a razão ou não razão - carlos varela

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1 APONTAMENTOS SOBRE – DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA A RAZÃO OU NÃORAZÃO DESTE TEMPO Ao conceber uma ideia, o espírito exerce a função de elaboração e de combinação, pela qual descobre e afirma as diversas relações que ligam as ideias entre si e com os respectivos objectos. Esta função do espírito compreende duas operações, que se chamam juízo e raciocínio. Podemos distinguir três ordens de princípios e, por conseguinte, três domínios da inteligência. Razão teórica – A razão teórica ou especulativa é a razão enquanto se exerce no domínio da verdade pura. Fornece os princípios directivos do conhecimento, que estabelecem a ordem nos nossos pensamentos. S. Tomás chama-a: habitus principiorum speculabilium. O seu objectivo adequado é a verdade absoluta.(Razão enquanto nos fornece os princípios directivos do conhecimento) Razão prática - A razão prática é a razão enquanto se exerce no domínio da moralidade com o nome de consciência moral. Vê a obrigação que nos assiste de querer o bem, e fornece assim os princípios directivos do proceder moral, que põem ordem na vida. S. Tomás chama-a habitus naturalis principiorum operabilium. O seu objecto adequado é o bem e a justiça absolutos.(Esta razão constitui o o objecto da moral). Razão estética – Finalmente a razão estética é a razão enquanto se exer ce no domínio da beleza com o nome de gosto. Fornece os princípios directivos da concepção artística. O seu objecto adequado é a beleza absoluta. (Beleza e arte). RAZÃO E RACIOCÍNIO: A razão pode atingir as essências e as relações necessárias de duas maneiras: a) – Imediatamente – com acto directo, quando se trata das verdades primeiras, dos princípios de evidência imediata e das relações evidentes por si mesmas. b) Mediatamente – por via de raciocínio, quando se trata de relações mais ou menos distantes e não evidentes por si mesmas. O raciocínio não é pois faculdade diferente, mas modo especial de operação da razão, uma razão que se procura e desenvolve. Daí o parentesco que existe entre as palavras razão e raciocínio, ratio et ratiocinatio. Não será difícil encontrar máximas como, esta de Kant: «O homem jamais deve ser considerado um fim, permanecerá sempre um fim para si próprio», ou esta de Platão: «A ignorância é o maior dos males», ou citar os dez mandamentos e todos os grandes pensamentos filosóficos; contudo, para verdadeiramente os compreendermos e deles nos apropriarmos, requer-se mais do que a inteligência, requer-se a razão.

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Por: Carlos Varela Esta primeira parte do texto de Carlos Varela leva-nos a uma dissertação ideológica e filosófica sobre a crença e a razão. Um texto interessante que vale a pena ler, reflectir e sobretudo entronizar...

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Page 1: A razão ou não razão - Carlos Varela

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APONTAMENTOS SOBRE – DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA 

A RAZÃO OU NÃO‐RAZÃO DESTE TEMPO 

Ao conceber uma ideia, o espírito exerce a função de elaboração e de combinação, pela qual descobre e afirma as diversas relações que ligam as ideias entre si e com os respectivos objectos. Esta função do espírito compreende duas operações, que se chamam juízo e raciocínio. Podemos distinguir três ordens de princípios e, por conseguinte, três domínios da inteligência.

Razão teórica – A razão teórica ou especulativa é a razão enquanto se exerce no domínio da verdade pura. Fornece os princípios directivos do conhecimento, que estabelecem a ordem nos nossos pensamentos. S. Tomás chama-a: habitus principiorum speculabilium. O seu objectivo adequado é a verdade absoluta.(Razão enquanto nos fornece os princípios directivos do conhecimento)

Razão prática - A razão prática é a razão enquanto se exerce no domínio da moralidade com o nome de consciência moral. Vê a obrigação que nos assiste de querer o bem, e fornece assim os princípios directivos do proceder moral, que põem ordem na vida. S. Tomás chama-a habitus naturalis principiorum operabilium. O seu objecto adequado é o bem e a justiça absolutos.(Esta razão constitui o o objecto da moral).

Razão estética – Finalmente a razão estética é a razão enquanto se exer ce no domínio da beleza com o nome de gosto. Fornece os princípios directivos da concepção artística. O seu objecto adequado é a beleza absoluta. (Beleza e arte).

RAZÃO E RACIOCÍNIO:

A razão pode atingir as essências e as relações necessárias de duas maneiras:

a) – Imediatamente – com acto directo, quando se trata das verdades primeiras, dos princípios de evidência imediata e das relações evidentes por si mesmas.

b) Mediatamente – por via de raciocínio, quando se trata de relações mais ou menos distantes e não evidentes por si mesmas.

O raciocínio não é pois faculdade diferente, mas modo especial de operação da razão, uma razão que se procura e desenvolve. Daí o parentesco que existe entre as palavras razão e raciocínio, ratio et ratiocinatio.

Não será difícil encontrar máximas como, esta de Kant: «O homem jamais deve ser considerado um fim, permanecerá sempre um fim para si próprio», ou esta de Platão: «A ignorância é o maior dos males», ou citar os dez mandamentos e todos os grandes pensamentos filosóficos; contudo, para verdadeiramente os compreendermos e deles nos apropriarmos, requer-se mais do que a inteligência, requer-se a razão.

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Quando o homem, perscrutando o futuro previsível, se vê afastado das suas fronteiras políticas, não deverá tentar incorporar-se numa outra pátria – ela não é a sua – mas pedir uma pátria e uma história à humanidade e ao mundo. Deve sentir-se, na sua terra, no meio dos homens. Como homem deve estender o seu amor a todos os homens junto dos quais reencontra uma maior família. Se decidir-se a isso, não obedece a uma propensão natural, alcança-o através de um novo nascimento, facultado pela razão. Esta existência animada pela razão faz da vida um risco mas não uma aventura; prodigaliza-a mas não a malbarata.

