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A regulação da instanciação religiosa na capoeira angola globalizada: A relação
entre o Grupo Irmâos Guerreiros e o Ilê Obá Silekê de Berlim, Alemanha1
Celso de Brito (UFPI)
Palavras-chave: Capoeira. Religiosidade. Transnacionalismo.
Introdução
Pensar no início do processo pelo qual a capoeira brasileira transpôs as fronteiras
nacionais nos remete ao surgimento do Sistema Nacional da Cultura (SNC), em plena
ditadura militar, através do qual o estado buscou manter o controle da produção e
circulação artística e cultural no país com o objetivo de reforçar a integração nacional. Na
esteira do SNC surge o Sistema Nacional de Turismo (SNT) e, dentro do órgão oficial,
cria-se o Centro Folclórico em Salvador como apêndice da Superintendência de Turismo
de Salvador (SUTURSA) que, ao seu turno, almejou incrementar a indústria cultural do
turismo com práticas culturais da Bahia relacionadas à tradição afro-brasileira, como
capoeira, samba de roda, maculelê, puxada-de-rede e danças do Candomblé.
Para os capoeiristas desse período, os espatáculos passaram a ser parte de sua profissão,
ao comporem o quadro de artistas de grupos parafolclóricos que alimentavam um
mercado étnico transnacional incipiente. O precursor desse empreendimento foi Miecio
Ascanasy, um Judeu alemão que vivia em Viena e que durante a 2° Guerra Mundial,
guerra fugiu para o Rio de Janeiro e fundou o grupo de dança étnica Brasiliana. Miecio
realizou apresentações de capoeira e dança de orixás no teatro Frederichstadt-Palast em
Berlim, ainda no final dos anos 60’s, início dos 70’s (Fernandes, 2014).
Religiosidade, globalização e etnopolítica (1970-2000)
No início da década de 1980, quando o regime ditatorial do Brasil arrefece, a capoeira
passa por uma reconfiguração. Os movimentos sociais ganham notoriedade e entre eles
está o Movimento Negro Unificado. Parte da força desse movimento se deve a articulação
entre os representantes nacionais do Movimento e os intelectuais africanistas norte-
americanos que estavam no Brasil para estudar as manifestações culturais da diáspora
africana nas Américas (Brito, 2015).
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto
de 2016, João Pessoa/PB.
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Com essa articulação, a luta política do Movimento Negro passa a ocorrer no campo da
cultura, de modo que, as manifestações entendidas como parte de uma mesma matriz
africana passam a servir como ferramentas “etnopolíticas” (Agier, 1992).
Alguns grupos de capoeira angola se reconstroem em oposição à capoeira nacionalista
com base em um discurso étnico afro-religioso que os legitimasse como descendentes
africanos, aproximando-se dos terreiros de Candomblé (Vassalo 2009).
O grupo que mais fortemente encabeçou esse movimento foi GCAP que reivindicava uma
relação ancestral com o principal expoente da capoeira angola baiana, Vicente Ferreira
Pastinha, o Mestre Pastinha. Mestre Pastinha por sua vez, havia aprendido com Africano
Betinho e isso os conectava diretamente à matriz africana.
Gradativamente, os angoleiros se fixaram nos EUA e depois em Berlim, para daí se
espalharem para toda a Europa e o mundo, através de um sistema de ajuda mútua pautado
na noção de ancestralidade. Esse sistema foi melhor definido como “sistema de linhagem”
que opera duas mediações complementares: 1° entre capoeiristas de diversas partes do
globo e, 2° entre uma dimensão física e outra metafísica.
No primeiro tipo de mediação, o “sistema de linhagem” opera através do mestre e de sua
relação com mestres do passado considerados seus ancestrais africanos o que corresponde
às concepções dos intelectuais africanistas norte-americanos que vinculam todos os
negros das Américas em um pan-africanismo. As diversas formas de interação entre os
capoeiristas do mundo passaram a obedecer, gradativamente a esse “sistema de linhagem”
funcionando mesmo como uma grande “comunidade imaginada transnacional” (Brito,
2010).
No segundo tipo de mediação, o “sistema de linhagem” é experienciado no ritual através
de um instrumento musical chamado “berimbau”. O berimbau passa a ser entendido como
um objeto envolto de uma aura “sagrada” por ser ele uma via de conexão entre os
capoeiristas e seus mestres do passado, funcionando como uma “antena” que conecta
homens e entidades espirituais, tal qual funciona o atabaque para o Candomblé.
A instância religiosa passou a ser uma fonte de símbolos que, no campo da capoeira,
legitima a identidade étnica afro-brasileira.
Dessa forma, algumas instanciações ocorridas em grupos de capoeira europeus têm
provocado questionamentos na comunidade transnacional da capoeira angola acerca de
sua legitimidade.
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Nos anos 2000, surgia na França grupos de capoeira que produziram sentidos distintos
daqueles defendidos pelos mestres brasileiros (Vassalo, 2003). Em Lyon, a capoeira
angola foi ressignificada como uma espécie de religiosidade “new age”.
O discurso religioso sincrético da capoeira angola francesa formou-se através da
expressão do posicionamento etnopolítico do primeiro líder do grupo que era coreógrafo
e ativista do movimento anti-racismo lyonês. Seu sucessor, passou a dar outro sentido à
capoeira, misturando signos da religiosidade afro-brasileira com um tipo de
“religiosidade maia”, mais tarde, sua sucessora, estabelecia relações entre a religiosidade
afro-brasileira e a religiosidade induísta.
