a questÃo taxinÔmica do poema dramÁtico e sua … · texto, as noções de palco e de um...

99
A QUESTÃO TAXINÔMICA DO POEMA DRAMÁTICO E SUA APLICAÇÃO NA CONSTRUTURA “CALABAR”, DE LÊDO IVO LEILA MICCOLIS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho Rio de Janeiro 13 de Março de 2007

Upload: dokhue

Post on 10-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A QUESTÃO TAXINÔMICA DO POEMA DRAMÁTICO E SUA APLICAÇÃO NA

CONSTRUTURA “CALABAR”, DE LÊDO IVO

LEILA MICCOLIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Rio de Janeiro

13 de Março de 2007

2

A questão taxinômica do Poema Dramático e sua aplicação na construtura “Calabar”, de Lêdo

Ivo

Leila Miccolis

Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção de Mestre em Teoria Literária. Aprovada por:

_________________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ

___________________________________________________ Professora Doutora Beatriz Rezende

___________________________________________________

Professor Doutor Henrique Fortuna Cairus

___________________________________________________

Professor Doutor Antônio Carlos Secchin

____________________________________________________

Professor Doutor Luis Alberto Alves

Rio de Janeiro

13 Março de 2007

3

A questão taxinômica do Poema Dramático e sua aplicação na construtura “Calabar”, de Lêdo

Ivo

Leila Miccolis

Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Ciência da Literatura (Teoria Literária) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Desde a sua nomenclatura, o poema dramático tem sido alvo de uma série de permanentes equívocos, o que o tornou um gênero híbrido, composto por dois gêneros que caminham em direções diferentes: o lírico e o dramático. Devido a tal indefinição genérica, o poema dramático não tem despertado grandes interesses nem por parte da Teoria Literária, por seu componente teatral, nem pelo lado da Teoria do Teatro, por sua literariedade. Prejudicado desde o início, portanto, por uma terminologia dúbia que lhe é mais danosa do que benéfica, uma exata categorização é extremamente importante, em seu caso, porque muda sua voz, sua perspectiva e sua própria proposta estética. Visa o presente trabalho apresentar o poema dramático em toda a sua epicidade, baseando-nos na obra de Emil Staiger, que, retomando a tripartição aristotélica dos gêneros, reformula-a, acrescentando-lhes a visão ontológica, e demonstrando, no caso do gênero épico patético, que o palco é elemento constitutivo de sua literariedade. Através de tal angulação, o poema dramático deixa de ser um “teatro literário" (uma lírica encenada) para ser uma literatura (poesia) que traz, já em seu texto, as noções de palco e de um público consigo, pela presença do narrador. Consideramos Calabar - Um poema dramático, de Lêdo Ivo, um épico, porque a obra contém praticamente todos os elementos do gênero mencionados por Aristóteles; e um épico patético, porque, entre outras características, os personagens investem contra o status quo, perseguindo passionalmente o seu ideal, qual seja: uma pátria da qual se orgulhem. Por sua vez, Calabar - Um poema dramático contém elementos narrativos inovadores, que, em vez de descaracterizar o gênero, constitui-se de material precioso para repensarmos nas aproximações e distanciamentos da epopéia de hoje em confronto com seu modelo clássico. Percebendo o poema dramático como uma das manifestações do gênero épico na pós-modernidade, queremos contribuir para uma diferente escuta dele, a fim de o entendermos melhor, promovendo também, através dessa maior precisão taxinômica em relação a ele, o início de um levantamento de dados do pathos e do gênero épico, em nossa realidade cotidiana, através da volta do trágico nas sociedades contemporâneas. Palavras-chaves: Taxinomia, Poema dramático, Ciência da Literatura, Teoria Literária, Calabar, Lêdo Ivo.

