a (re)descoberta da sombra

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO EMERSON CARDOSO NASCIMENTO A (RE)DESCOBERTA DA SOMBRA: EXPERIÊNCIA REALIZADA COM EDUCADORES NA CIDADE DE IMBITUBA - SC FLORIANÓPOLIS 2011

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A (Re)Descoberta Da Sombra

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PSGRADUAO EM TEATRO

    MESTRADO EM TEATRO

    EMERSON CARDOSO NASCIMENTO

    A (RE)DESCOBERTA DA SOMBRA: EXPERINCIA REALIZADA COM EDUCADORES NA

    CIDADE DE IMBITUBA - SC

    FLORIANPOLIS 2011

  • EMERSON CARDOSO NASCIMENTO

    A (RE)DESCOBERTA DA SOMBRA: EXPERINCIA REALIZADA COM EDUCADORES NA

    CIDADE DE IMBITUBA - SC

    Dissertao apresentada como requisito obteno de grau de Mestre em Teatro, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Linguagens Cnicas, Corpo e Subjetividade.

    Orientador: Prof. Valmor Beltrame, Dr.

    FLORIANPOLIS 2011

  • Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

    N244a Nascimento, Emerson Cardoso

    A (re) descoberta da sombra: experincia realizada com educadores na cidade de Imbituba - SC / Emerson Cardoso Nascimento, 2011.

    143 p. : il. ; 30 cm

    Bibliografia: p. 134-142 Orientador: Dr. Valmor Beltrame Dissertao (mestrado) Universidade do Estado de Santa Catarina,

    Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianpolis, 2011. 1. Teatro. - 2. Educadores. Imbituba Santa Catarina. - I. Beltrame,

    Valmor. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. III Ttulo.

    CDD: 792 20.ed.

  • 4

    EMERSON CARDOSO NASCIMENTO

    A (RE)DESCOBERTA DA SOMBRA: EXPERINCIA REALIZADA COM EDUCADORES NA

    CIDADE DE IMBITUBA - SC

    Esta dissertao foi julgada APROVADA para a obteno do Ttulo de Mestre em Teatro, na

    linha de pesquisa: Linguagens Cnicas, Corpo e Subjetividade, em sua forma final pelo Curso

    de Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 23 de agosto de

    2011.

    Prof. Vera Regina Martins Collao, Dr. Coordenadora do Mestrado

    Apresentada Comisso Examinadora, integrada pelos professores:

    Prof. Valmor Beltrame, Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

    Orientador

    Prof. Izabela Costa Brochado, Dr.

    Universidade de Braslia - UnB Membro

    Prof. Beatriz ngela Vieira Cabral, Dr., PhD. Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

    Membro

  • 5

    Aos meus pais,

    que me deixaram sonhar.

    Sempre.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Valcir e Santa, que sempre me apoiaram incondicionalmente, e

    tambm, agradeo imensamente ao Francisco e Elizabeth, que me acolheram no s em

    Florianpolis, mas em seus coraes.

    Ao Bruno, por no me deixar desistir, apontando sempre um presente maravilhoso e

    um futuro promissor.

    Ao Professor Dr. Valmor Beltrame que, por seu fascnio pelo teatro de animao, me

    encaminhou com tanta competncia ao encontro dessa arte. E, sobretudo, por ter

    compartilhado essa experincia comigo. Obrigado pelas orientaes, conversas,

    encaminhamento profissional e, especialmente, a amizade.

    s meninas da secretaria acadmica do PPGT, Mila e Sandra, por toda ateno.

    Agradeo tambm ao Manoel (Faustino) da CENTROCPIAS pelo apoio.

    Muito obrigado a todos aqueles que participaram das oficinas e tambm aos que

    contriburam para a realizao dessa pesquisa.

  • 7

    As sombras evocam a fragilidade, o cmico da vida, o carinho pelos destinos que podem se quebrar como cascas de ovos. Ao mesmo tempo, elas contm a fora da liberdade, do humor, da ironia, do riso. Elas deslizam entre as grades, escapando dos torturadores, dos atormentados. Elas brilham, luzes negras, por um mundo diferente!

    Jean-Pierre Lescot

  • 8

    RESUMO

    O estudo descreve e analisa as atividades desenvolvidas com Teatro de Sombras em duas oficinas realizadas com educadores na cidade de Imbituba SC, no perodo de 04 de maio a 28 de julho de 2010. Ideias sobre (re)descoberta da sombra e experincia so debatidas ao longo das trs etapas da pesquisa. Na primeira etapa, o levantamento bibliogrfico subsidia estudos sobre elementos histricos e tcnicos sobre a arte do Teatro de Sombras, enfatizando o trabalho do ator-animador, as telas, as fontes luminosas e as silhuetas. A segunda e a terceira etapa so dedicadas descrio e anlise das oficinas, nas quais so apresentados o perfil dos participantes, as atividades e os jogos teatrais desenvolvidos, alm dos materiais utilizados na realizao das cenas. Parte dos procedimentos pedaggicos realizados nas oficinas se apoiou na metodologia proposta por Viola Spolin. Textos de autores, como John Dewey, Walter Benjamin e Jorge Larrosa Bonda, subsidiaram teoricamente a realizao das anlises da experincia. O estudo destaca ainda os procedimentos de criao das cenas e o trabalho final apresentado ao pblico. O texto privilegia a apresentao das impresses dos participantes e fotos das oficinas.

    Palavras-chave: Teatro de Sombras, Princpios Tcnicos, Pedagogia, (Re)descoberta da Sombra, Experincia.

  • 9

    ABSTRACT

    This study describes and analyzes the activities developed with Shadow Theatre in two workshops carried with educators in the city of Imbituba - SC, in the period between May and July, 2010. Ideas on (re)discovery of shadow and experience are debated throughout three phases of the research. In the first phase, the bibliographical survey subsidizes studies on historical and technical elements about the art of the Shadow Theater, emphasizing the work of the puppeteer, the screens, the luminous fountains and the silhouettes. The second and third phases are dedicated to the description and analysis of the workshops, in which the profile of the participants, the developed activities and theatrical games are presented, in addition to the materials used for the scenes. Part of the pedagogical procedures carried out in the workshops was based on the methodology proposed by Viola Spolin. Texts by scholars such as John Dewey, Walter Benjamin and Jorge Larrosa Bonda provided the theoretical support for the analyses of the experience. The study still stresses the procedures of scene creation and the final work presented to the public. It also highlights the presentation of the participants impressions and the workshop photos. Keyword: Shadow Theatre, Technical Principles, Pedagogy, (Re)discovery of Shadow and Experience.

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Silhuetas do teatro de sombras chins. ........................................................................................20

    Figura 2 - Silhuetas, tela e ator-animador no teatro de sombras chins.......................................................21

    Figura 3 - Wayang Kulit: silhuetas do teatro de sombras na Indonsia. .......................................................22

    Figura 4 - Os dois personagens principais do teatro de sombras Turco: Karagz e Hadjeivat.....................24

    Figura 5 Ator-animador no teatro de sombras chins e indiano. ..............................................................27

    Figura 6 Silhuetas animadas com varas no teatro de sombras chins. ......................................................28

    Figura 7 Teatro de sombras javans. .........................................................................................................32

    Figura 8 Diferentes telas para teatro de sombras. .....................................................................................34

    Figura 9 Fontes luminosas ou focos de luzes coloridas projetando diferentes sombras. ...........................36

    Figura 10 Ilustrao de diferentes tipos de silhuetas. ................................................................................42

    Figura 11 Silhueta animada na tela sem revelar as varas de sustentao..................................................43

    Figura 12 Perfil em silhueta........................................................................................................................45

    Figura 13 Rama e Sita, silhuetas do teatro de sombras de Andhra Pradesh..............................................47

    Figura 14 Silhuetas do espetculo Livres e Iguais do grupo Teatro Sim Por Que No?!...........................48

    Figura 15 Fachada da escola bsica municipal Jos Vanderlei Mayer em Imbituba SC. ......................53

    Figura 16 A preparao do espao para a realizao das oficinas.............................................................65

    Figura 17 Sala de aula onde foram realizadas as oficinas..........................................................................67

    Figura 18 Telas portteis de papel vegetal (ou caa-sombras) e tela de tecido. .....................................74

    Figura 19 Atores-animadores explorando a tela grande............................................................................75

    Figura 20 Tela grande e as possibilidades de deformao da sombra corporal. .......................................75

    Figura 21 A sombra de uma mo segurando um grampeador. .................................................................76

    Figura 22 Fontes luminosas (focos), lanterna e mesa de luz.......................................................................78

    Figura 23 Silhuetas confeccionadas nas oficinas ........................................................................................79

    Figura 24 Um cubo transparente explorado na cena. ................................................................................80

    Figura 25 Efeitos explorados com papel celofane nas silhuetas e lanternas. .............................................81

    Figura 26 Sombra corporal e perfil do rosto de uma das participantes. ...................................................81

    Figura 27 Silhueta articulada com o perfil de um dos participantes animada por varas na tela. .............82

    Figura 28 Cenas sobre a lenda do Boitat criada com objeto (copo) e silhueta.........................................83

    Figura 29 A sombra corporal e os focos luminosos como recurso de animao. .......................................91

    Figura 30 Silhueta de perfil de um dos participantes animada na tela (1,20m x 90 cm). ..........................92

    Figura 31 Sombra de um copo explorado na tela.......................................................................................94

    Figura 32 Parte do roteiro (desenhado) criado pelo Grupo 2. .................................................................106

    Figura 33 Cenas fotografadas e organizadas em forma de roteiro (de imagens).....................................107

    Figura 34 Cenas agrupadas no grupo 2 de acordo com os materiais.......................................................108

    Figura 35 - Cenas e materiais agrupados no grupo 1..................................................................................108

  • 11

    Figura 36 Cenas e materiais agrupados no grupo 1. ................................................................................109

    Figura 37 Processo de estudo do conto e criao coletiva do roteiro. ......................................................110

    Figura 38 Alguns objetos usados na criao das cenas. ...........................................................................114

    Figura 39 Efeitos criados na cena com um escorredor de macarro. ......................................................115

    Figura 40 Silhueta articulada com vara e o perfil reduzido de uma das participantes. ..........................116

    Figura 41 A Vendedora, os Compradores e cenrios com detalhes vazados. ..........................................117

    Figura 42 Silhuetas de dedo confeccionadas com papelo comum e retalhos de tecido. .........................117

    Figura 43 Silhueta do rosto de um dos participantes e o efeito criado na cena. ......................................118

