antunes varela, orlando gomes

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  • 8/6/2019 Antunes Varela, Orlando Gomes

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    COIM8U'. UITDU. L Ii lI T AD A

    '. ',I.J, UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    Boletimda

    Faculdade de D ireitoV OL . L X1984

    COIMBRA

  • 8/6/2019 Antunes Varela, Orlando Gomes

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    ~ 1\

    1I

    \j,

    DISCURSO DO DIRECTOR DA FACULDADE DEDIREITO DA UNlVERSIDADE FEDERAL DA BAH1A,PROFESSOR DOUTOR PEDRO MANSO CABRAL

    Aqui nos reunimos nesta tarde para que seja conferido aV . E x.> , Dr. JOAO DE MATOS ANTUNES VARELA, 0 titulo deDoutor Honoris Causa da nossa Universidade.

    Alguns patricios de V. Ex. ja receberam a mesma honrariaanteriormente. Dentre des dois que mili taram na area juridicacom igual destaque ao seu: os professores MARCELO CAETANOe V A Z S E lm A .o trio de juristas portugueses professores honoris causaeque ora se completa nesta cerim6nia e , porem, no meu entendi-

    mento, terminado em sua elaboracao, de maneira muito especial,para nao dizer unica. Porque dos tres grandes mestres Iusitanos,V. Ex. a e 0 que efetivamente se encontra ligado a Bahia,tendo aqui desempenhado, em seus anos de exilic , urn pape!muito singular e muito especial.

    Dizem em Portugal que todo alentejano (e V. Ex." 0 e) ,profundamente influenciado pela grande extensao uniforme eespecial da paisagem que seus olhos alcancam, e de tempera-mento grave e sereno e, por vezes, algo melanc6lico. Os d.nticosdos trabalhadores, a noite, depois da faina diiria, a beira dofogo, elevam-se para os ceus; as fisionomias dos camponeses quecantam, curtidas e marcadas pelo sol, pelos ventos, pelo frio epelas in temperies, ficam sempre fixadas na retina da mem6ria dosque, como V. Ex.', nasceram em Ervedal, perto de Aviz. Outrascaracteristicas tipicas alentejanas sao a humildade e a modestia.E mais ainda destacam-se pela capacidade de serena e constan-

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    temente lutarem, com 0maier denodo, em busca da realizacao deseus ideals.

    V. Ex. ., tipieo alentejano, de Ionnacao jurfdiea completada,Ministro da justica durante treze anos, Professor Catedrarico daUniversidade de Coimbra, viu-se de repente, tangido pelaRevolucao dos Cravos, na Cidade de Salvador, Estado da Bahia,que seria 0 lugar do seu exilic. A tao decantada pureza dosrevolucionarios exigia a sua ausencia, einbora, na vida diaria,continuassem a reger 0 seu comportamento pelas norm as inspi-radas por V. Ex. a e consubstanciadas no mais moderno rnonu-mento da tecnica do direito privado, que e 0 Codigo CivilPortugues. Nao mais queriam la aque1e que, em esplrito,continuava a reger 0 que de rnais sagrado existe no homem,que e a sua vida privada. E V. Ex.' teve de partir. E nos osbahianos tivernos a felicidade de ter V. Ex. a entre n6s.

    Existem homens que se estiolarn inteiramente quando estIofora da Patria. Sao a maioria, Outros costumam-se divertir;foi 0caso de Odiseo, na sua volta de Itaca, em que por vezesperdia inteirarnente a nocao do seu destino, como 0 fez nosbraces da musa Calipso,

    V. Ex." nem se estiolou, nem sedivertiu. V. Ex.' trabalhoue trabalhou muito. Difundiu com a mais arnpla generosidadetudo aquilo que aprendeu ao longo dos mos. E rornou-se umaponte cultural entre Coimbra e Salvador, ponte essaque durarapelos tempos afora.

    Na realidade, essaponte foi mais urna dentre as intimerasque ligam Portugal e Bahia, a mais portuguesa das cidadesbrasileiras, V. Ex. ' deve ter-se sentido agradavelmente sur-preendido quando chegou a Bahia, tal a sua aparente semelhancacom as cidades da sua Pima. Mas depois, quando 0seu conhe-cimento foi-se aprofundando, V. Ex." deve ter t ido urn mundode surpresas ao constatar quao profundas sao as dessemelhancasentre Bahia e Portugal.

