo é aí que o outro camarada pega ele (...). Confia no treino

confia no que o berimbau está falando, confia no teu orixá, nos

ancestrais da capoeira angola, na mandinga, deixa o corpo bem solto e vâmo que vâmo!

Uma nova etapa de “meditação dinâmica”, para usar o termo da capoeirista do grupo,

deve ser instaurada, porém agora uma meditação dinâmica e em duplas. Esse exercício é,

assim como todos os outros, exaustivamente repetido em busca da incorporação que

propicie sua execução de modo impensado.

Ao final da oficina de Mestre Perna, que dura cerca de quatro a cinco horas (das 13:00 às

17:00, os capoeiristas têm, novamente uma hora para comerem algo leve, tomarem um

banho e retornarem para o Ilê Obá Silekê e para o ritual da festa de Iansã.

14

A festa de Iansã e a roda de capoeira angola no Ilê Obá SIlekê, em Berlim: a sobreposição

de dois rituais

A festa de Iansã no Ilê Obá Silekê é considerada, dentro das duas categorias de Babalorixá

Muralemsibe, como um evento religioso, mas aberto ao público frequentador dos

espetáculos promovidos pelo Forum.

Entre os espectadores, estavam os capoeiristas do Grupo Irmãos Guerreiros, que não são

filhos de santo, enquanto que mestres e professores/ogãs do Grupo de Capoeira Angola

Irmãos Guerreiros tocavam para que os orixás se manifestassem.

Aqui todas as informações sobre os atabaques e sua função comunicativa entre as

dimensões terrenas e espirituais, transmitidas durante as oficinas, são atualizadas.

Após a imersão no universo afro-brasileiro das oficinas ministradas à tarde, o ritual do

candomblé é a representação de uma roda de capoeira, ou vive-versa: a estrutura

responsória das cantigas, os três atabaques análogos aos três berimbaus, a harmonia com

que os orixás se movimentam ao ouvir os atabaques e, sobretudo, a liderança

compartilhada entre mestre Perna tocando um dos atabaques e Babalorixá Muralemsibe

ao seu lado cantando os pontos para os orixás.

Os filhos de santo ocupam a parte central do salão, alguns formando um círculo e outros

no centro dançando com seus orixás incorporados.

A mudança das expressões dos capoeiristas que apreciam o ritual, tamanha seriedade e

respeito, corresponde a mudança das expressões dos filhos de santo ao incorporarem seus

orixás. Tal mudança de expressão denota a certeza de estarem vivenciando a presença de

entidades espirituais no salão.

Após todos os filhos de santo do Babalorixá Muralemsibe receberem seus orixás e

dançarem, o ritual se altera com a entrada em cena dos capoeiristas. Tal qual ocorreu nas

oficinas, os atabaques são afastados e os berimbaus ocupam o lugar deles, no entanto, os

tocadores dos berimbaus são exatamente os mesmos que tocavam os atabaques.

Babalorixá Muralemsibe, também permanece na mesma posição que ocupou durante a

homenagem à Iansã: ao lado dos instrumentos e cantando.

Os filhos de santo tornam-se espectadores e os capoeiristas passam, tanto a delimitar o

espaço sagrado, quanto atuarem no centro do círculo tal qual faziam os filhos de santo na

etapa anterior do ritual. Durante a roda de capoeira, os capoeiristas expressavam a mesma

seriedade com que apreciavam os orixás.

15

No decorrer das performances, é possível enxergar os movimentos ensinados durante as

oficinas. Nas movimentações dos iniciantes, as sequências recentemente aprendidas são

mais facilmente visíveis por conta de uma reprodução mecanizada; já na movimentação

dos mais experientes, percebe-se uma miríade mais complexa de movimentos e

utilizações de combinações variadas e improvisadas de acordo com a situação. Alguns

dos movimentos são completamente inovadores e, nesse momento, os mestres que tocam

os berimbaus, assim como os capoeiristas que assistem ao jogo, explodem, gritando, em

um êxtase coletivo.

Nesses momentos, os mestres cantam canções vinculadas aos orixás. Se o orixá do

jogador é conhecido pelo mestre, esse inicia canções específicas desse orixá como forma

de estimular o jogador em sua performance, que, por sua vez, se dirige ao berimbau e o

saúda com toques no chão. Canções como “mandingueiro, mandingueiro, onde está o

mandingueiro” servem ao propósito de enaltecer o jogador que performatizou um

movimento inovador e improvisado provocando o êxtase coletivo.

As canções também servem para momentos em que o jogo está sem mandinga. Nesses

casos, cantigas como “solta a mandinga aê, solta a mandinga” servem para alertar o

jogador que seu corpo está duro e que precisa se soltar e se conectar ao som dos berimbaus

para deixar a “mandinga” aflorar.

Após o ritual, já quase meia-noite, a maioria dos capoeiristas se dirigiram ao bar mais

próximo para beber e comentar sobre os jogos de capoeira ocorridos.

A atenção dos comentários voltou-se aos momentos de aparente perigo existentes no jogo,

ocasionado ou evitado através de ações improvisadas e inovadoras (justamente aqueles

momentos de comoção coletiva): ataques e defesas eficientes através de movimentos de

giros e rodopios e torções que, sobretudo, mantenha uma harmonia com o ritmo dos

berimbaus. Tais ações são reconhecidas como as manifestações da “mandinga” e da

presença de ancestrais.