    Figura 44 Animao de uma silhueta articulada com vara......................................................................118

    Figura 45 Silhueta articulada com vara e silhueta de dedo..................................................................119

    Figura 46 Silhueta de perfil sobreposta ao corpo do ator. .......................................................................119

    Figura 47 Silhuetas confeccionadas nas oficinas. .....................................................................................120

    Figura 48 Cena revelando o processo de criao e projeo das sombras...............................................121

    Figura 49 Revelando a animao das silhuetas. .......................................................................................121

    Figura 50 A casa da pequena Vendedora e a cidade. ...............................................................................122

    Figura 51 A Pequena Vendedora de fsforos. ..........................................................................................125

  • 12

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1: Distribuio das Vagas.................................................................................................................54

    Grfico 2 Conhecimento sobre o teatro de sombras. .................................................................................55

  • SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................. 14

    1 PRINCIPAIS ELEMENTOS DO TEATRO DE SOMBRAS...................................... 19

    1.1 O ATOR-ANIMADOR .......................................................................................... 27

    1.2 AS TELAS............................................................................................................. 30

    1.3 AS FONTES LUMINOSAS................................................................................... 35

    1.4 SILHUETAS, SOMBRAS E OBJETOS................................................................. 42

    1.5 CONSIDERAES SOBRE OS ELEMENTOS TCNICOS................................ 50

    2 AS OFICINAS ............................................................................................................... 53

    2.1 OS PROCEDIMENTOS DE TRABALHO............................................................. 61

    2.2 A PREPARAO DO AMBIENTE ...................................................................... 65

    2.3 JOGOS COM SOMBRAS...................................................................................... 69

    2.4 A (RE)DESCOBERTA DA SOMBRA................................................................... 71

    2.4.1 Explorando as telas........................................................................................ 74

    2.4.2 Luz, foco, ao!............................................................................................. 78

    2.4.3 Desenhar, recortar e confeccionar silhuetas ................................................... 79

    2.4.4 Experimentos e descobertas........................................................................... 82

    2.4.5 Enfim, a sombra!........................................................................................... 84

    2.5 A ANIMAO...................................................................................................... 89

    2.5.1 Alguns procedimentos para animar silhuetas e objetos................................... 92

    2.5.2 A atuao com sombras................................................................................. 96

    2.6 MATERIAIS DIDTICOS .................................................................................... 99

    3 O TRABALHO FINAL............................................................................................... 104

    3.1 O ROTEIRO ........................................................................................................ 106

    3.2 A CRIAO DAS CENAS ................................................................................. 112

    3.2.1 Os elementos sonoros.................................................................................. 122

    3.3 MONTAGEM E APRESENTAES.................................................................. 125

    CONSIDERAES FINAIS........................................................................................... 131

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA ................................................................................ 134

    ANEXOS .......................................................................................................................... 143

  • 14

    INTRODUO

    [...] os principais avanos do teatro ocidental foram conseqncia de processos que uniram investigao artstica e aprendizagem. (MARTINS, 2002, p. 241).

    Este estudo relata e analisa as atividades realizadas em oficinas de Teatro de Sombras

    desenvolvidas com educadores1 na cidade de Imbituba SC, no perodo de 04 de maio a 28

    de julho de 2010. Foram realizadas duas oficinas, envolvendo dois grupos de educadores, com

    encontros semanais de 4 horas de durao em cada grupo, durante 13 semanas. O grupo

    formado por professores, servidores tcnico-administrativos de escolas pblicas e merendeiras

    detinham, de modo geral, pouco conhecimento sobre essa arte. No entanto, seus integrantes

    demonstravam interesse por conhecer e experimentar essa forma de expresso artstica.

    O teatro de sombras uma arte milenar, historicamente ligado ao Oriente. uma

    manifestao que integra as tradies culturais e religiosas de diversos pases daquela regio.

    Para Fabrizio Montecchi (2005 p. 29), essa arte chega s sociedades ocidentais vidas por

    imagens em movimento, redescobrindo-se como espetculo e entretenimento. Portanto,

    trata-se de outro modo de praticar e compreender essa arte. Por isso, atualmente o teatro de

    sombras, muitas vezes, visto como teatro de imagens. No presente estudo, eventualmente,

    a expresso utilizada como equivalente a teatro de sombras.

    Para Ana Maria Amaral, o teatro de imagens um teatro que coloca em cena

    smbolos (2002, p. 123), ou seja, busca-se, antes de tudo, a emoo visual. (2002, p. 145-

    146). Teotnio Sobrinho (2005, p. 88), amplia essa discusso afirmando que teatro de

    imagens tambm chamado de teatro visual, e pode ser entendido como uma

    modalidade do teatro contemporneo.

    Essas concepes so, ao longo deste estudo, comparadas ao teatro de sombras j

    que os princpios tcnicos com os quais se trabalha em cada uma dessas modalidades esto

    muito prximos. No entanto, teatro de sombras visto aqui de modo mais complexo do que

    imagens em movimento, sobretudo porque, para esta pesquisa, a imagem deve dizer algo

    alm do seu prprio reflexo. (ARAJO, 2010, p. 1).

    1 Consideramos educadores todos os que fazem parte do contexto escolar, entre os quais, alm dos professores, diretores, secretrias, merendeiras, zeladores... De acordo com Paulo Freire (2000), urgente a necessidade da formao permanente desses profissionais para a qualidade da educao.

  • 15

    Optamos por denominar de experincia as atividades realizadas com esses dois

    grupos de educadores considerando a singularidade do envolvimento de cada participante ou

    rejeio de alguns envolvidos nas oficinas e, principalmente, pela peculiaridade dos relatos e

    depoimentos descritos por eles. Para Jorge Larrosa Bonda (2002, p. 21), a experincia pode

    ser definida como o que nos acontece, o que nos toca. [...] A cada dia se passam muitas

    coisas, porm, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Assim, no mundo catico em que

    vivemos, a experincia poderia nos auxiliar a estabelecer relaes significativas entre os

    indivduos, as coisas e o mundo.

    O teatro de sombras, tradicionalmente artesanal, pode causar estranheza e ser

    desafiador diante dos atuais meios tecnolgicos de comunicao de massa. De acordo com

    Martha DAngelo (2006, p. 35), a rapidez das mudanas nas sociedades industrializadas e o

    tempo acelerado da vida moderna impuseram uma nova dinmica ao corpo e ao

    pensamento. Walter Benjamim2 (1892-1940) relaciona essas caractersticas culturais

    pobreza da experincia do homem moderno, pois Cada manh recebemos notcias de todo o

    mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. (1986, p. 203). No

    contexto em que vivemos, considero fundamental que as prticas contemplem o estudo e a

    reflexo para que as experincias possam adquirir outros significados e sentidos.

    Fazer teatro de sombras hoje um desafio por se tratar de uma arte que, alm de

    pouco praticada, exige outro modo de olhar o que nos cerca. A sombra traz consigo uma srie

    de significados, comumente atribudos ao desconhecido, ao lado negativo e ao inconsciente.

    Para os que convivem com essa arte, as sombras, que outrora passavam despercebidas, se

    destacam, sugerem novos sentidos, comeam a figurar outra realidade. Praticar essa arte pode

    ser fundamental para aqueles que desejam estar diante de uma nova situao e assim

    encontrar sentido para ela. Essa condio fundamental ao ato de pensar que, segundo John

    Dewey3 (1859-1952), agregado uma dimenso de investigao, de no conformidade com a

    situao apresentada. Isso parte daquilo que o autor nomeia de experincia no seu carter

    emancipatrio e educativo (1959a).

    2 De acordo com Andria Meinerz (2008, p. 10), Walter Benjamin considerado um importante pensador do sculo XX no mbito da filosofia, da crtica literria, da teoria da cultura e da comunicao. Sua obra polifactica, perpassada por uma anlise crtica da cultura, da histria e da poltica. Transpassando livremente as fronteiras das disciplinas, Benjamim vai criar uma imagem da Era Moderna fazendo a interao entre filosofia, literatura, cinema, arquitetura, fotografia, psicanlise, desenvolvimento tcnico e social campos sobre os quais fez importantes reflexes em sua inextricvel correlao. 3 John Dewey reconhecido como um dos fundadores da escola filosfica de Pragmatismo (juntamente com Charles Sanders Peirce e William James), um pioneiro em psicologia funcional, e representante principal do movimento da educao progressiva norte-americana durante a primeira metade do sculo XX.

  • 16

    Ainda de acordo com Dewey (1971, 1978), todo sujeito resultante das experincias

    que constri. De forma intencional ou no, o acontecimento da mesma faz parte do

    desenvolvimento do indivduo, auxilia-o a construir conhecimento e a movimentar-se no meio

    em que vive. na interao com o meio social, com outros objetos e indivduos, que ele

    consegue estabelecer relaes e situaes de construo de conhecimento. E esse tem, assim,

    a finalidade de produzir sentido para a experincia.

    A interao entre homem, ambiente, situao e materiais (ferramentas) faz com que

    esses se modifiquem reciprocamente, surgindo a experincia. Assim, experincia a

    continua interao do homem com o ambiente, por meio do qual ele cresce e ao mesmo tempo

    modifica a prpria natureza. (SCHMITZ, 1980, p. 24). Nesse sentido, essas ideias se

    relacionam tessitura deste trabalho, s experincias que vivi e s novas significaes que

    surgem no ato da escrita e da reflexo, na expectativa de dialogar com o leitor, uma vez que,

    Receber a comunicao adquirir experincia mais ampla e mais variada. Participa-se assim do que outrem participou ou sentiu e, como resultado, se modificar um pouco ou muito a prpria atitude. E deste feito no fica tambm imune aquele que comunica. Tentai comunicar plena e cuidadosamente a outra pessoa a vossa experincia pessoal, principalmente se tratando de algo complicado, que notareis mudar-se vossa prpria atitude para com a referida experincia. (DEWEY, 1959b, p. 5-6).

    Ideias de John Dewey me levaram a compreender os significados da experincia,

    relacionando-as prtica do teatro de sombras como uma forma de conhecer mais a arte

    teatral. Comunicar o que se experimentou e se viveu pode ser compreendido como um

    processo de reconstruo e reorganizao da experincia como forma de auxiliar a lidar com

    nossas experincias futuras. Assim, a contnua organizao e reconstruo dos conhecimentos

    construdos e compartilhados tem por fim melhorar o que se viver futuramente.