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    E que a Bahia, como dizia uma vez 0poeta e pintor AugustoRodrigues, em uma linda manha de s ab a do , - a Bahia e U111verdadeiro caldeirao. Ali estao por certo os ingredientesportugueses que constituem a maioria. 0cozinheiro anonimo,porem, que e 0 tempo, all tambem colocou ervas e acepipesos mais estranhos. Outros especimes se criaram sponte sua,ao terrivel calor do fogo. E 0 resultado somos nos, portugueses,sim, sern diivida, mas antes de tudo bahianos,

    A marca que eu chamo de bahianidade impregna tarnbemprofundamente os seus juristas, V. Ex.' trazia uma classicsformacao de civilista europeu, cristal izada ao longo dos anos,em sua pureza formal e seu rigorismo tecnico. Vindo a Bahia,houve 0 seu encontro com ORLANDOGOMES,0 rnaior dosjuristasbrasileiros, que e sobretudo um jurista bahiano. E algO demuito interessante deve ter surgido para ambos, nesse contactoquase que diuturno q_ue mantiveram durante cinco anos.o europeu, ao convivio do mestre bahiano, deve ter sechocadomuitas vezes e muitas vezes a sua propria revelia deve ter serefonnulado em seus conceitos. 0 jurista bahiano deve ter seaprimorado cada vez mais, no retorno as suas origens, no contacrodiario com a inteligencia privilegiada da qual V. Ex.' e possuidor.E de todos - perdoe-me 0audita rio a imodestia, de todos quemmais Iucrou foi 0 orador que vos fala; t ive a inigualivel honrae a felicidade Impar de ser aluno de ambos.

    Nem tudo 0 que V. Ex. ' trouxe de Portugal como certo foipor nos aceito incondicionahnente. 0 jurista bahiano, aocontrario de V. Ex. at nao costuma ser urn homem com 0dom daf e . Ele se caracteriza mais pela esperanIYade que e portador eque transmite como urn farol colocado no futuro distante deseus disdpulos. Nem tudo - repito, foi aceito; mas tudo foiouvido e tudo foi e continua a ser meditado. Para 0 aprimo-ramenro do nosso saber e para a arnpliacao dos nossos horizontesintelectuais,

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    v. Ex. ~foi recebido na Bahia - por certo 0mais doce dosexilios - como a Bahia tem recebido a inf luencia portuguesa.Ostraces culturais danas;ao amiga marcaram-nos - e imposs ivelnegar, profundamente. Mas a sobrancer ia , a rebeld ia , a corageme0orgulho bahianos , muitas e mu i ta s v ez es tem semanifestado aolongo dos tempos, em uma serie de conflitos, sempre inevitaveis ,entre 0conquistado e 0conquistador.

    Sera a Bahia conquistivel? Nfo sei ate que ponto e porquanto tempo. Por vezes e la parece debi l e subservience, mas derepente el a se transforma e e capaz de atitudes surpreendentes,boas ou m a s .o seu destine (dda Bahia) estava tracado no Regimento queEI-Reyfezpara Tome de Souza, quando ordenou de mandar nasditas terras, fazer uma fortaleza e povoacao grande e forte.Cumpriu-se 0vaticinio de El-Rey. A Bahia transformou-se emuma cidade grande e forte. Nao mais, como desejava El-Rey,em proveito dos seus Reinos e Senhorios , Mas 0 vinculo entreBahia e Portugal continuou; e reforcou-se muito, especialrnenteno campo das letras jurldicas, com a presenca de V. Ex." entren6s.

    Fomos capazes,n6s os bahianos, - fomos capazes de todas asrebeldias contra a naAtaoirma que nos colonizava. Na guerra deindependencia militou um ascendente direto meu, cujos relatoriosao seu comandante foram encontrados ha anos atras. Nestes, porvezes de comentava: detivemos tres ou quatro portugueses osquais sehao de ter por mortos, porque nao fazemos prisioneiros.E , professor, naquele tempo a Bahia era toda rebeldia. Ela erarealmente inconquistavel. ..

    Nao nos conquistou 0Conde dos Arcos, que fora a sua epocao mais empreendedor dos nossos governantes, ao tempo deD. Joao VI no Brasil . A ele sedevem a nossa primeira bibliotecapublica, 0forte da Jequitaia, 0termino do Teatro conhecidocomo a Casa da Opera; promoveu 0 desenvolvimento do

    .~.