4

A questão taxinômica do Poema Dramático e sua aplicação na construtura “Calabar”, de Lêdo

Ivo

Leila Miccolis

Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Ciência da Literatura (Teoria Literária) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Since its nomenclature was stablished, the dramatic poem has been the target of a series or permanent mistakes, what turned it into a hybrid genre, composed by two genres that go to different directions: lyric and drama. Due to such generic indefinition, the dramatic poem has not incited interests from the Literary Theory, for its teatral component, and neither from the Theory of the Theater for its epic elements. Injured since the beginning, hence, by a dubious terminology that is more harmful than beneficial, an exact categorization is extremely important in this case, because it changes its voice, its perspective and its own esthetics proposal. The present work aims to present the dramatic poem in all its epic elements, based on the work of Emil Staiger which recovers the Aristotelian tripartition of the genres, it is the intention to reformulate it by adding to this idea the ontologic vision it demonstrates, in the case of the pathetic epic genre the stage is a constitutive element of its literacy. Through such angle, the dramatic poem is not a “literary theater” anymore (an acting lyric) and it turns to be literature (poetry) itself which brings to the text the notions of stage and of an audience by the presence of the narrator. It is considered that Calabar – a dramatic poem from Pedro Ivo, is an epic poem, because the work contains almost all the elements from this genre that were mentioned by Aristotle; and it may also be considered as a pathetic epic because, despite other characteristics, the characters invest against the status quo, chasing passionately their ideal, that is: a land to be pround of. Calabar – a dramatic poem that contains innovative narrative elements that instead of mischaracterizing the genre brings precious material thay maybe helpful in reconsidering the proximity and distance of the epopee from nowadays against its classical model. Considering the dramatic poem as one demonstration of the epic genre during the post-modernity, it is desirable to contribute to a different hearing of the work, in order to undestand it better, and also to contribute through this more precise taxinomic view towards it, the beginning of a data survey of the pathos and of the epic gender in our reality daily through the returning of the tragic in the actual time.

Key words: Taxinomic, Dramatic poem, Literary Science, Literary Studies, Calabar, Lêdo

Ivo.

.

5

SINOPSE

Estudo taxinômico do poema dramático na construção de Calabar – Um Poema Dramático, de Lêdo Ivo, considerando-o como uma epopéia moderna, mais precisamente um épico patético, e articulando aproximações e distanciamentos dele com o modelo épico clássico, aristotélico.

6

Miccolis, Leila

A questão taxinômica do poema dramático e sua aplicação na

construtura “Calabar” de Lêdo Ivo

99 f.; 31 cm.

Orientador: Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2007.

Referências Bibliográficas: f. 99

1. Teoria Literária. 2. Taxinomia. 3. Gênero épico. 4. Calabar. 5. Lêdo

Ivo. I. Coutinho, Luiz Edmundo Bouças. II. Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura, III. Título.

7

Para a Teoria da Literatura, como contribuição ao debate sério, ao estudo científico, e com amor.

8

À Professora Doutora Maria Esther Maciel, da UFMG, minha grande interlocutora inicial, cujos textos sobre

Teatro da Palavra deram-me alento para continuar minhas pesquisas, antes mesmo do Mestrado na UFRJ, e também por prefaciar meu

livro, ainda inédito, Teatro Poético Brasileiro;

Ao Professor Doutor Henrique Fortuna Cairus, a quem devo muito do apoio e incentivo para eu ingressar no

Mestrado, e em cujo Curso “Teoria das Idéias” nasceu a compreensão histórica da perspectiva taxinômica;

Ao Professor Doutor Rogel Samuel,

que me ajudou intensamente com sua obra para o exame de admissão ao Mestrado e que, também, sugeriu-me o livro de Emil Staiger,

no qual o presente trabalho baseia-se;

Ao Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho, que encampou meu ousado projeto de Dissertação;

Ao Professor Titular Doutor Manoel Antônio de Castro,

que me apresentou à Poética;

Ao Professor Doutor Antonio Jardim, em cujo Curso consegui aclarar as trilhas seguidas nesta Dissertação;

Ao Professor Titular Doutor Antônio Carlos Secchin,

pelos novos subsídios poéticos que seu Curso forneceu-me e por colocar-me em contato epistolar com Lêdo Ivo;

À Professora Doutora Rosa Gens,

em cujo Curso conheci Michel Maffesoli, indispensável a esta pesquisa;

Ao CNPq, pela concessão da Bolsa de estudos;

A Mauro Salles, por ter-me presenteado com a obra poética completa

de Lêdo Ivo;

A Lêdo Ivo, por compartilhar comigo o seu pensamento;

A Urhacy Faustino, por semear em mim a idéia do Mestrado e pela nova vida;

A Mônica Cristina de Oliveira, pelo exemplo de resistência, sempre;

A minha mãe, por ter-me guiado ao que sou;

Aos meus carinhosos gatos, pelos miados afetivos,

agradeço.