    A metodologia utilizada na pesquisa pode ser identificada como qualitativa, apoiada

    em princpios da Pesquisa-ao. De acordo com Ren Barbier (2002), a pesquisa-ao

    acontece em funo de uma abordagem em que h mudana e reflexo permanente sobre a

    prtica, na qual o pesquisador se torna membro do grupo caso j no estava com ele

    envolvido desde o incio de suas atividades.

    Este tipo de metodologia de pesquisa tambm se caracteriza pelo envolvimento

    cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2006, p. 16) do pesquisador e do grupo em

    solucionar algum problema/questo atravs de aes.

    Estes dois aspectos, cooperao e participao, marcaram a experincia realizada,

    contribuindo para a soluo de problemas surgidos no decorrer dos trabalhos e principalmente

  • 17

    na superao de lacunas e desinformao sobre a linguagem do Teatro de Sombras. Ao

    mesmo tempo, vale destacar, que a metodologia utilizada estimulou e exigiu o dilogo entre

    teoria e prtica, num permanente movimento entre criar, fazer, experimentar, refletir, praticar

    e estudar.

    Os dados foram coletados atravs da observao, das anotaes no dirio de campo

    e dos protocolos escritos pelos participantes:

    os dados contidos no dirio e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo investigador; o que equivale dizer que a memria constitui provavelmente o elemento mais rico na elaborao de um texto, contendo ela mesma a massa de dados cuja significao mais bem alcanvel quando o pesquisador a traz de volta do passado tornando-a presente no ato de escrever. (OLIVEIRA, 1996, p. 31).

    Os dados coletados nas oficinas foram posteriormente acrescidos de maiores detalhes e

    complementados com os depoimentos dos participantes, com o objetivo de ampliar e

    confrontar as informaes recolhidas. Mesmo com a autorizao dos participantes para

    divulgar seus nomes, optamos por utilizar apenas as suas iniciais como AS, CR, FP, para

    identificar os depoimentos coletados e as impresses relatadas.

    Outro importante recurso utilizado foi a fotografia4 que, nesta pesquisa, ultrapassa a

    funo ilustrativa, medida que contextualiza e revela detalhes do trabalho, oferecendo ao

    leitor maior compreenso dos diversos elementos tcnicos utilizados, bem como, imagens de

    experimentaes e resultados obtidos nas cenas criadas pelos participantes.

    O presente estudo foi organizado em trs captulos indissociveis:

    No primeiro so apresentados os elementos tcnicos sobre o teatro de sombras. O que

    teatro de sombras? Quais os principais elementos para a prtica dessa arte? (ator-animador,

    telas, fontes luminosas, silhuetas). possvel definir onde se originou? O objetivo

    apresentar os aspectos tcnicos e histricos sobre essa arte elementos indispensveis para a

    compreenso do trabalho.

    O segundo captulo dedicado descrio e anlise das oficinas. Nele, so

    apresentados onde e como elas foram realizadas, o perfil dos participantes e a forma como foi

    preparada e se iniciou os trabalhos prticos. No decorrer do captulo so apresentadas as

    impresses dos participantes sobre a (re)descoberta da sombra, princpios de animao no

    teatro de sombras e os materiais didticos usados.

    4 As fotos apresentadas no segundo e terceiro captulos foram tiradas pelo prprio pesquisador e tambm pelos participantes durante a realizao das oficinas.

  • 18

    Usamos o termo (re)descoberta no sentido de que os participantes j conheciam a

    sombra e de alguma forma o teatro de sombras. A ideia de (re)descoberta utilizada no

    sentido de descobrir e redescobrir s sombras para a prtica teatral. O termo busca ver e

    perceber as sombras de outro modo. A sombra todo ser humano conhece, v, porm, olhar

    para as sombras do prprio corpo, dos objetos, da natureza e observar suas formas, mudanas

    e transformaes supera o ato de apreciar para se passar a entend-las como elemento

    artstico. (Re)descobrir a sombra para a arte do teatro implica em conhecer suas

    possibilidades tcnicas, expressivas e filosficas. Exige conhec-la como linguagem cnica.

    No terceiro captulo so apresentados e analisados os procedimentos de criao das

    cenas com sombras, o roteiro, a montagem e a apresentao do trabalho final. Outros

    elementos, como dramaturgia no teatro de sombras e a relao com os espectadores, tambm

    so apresentados.

    E por fim apresentamos algumas consideraes sobre a pesquisa, destacando aspectos

    relacionados prtica do teatro de sombras experincia. Complementamos a pesquisa

    disponibilizando, no anexo, a relao e descrio dos principais jogos com sombras

    realizados.

  • 19

    1 PRINCIPAIS ELEMENTOS DO TEATRO DE SOMBRAS

    [...] a histria europia do teatro de sombras feita de pesquisas sobre ptica, lanternas mgicas e teatros das maravilhas. (MONTECHHI, 2007, p. 67).

    Pela interposio ou presena de um corpo opaco entre a luz e uma superfcie surge a

    sombra e tambm o princpio do teatro de sombras. Para o diretor Jean Pierre Lescot (2005,

    p. 14), Da projeo da luz (prpria da linguagem onrica) misturada matria nasce o teatro

    de sombras. A linguagem dos sonhos, a natureza flutuante: eis os elementos fundamentais

    dessa arte. Com a animao das silhuetas e objetos, ou corpo, realizada pela atuao do ator-

    animador, entre a fonte luminosa e a tela, surgem imagens em movimento, que evoluem, se

    deformam, ocultam e revelam atravs de vrios efeitos um mundo onrico, mgico. a

    imaterialidade da sombra que lhe d esse carter mgico (LESCOT, 2005, p. 9).

    De acordo com a diretora Ana Maria Amaral (2005, p. 17),

    os elementos usados no teatro de animao, bonecos, objetos, mscaras, no so vivos em si, mas transmitem vida ao serem animados. Est implcito a o mistrio: Vida e Morte. Por isso, se diz que no teatro de animao existe magia, pois magia surge quando acontece a ligao entre duas realidades opostas. A magia do teatro de animao se deve ao fato de ele suscitar outros significados que no os do quotidiano, no o usual. [...] O contraste entre animado/inanimado, matria/esprito, quando bem entrosados, constitui o fascnio dessa arte.

    No teatro de sombras, essas ideias podem ser compreendidas ao observarmos um

    objeto, como um grampeador de papel se transformar em jacar atravs da sua sombra

    animada na tela, tornando-se assim personagem revelando o sentido mgico e potico dessa

    arte.

    Segundo Meher Contractor (1982, p. 61), o teatro de sombras se confunde com o

    prprio surgimento da civilizao. A mesma ideia compartilhada pela pesquisadora Maryse

    Badiou (2005, p. 21), que afirma que a marionete e a sombra, presentes desde a origem da

    humanidade em todas as culturas, participam dos acontecimentos mais importante da

    coletividade, nos rituais, nas cerimnias religiosas e nas festas tradicionais. sem dvida a

    memria da condio humana em todas as suas expresses.

  • 20

    O que se observa que o teatro de sombras Oriental se fundamenta nas relaes com

    o sagrado e o mstico, enquanto no Ocidente, a partir do sculo XIX, se transforma em um

    teatro das maravilhas, ou seja, pautado em imagens espetaculares e no entretenimento.

    difcil eleger ou precisar um marco cronolgico para o nascimento do teatro de

    sombras. No entanto, analisando suas origens, possvel identific-lo como uma das

    primeiras formas de se criar e projetar imagens em movimento. De certa forma, a

    especificidade em projetar imagem na tela o aproxima do cinema. Essa uma questo que

    intriga e estimula muitos grupos e pesquisadores a debruarem-se sobre estudos e prticas que

    buscam compreender seus significados e sentidos.

    O teatro de sombras uma manifestao artstica popular em vrios pases do continente

    asitico. Mesmo que seja difcil precisar o seu surgimento, existem, porm, silhuetas5 datadas

    de 2.300 e 3.000 anos atrs no Oriente.

    Figura 1 Silhuetas do teatro de sombras chins.

    Fonte: Acesso em 27 fev. 2011.

    No h informaes precisas que comprovem exatamente a origem desta arte milenar, j

    que existem poucas fontes.

    Qual surgiu primeiro, o teatro de sombras indiano ou o chins? Essa ainda uma questo controvertida, na medida em que existem to poucas fontes. [...] O imprio Central chins, por outro lado, reivindica, numa de suas mais belas e melanclicas lendas, que a conjurao dos espritos sobre a tela de linho seja sua inveno particular. (BERTHOLD, 2008, p. 38).

    5 Silhuetas so figuras recortadas tradicionalmente em couro ou outros materiais, representando imagens figurativas. As silhuetas, que podem ser compostas de uma nica pea ou articuladas. Elas so animadas atravs de hastes e/ou fios atrs da tela para os espectadores. Existem diferentes formas de se confeccionar uma silhueta, assim como existem diversos mecanismos e tcnicas para a sua confeco e para a sua animao.

  • 21

    Na China, o aparecimento dessa arte retoma ao perodo do imperador Wu-ti, assim

    como conta a lenda:

    Um homem chamado Shao Wong, do estado de Tsi, veio diante do imperador Wu-ti em 121 a.C. para exibir sua habilidade em comunicar-se com os fantasmas e espritos dos mortos. A consorte favorita do imperador Wang, havia acabado de morrer. Com o auxlio de sua arte, Shao Wong fez com que as imagens dos mortos e do deus dos lares aparecessem noite. O imperador a viu a uma certa distncia, atrs de uma cortina... [...] O teatro de sombras, entretanto o qual, de alguma forma, Shao Wong parece ter usado permaneceu uma forma favorita do teatro chins. (BERTHOLD, 2008, p. 55).

    Essa lenda ainda no diminui as controvrsias existentes entre os pesquisadores quanto

    origem dessa arte, no entanto, revela a relao com a religiosidade, a magia e

    principalmente com o mundo dos mortos.

    A evocao dos espritos dos mortos, na poca do imperador Wu-ti, reflete-se na

    terminologia do teatro chins, onde os dois lados da tela (de entrada e sada) direita e

    esquerda do palco por onde passam as silhuetas so conhecidas como as portas das

    sombras ou portas das almas (BERTHOLD, 2008, p. 58), conforme imagem abaixo.

    Figura 2 - Silhuetas, tela e ator-animador no teatro de sombras chins.

    Fonte: < http://www.theatredelalanterne.net/theatre.html > Acesso em 27 fev. 2011. Fonte: Acesso em 27 fev. 2011.