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    extremo sul, a moder n i zacao de nos sos engenhos, construiu 0hoje predio da Associas:ao Comercial e disseminou a instrucaopublica por toda a provincia. Deixado 0 govemo da Bahia,feito Ministro no Rio de Janeiro, indispos-se, foi demitido eembar cou no brigue Treze deMaio para Portugal.o brigue Treze de Maio arribou a Bahia. Deixemos queBraz do Amaral conte 0 resto: 0 benemerito conde dos Arcoschegou, pois, quasi como um proscripto a esta mesma terra ondefora, hibem pouco tempo, tao elogiado, que 0 sr. de Tollenareteve pena dos discursos que e11esupportou, quando 0 corpo docommer c io the offereceu urn bai le ,

    E dirigiu-se a junta govemativa, que substituira 0 conde daPalma, pedindo licenca para desembarcar, ou consultando-a sobreeste desejo.

    Entristecamo-nos com a decisao e 0mais que ocorreu.A junta, em resposta, nao s6 prohibiu que desembarcasse naBahia 0seu maior e melhor reformador, como intimou 0brigue

    a conduzil-o em custodia e a entregal-o preso em Lisboa!E pessoas houve que percorreram a cidade baixa e os caes,ameacando 0 ex-governador, se chegasse a desembarcar, comimproprerios e insultos; e deste mesmo do edificio da praAtadocornmercio, que e11ehavia auxiliado a construir, que havia inau-gurado e onde tantas homenagens recebera, com bailes epresentes, protestos de dedicacao, onde se havia pretendidoconstituir em seu beneficio um vinculo de 100 contos de reiss,em gratidao da grande pruden cia, docura e exemplar justicada suaadministracaos, foi 0seuretrato rerirados.Que misterio existe nesta terra, que por vezes renega osseus benfeitores, acolhe aventureiros, derrama-se em elogiosfaceis e e capaz das piores impiedades? Como descobrir a sualinha mestra, aquele fio que nos une inegavelmente a Portugal,a quem somos aomesmo tempo tao semelhantes e de quem somostambem tao diferentes?

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    Diflcil sabe-lo. Essa missao e talvez mars propna dospoetas do que dos juristas. Porque os poetas pensam por outrosparameeros, que os nossos juristas nao deveriam colocar emjogo, se exercitassem a jurisprudencia, com a frieza e a purezade raciocinio propria dos europeus. Acontece porem que naBahia, nem os juristas conseguem percorrer os caminhos dodirei to, inteiramente leais a s regras do jogo. Aqui e alirepontam traces da poesia em Rui, aqui e ali, muito frequentes,surgem visoes na personalidade de ORLANDO GOMES. Aqui e alio nosso homem da lei cede a tentalfao de tornar 0direito a maispoderosa dasescolasda imaginacao ...

    Parece-me que foi urn jurista, - rnais conhecido comopolitico, mas era Professor de nossa Escola, - parece-me quefoi um jurista aquele que conseguiu levantar a ponta do veudo misterio que oculta a linha mestra da nossa terra em relacaoaos estrangeiros. Disse ele certa feita uma frase, em urn comlcio,Frase que as geracoes p6stumas a ele vern repetindo, sem reflectirsobre ela e sem sequer saber quem foi 0 seu autor. DisseSeverino Vieira: a Bahia nao se vende, a Bahia nao se da; ela seconquista pelo coracao. Certamente ele nao pronunciou tudo 0que sentia no momento, porque, polit ico habil que era, naquelahora falava ao povo bahiano. E 0povo bahiano talvez nao rece-besse a frase na sua inteireza, que, no meu modo de ver e aseguinte: a Bahia nao se vende, a Bahia nao se da; a Bahia seconquista com a inteligencia e com 0coracao.

    Esci assimlevantado 0veu do misterio, Esci explicado porquea Bahia recebeu josf BONIFACIO,rn estranho, na volta do exilio,com run homenagem jamais prestada tao expressiva a urn dosnossos conterraneos e que provocou nele a celebre expressao:a Bahia, de seios titarucos, que recebe os exilados de outrasplagas, para cored-los de luz.

    Em relacao a Portugal. nos os bahianos nao somos n6s: n6ssomos 0 espeJho de n6s pr6prios. Nao toleramos ser conquis-

    tados, nem queremos conquistar pelas armas. Mas, a semelhanca,a igualdade, a busca de n6s pr6prios, da nossa identidade primitivaque se perdeu ao longo dos tempos, faz com que, de repente,nao mais que de repente, bravos lusitanos nos reconquistern,contanto que 0fa~am pela cabeca e pelo coracao.

    Foi 0que V. Ex. ' fez, professor; V. Ex.' , mestre e cavaleirodas pelejas do direito, V. Ex.' conquistou a Bahia.