Signos de pertencimento afro-religiosos, como “colares de contas” (de Ogum e Oxum)
eram utilizados durante os rituais de roda de capoeira em Lyon, mas dividiam espaço com
colares de “números de kins” (“serpente magnética espectral”); imagens de orixás
dividiam espaço com imagens de deuses hindus (Shiva, Ganesha e Buda). O critério para
a escolhas dos símbolos era a origem ter uma origem “não-ocidental”, de modo que tanto
a capoeira angola, quanto a cultura hinduísta ou “maia” passavam a representar uma
sociabilidade alternativa à uma concepção de sociabilidade danosa própria, segundo o
ponto de vista nativo, da cultura ocidental hegemônica.
Na dinâmica de instanciação do sentido religioso da capoeira angola lyonesa, o sentido
religioso afro-brasileiro tende a se tornar discursivo (verbalizado, porém mais
enfaticamente escrito nas teses acadêmicas dos capoeiristas), o que torna a percepção do
ritual um campo mais propício para imaginação ancorada em uma mescla de referências
religiosas percebidas localmente como “aparentadas” à capoeira, ou seja, manifestações
religiosas cujas lógicas de funcionamento sejam postas numa relação de oposição à
sociedade ocidental moderna.
As formas de instanciação religiosa que capoeiristas contemporâneos vem promovendo
em diferentes partes do globo, passaram a ser entendidas por muitos mestres como
consequências negativas da globalização, por instaurar deturpações na “tradicional”
conexão entre a prática da capoeira e os significados da religiosidade afro-brasileira.
Na comunidade transnacional da capoeira angola há um tipo de “controle de qualidade
informal” pautado em uma dinâmica de expiação constante em relação aqueles que fogem
da “pureza dos fundamentos tradicionais” exerce uma força centrípeta que atraí os grupos
dissidentes a se inserirem aos moldes dos grupos hegemônicos (Brito, 2010).
Enquanto que no Brasil há alguns há mestres evangélicos e candomblecistas que
gerenciam pequenos conflitos em rodas de capoeira (Brito, 2011), atualmente, com a
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recém consideração da capoeira como “Patrimônio da Humanidade” (2014), a
preocupação maior tem girado em torno do status da capoeira praticada fora do território
nacional, fazendo com grupos sediados fora do território brasileiro se tornam mais
fragilizados.
Muitos grupos sediados na Europa começam a ser taxados (em eventos ou nas redes
sociais) como representantes da deturpação da tradição afro-brasileira e, como
consequência perdem status perante a comunidade transnacional da capoeira e acabam
caindo no ostracismo.
Tal contexto tem mobilizado alguns mestres de capoeira angola na busca de estratégias
de manutenção ou invenção da tradição religiosa afro-brasileira, preferencialmente, o
Candomblé2.
Esse é o caso do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros sediado em Bremen,
Alemanha. Esse grupo atingiu uma forte legitimidade através de uma conexão com um
dos representantes do Candomblé na Alemanha, Babalorixá Muralemsibe.
Babalorixá Muralemsibe e sua estratégia de sensibilização dos alemães à religiosidade
afro-brasileira
A aura comercial das danças de orixás na Alemanha, herdeira do mercado cultural étnico
inaugurado pelos espetáculos promovidos por Miecio Ascanasy na década de 1960, ainda
reluz no começo do século XXI, como parte de uma estratégia maior, como diz
Babalorixá Muralemsibe, do Ilê Obá Silekê sediado em Berlim: “minha dança e meus
espetáculos não são apenas para que eu possa ganhar dinheiro e viver aqui, mas servem
como um caminho para ensinar os alemães a entenderem, quer dizer, a sentirem a religião
afro-brasileira”.
Murah Soares, o Babalorixá Muralemsibe, é responsável pelo primeiro templo de
Candomblé em Berlim, reconhecido pelo estado alemão em 2003. Em 2005 ele funda
Forum Brasil Interkulturelle Zentrum (Forum Brasil Intercultural Center)3. Babalorixá
Muralemsibe separa seu trabalho na Europa em duas dimensões: a cultural e a religiosa.
Para promover seu trabalho na Alemanha, Babalorixá Muralemsibe fez um curso de
gestão cultural através do qual aprendeu a representar os aspectos culturais do Brasil e
transformá-los em mercadoria para sua companhia de dança étnica.
2 Como Frigerio (1989) aponta, a capoeira regional tem sido associada à umbanda pelo caráter sincrético
de ambas e a capoeira angola tem sido associada ao Candomblé pela sua “pureza” africana. Para um estudo
sobre a relação entre capoeira regional e a umbanda em Portugal ver Nascimento (2013, 2015). 3 O Ilê Oba Silekè e o Forum foram também estudados por Bahia (2014) e Graeff (2013).
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No Fórum Brasil, ele ministra oficinas chamadas de “força dos orixás” onde ensina, além
dos passos característicos da dança dos orixás, os significados dos movimentos, os mitos
do panteão sagrado e o funcionamento do Candomblé. Quanto ao seu trabalho, ele diz:
Eu separo a religião da cultura para ensinar os alemães a sentir o
que nós, brasileiros do Candomblé, sentimos. Eles são muitos
racionais, sabe? Eles precisam de informação antes de sentir, e eu percebi que os espetáculos de dança e as oficinas ajudam a
fazer eles entenderem as festas religiosas do Ilê. Aí eles chegam,
assistem e, só depois que alguns se interessam pela religião, bem
devagarinho... assim que conquisto meus filhos de santo aqui.