    De acordo com Jean Pierre Lescot (2005, p. 10), no teatro de sombras Balins, a

    sombra tambm tem o poder de estabelecer relaes entre homens e divindades, transitando

    entre o reino dos vivos e dos mortos assim como na lenda do primeiro espetculo de

    sombras para o imperador chins e sua consorte falecida.

  • 22

    O teatro de sombras na Indonsia (Ilha de Java), ou Wayang, pertence s cerimnias

    religiosas e aos rituais que celebram passagens extradas de epopias como o Mahabharata6 e

    o Ramayana que contam a origem e a histria da Humanidade.

    Figura 3 - Wayang Kulit: silhuetas do teatro de sombras na Indonsia.

    Fonte: Acervo pessoal Valmor Beltrame.

    As personagens, conhecidas do povo que v e participa desta cerimnia, tm

    caractersticas que fogem dos traos figurativos. Os efeitos de deformao, ampliao e

    diminuio das sombras atravs de silhuetas coloridas, conseguidos com a iluminao base

    de lamparinas, contribuem para a produo de um teatro com imagens que remetem ao irreal e

    ao fantstico.

    Alm destas caractersticas, podemos perceber a presena de outros elementos, como o

    uso de sons extrados de instrumentos artesanais. A soma destes elementos compe um teatro

    com caractersticas onricas e poticas.

    Segundo Margot Berthold (2008), antes de Cristo, chineses e indianos praticavam o

    teatro de sombras em rituais religiosos, recitando poemas picos com msica e silhuetas feitas

    de couro com sustentao de varas de bambu, animadas diante da tela iluminada com

    6 Segundo Bernard (1982), o Ramayana e o Mahabharata, so os dois grandes textos sagrados da ndia do incio de nossa era. Foram traduzidos em javans no sculo X. A partir dessas tradues, foram escritas cento e oitenta pakens principais livros que fornecem a narrativa de uma representao e tambm indicaes de cenas e acompanhamentos musicais. Os heris dessas epopias, Rama (no Ramayana) e, seis geraes mais tarde, os primos Arjuna e Kresna (Mahabharata), so a reencarnao do deus Visnu. So tantos heris e tantos acontecimentos que no podemos resumir todos os textos. O Mahabharata considerado o maior poema snscrito de todos os tempos. Rene cerca de 100 mil estrofes divididas em 18 sees, equivalentes a 15 bblias.

  • 23

    lamparinas a leo. Mesmo assim, sua origem ainda uma questo controvertida, na medida

    em que existem to poucas fontes.

    A reivindicao da primazia hindu sustentada pela evidncia de um teatro de sombras j na caverna de Sitabenga e pelo fato de que a influncia cultural do teatro de sombras espalhou-se atravs do Extremo Oriente. muito possvel que ela tenha seguido o avano do budismo atravs da sia Central, ou da Indochina para a China. (BERTHOLD, 2008, p. 38).

    Alm da reconhecida presena dessa arte na China e na ndia, possvel destacar, de

    acordo com Beltrame (2005), que essa manifestao artstica tambm presente na Ilha de

    Java, na Indonsia, Tailndia, Taiwan, aparecendo na sia Menor e na Turquia. Na Grcia ,

    ainda hoje, importante manifestao popular.

    Na frica mediterrnea tambm existem amplos registros dessa arte, chegando a partir

    do sculo XVIII e XIX na Europa ocidental e Amrica. Contudo, o teatro de sombras

    assumiu distintas caractersticas de acordo com as prticas culturais de cada pas.

    Annie Bernard (1982, p. 69) destaca um trecho do poema escrito por Empu Kanwa7,

    onde o poeta ressalta que:

    Estas marionetes recortadas e coloridas, que agitamos e fazemos falar, so como os homens, que seguem cegamente suas paixes sem compreender que de fato, tudo no seno um jogo, num mundo sem valor.

    Esse poema do sculo X, em Java, atesta o quanto antigo o teatro de sombras,

    revelando que suas origens esto enraizadas nas expresses artsticas populares em diversas

    regies do continente asitico.

    Podemos destacar tambm o teatro de Karagz na Turquia e Grcia, que se

    popularizou no final do sculo XIX, sendo at hoje praticado em algumas partes da Europa e

    frica Mediterrnea.

    7 Poeta que escreveu uma das grandes obras literrias de Java intitulada de Kakawin Arjunawiwaha, escrito no reinado de D. Airlangga, entre os anos 1028-1035.

  • 24

    Figura 4 - Os dois personagens principais do teatro de sombras Turco: Karagz e Hadjeivat.

    Fonte: < http://1.bp.blogspot.com/_Z2Mlf_q3fv0/S-6n40MBThI/AAAAAAAACCQ/a5xyM5w3PNk/s1600> Acesso em 18 mar. 2011.

    Segundo Berthold (2008, p. 26), h referncias histricas do teatro de sombras turco,

    conforme imagem destacada acima, j no sculo XIV, na poca em que a grande mesquita de

    Bursa estava sendo erguida;

    Seus duelos verbais vivos e grotescos paralisaram as obras de construo da mesquita. Em vez de trabalhar, os pedreiros punham seus instrumentos de lado e ouviam os longos divertidos discursos de Karagz e Hadjeivat. O sulto soube de suas faanhas e ordenou que os ambos fossem enforcados. Mais tarde, quando reprovava amargamente a si mesmo por isso, um dos corteses do sulto teve a idia de trazer Karagz e Hadjeivat novamente a vida na forma de figuras de couro brilhante coloridas e translcidas e sombras numa tela de linho. (2008, p. 26).

    Assim como no teatro de sombras chins, h uma srie de lendas que circundam a

    origem do teatro de Karagz. No entanto, possvel encontr-lo em outros pases

    muulmanos, como Sria, Egito, Iran, Arglia e Tunsia.

    Karagz o heri do teatro de sombras turco e rabe e d nome ao espetculo de

    sombras (BERTHOLD, 2008, p. 27). Sua principal caracterstica a predominncia da

    tradio oral e a improvisao sobre uma narrativa conhecida pelo pblico.

    O espetculo aborda temas do dia a dia das pessoas, como a amizade, a justia, o vcio,

    a castidade, a violncia e a obscenidade. Esta ltima explorada principalmente no

    personagem do Karagz, a figura central de toda a histria. A apresentao entrecortada por

    outras cenas curtas, que so usadas para apresentar as qualidades e os dotes do personagem

    Karagz que descrito como barrigudo, corcunda e calvo. tambm trapalho, egosta,

    hipcrita, libidinoso e vive mentindo e enganando.

  • 25

    De acordo com Metin And (2005, p. 32), o teatro Karagz destinado a um pblico

    diversificado, cada um trazendo seu prprio sentido da arte, e as apresentaes podem ser

    vistas durante todo o ano pelas cidades, mas so intensificadas, principalmente, em eventos

    como casamentos e circunciso.

    No entanto, o grande momento de Karagz chega com o incio do Ramad, o ms

    sagrado do jejum. Por no serem facilmente descritos como imagens figurativas de seres

    humanos, Karagz pode dar a volta na proibio do Alcoro e chegar aos dias de hoje ainda

    com seu humor grotesco (BERTHOLD, 2008, p. 28).

    Historicamente possvel destacar a existncia de duas grandes tendncias no teatro

    de sombras: uma ligada religiosidade e outra profana. O teatro de sombras na China,

    Turquia e Grcia possui um carter de divertimento, j na ndia e Java prepondera o sentido

    religioso e sagrado. Uma das caractersticas que permeia ambas as prticas a relao entre

    atores-animadores e espectadores atravs das sombras na tela comunicao essencial ao

    fazer teatral.

    De acordo com Montecchi (2005, 2007), atualmente a tradio ligada mais

    religiosidade e ao ritual vem se perdendo no teatro de sombras oriental, j que, com a

    modernizao, os espetculos visam o entretenimento. Mesmo que algumas das caractersticas

    originais sejam preservadas em meio aos avanos tecnolgicos, possvel registrar o seu

    gradativo desaparecimento. A mesma ideia compartilhada por Roger Long (1986, p. 106)

    sobre a tradio e modernidade no teatro de sombras javans, uma vez que as vantagens das

    conquistas tecnolgicas fizeram alguns aspectos originais do Wayang serem perdidos ou

    diminudos ressignicando as tradies diante das transformaes ocorridas.

    Em outros pases, como na China, em 2006, foram recuperadas mais de 60 mil

    relquias do teatro de marionetes e sombras, uma iniciativa do departamento encarregado do

    patrimnio cultural chins. De acordo com a Embaixada da Repblica Popular da China no

    Brasil8, especialistas assinalaram que algumas das silhuetas so extremamente raras e que

    podem pertencer Dinastia Ming (1368 1644).

    De acordo com a representao diplomtica chinesa (2006, 26, 13),

    Esta antiga arte tradicional perdeu sua popularidade devido enorme sombra projetada pelo cinema e televiso. Muitas companhias de teatro de sombras foram dissolvidas e muitos dos artistas mais talentosos morreram sem deixar aprendizes. Em muitas reas, esta arte e suas histrias quase desapareceram.

    8 Fonte: Acesso em 18 jan. 2011.

  • 26

    As silhuetas de couro e as ferramentas para sua fabricao sero guardadas em um

    museu para a preservao da histria do teatro de marionetes e de sombras.

    Na ndia, a partir da dcada de 1950, surgiram iniciativas de criao de escolas de

    artes performticas, destacando-se o Instituto Darpana9 em Ahmedabad, dirigido por Meher

    Contractor (1918 - 1992). Mais recentemente, as escolas pblicas de certas regies incluram

    em seus currculos o aprendizado do teatro de marionetes indiano, onde os jovens passaram a

    aprender o ofcio com reconhecidos mestres dessa arte com o objetivo de incentivar a

    prtica do teatro de sombras.

    O teatro de sombras passou por profundas transformaes ao inserir no espetculo a

    iluminao eltrica, msicas previamente gravadas e reproduzidas por equipamentos

    eletrnicos, o uso de microfone para projeo da voz e at transmisses radiofnicas e

    televisivas, atingindo um maior nmero de pessoas e estabelecendo outra forma de relao

    com o pblico.

    De acordo com Roger Long (1986), a iluminao que era tradicionalmente feita com a

    queima de leo de coco, passou a ser substituda por lmpadas florescentes. As lamparinas

    interferiam positivamente na projeo das sombras, j que as imagens tremulavam e

    danavam de acordo com as chamas dando a impresso de que as silhuetas se moviam e

    respiravam quando estavam paradas diante da tela.