9

Os gêneros referem-se a algo que não pertence somente à literatura.

Emil Staiger

(STAIGER, 1969, p.165)

10

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 11

2. OS GÊNEROS 17

2.1. O pathos, na Teoria dos Gêneros Literários, intertextualizado com

a Poética, de Aristóteles, com a História (a Teoria da Narração, de

Benjamin) e com o retorno do trágico (questões sociológicas

apresentadas por Maffesoli) 17

2.2. Importância da Taxinomia na contemporaneidade 22

3. O GÊNERO ÉPICO 30

3.1. Staiger e a conceituação do poema dramático dentro da sua

reformulação da Teoria dos Gêneros Literários 30

3.2. O pathos épico e a linguagem cênica do poema dramático: a noção

do palco em sua literariedade e gênese 33

3.3. Os recursos literários epicizantes no Teatro épico (didático) de

Brecht, a linguagem cênica do poema dramático e o processo

de transcriação – terminologia originariamente proveniente da

Teoria Literária 36

4. A VISIBILIDADE DA QUESTÃO TAXINÔMICA DO POEMA

DRAMÁTICO EM CALABAR, DE LÊDO IVO 43

4.1. A construção estrutural dos personagens e a temática narrativa épica

no poema dramático de Lêdo Ivo 43

4.2. Os encontros e aparentes desencontros com o formato épico

aristotélico 60

4.3. Aprofundamento dos planos histórico e maravilhoso na atualidade e a

literariedade como função de integração entre ambos, em Calabar

– Um poema dramático 64

5. CONCLUSÃO 83

6. BIBLIOGRAFIA 86

7. ANEXO: Entrevista de Lêdo Ivo concedida através de carta, sobre

“Calabar” – Um poema dramático, de sua autoria 93

11

A QUESTÃO TAXINÔMICA DO POEMA DRAMÁTICO E SUA APLICAÇÃO

NA CONSTRUTURA “CALABAR”, DE LÊDO IVO

1. A TAXINOMIA – INTRODUÇÃO

Orbita a presente pesquisa em torno da Taxinomia da composição literária denominada

poema dramático, considerado esse, em geral, como uma modalidade híbrida, amálgama

constituído parte de poesia e parte de drama, como a própria terminologia parece à primeira

vista sugerir. A partir dessa intitulação ambígua, que aparenta fundir dois gêneros diferentes –

o lírico, através da poesia, e a tragédia, através do drama – o poema dramático padece com tal

indefinição de caminhos, acabando por ver-se esquartejado em suas partes, sem que sejam

reveladas e avaliadas as múltiplas riquezas de sua literariedade.

A reflexão a que nos propomos tenta suprir essa espécie de lacuna e apresenta-se

relevante não apenas para a Teoria dos Gêneros como também para o estudo do processo de

Transcriação Teatral, neologismo oriundo também da Teoria Literária, criado pelo crítico e

poeta concretista Haroldo de Campos, para designar as técnicas e procedimentos atuantes na

tradução poética, entre eles a “transcodificação” e “criação”. O conceito haroldiano foi

estendido ao teatro por Linei Hirsch, abrangendo obras dramáticas advindas da Literatura –

categoria em que o poema dramático inclui-se à perfeição.

Convém esclarecermos, de antemão, que nossa pesquisa não se desvia do âmbito da

questão taxinômica, mesmo que haja, em determinados momentos, certas incursões por

matéria aparentemente extraliterária: nós não adentraremos pela área da intertextualidade da

Teoria Literária, a fim de não nos dispersarmos; tal livre trânsito não se configura, portanto,

em afastamento ou inadequação à questão taxinômica; muito pelo contrário: a ela está

intimamente ligado, porque existem gêneros (o dramático e o épico) que, ao lidarem com o

pathos, carregam em si o palco e, portanto, componentes teatrais dentro da constituição da sua

própria literariedade.