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    1. Sobre proposta do Colegiado do Corso de Graduacaoda Faculdade de Direito, nascida da InJicafiio formulada nostermos regimentais por urn dos seus mais dist intos membros,o Professor Pedro Manso Cabral , houve Vossa Excelencia porbern, Magnifico Reitor , depois de previa aprovacao da delibe-ra.s:aopelo Conselho Universi tar io, dist inguir-me com a con-cessao do titulo de doutor h on o ri s c au sa da Universidade Federalda Bahia.

    Nenhuma merce honorffica, nesta recta final de uma carreirauniversitar ia ja bastante dilatada pelo tempo, poderia ser maisgrata ao meu esplrito, nem mais cara ao meu cor~ao de juris-consulto lusitano, do que este supremo galardao academicoconferido pelo prestigioso estabelecimento de ensino da vetustacapital soteropolitana.

    E sempre lisonjeiro para urn escri tor receber das rnaos dosseus confrades a mais significaciva das veneras com que ascorporacdes universitarias, da mais pura cepa medieval, podemdistinguir a obra publicada em qualquer ramo da ciencia.

    Ocorre, entretanto, que na InJ ica fao levada por MansoCabral ao laudo dos seus pares se salienta que a principal causajust if icat iva da dist incao proposta provem dos services que euprestei a Universidade da Bahia em geral, e a s suas Faculdades deDireito em especial. Pretendia 0 proponente amavelmenterealcar, nao s6 a actividade docente regular que, durante mais decinco mos, exerci nos cursos de gradua'rao das Faculdades deDireito das duas Universidades da capital, mas tambern a parti-cipacao destacada que tive na implantacao dos Cursos deMestrado de Direito e no funcionamento dos cinco primeirosCursos desse tipo na Univesidade Federal da Bahia, onde usufrufo privilegio inestimavel de cooperar intensamente COm essafigura Impar da universidade bahiana e do pensamento jurfdiconacional, verdadeira gloria da literatura juridica luso-brasileira,que e Mestre Orlando Gomes.

    A homenagem processada em tais circunstancias, nao tantopara premiar a obra de urn autor distante, como para louvar 0esforco docente durante anos desenvolvido aqui, num meiocultural particularmente exigente como 0de Salvador, partindopara mais a iniciativa de alguns dos mais dotados discfpulos ehoje colegas do agraciado e sendo os alunos os melhores juizesdos seus Mestres, traz naturalmente ao nosso pensamento, pdacorrente 16gicada associacao de ideias, a imagem desvanecedorada coroa de louros com que a Roma augusta cingia a fronte dosfilhos que no campo de batalha haviam sabido merecer a viroria,

    E see sumamente honroso para osmilitates ver reconhecida asua bravura contra os inimigos da Patria, menos saboroso naoe para os homens de paz, como os ensinantes do Direito, 0sim-bolo reconfortante do triunfo nas arduas e incruentas pugnasdo Esplrito, em prol do saber e da cultura dos jovens que seraoos futuros servidores da Patria,

    Sobretudo quando, como no caso presente, 0 sfmbolo damissao cumprida se traduz, nao na lantejoula efemera que apenas

    DISCURSO DE AGRADECIMENTO DO PROFESSORDOUTOR J. M. ANTUNES VARELA

    MAGNIFICO REITOR DA UNlVESlDADE FEDERAL DA BAHIAEX.MO SENHOR DIRECTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA

    UNIVERSIDADE FEDERALDQUTOR ORLANDO GOMES, PROFESSOR EMERITO DA

    FACULDADE DE DIREITOSAPffiNTISSIMOS PROFESSORESPREZADOS ESTUDANTESMINHAS SENHORASMsus SENHORES

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    2. Mas outros acidentes do acto, de igual modo signifi-cativos, concorrem de varies lados para tornar singulannentegrata ao meu espirito de modesto cultivador do Direito agenerosa homenagem dos colegas bahianos,

    Refere-se ainda, com efeito, no formoso texto da Indicafiiode Manso Cabral, que na Bahia eu desenvolvi, durante cincoanos, destacada actividade como advogado militante.

    Posso mesmo acrescentar, como uma especie de glosaacurciana ao registo do facto, que esse encontro intenso com 0momento pratico do Direito constitui uma das mais gratificantesrecompensas da minha passagem pela Bahia, quer comovivencia plena da mensagem de altruismo cristao que encerratodo 0mandate forense, quer (num outro plano), como instru-mento insubsr iruivel de captacao do verdadeiro pensamentojuridico,

    So no contacto diario com os problemas - tantos delesverdadeiramente angustiantes! - trazidos ao gabinete pdoshomens de carne e osso que saO os dientes dos advogadosme foi possivel avaliar a real grandeza moral do patrociniojudiciario, cuja dirnencdo senio cinge a barra do pretorio nema peleja escrita das secretarias judiciais, E so a contemplacaodirecta das realidades conae t a s da vida, facultada pela advocaciamili tante, me ajudou a alcancar muitas vezes 0 exacto sentido ealcance do pensamento abstracto da Lei.