    Outro elemento que perdeu seu espao foi a presena dos msicos que tocavam ao

    vivo durante as encenaes. Com a modernizao, os custos para essas produes foram

    reduzidos, o que levou os grupos a gravarem as msicas. At o uso da voz foi influenciado

    pelo advento dos microfones. Os efeitos de sons tradicionais so cuidadosamente editados e

    mixados com a msica para estimular a performance. (HUMPHREY, 1986, p. 89) Com isso,

    o tempo e o ritmo do espetculo se alteram em funo da msica gravada, sob a qual o mestre

    orienta o espetculo.

    O teatro de sombras, em alguns lugares como na China, apesar do incentivo de

    algumas instituies para preservarem essa arte, se depara com esses mtodos vindos do

    9 O Instituto Darpana (espelho) de Performance, Artes e Estudos Culturais uma reconhecida instituio educacional sem fins lucrativos, reconhecida pelo Governo da ndia desde 1950. DIPAC, como conhecido, tem sido um centro de excelncia no domnio das artes do espetculo, trabalhado com instituies, artistas e empresas em todo o mundo usando as artes como forma de inovao e mudana social. Em linhas gerais, o Instituto busca quebrar as fronteiras entre tradio e a tecnologia nas artes, envolvendo a prtica artstica, a formao de artistas e as relaes entre arte e vida. Seus parceiros incluem a UNESCO, UNICEF, a Fundao Ford, entre outros. Outras informaes podem ser obtidas no endereo: http://www.dipac.edu.in/.

  • 27

    Ocidente que, de certa forma, pe em risco sua originalidade e seu charme (BALBIR, 2003,

    p. 63).

    Se o teatro de sombras se mantm vivo entre as atuais formas tecnolgicas de exibio

    de imagens em movimento porque existe, em sua especificidade, algo que a mquina ainda

    no capaz de suprir o encontro entre ator-animador e espectador. Em sua atuao o ator

    no ignora a importncia dos elementos tcnicos como a luz, a tela, e as silhuetas, que

    acompanharam, de certa forma, os avanos tecnolgicos e a renovao dessa arte teatral.

    Analisar esses elementos primeiramente uma forma de tentar entender os

    significados dessa arte no decorrer dos sculos, e principalmente, suas possibilidades

    expressivas e artsticas nos dias de hoje.

    Aliar o conhecimento terico sobre o teatro de sombra prtica e reflexo um dos

    caminhos para contextualizar atualmente essa arte.

    1.1 O ATOR-ANIMADOR

    De acordo com Domingo Castillo10 (2004, p. 70), no teatro de sombras o ator-animador

    ou marionetista , simultaneamente, criador e espectador das sombras que projeta, seja com as

    silhuetas e objetos que anima, ou com o corpo. A sombra na tela a sua referncia, isso lhe

    permite controlar o efeito desejado, verificando as particularidades de cada um dos

    movimentos realizados na busca do carter expressivo da sombra. Essa prtica alm de

    observao e preciso requer estudo e treino.

    Figura 5 Ator-animador no teatro de sombras chins e indiano.

    Fonte: e Acesso em 06 nov. 2008.

  • 28

    No teatro de sombras chins, o ator-animador valorizado por sua capacidade e

    destreza na manipulao das silhuetas, tornando-se virtuoso na medida em que reproduz

    movimentos capazes de se assemelharem ao dos animais e seres humanos representados

    (2005, p. 42-43). Tradicionalmente, o ator-animador iniciava seu aprendizado ainda criana,

    por volta dos quatro anos de idade, obedecendo execuo de rigorosos exerccios para

    dominar a animao das silhuetas. A formao se dava por tradio, na medida em que o

    Mestre (que guardava os mistrios dessa arte) desvendava os segredos da profisso ao

    aprendiz, at esse atingir maturidade para iniciar seu prprio trabalho.

    Os princpios mais importantes nessa etapa da formao do ator-animador eram:

    conhecer a dramaturgia, aprender a confeccionar as silhuetas e ser exmio animador

    necessitando de longo perodo de aprendizagem, exigindo a realizao de exerccios fsicos

    dirios, sobretudo dos dedos, pulsos e braos.

    Figura 6 Silhuetas animadas com varas no teatro de sombras chins.

    Fonte: Acervo pessoal Valmor Beltrame.11

    Um dos grandes desafios no teatro de sombras chins est na animao, conforme

    imagem apresentada acima, j que preciso habilidade para manipular, simultaneamente,

    inmeras varas (e s vezes fios) de sustentao presas em partes estratgicas das silhuetas.

    A preservao do teatro de sombras est relacionada difuso do seu conhecimento e

    suas tradies. O que aprendido sobre as tradies do teatro de sombras oriental pode ser

    compreendido como tcnicas codificadas de longa durao. Para Eugenio Barba (1995, p.

    10 A traduo de alguns trechos do artigo de Domingo Castillo foram realizados apenas para estudo. 11 Fotos do estgio do Professor Dr. Valmor Beltrame sobre teatro de sombras realizado em Charleville-Mzires (Frana), no perodo de junho a outubro de 1982. Fotgrafo: Franois Petit.

  • 29

    19), essas prticas artsticas vo construindo um acervo de procedimentos e concepes

    incorporados por mestres do ofcio, e constituem o que pode ser chamado de um conjunto de

    bons conselhos ao qual o artista, no olhar sobre a cena, recorre e faz uso.

    De acordo com Eugnio Barba, em diferentes lugares e pocas, as prticas teatrais,

    apesar das formas estilsticas especficas s suas tradies, tem compartilhado princpios comuns. [...] Eles no so provas da existncia de uma cincia do teatro, nem de umas poucas leis universais. Eles no so nada mais que particularmente um conjunto de bons conselhos, informaes teis para a prtica cnica. Falar de um conjunto de bons conselhos parece indicar algo de pequeno valor quando comparado expresso antropologia teatral. Mas campos inteiros de estudo retricos e morais, por exemplo, ou estudo do comportamento so igualmente conjunto de bons conselhos. (1995, p. 8).

    A Antropologia Teatral, segundo Eugenio Barba e Nicola Savarese (1995), procura

    identificar aspectos tcnicos do trabalho do ator em cena, e que se repetem nas diversas

    tradies culturais. Esses elementos que, a princpios no variam, constituem um conjunto de

    bons conselhos, influenciando o trabalho de artistas que buscam a expressividade do ator na

    cena e tambm uma compreenso mais aprofundada sobre as prticas teatrais.

    No tradicional teatro de sombras indiano, os atores-animadores, tambm conhecidos

    como marionetistas, pertenciam a castas nmades ou Brahmins. A formao tambm se dava

    por tradio eles aprendiam com o Mestre, o Sutradher, que revelava, aos poucos, os

    segredos aos aprendizes.

    O ator, no teatro de sombras indiano, precisava conhecer e aprender a dramaturgia

    extrada de epopias religiosas, animar as silhuetas, tocar instrumentos, cantar e recitar. So

    ao mesmo tempo cantores, animadores e confeccionadores das silhuetas.

    De acordo com Contractor (1982), os marionetistas eram acompanhados por uma

    orquestra composta por diversos instrumentos tradicionais e caractersticos da regio j que,

    nesse tipo de teatro, a msica tem um papel importante na criao do clima apropriado para a

    participao do pblico no espetculo.

    No teatro de sombras indiano, era considerado um bom marionetista aquele que, alm

    de manter a ateno do pblico, soubesse provocar sensaes e reaes nos espectadores.

    O ator-animador, o Mestre, tem posio privilegiada em todas as culturas orientais onde existe o teatro de sombras. Em Java e ndia, principalmente, este artista a sntese da conscincia coletiva. Ele capta os desejos dos espectadores, canaliza suas vontades e exalta os desejos comuns. (BELTRAME, 2005, p. ).

  • 30

    Analisando a figura do ator-animador no teatro de sombras, possvel destacar que

    seu trabalho de criao e atuao vai alm da movimentao das silhuetas animadas entre a

    tela e a fonte luminosa.

    Atualmente , conforme Castillo (2004, p. 72), possvel observar a busca, por parte

    das companhias de teatro de sombras, em compreender esse processo de comunicao com o

    pblico, ressaltando o carter teatral dos espetculos de sombras. O espectador deve ser

    consciente de que aquilo que presencia produzido no mesmo instante em que acontece,

    atravs da presena do animador que anima as sombras. No teatro de sombras, o corpo

    importante instrumento de trabalho do ator-animador, pelo qual ele atua e domina as

    tcnicas de animao, realiza a confeco das silhuetas, das telas e fontes luminosas, tendo,

    como base, o conhecimento da expressividade de cada material (por interferirem na

    construo do espetculo).

    Na prtica, mesmo que o foco em cena esteja na silhueta ou na sombra do objeto

    animado na tela, o ator que articula o trabalho com as sombras. De acordo com Xavier

    Fbregas (2003, p. 37), mesmo que a presena invisvel do animador no teatro de sombras

    seja uma das caractersticas desse gnero dramtico, nada impede que ele atue atravs da

    silhueta-objeto, utilizando para isso o seu corpo, em conjunto com os demais recursos

    expressivos dessa arte.

    De acordo com Renato Ferracini, poderamos considerar a ideia de nem representar,

    nem interpretar no teatro de sombras, e sim atuar, uma vez que A atuao no interpreta

    nada, no representa nada, simplesmente age. (2010, p. 331). O ator-animador, em contato

    com os diferentes materiais e elementos, passa a agir, ou seja, atua com o seu corpo na relao

    com as silhuetas-objetos, focos luminosos e telas

    O teatro de sombras no se limita animao de silhuetas-objetos, a sombra corprea

    oferece outros recursos expressivos. Portanto, qualquer interesse, seja o de modernizar ou

    perpetuar essa arte, deve considerar a formao relacionada ao ator-animador.

    1.2 AS TELAS

    A tela pode ser definida como uma superfcie plana ou no, onde seja possvel projetar

    e explorar as sombras. Ela indispensvel para a materializao das sombras enquanto

    elemento expressivo e visual.

  • 31

    De acordo com Beltrame (s/d, p. 2), o espectador no teatro de sombras ocidental tem

    dificuldades para aceitar as convenes desta linguagem e, por isso, a tela serve como

    instrumento de separao, colaborando para a fixao do olhar do espectador na tela. As

    telas assumiram diferentes tamanhos e significados atravs da histria; sua funo vai alm de

    um aparato tcnico para capturar as sombras projetadas e separar o ator-animador do pblico.