Para definirmos com maior precisão o gênero do poema dramático recorremos,

principalmente, à obra de Emil Staiger, “Conceito Fundamental da Poética”. Embora o autor

enfatize que não exista mais gênero puro e que toda a obra poética participa de todos os

gêneros, esses “todos os gêneros” a que ele se refere são apenas três – os já delineados por

Aristóteles –, dentro dos quais se desenvolve uma gama enorme de modalidades,

submodalidades e desmembramentos. Partindo dessa perspectiva, e, através do método

12

analítico, aduzimos que o poema dramático não se prende nem ao gênero lírico nem ao drama,

mas sim ao épico (terreno no qual ele nasce, desenvolve, produz belos frutos); consideramos,

apesar das opiniões contrárias que o têm como morto ou em vias de extinção, que o gênero

épico vive com força cada vez maior na contemporaneidade.

A presente Dissertação visa a contribuir para a investigação literária, a partir do

recorte de gênero, braço da teoria da literatura que atualmente ocupa muitos estudiosos no

mundo todo. A fim de enveredarmos pela questão taxinômica do poema dramático, tomamos

por corpus, Calabar, de Lêdo Ivo, por várias razões – citaremos as quatro que reputamos mais

importantes:

1 – A primeira delas relaciona-se ao fato de que, diferente dos demais poemas

dramáticos anteriormente lidos, muitos elementos pareciam, a princípio, descaracterizar

Calabar como um épico. Exemplos: a saga acontece mais no presente do que no passado; não

há narrador à primeira vista; e Calabar não é nenhum herói cujos feitos possam ser

glorificados e louvados como exemplos modelares. Cremos, no entanto, ter vencido estes três

grandes desafios, apresentando os resultados deles no capítulo em que analisamos a obra.

2 – Essas dificuldades iniciais nos conduzem ao segundo importante motivo que nos

levou a escolher a obra em questão: é que através dela podemos, de forma mais clara,

perceber os pontos de aproximação e de afastamento do formato épico atual com relação ao

modelo clássico, uma vez que o poema dramático ora analisado apresenta em seu processo

criativo inovações técnico-literárias capazes de dar-lhe feição especial e original, sem, no

entanto, descaracterizar sua epicidade. Para nos restringirmos a apenas um exemplo, citemos a

introdução de Messias Calabar através de uma rubrica, o que seria totalmente absurdo dentro

do coro grego, por exemplo, cuja função é parabática, e não a de introduzir novos

personagens à trama e à cena.

3 – Também interligado ao anterior, o próximo fator decisivo na escolha desse poema

dramático específico foi vislumbrarmos a possibilidade de Calabar, de Lêdo Ivo, ensejar um

repensar crítico, hoje, sobre diversos elementos da estrutura épica. Referimo-nos, mais

especificamente, ao mito, ao maravilhoso e à tensão patética dentro da obra em questão: esses

componentes apresentam-se, por vezes, tão transformados, transfigurados e até mesmo

desfigurados nas epopéias modernas em relação aos modelos épicos tradicionais a que

estamos acostumados, que à primeira vista passam desapercebidos, dificultando o

reconhecimento e a caracterização do gênero épico.

4 – Deixamos propositadamente para o fim o motivo que consideramos mais decisivo:

quando ainda estávamos ponderando sobre a escolha de Calabar, uma definição de Lêdo Ivo,

13

na obra Confissões de um Poeta, acelerou nossa resolução: “Poesia: encontro / do Ser e da

Palavra / numa melodia!” (IVO, 1979, p.134). Essa visão ontológica, tão condizente com o

teor da obra staigeriana na qual embasamos a referência do palco ligada à literalidade do

gênero épico patético, deu-nos a convicção de termos encontrado o corpus exato e ideal para

o desenvolvimento da análise aqui proposta.

A dificuldade maior que tivemos, ao longo de nossa trajetória, residiu na carência

absoluta de obras que associassem o poema dramático ao gênero épico. A quase totalidade de

autores contemporâneos considera o poema dramático como “gênero híbrido”, classificação

que, longe de clarificar sua essência, confunde e complica ainda mais sua compreensão, posto

que as expectativas de um texto lírico não são as mesmas de um texto dramático ou de uma

epopéia; cada um deles origina frames interpretativos, perspectivas, funções, e finalidades

literárias e direcionamentos diversos. Não se trata de uma questão de somenos, portanto, a

busca e a compreensão da natureza e da substância do poema dramático através da exatidão

de sua conceituação genérica.