Se o homem, como diz Kierkegäard, se perde no mundo da objectividade pura; se a razão se perde, a filosofia encontra-se igualmente perdida. É que a razão oferece-nos uma imagem da liberdade humana tal como esperamos fazê-la surgir, na medida em que nos é possível semelhante empresa; ela, esta liberdade, é acessível a todos os homens. Dizer «isso não existe» é dizer «isso não me interessa».

A razão não está contudo no conhecimento que dela posso haver mas na minha maneira de a praticar, nas ciências, na vida, na criação artística ou intelectual, que penetra mais fundamente o coração da verdade do que poderia lográ-lo a ciência. Num mundo que a ignora ou lhe é adverso, a razão toma sobre si o encargo de resistir. É claro que a razão tem os seus adversários, é um inimigo, decidido a ada saber da verdade, é o espírito antifilosófico; sob o rótulo do verdadeiro, exalta tudo quanto contradiz, menospreza e desnatura a verdade.

Uma vez que predomine, a sua violência impede qualquer exame reflectido. Abre a porta ao arbitrário, interdiz o domínio do indivíduo sobre si próprio. O seu capricho prefere à seriedade uma afectividade apaixonada e movediça. Faz do incrédulo um fanático imbuído de convicções enganadoras, para depois o deixar novamente cair no niilismo. São formas de anti-razão, originadas numa negação simultânea da verdade e da liberdade humana, são a corrupção de uma verdade inicial; a anti-razão e a antifilosofia servem-se da linguagem da razão e da filosofia.

Em todos os tempos as massas seguiram os adivinhos; em todos os tempos estes as enganaram, prometendo-lhes o conhecimento e atribuindo um sentido sobrenatural aos discursos e gestos que destinam ao seu público. Quem se deixar atrair por tais miragens, em vez de fazer brilhar em si próprio a luz da razão, está mais ou menos perdido. Embora não pareça, mas isto tem repercussões políticas. Fazendo-o renunciar à liberdade da razão, prepara o homem para a escravidão. Predisposta para o mito, deixa afundar-se tudo quanto constitui compreensão da liberdade. Ensina-nos a acantonar-nos no terreno de uma fé irracional e insusceptível de ser discutida. E se a liberdade cessa de nos alimentar em breve esqueceremos o que ela significa, renunciando à razão renunciamos também à liberdade.

Desde há, pelos menos, perto dos cem anos, e em face do nacional-socialismo e do comunismo, ouvimos repetir que seria necessário opor a uma fé desse género uma outra fé e que, se nos encontramos fracos, o estamos por nenhuma nos sustentar. Também a filosofia, por vezes parece desencorajada na sua confiança na razão.

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A razão é como o ar, que nós não vemos. O seu papel é o mesmo. Ela é com efeito uma ra puro, de que teríamos a maior necessidade e que todavia repudiamos, pois preferimos uma atmosfera capitosa e inebriante. Analisando o aspecto histórico das coisas, poder-se-ia acreditar que todos os grandes movimentos de fé se originaram em algo absurdo e que foi justamente essa circunstância que lhes conferiu a sua maior influência. A razão encontra-se sempre em presença deste facto: certos crentes recusam--se a escutar seja o que for, não admitem qualquer argumento, mantêm firmemente, como uma premissa intangível, o seu credo quia absurdum, e a sua fé parece real. Na sequência de reflexões deste género, a razão, longe de nos aparecer como simplesmente despojada de ilusões, parece-nos timorata.

Uma só coisa protegerá o homem deste desencorajamento: se ele pretende seriamente vencer o nevoeiro, fará por si próprio a experiência da sua liberdade, experiência que jamais é um dado natural; possuirá uma certeza que não se estriba em qualquer garantia objectiva; avançará com o sentimento de servir esta verdade que não possui.

Dentro do reino das miragens, ele quer salvar a razão, esperar a sua mensagem com uma paciência que não será iludida e, no entanto, sem nunca ouvir o eco por que em vão espera.

A fé da razão é diferente de todas as outras crenças que estão garantidas por dados do conhecimento e por realidades objectivas. Existem, hoje como em todos os tempos, homens rectos e que pensam com clareza. Existem homens que desde a sua juventude seguiram com sinceridade os caminhos da razão, mesmo sem disso possuírem consciência. A razão não faz ruído.

Os mais negros prognósticos sobre o declínio das civilizações, sobre a situação histórica, as verificações igualmente pessimistas das características da humanidade média, da predisposição do homem para se lançar na servidão, do seu esquecimento de Deus, que emparelha com o esquecimento de si próprio – tudo isto, e mesmo nos piores momentos, será inicialmente considerado incerto pela razão. Ela acha-se penetrada da recordação de experiências análogas que, contra toda a expectativa, tiveram um desfecho favorável. Não concluirá daí que tudo se deva passar idênticamente, mas extrairá uma indicação que ditará a sua atitude. Não obstante, os «porque» e os «talvez» não podem prevalecer para a razão. Ela não vive de argumentos pró e contra mas da sua autenticidade própria e com a lúcida consciência de não possuir a verdade e somente caminhar em sua busca. É dentro da humildade, dentro da generosidade, que um indivíduo tem a possibilidade de colaborar, numa parte ínfima, imperceptível, no nascimento de um mundo onde a liberdade possa plenamente manifestar-se.

A razão assemelha-se à revelação de um mistério perpetuamente acessível a cada um de nós; ela é o silencioso espaço para onde, graças ao pensamento, é consentido a todos retirarem-se.