    Foi mais facil, depois dessa experiencia revdadora, com-preender 0 protesto de Ph. Heck, pai da revolucionaria juris-p r ud 2 n ci a d o s i n te re ss es , ao afirmar que mos trabalhamos, nao para

    receber 0 r6tulo de cientistas, mas para servir a vida1. E rivernenos dificuldade em compreender a profunda viragem dopensamento operada em Ihering, depois da famosa conferenciade Kirchmann, ao declarar peremptoriamente, contra 0 espiritoreinante da epoca, que avida nao e 0conceito; os conceitos e queexistem por causada vida. Nao e 0que a logica postula que ternde acontecer; 0 que a vida, 0 comercio, 0 sentimento juridicopostulam e que tern de acontecer, sejalogicamente necessirio oulogicarnente impossivel.

    Se fosse necessario, depois desse tirodnio inesperado,exprimir numa sintese, para os meus ouvintes ou leitores, ascon-clus5es mais importantes recolhidas do triplice posto deobservacao que a vida de jurisconsulto sucessivamente meproprocinou - a de t eo r i co e n s in a n t e da Lei, a de legislador e a deprtftico do Direito -, talvez as pudesse condensar em d u as i d ei as ,aparentemente contraditorias: a h um ild ad e d a lei, por urn lado;a r iqueza do direito, por outro.

    se coloca ao peito e brilha em dias festivos da colectividade, masno titulo que perpetuamente vai l igar 0 portador aos mais lidi-mos representantes da instituicao, onde 0 seu coracao ficou,alias,preso pelas fortes a.marrasespirituais da saudade.

    III.J .

    iI1~

    3. A nota da humi ldade da lei, de sentido oposto aofen6meno geral que Carbonnier inti tula de panjur i smo 2, apontaespecialmente para os l imites da coercao, para 0 plura l i smo

    jurfdico e para a c on ti nu a e vo lu fi io do s is te m a a x io l O gi co que 0legislador e chamado a servir.o Direito e , nas suas coordenadas essenciais, urn s is te m a i d ea l ,mas coercive, de d i sc ip li n a s o ci a l, destinado a regular as relacoesentre os homens, sob 0 signo da justifa e da seguran fa .

    o micleo fundamental do sistema e constituido pelas normaslegais, de expressao geraI e abs t rac ta ; mas seria urn erro supor quetodo 0direito objectivo se reduz ao ideirio norma i i vo , deixandofora dele todos os comandos coercivos de expressao individual

    1 . W ir a r be it en n ic h t u rn d a s P r ad ik .! t ( W is se tl Sc h a! t> z u e rh a lt en , s Q nd em u mden Leben zu d ienen>(Begr l f fs b i I Jung Im d In ter es sen jur is pr udenz, pag. 24) .2 J . CARBONNIBR, Flexib le dr o i t, S . " e d ., 1 9 83 , pag. 22 .

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    Jou caulstica, designadamente as sentencas, os despachos, asprovi-soes administrativas, os contratos e os neg6cios unilaterais,como se a decisao judicial ou a clausula negocial se confundissemcom a outra vertente da realidade juridica - 0d ir ei to s ub jec ti vo -ou fossem corpos estranhos a galaxia terrena do Direito.

    Erro de maior tomo seria ainda 0 de reduzir a expressaodo Direito a coleceinea das d e ds o es j u d ic i ai s , mesmo sabendocomo e vasta a contribuicao diariamente trazida pela actividadejurisdicional a clarificacso e a interpretacao do direito cons-tituido e nao ignorando a enorme influencia que os criteriosde interpretacao dos j uizes reBexamente exercem na vida derelacoes que nao chegam a desencadear qualquer processo con-tencioso entre as partes.

    Sao imimeras, na verdade, as relacoes sociais que nascem,se desenvolvem e extinguem sob 0 signo coercivo do direi to,em areas onde nao existe nenhuma corrente jurisprudenciaIdefmida e que os interessados processaram inteiramente a margemda actividade dos tribunais.

    Mas menos descabida nao seria a ideia de que 0 Direitoabrange, numa visao totalitaria da sociedade ou do Universo,toda a a c ti vi da d e s oc ia l do homem ou toda a c on du ta h um a na eminterferencia intersubjectiva, como poderia depreender-se daspremissas basicas da teoria cossiana.