Se seguirmos essa divisão estabelecida por Muralemsibe vemos que há uma dupla
inscrição do Candomblé na Alemanha que podemos estender para outras culturas afro-
brasileiras como a capoeira: por um lado, um mercado étnico onde o exótico permanece
latente e agrega valor estratégico ao trabalho disseminador do Candomblé na Alemanha
e, por outro lado, uma instância onde a cultura deixa de ter seu valor advindo da
exotização e passa a fazer um sentido mais profundo para os participantes, um sentido
religioso.
Uma forma análoga a essa dupla inscrição foi descrita por Domínguez e Frigerio (2002)
ao estudarem a inserção da capoeira na Argentina. Os autores definiram duas categorias
de análise: “vendedores de cultura exótica” e “trabalhadores culturais”.
A primeira categoria se refere aos imigrantes brasileiros que fazem uso da cultura sem se
preocupar com a anulação do exotismo, apenas vendem o que é mais comercializável, a
“cultura exótica”; já a segunda categoria se refere aos imigrantes brasileiros que
constroem ligações entre a cultura de origem e os participantes locais produzindo vínculos
identitários transnacionais que necessariamente passam pela ruptura com a exotização.
A atuação de Babalorixá Muralemsibe poderia ser entendida a partir de um continuum
entre essas duas categorias analíticas de Domínguez e Frigerio (2002) no sentido de que
as oficinas de dança de orixás mantêm um apelo à experiência superficial relacionada à
venda de espetáculos exóticos, justamente para seduzir os participantes e fazê-los
realmente entenderem e sentirem a religiosidade afro-brasileira, rompendo com a
exotização e estabelecendo vínculos com o Ilê Obá Silekê.
Na década de 1980, Babalorixá Muralemsibe trabalhou na Academia Jangada, a primeira
academia de capoeira angola da Europa, sediada em Berlim. De lá para cá manteve uma
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ligação com a capoeira angola de diferentes grupos ao ser convidado para ministrar
oficinas em eventos de capoeira.
A relação entre Márcio Araújo, Mestre Perna (Grupo Irmãos Guerreiros de Capoeira
Angola), e Babalorixá Muralemsibe começou em 2006 quando Mestre Perna participou
no Carnaval da Culturas em Berlim, onde Balalorixá Muralemsibe realiza anualmente
uma apresentação do Afoxé Loni. O Grupo Irmãos Guerreiros na Europa tinha três anos
de existência e contava apenas com o núcleo em Bremen.
Mestre Perna e Babalorixá Muralemsibe se tornaram amigos e nos anos seguintes, Mestre
Perna foi suspenso4 como ogã, incumbido de tocar os atabaques nos rituais do Ilê Obá
Silekê.
Assim como Mestre Perna exerce a função de ogã no Ilê Obá Silekê, Babalorixá
Muralemsibe é considerado um dos mestres do Grupo Irmãos Guerreiros, apesar de não
praticar a capoeira angola, e se faz presente em todos os eventos organizados pelo Grupo
nos diferentes países onde existem seus núcleos. Sua função é expandir sua estratégia de
disseminação da religiosidade afro-brasileira aos capoeiristas europeus, sensibilizando-
os para a dimensão espiritual da capoeira angola5: ele ensina sobre os movimentos, os
mitos e o funcionamento do Candomblé e, gradualmente, introduz os capoeiristas
europeus no universo da religiosidade afro-brasileira.
Hoje o grupo nascido em Bremen, na Alemanha, conta com mais de 10 núcleos
espalhados por 8 países da Europa.
A sensibilização afro-religiosa dos capoeiristas europeus e os “modos somáticos de
atenção”
A abordagem teórica da corporeidade em Csordas (2008) refere-se ao corpo não como
um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas como um sujeito da cultura. Essa
teoria se assenta em um corpo socialmente informado que conduz a análise a uma ruptura
das dualidades corpo-mente e sujeito-objeto.
4 A suspensão e um ogã é parte do ritual do Candomblé, no qual um orixá incorporado escolhe um homem
presente o convida a andar ao seu lado e é levado junto a uma cadeira para se sentar, ao lado dos ogãs da
casa já confirmados, para ser “suspenso” tanto fisicamente (dois ogãs elevam a cadeira e o homem a ser
suspenso) quanto simbolicamente (a partir desse ato ele é considerado um portador do título de ogã da
casa). 5 Essa relação entre capoeira e religiosidade afro-brasileira na Europa também foi tema de estudo de
(Nascimento, 2013, 2015) ao tratar da capoeira em Portugal. Entretanto, a descrição de Nascimento não
nos permite pensar em uma relação institucionalizada como a que ocorre no grupo alemão.
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O autor constrói uma teoria da corporeidade a partir da complementariedade entre as
perspectivas de Merleau-Ponty e de Pierre Bourdieu.
Merleau-Ponty debruçou-se sobre a constituição da percepção e, para ele, a percepção
começa no corpo e, pela via de um pensamento reflexivo, chega aos objetos. Dessa forma
Merleau-Ponty propõe que a análise comece com um ato “pré-objetivo” da percepção e
não com os objetos já constituídos, mostrando que a percepção está sempre incluída no
mundo da cultura de um modo que esse ato pré-objetivo não implique num ato pré-
cultural.