É possível analisar o resultado das experiências acumuladas nesse tipo de ritual e

manifestação da “mandinga” ao focarmos nas respostas daqueles que tiveram suas

performances elogiadas e chamados de “mandingueiros”. Por um lado, temos os

“mandingueiros” menos experientes que diziam: “naquele momento senti uma coisa que

não sei explicar”, “eu simplesmente não pensava em nada” ou “não tenho ideia como fiz

aquilo”; por outro lado, os mais experientes, descrevendo aquela sensação através de um

significado mais místico, diziam: “a energia da roda estava muito forte”, “senti a

ancestralidade ali comigo” ou “eu não estava sozinho naquele momento”.

16

Durante a conversa, perguntei aos mais experientes se essa era a primeira vez que sentiam

essa “força ou presença ancestral” e me responderam negativamente. Mas alguns dentre

eles concordaram que, nas rodas sempre sentiam “alguma coisa”, mas não sabiam ao certo

o que era, até que começaram a participar dos rituais com Mestre Perna e Babalorixá

Muralemsibe juntos.

Se considerarmos o processo como um todo, veremos que se trata de uma desconstrução

de uma corporeidade horizontal e estática para, em seguida, instaurar novas

possibilidades de organização corporal, adotando outras referências visuais e sensoriais.

A partir de uma nova organização corporal que é sentida como uma desorientação espaço-

temporal, se reconstrói algo como uma co-orientação entre um “eu” e um “ente fora do

eu” percebida como resultado da presença de uma força espiritual e ancestral.

Creio ser possível entender a sobreposição desses dois rituais como uma forma de

transposição da cosmologia religiosa afro-brasileira para o ritual da capoeira angola que,

por sua vez, instaura um sentido religioso afro-brasileiro no processo de percepção dos

capoeiristas europeus durante sua prática. Dessa forma, uma sensação sempre presente

na prática dos capoeiristas europeus ganha um significado espiritual.

Segundo Tambiah (1985), o ritual se refere a construtos cosmológicos que podem

contribuir para a elaboração de uma nova realidade. Os próprios “construtos

cosmológicos estão fundados (claro que não exclusivamente) nos ritos, e estes ritos, em

contrapartida, encenam e encarnam concepções cosmológicas” (Tambiah, 1985:130).

Não há, portanto, um conteúdo completamente existente a priori, mas uma realidade que

é construída através do ritual, “como um meio de transmitir sentidos, construir a realidade

social ou (…) criar e trazer à vida o próprio esquema cosmológico” (Tambiah, 1985:129).

Dessa forma, uma parte significativa da cosmologia da religião afro-brasileira, a saber,

uma divisão entre vivos e entidades espirituais na qual há a possibilidade de interação

entre eles, é encenada no ritual da festa de Iansã e transmitida aos capoeiristas ao sobrepor

o ritual da roda de capoeira ao ritual religioso do Candomblé.

Conclusão

O mecanismo de “controle de qualidade informal da capoeira angola transnacional”

(Brito, 2010) se mostra forte o suficiente para regular a circulação de símbolos nos grupos

transnacionais, mantendo um vínculo entre a prática da capoeira e a religiosidade afro-

brasileira. Nesse mecanismo, alguns grupos considerados deturpadores da tradição afro-

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brasileira sofrem acusações que podem levar determinados grupos ao ostracismo e ao

isolamento em relação ao circuito transnacional de capoeira angola. Esse mesmo

mecanismo instaura nos capoeiristas europeus a necessidade de buscar por grupos que

apresentem vínculos fortes com a tradição afro-brasileira e, como consequência, impele

os responsáveis pelos grupos de capoeira na Europa a buscarem desenvolver estratégias

para responder a essa demanda.

A estratégia desenvolvida por Mestre Perna foi incorporar ao seu grupo, não apenas

imagens de orixás penduradas em sua academia ou distribuir colares de contas dos orixás

entre seus discípulos europeus. Mais profundo do que isso, ele incorporou um Babalorixá

e um terreiro de Candomblé já consolidado na Europa ao seu grupo.

Babalorixá Muralemsibe, por sua vez, trouxe ao Grupo de Capoeira Angola Irmãos

Guerreiros sua estratégia de disseminação do ethos religioso afro-brasileiro na Alemanha

a partir de uma sobreposição entre “cultura” e “religião” ensinando os alemães a sentirem

a religião através da arte da dança.

Tal dinâmica se mostra bem-sucedida ao atrair um considerável número de capoeiristas

de diferentes regiões da Europa, fazendo do Grupo Irmãos Guerreiros um dos maiores

grupos de capoeira angola desse continente.

A coalisão entre a capoeira e o candomblé no grupo Irmãos Guerreiros representa a

condensação das diferentes formas com que a capoeira e o candomblé se relacionaram

durante o processo de globalização/transnacionalização das culturas afro-brasileiras no

século XX.

Se nas décadas de 50 e 60 a capoeira e o candomblé se aproximaram em torno de um

mercado étnico da dança e na década de 90 essa aproximação ocorreu segundo uma

etnopolítica, no século XXI, capoeira e candomblé na Europa se fundem

institucionalmente produzindo uma nova forma de sensibilidade religiosa.

Ser capoeirista no Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros europeu não significa

apenas expressar um vínculo superficial com a religiosidade afro-brasileira através da

ostentação de símbolos do candomblé, mas sim, sentir a presença de ancestrais e entidades

espirituais durante a prática da capoeira.

Tomando o Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros como evidencia, podemos

concluir que, o processo de “transnacionalização” produz novas formas “transcendência”.

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