Entre os autores que lidam com o poema dramático como se fosse uma espécie de

lírica encenada, está Lucrécia D´Aléssio Ferrara. Em O Texto Estranho, no ensaio intitulado

“Entre o teatro e a poesia”, a autora termina a análise de Morte e Vida Severina, de João

Cabral de Mello Neto, com o seguinte parágrafo:

Ao fim dessa análise percebemos que, em Morte e Vida Severina revitaliza-se a força dos requisitos clássicos teatrais, porque se intensifica o tratamento poético daqueles elementos à medida que sobre eles se apóia a onisciência de um narrador identificado com a subjetividade de um autor-poeta; assim sendo, o contexto geográfico e social do Nordeste e a personagem Severino têm seu processo de codificação contaminado pela veia lírica de João Cabral que, em um terceiro nível de comunicação, articula e organiza criadoramente o universo do poema. Morte e Vida Severina é, pois, uma obra que, levada ao teatro, transforma o espetáculo em revelação do poeta (FERRARA, 1978, p.19).

A dedução a que chegamos é que, para Ferrara, tão somente por ser poesia, Morte e

Vida Severina já é caracterizada como obra lírica, mesmo reconhecendo a autora que nesse

poema existe um “certo caráter narrativo que o coloca (...) no limite dos requisitos

fundamentais exigidos pelo universo teatral” (Id., p.13). No parágrafo final do livro, no ensaio

que dá nome à Coletânea, a autora nos revela seu ponto de vista do que seja Texto Estranho:

aquele que, “exatamente por colocar em risco a discursividade, a linearidade daquela

literatura” – aqui a referência é a poesia renascentista – “marca uma evolução daquela cultura

que se deixa colocar em crise para produzir um texto” (Ibid., p.85).

14

A partir dos dados apresentados por Ferrara, um texto estranho, entre a poesia e o

teatro, seria o que poria em risco a linearidade literária, precisando como que de um cisma

para materializar-se (no caso específico de Morte e Vida Severina a crise estaria na própria

poesia lírica, que conteria um certo caráter narrativo e teatral). Na contemporaneidade porém,

em que a fragmentação é a regra e a linearidade narrativa a exceção, tal explicação nos parece

tão vaga e insatisfatória, sob o ponto de vista da Teoria da Literatura, quanto definir o poema

para vozes de João Cabral como uma lírica estranha.

Qualquer hipótese pode ser aventada, mas há muito pouco grau de científico em

algumas delas. Para que possamos contribuir efetivamente para a área de Ciência da

Literatura é necessário um pouco mais de cuidado e rigor na terminologia, nas avaliações

conceituais e nas pesquisas taxinômicas. Os fundamentos básicos da presente dissertação

repousam em Staiger, que retoma a tripartição dos gêneros contida na Poética de Aristóteles e

a reformula, acrescentando-lhes a dimensão ontológica, e apresentando o palco como

referencial obrigatório à materialidade do estilo patético no gênero dramático

(principalmente), vital à sua gênese.

Se a referência de Staiger é Aristóteles, é indispensável, mesmo en passant, que

abordemos o pathos, que, em A Arte Retórica, é considerado recurso técnico para lidar com a

paixão (principalmente sentimentos de terror e de piedade, na tragédia, mas não só – há

também, entre outros, a gratidão, a indignação, a inveja). Embora mais facilmente

reconhecível na tragédia, pela sua inerente função catártica, o pathos também conviveria com

o gênero épico, sendo fator importante na transmissão da tradição, fazendo com que os

ouvintes memorizassem o conselho implícito contido na narrativa e, por sua vez, o

transmitisse também. Se as pessoas são movidas pelas paixões, é através destas que

persuadimos e convencemos aquelas.

No percurso da Grécia à contemporaneidade, passaremos por Walter Benjamin e

Michel Maffesoli. Embora não tenha escrito nenhum estudo específico sobre o gênero épico,

Benjamin nos é de extrema importância pelo embate que trava entre o épico e o romance,

quando acusa veementemente o último de sufocar progressivamente o gênero do qual emergiu

(o épico). O romance, no pensar benjaminiano, é típico produto do individualismo solitário,

marca registrada das sociedades pós-industriais; o épico, ao contrário, traz em si um sábio

aconselhamento à coletividade, posto que, quem contava uma história, transmitia aos outros o

seu conhecimento, através não só de sua narrativa, mas também do seu modo de narrar – nele

compreendendo-se a retórica dos gestos, entoações, pausas e ênfases, posto que nesses sinais

é que encontramos as qualidades de quem viveu a narrativa, direta ou indiretamente.