Aqui, a perspectiva de Bourdieu sobre o corpo socialmente informado como base para a
vida coletiva é introduzida na abordagem de Csordas (2008). Para unir a compreensão de
Bourdieu acerca do habitus como um conjunto de práticas inconscientes à noção de
Merleau-Ponty de “pré-objetivo”, Csordas (2008) afirma que o embodiment não precisa
ser restrita a uma microanálise associada à fenomenologia, mas pode ser entendido como
um fenômeno visível através da prática dos grupos sociais. O embodiment torna-se um
campo metodológico inaugurado a partir da concepção de um movimento dialético entre
consciência perceptiva e práticas sociais. É essa dialética que nos permite pensar na noção
de “modos somáticos de atenção”.
A atenção, segundo Merleau-Ponty, constitui um universo fora de um horizonte
indeterminado e, Csordas (2008), por sua vez, sugere que esse lugar da atenção é o ponto
ambíguo no qual o ato de constituição do objeto e o objeto constituído encontram o
horizonte fenomenológico. Assim, os processos nos quais nos prestamos atenção e
reificamos nossos corpos não são nem arbitrários nem biológicos, mas culturais e esses
são os processos definidos com a noção de “modos somáticos de atenção”.
Como a atenção implica um engajamento sensorial e um objeto, ela se refere a uma
atenção “com” o corpo e “para” o corpo. Apontar para uma sensação corporal não
significa apontar para o corpo como um objeto isolado, mas a situação do corpo no
mundo, indicando um meio intersubjetivo que origina aquela sensação.
Os “modos somáticos de atenção” podem ser associados a muitas práticas e fenômenos
culturais, inclusive, Mauss (2003) já havia escrito sobre algo parecido com o que Csordas
(2008) chama de “modos somáticos de atenção”, associado a aquisição de técnicas
corporais e que eles estariam localizados no horizonte cultural onde essas técnicas eram
desenvolvidas.
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Uma das categorias enfatizadas por Csrodas em sua teoria da corporeidade é a “sensação”.
A sensação é entendida como algo tipicamente empírico que abre espaço para uma
concepção de significado cultural como referência imposta sobre um substrato sensorial.
Creio que a construção processual da sensibilização transcendental ligada a estados afro-
religiosos dos capoeiristas europeus também poderia ser analisada dentro nesse campo.
Tal construção, como veremos, é resultado de um processo de objetificação corporificada
a partir de um “imagético multissensório”, ou seja, “imagens complexas em mais de uma
modalidade sensorial ao mesmo tempo” (Csordas, 2008:124), por meio de uma
impregnação lenta e gradual, que instaura, no corpo do sujeito, a experiência de ser um
capoeirista, no momento mesmo em que constrói o sentido desse “ser capoeirista”
enquanto objeto cultural.
A sensibilização religiosa dos capoeiristas europeus através uma “desconstrução” de um
corpo cotidiano, tomado como duro e sem mandinga é parte fundamental do processo,
aliado às construções de sentido coletivas, promovidas no espaço das histórias contadas
durante as oficinas, nos comentários sobre a movimentação de uns e de outros, no
aprendizado de uma sensibilidade estética específica, onde vão-se estabelecendo os
critérios para que se considere uma atuação exitosa nesse universo, e onde os sentidos de
uma religiosidade afro-brasileira incorporada vão sendo coletivamente construídos e
individualmente agenciados. Assim se reconstrói um corpo solto e mandingueiro do
capoeirista.
Mais do que pensar os aspectos expressivos como meras representações de uma afro-
religiosidade reivindicada pelos capoeiristas, trato aqui de compreendê-los como a
materialização instauradora de uma identidade que se constrói com referência à religião
afro-brasileira.
Os eventos do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros europeu e a construção
da “mandinga” na conjunção entre capoeira e Candomblé em Berlim
Os eventos do Grupo Irmãos Guerreiros obedecem um mesmo formato onde quer que
ocorra: aulas de dança dos orixás pela manhã; pela tarde acontecem os treinamentos de
capoeira angola e a noite ocorre o ritual da roda de capoeira angola.
O calendário anual do Grupo Irmãos Guerreiros contempla, ao menos, dez eventos: um
para cada pais nos quais o grupo mantém núcleos, com exceção da Áustria onde ocorrem
dois eventos anuais e Alemanha, país onde se concentram três núcleos e o Ilê Obá Silekê.
Assim, uma vez por ano, cada localidade organiza um evento que receberá os mestres e
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professores do Grupo (o que inclui o Babalorixá Muralemsibe) e os capoeiristas dos
outros núcleos, de modo que tanto os mestres e o Babalorixá Muralemsibe quanto os
capoeiristas aprendizes do Grupo Irmãos Guerreiros se mantém em mobilidade num
circuito capoeirístico europeu durante todo o ano todo.
Nessas ocasiões, reúnem-se, em média, entre 50 e 60 participantes, dos 200 capoeiristas
filiados ao Grupo em toda a Europa, eles são homens e mulheres jovens, estudantes
universitários, artistas e profissionais liberais, em sua maioria, entre os 20 e 35 anos de
idade que, ao viajarem, permanecem nas casas dos membros do grupo local que, por sua
vez, organizam-se para receberem todos os participantes. O preço das inscrições gira em
torno de 50 Euros por dia de atividade, sendo que a maioria dos eventos ocorrem nos
finais de semana.
A organização é de total responsabilidade dos capoeiristas locais, sendo que por vezes,
alguns capoeiristas não locais, se adiantam justamente para colaborar na organização. A
arrecadação é utilizada por eles para o pagamento das passagens aéreas e do trabalho
cultural dos mestres ministrantes de oficinas, da alimentação e de eventual aluguel do
espaço onde ocorre o evento. Caso o arrecadado seja maior que o utilizado, forma-se um
caixa que será utilizado para eventos futuros.