    No teatro de sombras, de um lado da tela se encontra o ator-animador, que recebe a luz

    detrs e projeta a sombra das silhuetas-objetos-corpo que anima. Do outro lado, o espectador

    assiste ao espetculo. Segundo Castillo (2004, p. 55), atravs desta frgil parede de

    separao, se busca o encontro, a comunicao entre ator-animador e espectador por meio

    das imagens e as sensaes que essas provocam.

    No teatro de Karagz, as sombras abriam descaradamente caminho atravs da tela

    de pano, para o corao do seu pblico (BERTHOLD, 2008, p. 19). Podemos considerar a

    tela como uma ponte que une o mundo onrico e o mundo real, lugar no qual o ator-animador

    atua e se revela. Para Pimpaneau (1982, p. 142), o teatro de sombras, onde a tela se destaca no

    espao escuro, faz pensar nas vises que nos trazem os sonhos. A tela, portanto, representa

    o universo, revelando o carter onrico que as sombras proporcionam a essa arte.

    A sombra de uma silhueta, corpo ou objeto projetada altera-se inevitavelmente,

    sugerindo diferentes significados para uma mesma imagem criada na tela. Assim, de acordo

    com Castillo (2004, p. 55), a tela pode ser definida como o suporte destinado a receber as

    sombras. Nos pases rabes a chamam de tecido dos sonhos. A sombra na tela, com sua

    imaterialidade, se transforma em imagens fantsticas e poticas.

    Para o diretor de teatro Luc Amoros (1986, p. 4), a tela no uma fronteira, , ao

    contrrio, uma ponte entre o espectador e o animador o lugar de confronto de nossas

    prprias projees. Segundo Xavier Fbregas, na tela que se d a comunicao entre o ator-

    animador e o espectador:

    No teatro de sombras ocidental, a tela separa o animador de seu pblico, mas no oriental ao contrrio, o espectador pode, dependendo do seu gosto, passar alternativamente de um lado ao outro da tela. No teatro oriental, possvel criar a iluso a partir da simbiose: homem e objeto. O animador no visto como um estranho que se introduz num mundo imaginrio, mas como algum que est a servio deste mundo e oficializa a cerimnia de sua apario. (1986, p. 288).

    Reconhecer que na tela que se estabelece o dilogo entre o ator-animador e o

    espectador uma das questes fundamentais para se entender e praticar o teatro de sombras

  • 32

    na contemporaneidade. A tela o espao onde tudo acontece: de imagens onricas, fantsticas,

    at a semelhana com figuras e movimentos mais figurativos. Na cena,

    o ato de criao realiza-se graas presena irrenuncivel do ator-animador, que se faz portador do aqui e agora. O ator-animador assim aquele que testemunha, com o prprio trabalho, a realidade absoluta da sombra, o seu acontecer como experincia visual autntica. Portanto, a sombra existe somente no instante em que fruda, no mais. Existe no instante em que o animador a recria para quem veio encontr-lo. Esse o teatro das sombras. E por este motivo que um evento em que a sombra proposta reproduzida no teatro, e sim espetculo de imagens em movimento. (MONTECCHI, 2007, p. 71).

    No teatro de sombras, mesmo que o ator-animador esteja aparentemente escondido

    atrs da tela, a comunicao direta com o espectador o que o diferencia da tela do cinema.

    Ator-animador e pblico encontram-se em comunho, conforme imagem destacada abaixo.

    Figura 7 Teatro de sombras javans.

    Fonte: MONTECCHI, Fabrizio. Alm da tela Reflexes em forma de notas para um teatro de sombras contemporneo. In: Min - Min: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaragu do Sul:

    SCAR/UDESC, ano 3, v. 4, 2007, p. 73.

    Montecchi (2007, p. 72), referindo-se ao teatro de sombras javans, conhecido como

    Wayang Kulit, apresenta o espao nesse teatro de sombras como integrador, nico, ou

    seja, o do encontro. A tela posta no meio da sala une, no divide. Observando a imagem

    acima possvel observar o dalang no centro da cena, como aquele que celebra o evento: sua

    energia vital transmitida a quem assiste por meio da tela. Ao redor dele, como atrados pela

    sua de energia, os msicos e o pblico voltam-se para a sua presena.

    Uma das crticas que fazemos ao teatro de sombras ocidental que aqui a tela tem uma funo determinante na separao pblico e platia e serve principalmente para

  • 33

    esconder os procedimentos do ator-animador. E no Oriente a tela mais um muro translcido que separa o lugar do cotidiano do lugar da magia. (BELTRAME, 2005, p ).

    A tela no teatro de sombras oriental o local de encontro, onde a cena acontece. Nesse

    sentido concordo com a ideia de Montecchi (2007) de que as sombras na tela no devem

    interferir, mas favorecer a comunho no teatro de sombras.

    J no tradicional teatro de sombras chins, os atores-animadores permanecem atrs da

    tela ocultando totalmente os materiais utilizados na cena. O princpio de comunho nesse

    teatro surge ao trazer para a tela o sentido de ponte que une atores e espectadores.

    Revelar ou esconder as silhuetas-objetos do pblico um procedimento bastante

    utilizado por grupos de teatro de sombras no ocidente. Muitos grupos exploram a exibio dos

    materiais de cena, os equipamentos tcnicos e os procedimentos dos atores para o pblico.

    No teatro de sombras contemporneo, os atores-animadores no precisam estar

    obrigatoriamente ocultos atrs da tela como no tradicional teatro de sombras. As telas no

    servem apenas como suporte para as sombras, elas revelam, ao mesmo, tempo elementos

    poticos e a atuao do ator-animador.

    Nos espetculos contemporneos, as telas podem ser uma folha de papel branco A4

    ou um amplo tecido servindo de tela para projeo das imagens. (BELTRAME, s/d, p. 2).

    As telas deixaram de ser fixas para dar lugar a diversas experimentaes.

    No Brasil, a Cia. Quase Cinema de So Paulo utiliza a fachada de prdios, construes

    e monumentos no meio da cidade como superfcie-tela para a projeo de sombras que

    podem ser vista a quilmetros de distncia. Dessa forma, atores-animadores, todos os

    materiais e elementos usados no trabalho so revelados diante do pblico.

    Ao optar por um tipo de tela, seja uma parede ou um tecido, importante perceber a

    relao com a luz usada para projetar a sombra, de forma que no atrapalhe a viso do

    espectador. possvel o uso de bastidores (telas opacas, biombos ou tapadeiras), como no

    teatro de sombras chins, para obstruir a passagem da luz em volta da tela. Os biombos ou

    bastidores podem ser pintados de preto para reforar a opacidade. O essencial obter uma boa

    projeo das sombras nas telas independentemente dos recursos tcnicos utilizados.

    No tradicional teatro de sombras oriental, a tela de formato retangular (mais larga do

    que alta), armada em um bastidor de bambu que a mantm esticada. Normalmente,

    confeccionada em tecido branco de algodo ou linho, com uma trama densa.

    De acordo com Castillo (2004, p. 55), no teatro de sombras atual, os materiais usados

    para confeco da tela variam em funo do grau de opacidade e semitransparncia de

  • 34

    diferentes tipos de tecidos, plsticos, papis, materiais acrlicos entre outros. A cor tambm

    pode variar entre o branco e o bege. Seu tamanho varia muito, dependendo das caractersticas

    do espetculo. O teatro de sombras contemporneo usa as telas de uma forma mais dinmica,

    ou seja, elas podem ser mais altas do que largas, abandonando tambm sua posio fixa e

    esticada. Ainda de acordo com o autor, em alguns casos prende-se apenas a parte superior da

    tela, o que permite mov-la, fazendo com que as sombras se distoram, criando assim,

    diferentes efeitos visuais. O uso de vrias telas pode favorecer a criao e o ritmo de um

    espetculo, oferecendo vrios pontos de ateno do espectador. Com o mesmo objetivo, se

    recorre ao uso de pequenas telas portteis, com iluminao prpria, que permite o

    deslocamento e o desaparecimento do animador por diferentes pontos do espao.

    Nas imagens apresentadas abaixo possvel observar as diversas formas para se criar e

    montar telas para teatro de sombras.

    Figura 8 Diferentes telas para teatro de sombras.

    Fonte: MONTECCHI, Fabrizio & PIAZZA, Pucci. Teatro de sombras. Espanha: C.D.T.B, 1987, p. 93-94.

  • 35

    Atualmente as telas podem ser fixas ou portteis, construdas com ripas de madeira,

    papel vegetal, tecido e outros materiais, conforme imagens destacadas acima. Outras telas

    alternativas podem ser construdas com tecido preso em forma de uma cortina ou com

    materiais mais sofisticados.

    Alumnio, metal, cano plstico (PVC) e outros materiais semelhantes podem ser

    utilizados. preciso deixar um espao vazado, como uma moldura, onde o tecido ou algo

    semelhante fixado nas extremidades da armao (com pregos, percevejos, grampos, elstico,

    velcro, ms, fita adesiva, ilhs, barbante, etc.). Observando o trabalho de grupos

    contemporneos possvel concluir que essas telas podem ser portteis e leves, pequenas ou

    grandes, construdas de forma que possam ser facilmente desmontadas, guardadas e

    transportadas. Diferentes telas podem ser usadas simultaneamente no espetculo.

    Essas possibilidades de criao com diferentes materiais utilizados na construo das

    mesmas, muitas vezes, so descobertas apenas na prtica, de acordo com as necessidades do

    espetculo e do grupo.

    O que se observa que, assim como as fontes luminosas, as telas tambm

    acompanham a modernizao dessa arte, mantendo, porm, a sua principal funo: local de

    projeo das sombras e de encontro entre atores e espectadores.

    1.3 AS FONTES LUMINOSAS

    Outro elemento indispensvel para a prtica do teatro de sombras so as fontes

    luminosas. A luz produz a sombra. No princpio o fogo, logo as velas, as lamparinas de

    azeite ou de petrleo, mais tarde as lmpadas de filamentos e o tubo florescente, e por fim, o

    uso majoritrio da luz algena em todas as suas formas. (CASTILLO, 2004, p. 63). Cada

    uma dessas possibilidades de iluminao influenciou a prtica do teatro de sombras no

    decorrer dos tempos. Portanto, os avanos no campo da iluminao expressam um fator

    decisivo na busca por outras possibilidades expressivas para as artes. Assim, O teatro de

    sombras mais uma vez utiliza a tecnologia adaptando-a para dar resposta a sua necessidade.

    (2004, p. 64).

    Atualmente, os focos luminosos so, s vezes, construdos pelos prprios grupos, de

    acordo com as necessidades de cada cena ou espetculo, conforme imagem abaixo.