    Sao vastissimas as zonas da vida social do homem emque 0 Direito nao interfere, ou por pertencerem a outroscomplexes normativos reguladores da vida de relacao (como areligiao, a co ttezia , os usos soda is , a l t ica) ou por se situarem dequalquer modo naquela ampla area do relacionamento dosindivfduos a que alguns autores chamam generica, mas sugesti-vamente, 0mundo do nao-direito.

    Mas hi mais.No Wibito da esfera de relacees dominada pelo Direito,

    nem s6 a ordenacao emanada do legislador nacional rege as

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    relacoes dos homens dentro do espaero geografico de cadaEstado.

    De acordo com 0 sao p lu ra li sm o j ur ld ic o , que rnais fiehnenteretrata a realidade social e rnelhor corresponde ao novo espiritodos tempos, ha que reconhecer, dentro de cada 6rbita estadual,a existencia de outros astros que, ao lado do legislador nacional,tambem iluminam, sob perspectivas diferentes, a actuaeraointer-individual dos cidadaos.

    As chamadas obrigtlfoes naiurais , por exemplo, ai estao adernonstrar como os deveres nascidos em rnatriz diferente dodireito podem ter importantes reflexes de caracter juridico naqualific~ao e no regime dos actos do homem destinados acumpri-los, .o direito i n te rn a c i on a l p r iv a d o , nlo encarado sob 0 prismadeformador da escola nacionalista italiana, ai esta, por seu turno,a provar como e possivel a coexistencia do ordenamento jurf-dico de raiz nacionaI com os multiples nticleos especificos denormas que acompanham, COluOconcha agarrada a ostra, quera condicao jurldica dos milhares de estrangeiros que inte-gram a comunidade populacional do Estado, quer a sorte deoutras rd~oes, presas pelos seuselementos relevantes de conexao,em aspectos essenciais da sua estrutura ou da sua fWleraO,adiferentes ordenamentos juridicos.

    E diferente nao e 0panorama oferecido pelo d i re i t o c a n sn i co ,naqueles Estados em que haja sacerdotes ou instituicdes sujeitasao seu estatuto ou em que 0 casamento cat6lico, com umafisionomia sacramental distinta da que caracteriza 0 casamentolaico, seja reconhecido q u a t al e, nao farisaicamente apenas, mas deacordo com 0 ta l p lu ra li sm o j ur fd ic o que deve iluminar todasasrelacoes dos individuos com 0Estado.

    E e possfvel ir ainda mais longe, na operacfo de delimitacaoda conduta humans verdadeiramente coberta pelo Direito,

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    E que, havendo extensas areas do comportamento individuala urn tempo abrangidas pelo Direito e por outros complexesnormativos disciplinadores da actuacao do homem, entre osquais se destaca a Moral , sao inumeros os actos das pessoas que,potencialmente subordinados embora a ordem juridica, naovisam realizar 0 Direito, mas satisfazer apen:..s prescricoes deoutra natureza.

    Quantos de n6s, na vida do dia a dia, ao comprar 0jornalque lemos ou os cigarros que furnamos, cumprimos obrigacoesjuridicas, nao com os olhos pastos no Direito e nas sancoesespeclficas por ele cominadas, mas obedecendo instintivamentea preceitos de or 't ra ordem que integram, la hem no fundo daconsciencia, a forma~ao moral de cada cidadilo?

    4. Todavia, mesrno assim,reduzido asjustas proporcoes doseu condado, e imensa a riquez e enorme a complexidade destegrande senhor a quem osjuristas se honram de servir e a quemse nao cansam de louvar.o Direito e, realmente, sob varies aspectos, 0 principalinstrumento de disciplina da vida do homem, como ser livre,como ser r adona l e como ser e m in en t em e n te s o ci a l.

    Ter a ordern juridica por destinatario 0 homem como serlivre, tal como 0 Senhor, nos termos sugestivos do Genesis,o criou a imagem e semelhanca de Deus e 0 instalou no Jardimdo Paraiso, 0 mesmo e dizer que 0 primeiro valor de todaa Ordem Juridica consiste na liberdade, quer ela se traduza noplene florescimento dos valores da personal idade , quer se exprimano prindpio da a u to n om i a p ri va d a, como poder de auto-regu-lamentacao vinculativa dos interesses individuals.

    Mas ja nao pode significar, nem que a liberdade tute lada seidentifique com a arbitraria op~ao do homem entre 0 be m e 0mal , nem que a liberdade individual seja 0 ~ n ic o v al or protegidopela ordem juddica.