Uma vez a programação estabelecida e o local do evento determinado, a etapa seguinte é
a preparação do local com a sua limpeza e ampla decoração.
Quando ocorrem em locais, como, Berlim, Jena, Bremen e Leipzig, na Alemanha; Viena,
na Áustria; Cracóvia, na Polônia; Oslo, na Noruega ou Porto, em Portugal, que são os
locais mais antigos onde o grupo mantém suas atividades, a decoração já é definitiva,
portanto não necessário decorar o espaço. Mas quando ocorrem em locais como Lisboa,
em Portugal ou Presov, na Eslováquia, onde os espaços são sublocados em centros
sociais, há a necessidade instalar as imagens de orixás nas paredes; as palhas penduradas
sob os batentes das portas; as bandeirinhas de papel coloridas de acordo com o orixá do
mestre ou professor local; a preparação dos instrumentos e sua afinação, assim como dos
defumadores.
Algumas das imagens de orixás circulam entre um núcleo e outro de diferentes países,
como a imagem da iabá (orixá feminino) Iansã produzida por Pintinha, a professora
responsável pelo núcleo de Lisboa, em homenagem a sua Iabá e à Iabá do Babalorixá
Muralemsibe.
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Ao menos um desses eventos ocorre no Ilê Obá Silekê, em Berlim, durante alguma festa
religiosa. A maioria das vezes, isso ocorre justamente no dia quatro de dezembro, durante
a festa de Iansã.
A especificidade desse evento é que, nessa ocasião, o ritual da roda de capoeira angola
ocorre como a “parte final” do ritual religioso.
Como já foi dito, os eventos ocorrem segundo uma programação pré-estabelecida: oficina
de dança dos orixás, treino de capoeira angola e o ritual da roda de capoeira. Durante os
eventos no Ilê Obá Slekê, essa programação conta com o adicional da festa do orixá.
Babalorixá Muralemsibe é o primeiro a entrar em cena. Habitualmente, sua oficina sobre
a dança de orixás começa às 8:00 horas da manhã e segue até as 12:00 horas.
As oficinas não são divididas entre momentos teóricos e momentos práticos, Babalorixá
Muralemsibe alterna entre movimentos corporais e pausas quando acha necessária
alguma explicação para o que está sendo ensinado. Gradativamente, ele explica o modus
operandi do Candomblé, estabelecendo, enfaticamente, a relação dos orixás com os
tambores no ritual religioso e seus paralelos estruturais com a relação entre os capoeiristas
e o berimbau.
Ao situar os mestres/ogãs junto aos atabaques, ele ensina um primeiro passo de dança e
todos o repetem, ensina o segundo passo e todos o repetem, ensina o terceiro passo e todos
o repetem. Em seguida, ele faz uma sequência dos três passos e se certifica de que todos
memorizaram minimamente para, finalmente, dizer:
Agora vocês vão dançar, mas vocês têm que ouvir o atabaque, mesmo se não conseguirem realizar o movimento perfeitamente,
obedeçam ao ritmo do atabaque! É ele quem orienta a dança dos
orixás, assim como o berimbau é quem orienta o jogo do capoeirista. O atabaque e o berimbau são instrumentos sagrados
para a cultura afro-brasileira por que são eles que fazem a ligação
entre nós e os nossos ancestrais, não se desliguem dele!
Os atabaques começam a tocar e todos tentam repetir a sequência coreográfica
acompanhando os movimentos de Babalorixá Muralemsibe. Gradativamente, os passos
vão se acumulando, até que o repertório para aquela aula forme uma coreografia completa
e a repetição se delonga por mais algumas horas ao som dos atabaques e das músicas
cantadas pelos mestres/ogãs.
As oficinas de Babalorixá Muralemsibe têm como objetivo desenvolver duas
“capacidades” nos capoeiristas, uma estritamente física e outra espiritual. Soltar o corpo
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é a primeira delas, por que, como ele próprio explica, o corpo do europeu é duro, não tem
a mandinga que os brasileiros aprendem desde criança e isso é necessário tanto para a
capoeira quanto para o Candomblé.
Os movimentos ensinados por Babalorixá Muralemsibe são extremamente articulados,
baseados em giros e balanços dos ombros e quadris que são dificilmente incorporados
pelos capoeiristas europeus e por isso, ele trabalha com apenas uma coreografia baseada
nos movimentos de alguns orixás durante todos os eventos. Os movimentos são repetidos
por cerca de quatro horas, durante todos os eventos desde que ele começou a participar
do Grupo em 2006.
O salão do Ilê Obá Silekê é repleto de máscaras africanas, imagens de orixás, plantas,
palhas, pratos de comida e velas, além de alguns assentamentos característicos do
Candomblé, tudo servindo como estímulos sensórios visuais que compõe o ambiente afro-
religioso.
Além das imagens de orixás nas paredes, o Ilê Obá Silekê propicia outros estímulos
sensoriais. Ao lado do salão onde ocorre a oficina, há uma ampla cozinha de onde emana
o cheiro da comida que estava sendo preparada para os orixás e se mistura ao cheiro dos
defumadores contribuindo na formação de um m “imagético multisensorial” (Csordas,
2008) afro-religioso.