  • 36

    Figura 9 Fontes luminosas ou focos de luzes coloridas projetando diferentes sombras.

    Fonte: < http://www.clubedasombra.com.br/imagens_full.php?id=20# > Acesso em 06 nov. 2010.

    No teatro, a luz e a sombra podem ser controladas, porm, na natureza, a sombra

    muda constantemente devido luz do sol. No teatro de sombras, a luz gerada artificialmente

    por uma ou vrias fontes luminosas construdas ou selecionadas de acordo com os efeitos que

    se quer criar na cena. Para Ana Maria Amaral (1997, p. 112-113), a sombra na natureza existe

    em funo de uma luz, que flui, em funo do tempo que passa. Trabalhar com elas como

    tentar prender o tempo, ou controlar figuras incorpreas. A sombra est sempre merc

    de elementos que a originam. J no teatro de sombras a situao diferente porque a luz

    artificial e pode ser controlada, e assim a sombra tornar-se objeto de investigao artstica.

    Mas, apesar disso, e apesar dos avanos tecnolgicos com luz de vela, de gs, non,

    eltrica ou laser a fragilidade da sombra continua. Nessa sua fragilidade est a sua

    essncia. ou seja, est a sua imaterialidade.

    De acordo com Paul Hewitt (2002, p. 447-452 e 671), a sombra uma regio escura,

    no iluminada, que surge quando so bloqueados os raios de luz que para ali se dirigiam e no

    a presena de alguma coisa. Ela ocupa todo o espao que est atrs de um objeto no qual h

    uma fonte de luz do lado oposto. Por isso no existe sombra no escuro. A luminosidade

    presente nela se apresenta proporcional opacidade do objeto ao qual se utiliza para projet-

    la. Portanto, a sombra to mais escura quanto maior for a opacidade do objeto que estiver

    entre a fonte luminosa e a superfcie onde ala se projetar. A imagem obtida uma projeo

    invertida do objeto que bloqueia a luz e tambm uma silhueta bidimensional de acordo com

    a posio da fonte luminosa. Esses so alguns dos elementos que compe a fragilidade ou

    imaterialidade da sombra.

  • 37

    As imagens projetadas no teatro de sombras passaram por transformaes no

    decorrer da modernizao das sociedades, principalmente com o advento da energia eltrica.

    Hoje, o prprio conceito e tratamento dado s imagens ainda esto em expanso. As imagens

    no teatro de sombras que outrora tremulavam luz de velas ou tochas, obtidas artesanalmente,

    hoje podem ser produzidas com o processamento de meios eletrnicos e computacionais.

    Segundo Arlindo Machado (2001, p. 118),

    A imagem no mais a sombra, o fantasma do objeto (real ou imaginrio) a que se refere, no est mais atada a ele membro a membro como dizia Barthes a propsito da fotografia, mas se comporta realmente como se fosse o objeto; ela a sombra que se desprende do objeto e ganhou vida autnoma.

    O avano tecnolgico mudou a vida homem contemporneo, inserindo-o em um

    mundo visual em que as imagens so elementos autnomos que direcionam os desejos e

    imaginao. As sombras, porm, passam despercebidas e figuram um mundo aparentemente

    desconhecido. Assim, a vida cotidiana passou a se configurar a partir das prprias imagens. A

    imagem, outrora bidimensional, hoje tridimensional, salta da tela cinematogrfica e toma

    vida diante de nossos olhos. O simulacro a duplicidade formal dessa experincia como

    produto acabado (SUBIRATS, 1989, p. 62), portanto, algo sobre o qual precisamos refletir,

    j que nunca se revela como uma experincia subjetiva. O mundo visual sedutor e passou

    a ser interativo, espetacular, revelando uma simulao perfeita do objeto que reproduz, ao

    mesmo tempo oculta e fragmenta a experincia individual do real. Para Benjamin (1986, p.

    198),

    as aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nvel est mais baixo que nunca, e que da noite para o dia, no somente a imagem do mundo exterior mas tambm a do mundo tico sofreram transformaes que antes no julgaramos possvel.

    Isso evidencia atualmente a expanso das possibilidades relaes virtuais em

    detrimento do encontro presencial, ressignificando a ideia de coletividade na

    contemporaneidade. Passamos a valorizar a informao global desvinculada da nossa

    realidade local e de nossas prprias experincias. No entanto, Macieira (2001) destaca que as

    formas de entretenimento visuais sempre sero substitudas, e sempre novas emergiro umas

    das outras. Com essas mudanas, foram criadas as modernas tcnicas de animao das

    imagens. Porm,

  • 38

    se o pesadelo do boneco virar gente [depoimento do mamulengueiro Fernando Limoeiro], o do teatro de sombras ser virar cinema. Ambos teatro de sombras e cinema trabalham com a possibilidade de transformar o real em irreal; e conseguem nos ludibriar com irrealidades que nos fazem voltar para novas sesses, como se no soubssemos que estamos sendo enganados. Mas ao contrrio do teatro de sombras, que no se industrializou, o cinema consagrou-se como o maior mostrador de irrealidades, prosperando por atingir um pblico muito maior hoje planetrio e sempre vido de mentiras bem contadas. (MACIEIRA, 2001, p. 4).

    Diante das inmeras possibilidades de projeo de imagens eletrnicas inseridas em

    um mundo visual, o teatro de sombras no procura ser, em algum momento, cinema. Mesmo

    que algumas ideias especficas da linguagem cinematogrfica como enquadramento,

    montagem, sequncia, cmera lenta, transio cross fade e outras (MONTECCHI, 2007, p.

    67-68) tenham assumido um papel significativo no vocabulrio dessa arte, um equvoco

    consider-lo um espetculo de imagem. De acordo com Montecchi (2001, p. 70), o teatro de

    sombras concebido desta forma funciona, mas no vive. Ao transformar a sua natureza

    profundamente orgnica em algo mecnico, o teatro de sombras desvitaliza-se e, pouco a

    pouco, perde em teatralidade, em favor de uma espetacularidade fictcia. O mesmo pode ser

    definido como um teatro em que a dramaturgia baseia-se na imagem e no movimento

    (AMARAL, 2002, 146), no entanto, no pode se limitar a exibio de imagens e formas

    projetadas mecanicamente em uma tela.

    Para Castillo (2004, p. 66-67) a acumulao excessiva de efeitos luminosos e

    tcnicos buscando a espetacularidade no teatro de sombras apenas impacta

    momentaneamente o espectador. Nesse sentido, A dosagem adequada dos meios

    expressivos sempre produz a emoo. As sombras so a linguagem da emoo e da sugesto.

    Tradicionalmente, segundo Contractor (2003, p. 69), as primeiras fontes luminosas

    utilizadas formalmente nessa arte se assemelham s do teatro de sombras indiano, em que a

    fonte de luz era um enorme candeeiro de cobre, a leo de coco, suspensa entre a cabea do

    manipulador e a tela. Hoje as lmpadas a gs ou tubos fluorescentes so comuns, por serem

    mais prticos e tambm porque o leo sendo comestvel, muito caro.

    No teatro de sombras praticado na China at a metade do sculo XX, a tela era vista

    como um quadro branco que se destacava no escuro, graas s fontes luminosas

    tradicionalmente obtidas atravs da queima de leo de coco ou a gs. Assim, a luz tremulante

    das chamas remetia as vises que nos fazem os sonhos (PIMPANEAU, 2003, p. 40).

    Contudo, mais recentemente, o uso das lmpadas eltricas, principalmente os tubos

    fluorescentes, passou a ser utilizado nos espetculos. Visualmente isso constituiu uma perda,

  • 39

    se comparado s lmpadas a leo, pois o tremer da chama dava s silhuetas, mesmo estando

    imveis, uma impresso de estarem vivas (PIMPANEAU, 2003, p. 41). Portanto, possvel

    observar que:

    A partir de 1966, com a Revoluo Cultural, tambm passaram a usar lmpada fluorescente, s vezes denominadas lmpadas frias, abandonando as outras formas de iluminao. Estas lmpadas exigem que a silhueta permanea colada tela para que acontea a sua adequada projeo. Refletem exatamente o desenho, a forma da silhueta recortada. Os efeitos de deformao potica da imagem (ampliao e diminuio da imagem produzindo imagens fantsticas e irreais, deformadas, no acontecem quando esses recursos so utilizados). Com este tipo de lmpadas as imagens mostradas ao pblico atravs da tela so exatamente as antecipadamente desenhadas e recortadas pelos marionetistas. (BELTRAME, 2003, p. 45).

    possvel destacar assim que a escolha de uma fonte luminosa determina o tipo de

    imagem a ser projetada contribuindo desse modo para a definio da dramaturgia12 no teatro

    de sombras. Enquanto a chama de uma vela ou lamparina faz a sombra tremular, uma

    lmpada fluorescente no causa o mesmo efeito. A escolha de uma fonte luminosa sempre

    uma opo do artista, que define o que serve ao espetculo que cria.

    A escolha e a combinao de diferentes focos luminosos determinam efeitos de

    animao. O tamanho das telas tambm deve ser considerado, como a opo de dividi-las em

    espaos claros e escuros. As caractersticas de determinadas fontes luminosas influenciam

    diretamente na criao da sombra projetada, como contorno ntido ou difuso, variao do

    tamanho, com ou sem esmaecimento da silhueta, a multiplicidade das imagens, o aumento de

    suas possibilidades de deformao-transformao despertando diferentes impresses no

    pblico.

    Para Castillo (2004, p. 64), alguns fatores devem ser considerados ao se optar por um

    tipo de iluminao, como: a potncia e intensidade da luz e as possibilidades de regulao que

    influenciam na qualidade da projeo; e tambm a abertura do foco de luz concentrado, que

    produz sombras de contorno ntido (halgenas, lmpadas puntiformes) ou aberto, que produz

    sombras de contorno difuso (lmpadas de filamento, tubos florescentes, velas, entre outros).

    Os efeitos desejados em cena passam pelas relaes entre a luz e a sombra,

    direcionadas para a montagem do espetculo. Porm, trabalhar com a sombra trabalhar

    com o que de mais sutil e incorpreo existe (AMARAL, 1997, p. 113). Seja na natureza ou

    12 Tradicionalmente, a dramaturgia clssica examina exclusivamente o trabalho do autor e a estrutura narrativa textual da obra, ou seja, ela no se preocupa diretamente com a realizao cnica do espetculo. (PAVIS, 1999 p. 113). No entanto, essa ideia ampliada nas prticas teatrais contemporneas. Essa questo discutida no terceiro captulo sobre a criao e montagem do espetculo.