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    J a Ihering, ao refutar a tese classica de Windscheid queidentifica 0 d i re it o s u b je cr iv o com 0 poder d a u o nt ad e, AAr111avacom veemencia que 0 Direito nao e a arena construida paraque a vontade dos individuos se possa espojar livremente. Emais adiante, prenunciando de certo os ventos novos do in ter -venclonismo, HaOfaltaria quem afirmasse que, na luta constanteentre 0 forte C0 fraco, e a l iberdade que oprime e a it/tervet/faOda lei que libert,

    E que a lei se nio dirige apenas ao homem como s er l iv r e,mas tambern a pessoa como ser radonal , ao service da Justifa edo b e m c o m u 1t l.o apelo do Direito a r az ii o d o h om em como destinatario dasnormas juridicas nao se identifica, de modo nenhnm, com 0recurso a r a zi io a b s tr a ct a (ao logos dos velhos fi16sofos gregos)como instrumento do p en sa m en to s is te ma ti co que alguns creernsubjacente a ordem legal constituida.

    Essaideia, que fez escola, sob diversas metarnorfoses, com 0i luminismo, 0fusracional ismo, com 0 v o lu n ta r is m o j u rf d ic o e a escolada exegese, com 0 p an dec ti sm o g er ma ni co e com 0 p o si ti vi sm o l eg a lde raiz comtiana, que tao excelentes services prestaram a l i a s a todaa ciencia jurldica, encontra-se hoje, sobretudo a partir dasegunda metade do seculo, definitivamente ultrapassada,

    A simples 16gicaformal , consubstanciada nas puras deducoesda razso abstracta , e largamente insensivel as minuciosas exig~aciasda f u s ti f a na rmiltipla variedade das situacoes reais que reclamama intervencao do Direito, e nlo pode naturalmente acompanhar,na rigidez dos seusinstrumentos, a e vo l uf il o c o ns ta n te dos criteriosde justica apliciveis aos diferentes institutos 3.

    Assim se explica que, antes ainda do dobrar do meio seculo,a chamada f u ri sp r u d~ n c ia d o s i n te re ss es , sob a batuta inspirada de

    3 Vide, por todos, LARENZ, Allgemeiner Tell d e s d e u ts c 1 te n b u r g er li c h mRechts , 5.aed., 1980,4, I, pdg. 63 .23 B.F.D. UBi

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    PH. Heck, 11a sequencia da distincao bern vincada pela escolasudocidental de Baden ent re as db/das do ser e as c iel lc ias ax io l~~ icasdo dever-ser, tenha apontado antes, como elemento mais idoneo eseguro de construcao da ordem jurfdica, pna 05 c or if li to s d einteresses previstos em cad a nonna e para as [u izos de pa lorcont idos, exp lic it a ou implici tamente, na solucao legal de cadaurn deles ,

    Siniplesinence, a vida submetida a discipl ina do Direito uaose comp5e apenas de c on fi it os d e i nt er es se s, que importa dir imir ,mas tambem de comunhies de interesses, que convent orgallizar.E, pior do que isso, quer a j wi !, pr ud en ci a d os i ut er es ses , quer ajl lr is pm den ci a d os v al or es , a lem de deixarem 0julgador de maosvazias, inerme, sempre que falhalll os juizos de valor encarnadosna Lei 4, nao revelam a necessaria sensibil idade perante os va lo-res da certeza e da s eg u rm l fa j tl r id i ca , que nao podem deixar deapoiar-se numa relativa uuiformidade formal e substancial d o d i re it o .E precisamente nes tes dois pontos capitais que julgo rasgaremnovos horizontes a cienc ia juridica nacioual duas das formulasconsagradas no novo Codigo Civil portugues, a que tenholigada alguma responsabilidade pessoal .

    AErmando expressamente que, na fixar;ao do sentido ealcance da lei , 0 interprete presumirt: que 0 legislador consagrouas solucoes m a i s a c er ta d a s, como quem diz as m a i s j H s ta s , 0Codigoautoriza abertamente 0 interprete a considerar exc1uidas doambito da norma legal todas as situacoes que, embora abran-gidas no texto dela, nao encontrem nela uma solucao justa ouacertada.Mandando, por outro lado, solucionar as situafoes omissas ,na falta de c as o a n al og o, de acordo com a norma que 0 pr6prio

    4 Cfr. LARBNZ, ob . dt., pag. 64 e, entre os autores portugneses, ORlANDODE CARVALHO, C r it er io e e st m m ra d o e st a be le ci m en to c o m er ci a l, Coirnbra, 1967,pag. 783, nota 157.

    .._"..!