Na oficina, Babalorixá Muralemsibe mostra alguns movimentos de Ogum atentando para
a força dos golpes de sua espada representados pelos movimentos dos braços. Em seguida,
ele mostra um movimento de Oxum enfatizando a sedução de um movimento de visada
no espelho e constrói uma ponte entre a dança dos orixás e o jogo de capoeira, da seguinte
maneira: “Os capoeiristas devem ser assim, mandingueiros (...) devem aprender com os
orixás como se movimentar, vocês têm que dançar bonito e mostrar ao mesmo tempo que
tem poder. O mandingueiro é assim, não é? Poder e sedução, Ogum e Oxum”.
Na capoeira, a ideia de poder e sedução é uma das mais comuns definições do que se
nomeia de “mandinga”. O termo “mandinga” é usado nas religiões afro-brasileiras como
sinônimo de trabalho espiritual e tem, para os capoeiristas, um duplo significado: 1º
movimento do corpo, segundo um padrão estético específico que remete à estética das
danças dos orixás e um padrão de eficácia durante o jogo da capoeira, no sentido de tornar
o capoeirista ágil e capaz de se defender e atacar com grande precisão e, 2.º força
espiritual que protege o capoeirista da má sorte e da mandinga de outros capoeiristas.
A oficina termina e os capoeiristas tem uma hora para comer algo leve e retornarem para
a oficina de capoeira ministrada por Mestre Perna.
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Os atabaques são substituídos pelos berimbaus e a oficina segue com alguns passos da
dança de orixás para reaquecer o corpo.
Gradativamente, a ginga (movimento característico da capoeira) é iniciada por todos. Em
seguida são acrescidos movimentos de giro e de inversão, onde os capoeiristas continuam
girando e flexionando as articulações, mas alternando a sustentação do corpo pelas mãos
e pernas.
Inevitavelmente, alguns necessitam de um tempo para se recompor da sensação de tontura
que tais rodopios provocam. Enquanto os capoeiristas giram e rodopiam, Mestre Perna
segue na ideia de conectar a capoeira ao Candomblé, a exemplo de Babaloriá
Muralemsibe, através da ideia de soltar o corpo e da noção de mandinga, ele diz: “nosso
objetivo é ser mandingueiro, então solta o corpo como se estivéssemos no Brasil, lá na
Bahia, no Solzão, sintoniza no som do berimbau e deixa ele te levar”.
Vê-se que se trata de um treinamento que visa a desconstrução de uma corporeidade tida
como europeia e dura para a conseguinte reconstrução de outra corporeidade tida como
afro-brasileira e solta.
A ginga é constante e os movimentos são ensinados de forma sequencial: um movimento
por vez: um ataque e uma defesa, ginga, um ataque, uma defesa ginga, e, gradativamente,
o conjunto de ataques e defesas torna-se uma sequência de muitos movimentos
repetidamente realizados durante muitas vezes, sempre intercalados pela ginga. Após essa
etapa, outro processo de formação de sequência se inicia.
Os movimentos repetidos a exaustão acabam por provocar uma sensação de tontura ou
perda de noção de espaço e de tempo aos iniciantes (que fazem as oficinas juntamente
com os mais experientes), enquanto que, aos mais experientes, causa uma sensação
descrita por uma das alunas do Grupo Irmãos guerreiros de Viena, como uma “meditação
dinâmica (...) o tempo para, se esquece de tudo fora daqui e o corpo age por si só”.
O próximo estágio da oficina é mais complexo, no qual a interação dos capoeiristas é
requerida.
A movimentação que até então foi realizada individualmente passa a ser realizada em
duplas. As duas sequências de movimentos ensinadas são previamente pensadas para que
sejam complementares entre si e, nessa etapa, ambos os capoeiristas da dupla devem
realizá-la em um mesmo ritmo, oferecido pelo som dos berimbaus.
Após algum tempo de repetição, algumas alternativas são demonstradas e outras devem
ser exploradas, sobretudo pelos mais experientes, de modo a introduzir ao exercício a
improvisação sem, contudo, abandonar o ritmo imposto pelos berimbaus.
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De tempos em tempos, as duplas são trocadas para que a mesma sequência seja
experiênciada por pares diferentes, estimulando diálogos corporais mais ou menos
intensos, com mais ou menos improvisação, de acordo com as possibilidades de
movimentação já incorporadas por cada indivíduo que forma a dupla.
A incerteza e a insegurança dos movimentos improvisados criam preocupação em relação
aos ataques que podem realmente atingir seu alvo e isso, consequentemente, acarreta a
ruptura da harmonia dos movimentos dos capoeiristas com o ritmo imposto pelos
berimbaus.
Isso não deve acontecer, alerta Mestre Perna: “o ritmo deve fluir, deixe o corpo solto,
deixa ele obedecer ao ritmo do berimbau, não pense, no movimento que seu companheiro
vai fazer, nem no movimento que você vai fazer (...) aliás (...) não pense, só sinta!”
O didática parece indicar para uma desconstrução e reconstrução de corporeidades através
da memorização, repetição exaustiva e posterior, esquecimento dos movimentos.
O esquecimento da sequência é necessário para que a harmonia com o ritmo dos
berimbaus não seja quebrada, fazendo com que um jogo de capoeira, percebido pelos seus
praticantes como uma luta empolgante e perigosa, seja apreciada por espectadores leigos
como uma coreografia previamente ensaiada, tamanha é a complementariedade dos
movimentos. Para isso, contudo, é preciso lidar com o receio e o medo sem expressar
tensão física ou mental, o corpo deve agir por si só, e os ataques e defesas devem ficar à
mercê de uma lógica inconsciente.