  • 40

    no teatro, a sombra sempre voltil e impalpvel, resultado da projeo da luz que tambm

    varivel.

    Muitos grupos de teatro de sombras concentram a investigao artstica na

    experimentao de diferentes fontes luminosas e materiais. Mesmo com toda tecnologia

    disponvel, essa fragilidade da sombra estimula a busca por sua deformao porque

    desperta o imaginrio, o que fascina artistas e espectadores. No teatro, essas possibilidades

    podem nos remeter a uma linguagem potica, na qual a sombra pode ser entendida como a

    alma da silhueta-objeto-corpo materializada na tela.

    Para Amaral, um teatro de sombras aquele que nos remete sombra propriamente

    dita e no figura, boneco/objeto, ou ao ator manipulador que a origina. A especificidade

    desse teatro est na sombra projetada pela figura do boneco e no na figura do boneco em si

    (1997, p. 113 e 114). Nessa linguagem, os esforos esto voltados para o jogo entre claro e

    escuro, na criao do espetculo. As fontes luminosas tm funo essencial nesta arte.

    A projeo de imagens, segundo Lescot (2005, p. 9), aproximando-se e afastando-se

    os objetos da tela e da luz, criam imagens com um carter mgico, exatamente pela

    especificidade da imaterialidade da sombra. Essa caracterstica remete novamente a

    linguagem potica. Sobre essa questo, Badiou afirma:

    Podemos deduzir que, quanto mais se distancia um objeto da realidade, mais facilmente chegar a ser, por meio de um processo mental particular [imaginao], outra coisa diferente de si mesma. E, portanto, poder aumentar seu valor semntico. Daqui partiria a afirmao mais geral que considera que no so os objetos do mundo concreto que produzem mais sentido, mas as imagens que brotam alm da realidade so as que geram uma maior polissemia.13 (2004, p. 17, traduo nossa).

    Portanto, o carter potico est na possibilidade de deformao da imagem que a luz

    projetada sobre o objeto produz na tela, j os significados e interpretaes so atribudos pelo

    espectador.

    A deformao das imagens, atravs das variaes da luz e da animao das silhuetas-

    objetos-corpo buscam, propositalmente, explorar possibilidades que esses materiais e

    13 Podemos deducir que, cuanto ms se distancia um objeto de la realidad, ms fcilmente llegar a ser, a travs de un particular processo mental, outra cosa diferente a s mesma. Y, por tanto, podr aumentar su valor semntico. Desde aqu, partira la afirmacin ms general que considera que no son los objetos del mundo concreto que producen ms sentido, sino que son las imgenes que brotan ms all de la realidad las que generan una mayor polisemia. [Traduo realizada apenas para estudo].

  • 41

    elementos no possuem na realidade. Nesse sentido, a linguagem das sombras possibilita ao

    espectador, atribuir significados s imagens de acordo com a sua imaginao e experincia.

    Diferentes lmpadas criam diversos efeitos. Casas especializadas em iluminao e

    equipamentos eletrnicos oferecem uma variedade de lmpadas e refletores que podem ser

    explorados no teatro de sombras. Algumas lojas especializadas em iluminao teatral tambm

    oferecem lmpadas especiais que definem a sombra e que possuem dispositivos para variar a

    intensidade da luz. Normalmente, os equipamentos de luz mais sofisticados so sustentados

    por uma base especial ou por meio de hastes, facilitando o manuseio e tambm o uso de lentes

    e filtros de cor. Alguns possuem sistema de ventilao para resfriamento das mesmas e podem

    at ser controlados por programas de computador e controle remoto.

    Hoje, o teatro de sombras adiciona elementos das artes plsticas, da arquitetura e do

    cinema e o mercado de fontes de luzes oferece lmpadas para cada efeito (MACIEIRA,

    2001, p. 70), possibilitando ao teatro de sombras, apropriar-se desses recursos tecnolgicos e

    transform-los em elementos cnicos.

    Lanternas e outros focos contendo diferentes lmpadas exigem cuidados especiais,

    tanto ao manusear como ao guardar j que lmpadas so sensveis e queimam com

    facilidade quando no utilizadas corretamente. As lmpadas coloridas tambm geram diversos

    efeitos visuais. O uso de material translcido como papel celofane e acetato14 colorido podem

    ser anexados como filtros s lmpadas para se conseguir efeitos de sombras coloridas.

    Atualmente possvel usar, para a criao de cenas, fontes luminosas como

    projetores de vdeo e imagens (data show), que processam sinais de vdeo e projetam as

    imagens correspondentes, usando um sistema de lentes especiais.

    Os projetores de vdeo utilizam uma luz brilhante para projetar as imagens, sob a

    qual tambm possvel animar objetos, silhuetas ou corpo, interferindo na imagem que est

    sendo projetada. O mesmo pode ser feito com os tradicionais projetores de slides. Para isso

    preciso inserir as silhuetas entre o projetor e a tela, criando-se sombras sobre as fotos,

    imagens ou vdeos projetados.

    A grande variedade de tipos de luzes existentes e as possibilidades de regular sua

    intensidade ou trocar sua cor oferecem um amplo leque de combinaes. inquestionvel a

    grande influncia que as fontes luminosas oferecem ao carter esttico e expressivo da

    sombra. A escolha mais adequada ser aquela que melhor se ajustar encenao.

    14 Comumente conhecido como filtro de cor ou gelatina.

  • 42

    Contudo, O teatro de sombras no pode se restringir a alguma frmula ou teoria,

    no pode se reduzir a princpios tcnicos cuja aplicao d garantia de resultado a ser obtido

    (LESCOT, 2005, p. 10). Essa uma linguagem que nos proporciona olhar para a luz atravs

    das sombras como imagens que, por alguns momentos, se transformam em teatro.

    O conhecimento, em relao aos aspectos tericos e tcnicos sobre a luz,

    imprescindvel para a prtica e a reflexo. Propor uma experincia artstica com as sombras

    exige preparao para argumentar sobre os diversos significados que tal experincia pode

    suscitar j que impossvel assimilar uma tcnica sem uma experincia prtica

    (AMARAL, 1997, p. 115).

    1.4 SILHUETAS, SOMBRAS E OBJETOS

    As silhuetas so figuras geralmente planas, recortadas em diferentes materiais: couro,

    papelo, acetato, papel, plstico, etc. Tradicionalmente, no teatro de sombras oriental, o mais

    utilizado era o couro obtido de pele animal, ou tambm a madeira, e mais tarde se acrescentou

    o uso do papel carto. As figuras atuais normalmente so construdas com papelo, cartolina,

    papel carto ou plstico, porm, incorporam outros materiais: madeira, acrlico, acetato

    transparente, metal e arame.

    Figura 10 Ilustrao de diferentes tipos de silhuetas.

    Fonte: MONTECCHI, Fabrizio & PIAZZA, Pucci. Teatro de sombras. Espanha: C.D.T.B, 1987, p. 48.

  • 43

    Em algumas silhuetas so adicionadas, conforme imagem acima, varas de sustentao

    para possibilitar a sua animao. As silhuetas do tradicional teatro de sombras oriental eram

    de bambu, osso ou madeira (CASTILLO, 2004, p. 56). Atualmente empregado o arame

    rgido, varas finas de ao, sarrafos, palitos de madeira e tambm varas de acetato ou

    metacrilato (material transparentes que no produzem sombra), conforme imagem abaixo.

    Figura 11 Silhueta animada na tela sem revelar as varas de sustentao.

    Fonte: < http://english.hebei.com.cn/uploads/allimg/100707/5_100707123747_1.jpg > Acesso em 06 mar. 2011.

    A silhueta um elemento tcnico que busca tradicionalmente a criao de personagens

    figurativos, enquanto as sombras dos objetos e dos corpos representam ideias mais abstratas.

    A silhueta, conhecida tambm como marionete de sombras, tambm pode ser

    compreendida na definio de Jurkowski para boneco, ou seja, uma forma artificial,

    articulada, fabricada segundo os princpios das artes plsticas, dotado de capacidades tcnicas

    para ser utilizado num espetculo, diante de um pblico, enquanto sujeito fictcio (2000, p.

    4). As silhuetas podem ser articuladas ou no e so usadas normalmente para projetar as

    sombras de personagens. Elas so confeccionadas com diversos materiais e animadas atravs

    de alguns recursos comuns ao teatro de bonecos.

    Bonecos de sombra so em geral bidimensionais. So quase sempre articulados, mas podem ser tambm rgidos, pois sombras em movimento, por si, j criam a iluso de vida. As figuras projetadas em sombra so movidas distncia, por varetas. Para cada tipo de boneco existe uma tcnica diferente de manipulao. (AMARAL, 1996, p. 87).

    As articulaes estrategicamente dispostas em diferentes partes das silhuetas ajudam,

    na animao, a ampliar os movimentos dos personagens nas cenas. Podemos ter uma silhueta

    fixa, no articulada, quando esta confeccionada em apenas uma pea. J a silhueta articulada

  • 44

    montada com a juno e sobreposio de vrias partes mveis. As silhuetas articuladas

    ainda podem ser simples (quando se movimentam apenas um elemento da silhueta) ou

    compostas (movimentam-se entre si vrias peas). Para cada uma existe uma forma diferente

    de animao.

    A silhueta recortada um dos elementos mais tradicionais no teatro de sombras

    Oriental. De acordo com Machico Kusahara (2003), no se sabe exatamente quando as

    silhuetas comearam a surgir no teatro de sombras ocidental, mas acredita-se que foram

    inspiradas pelo teatro de sombras chins e tambm pela tradicional arte chinesa do papel

    recortado. Segundo Kusahara (2003, p. 228-229), os europeus no sculo XVIII e XIX

    passaram a conhecer melhor o teatro de sombras chins. A partir de ento, a ideia de usar as

    sombras para fazer teatro foi reconsiderada, j que eram vistas como algo de pouco valor na

    cultura ocidental.

    As silhuetas alcanaram grande popularidade na Europa no sculo XIX e incio do

    sculo XX. No entanto, acredita-se que as silhuetas recortadas foram difundidas atravs da

    rota comercial da seda15 com a Europa (MACIEIRA, 2001).

    Segundo Amaury Cezar Moraes (2002), no decorrer do sculo XIX, o pblico das

    grandes cidades europeias fascinou-se pelas sombras em espetculos cujos personagens eram

    silhuetas recortadas em papel, iluminadas por trs, movimentando-se numa tela branca e

    transparente. Assim, a milenar arte das sombras chinesas intro