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    iuterprete criaria, dcntro do CSplf1CO do sistema, trcs directr izesbem definidas traca 0 ordcnamcnto lusitano.

    Exigindo do julgador a j or nw la f( io p re pia da norma (gera l eabstracta) na qual a solHfao do casu concreto sc deve funda-menta r, a le i pretendc mauitestamente afastar a equidade comofonte geral de direito, repudiando do mesmo passo ajurisprudblciado sen tin ten to , bem como todas as correntes doutrindrias que,desde a escola d o d ir ei tv l iv re, de Geuy c Kan torowicz, a te a . topicaret6rica de Wiehweg, passando pela teo ria ego16gica 5, abrem asportas da cidadela do direito ao pcrigoso e i ll co ll tr ol ap el s H b-jectipisrtlo do julgador.o tracado prelim inar da r cg ra g er al consti tui , na verdade,um manifesto ape/a, no iuomento decisivo de intcgracao judicialdo sistema, 1 1 a O ao sen timeuto do julgador, nao a justira da especieconcreto , nao a iuera solll~iio e modoua ! captada nas ruelasesconsas da intuifiio, mas it razao esclarecida, ao cspirito gene-ralizante do interprcte do pcnsamento juridico.

    Nao se trata, todavia, do classico chamamento da razdoabstracta, iluminada pelos c on ce it os g eM i .\ ' mobilizados n a lei,mas do recurso a uma raziio de inspiracao empirica, au ate exis-tencialista se assim preferirem chamar-lhe, estimulada pelassituacoes concretes da vida, embora nortead a pelo esp /rita dos is tem a - movendo-se d en tro do esp lrito d o sistem a, para mar af6rmula lap idar do C6digo.

    Fica deste modo em c o nt in u a g es ta fa o , principalniente porobra e grar;a da actividade aiadora, nao merarnente cognitipaou indagativa da jur isprudencia, urna importante componente dedireito ideal, destinada a actuar dentro do aparelho normativecomo uma cortente de af c on st au tem en te r en ov ad a, capaz de

    5 Cfr. , a prop6si to desca, a breve mas pert inentc recensao c ri tica deCABRAL DE MONCADA a T eo tl a d e /( 1 rerd(ldjur idica, de C. COSSIO (no Ba l . Fac.Dir., Coimbra, XXX, 1954, pag. 410 e segs.),

  • 8/6/2019 Antunes Varela, Orlando Gomes

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    assegurar a perpetua respiracso do sistema dentro do ambienteespedfico de cada epoca.

    Dir-se-ia que uma camada bastaute espessa de d i r e i to n a t ur a l,imanen te no sistema constituido, garante assim a permanentereconstltuicdo dO'ordem juridica privada, dentro de parametressatisiatorios de cet teza e de seguranfa do Direito.

    moco enamorado das causas nobres --, que foi Castro Alves,.aBahia de Teixeira de Freitas, 0 jurista de saber fmne e euci-clopedico, a Bahia de Orlando, 0mestre insigne que todos nosestimamos e todos os brasileiros admiram, a Bahia do nosso-coracao, a Bahia que, como diz a cancao popular, I JOS Hao sa ldo pensamento ,

    5. No dia festivo em que os mestres bahianos de leis meconferem a honra estimulante de integrar sen colegio doutoral,este c an ti c o d e fi nas pontencialidades criadoras de unia ordemjuridica nova, que eu esforcadamente ajudei a construir comoutros artifices da velha grei lusitana, numa epoca em que porvarias colinas do pensamento europeu os sinos tocam a dobradosper il t ra m on to d el d ir it to , constitui 0 melhor hino de reconhe-cirnento e de louver que consigo arrancar das cordas da minhacitara de jurists peregrinante, em exaltacao da ciencia queprofesssamos e da disciplina que forma 0 cerne do nossoEspirito.

    Louver, pois, a ti, 6 Direito e louver sobretudo a Justiya,tua companheira inseparavel de todas as epocas e de todas aslatitudes da terra.

    6. E penniti, Senhoras e Senhores, que, ao agradecer asaudacao fraterna de Manso Cabral e a mensagem afectiva daselecta assistencia presente no acto, uma ultima palavra de louverseja ainda entoada nesta sala em. preito s imbol ico de gratidao aurbe encantadora que a todos envolve e ao Estado privilegiado,de forte personalidade Hsica e moral, que Salvador encabeca.Preito de homenagem, numa palavra, a histories Bahia de todosos Santos, a Bahia enfeiticada do Senhor do Bonfim e docandomble, a Bahia do Caramuru e das Indias de olhar meigo,a Bahia de Rui, a voz eloquente do tribunado, a do poeta-