Aqui, Mestre Perna atenta para o papel dos berimbaus e diz:
Essa é a mandinga. O capoeirista não pode ficar tenso, senão ele não houve o que o berimbau está falando e é aí que ele sai do
ritmo é aí que o outro camarada pega ele (...). Confia no treino
confia no que o berimbau está falando, confia no teu orixá, nos
ancestrais da capoeira angola, na mandinga, deixa o corpo bem solto e vâmo que vâmo!
Uma nova etapa de “meditação dinâmica”, para usar o termo da capoeirista do grupo,
deve ser instaurada, porém agora uma meditação dinâmica e em duplas. Esse exercício é,
assim como todos os outros, exaustivamente repetido em busca da incorporação que
propicie sua execução de modo impensado.
Ao final da oficina de Mestre Perna, que dura cerca de quatro a cinco horas (das 13:00 às
17:00, os capoeiristas têm, novamente uma hora para comerem algo leve, tomarem um
banho e retornarem para o Ilê Obá Silekê e para o ritual da festa de Iansã.
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A festa de Iansã e a roda de capoeira angola no Ilê Obá SIlekê, em Berlim: a sobreposição
de dois rituais
A festa de Iansã no Ilê Obá Silekê é considerada, dentro das duas categorias de Babalorixá
Muralemsibe, como um evento religioso, mas aberto ao público frequentador dos
espetáculos promovidos pelo Forum.
Entre os espectadores, estavam os capoeiristas do Grupo Irmãos Guerreiros, que não são
filhos de santo, enquanto que mestres e professores/ogãs do Grupo de Capoeira Angola
Irmãos Guerreiros tocavam para que os orixás se manifestassem.
Aqui todas as informações sobre os atabaques e sua função comunicativa entre as
dimensões terrenas e espirituais, transmitidas durante as oficinas, são atualizadas.
Após a imersão no universo afro-brasileiro das oficinas ministradas à tarde, o ritual do
candomblé é a representação de uma roda de capoeira, ou vive-versa: a estrutura
responsória das cantigas, os três atabaques análogos aos três berimbaus, a harmonia com
que os orixás se movimentam ao ouvir os atabaques e, sobretudo, a liderança
compartilhada entre mestre Perna tocando um dos atabaques e Babalorixá Muralemsibe
ao seu lado cantando os pontos para os orixás.
Os filhos de santo ocupam a parte central do salão, alguns formando um círculo e outros
no centro dançando com seus orixás incorporados.
A mudança das expressões dos capoeiristas que apreciam o ritual, tamanha seriedade e
respeito, corresponde a mudança das expressões dos filhos de santo ao incorporarem seus
orixás. Tal mudança de expressão denota a certeza de estarem vivenciando a presença de
entidades espirituais no salão.
Após todos os filhos de santo do Babalorixá Muralemsibe receberem seus orixás e
dançarem, o ritual se altera com a entrada em cena dos capoeiristas. Tal qual ocorreu nas
oficinas, os atabaques são afastados e os berimbaus ocupam o lugar deles, no entanto, os
tocadores dos berimbaus são exatamente os mesmos que tocavam os atabaques.
Babalorixá Muralemsibe, também permanece na mesma posição que ocupou durante a
homenagem à Iansã: ao lado dos instrumentos e cantando.
Os filhos de santo tornam-se espectadores e os capoeiristas passam, tanto a delimitar o
espaço sagrado, quanto atuarem no centro do círculo tal qual faziam os filhos de santo na
etapa anterior do ritual. Durante a roda de capoeira, os capoeiristas expressavam a mesma
seriedade com que apreciavam os orixás.
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No decorrer das performances, é possível enxergar os movimentos ensinados durante as
oficinas. Nas movimentações dos iniciantes, as sequências recentemente aprendidas são
mais facilmente visíveis por conta de uma reprodução mecanizada; já na movimentação
dos mais experientes, percebe-se uma miríade mais complexa de movimentos e
utilizações de combinações variadas e improvisadas de acordo com a situação. Alguns
dos movimentos são completamente inovadores e, nesse momento, os mestres que tocam
os berimbaus, assim como os capoeiristas que assistem ao jogo, explodem, gritando, em
um êxtase coletivo.
Nesses momentos, os mestres cantam canções vinculadas aos orixás. Se o orixá do
jogador é conhecido pelo mestre, esse inicia canções específicas desse orixá como forma
de estimular o jogador em sua performance, que, por sua vez, se dirige ao berimbau e o
saúda com toques no chão. Canções como “mandingueiro, mandingueiro, onde está o
mandingueiro” servem ao propósito de enaltecer o jogador que performatizou um
movimento inovador e improvisado provocando o êxtase coletivo.
As canções também servem para momentos em que o jogo está sem mandinga. Nesses
casos, cantigas como “solta a mandinga aê, solta a mandinga” servem para alertar o
jogador que seu corpo está duro e que precisa se soltar e se conectar ao som dos berimbaus
para deixar a “mandinga” aflorar.
Após o ritual, já quase meia-noite, a maioria dos capoeiristas se dirigiram ao bar mais
próximo para beber e comentar sobre os jogos de capoeira ocorridos.
A atenção dos comentários voltou-se aos momentos de aparente perigo existentes no jogo,
ocasionado ou evitado através de ações improvisadas e inovadoras (justamente aqueles
momentos de comoção coletiva): ataques e defesas eficientes através de movimentos de
giros e rodopios e torções que, sobretudo, mantenha uma harmonia com o ritmo dos
berimbaus. Tais ações são reconhecidas como as manifestações da “mandinga” e da
presença de ancestrais.
É possível analisar o resultado das experiências acumuladas nesse tipo de ritual e
manifestação da “mandinga” ao focarmos nas respostas daqueles que tiveram suas
performances elogiadas e chamados de “mandingueiros”. Por um lado, temos os
“mandingueiros” menos experientes que diziam: “naquele momento senti uma coisa que
não sei explicar”, “eu simplesmente não pensava em nada” ou “não tenho ideia como fiz
aquilo”; por outro lado, os mais experientes, descrevendo aquela sensação através de um
significado mais místico, diziam: “a energia da roda estava muito forte”, “senti a
ancestralidade ali comigo” ou “eu não estava sozinho naquele momento”.
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Durante a conversa, perguntei aos mais experientes se essa era a primeira vez que sentiam
essa “força ou presença ancestral” e me responderam negativamente. Mas alguns dentre
eles concordaram que, nas rodas sempre sentiam “alguma coisa”, mas não sabiam ao certo
o que era, até que começaram a participar dos rituais com Mestre Perna e Babalorixá
Muralemsibe juntos.
Se considerarmos o processo como um todo, veremos que se trata de uma desconstrução
de uma corporeidade horizontal e estática para, em seguida, instaurar novas
possibilidades de organização corporal, adotando outras referências visuais e sensoriais.
A partir de uma nova organização corporal que é sentida como uma desorientação espaço-
temporal, se reconstrói algo como uma co-orientação entre um “eu” e um “ente fora do
eu” percebida como resultado da presença de uma força espiritual e ancestral.
Creio ser possível entender a sobreposição desses dois rituais como uma forma de
transposição da cosmologia religiosa afro-brasileira para o ritual da capoeira angola que,
por sua vez, instaura um sentido religioso afro-brasileiro no processo de percepção dos
capoeiristas europeus durante sua prática. Dessa forma, uma sensação sempre presente
na prática dos capoeiristas europeus ganha um significado espiritual.
Segundo Tambiah (1985), o ritual se refere a construtos cosmológicos que podem
contribuir para a elaboração de uma nova realidade. Os próprios “construtos
cosmológicos estão fundados (claro que não exclusivamente) nos ritos, e estes ritos, em
contrapartida, encenam e encarnam concepções cosmológicas” (Tambiah, 1985:130).
Não há, portanto, um conteúdo completamente existente a priori, mas uma realidade que
é construída através do ritual, “como um meio de transmitir sentidos, construir a realidade
social ou (…) criar e trazer à vida o próprio esquema cosmológico” (Tambiah, 1985:129).
Dessa forma, uma parte significativa da cosmologia da religião afro-brasileira, a saber,
uma divisão entre vivos e entidades espirituais na qual há a possibilidade de interação
entre eles, é encenada no ritual da festa de Iansã e transmitida aos capoeiristas ao sobrepor
o ritual da roda de capoeira ao ritual religioso do Candomblé.
Conclusão
O mecanismo de “controle de qualidade informal da capoeira angola transnacional”
(Brito, 2010) se mostra forte o suficiente para regular a circulação de símbolos nos grupos
transnacionais, mantendo um vínculo entre a prática da capoeira e a religiosidade afro-
brasileira. Nesse mecanismo, alguns grupos considerados deturpadores da tradição afro-
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brasileira sofrem acusações que podem levar determinados grupos ao ostracismo e ao
isolamento em relação ao circuito transnacional de capoeira angola. Esse mesmo
mecanismo instaura nos capoeiristas europeus a necessidade de buscar por grupos que
apresentem vínculos fortes com a tradição afro-brasileira e, como consequência, impele
os responsáveis pelos grupos de capoeira na Europa a buscarem desenvolver estratégias
para responder a essa demanda.
A estratégia desenvolvida por Mestre Perna foi incorporar ao seu grupo, não apenas
imagens de orixás penduradas em sua academia ou distribuir colares de contas dos orixás
entre seus discípulos europeus. Mais profundo do que isso, ele incorporou um Babalorixá
e um terreiro de Candomblé já consolidado na Europa ao seu grupo.
Babalorixá Muralemsibe, por sua vez, trouxe ao Grupo de Capoeira Angola Irmãos
Guerreiros sua estratégia de disseminação do ethos religioso afro-brasileiro na Alemanha
a partir de uma sobreposição entre “cultura” e “religião” ensinando os alemães a sentirem
a religião através da arte da dança.
Tal dinâmica se mostra bem-sucedida ao atrair um considerável número de capoeiristas
de diferentes regiões da Europa, fazendo do Grupo Irmãos Guerreiros um dos maiores
grupos de capoeira angola desse continente.
A coalisão entre a capoeira e o candomblé no grupo Irmãos Guerreiros representa a
condensação das diferentes formas com que a capoeira e o candomblé se relacionaram
durante o processo de globalização/transnacionalização das culturas afro-brasileiras no
século XX.
Se nas décadas de 50 e 60 a capoeira e o candomblé se aproximaram em torno de um
mercado étnico da dança e na década de 90 essa aproximação ocorreu segundo uma
etnopolítica, no século XXI, capoeira e candomblé na Europa se fundem
institucionalmente produzindo uma nova forma de sensibilidade religiosa.
Ser capoeirista no Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros europeu não significa
apenas expressar um vínculo superficial com a religiosidade afro-brasileira através da
ostentação de símbolos do candomblé, mas sim, sentir a presença de ancestrais e entidades
espirituais durante a prática da capoeira.
Tomando o Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros como evidencia, podemos
concluir que, o processo de “transnacionalização” produz novas formas “transcendência”.
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