15

Quanto a Maffesoli, é por intermédio dele que entendemos melhor o retorno do trágico

nas sociedades contemporâneas (subtítulo inclusive de uma de suas obras), e as peculiaridades

de uma literatura que utiliza propositadamente a fragmentação como modo de contestação da

linearidade do discurso, de ruptura com a lógica formal e com a unidade de ação modelar

aristotélica. A análise maffesoliana do instante eterno, instante esse constituído por um

presente feito de uma sucessão infinita de “agoras”, leva-nos a perguntar se, dentro desse

contexto, há espaço para a voz épica, ou seja, para o deslocamento do passado no presente; se

respondermos não a essa pergunta, estaremos aceitando passivamente a idéia de que o épico

morreu, de que a narração realmente extinguiu-se; no entanto, se atentarmos para a função

crítica do épico contemporâneo, entendemos que o gênero, enquanto elo de ligação de

diversos tempos geracionais, é também um “local” pelo qual transita os mais diversos grupos,

muitos deles conflitantes. Maffesoli nos conduz, ainda, à reflexão sobre os mitos atuais, e

sobre a teatralidade cotidiana do jogo de duplos, através da qual o fantástico e o maravilhoso

se manifestam, de forma espetacular.

Nas incursões à Teoria do Teatro, nos momentos em que ela se convive visceralmente

com a Teoria da Literatura – acabamos de mencionar acima a teatralidade cotidiana –, nos

apoiaremos em dois grandes críticos atuais: Anatol Rosenfeld e Gerd Bornheim. De

Rosenfeld, importaremos as observações sobre os gêneros, baseadas justamente nas

adjetivações de Staiger, e as observações do teatro épico quanto à utilização de inúmeros

recursos literários. Do segundo exporemos as considerações sobre “o sentido do trágico”, para

nos aprofundar no patético dentro do contexto da contemporaneidade. É através destes autores

que alicerçaremos a presente pesquisa, visando configurar a epicidade do poema dramático

dentro do contexto da literatura atual, aqui representada por Calabar, de Lêdo Ivo.

Para realizarmos a tarefa acima citada, dividimos nossa Dissertação em cinco partes, a

saber: Introdução, três capítulos nos quais desenvolvemos nossa pesquisa, e a Conclusão.

Vamos desferir um vol d’oiseau sobre cada uma delas:

No primeiro capítulo introdutório estamos apresentando um rápido panorama do nosso

ponto de partida e de como pretendemos desenvolver nossa reflexão sobre a questão

taxinômica do poema dramático; expusemos já a justificativa de nosso corpus (e dos motivos

pelos quais escolhemos Calabar – Um poema dramático, de Lêdo Ivo), procedemos a um

sucinto histórico do que foi escrito a respeito da taxinomia do poema dramático, e delineamos

a finalidade precípua dessa nossa pesquisa.

No segundo capítulo, examinaremos o pathos, tensão estilística de grande importância

na classificação dos Gêneros Literários, por estar intimamente ligada ao trágico existente

16

tanto na tragédia quanto no épico. Veremos como ele foi tratado por Aristóteles e como ele

chega aos dias atuais, dentro do fenômeno do retorno do trágico nas sociedades

contemporâneas percebido por Michel Maffesoli, que inclusive articula o pathos com a

teatralidade do jogo de duplos. Durante esse percurso, também mencionaremos a importante

contribuição de Walter Benjamin que, frise-se, embora nada tenha escrito especificamente

sobre os gêneros literários, muito se deteve nos contornos do épico, centro da nossa pesquisa.

A exposição dessas teorias críticas, como objetivo comum, traz a Taxinomia para o centro do

debate da contemporaneidade, mostrando que o material por ela apresentado, longe de ser

obsoleto, como muitos pensam, é atualíssimo e move debates indispensáveis à melhor

compreensão da época em que vivemos.

No terceiro capítulo faremos o recorte do épico, e, à luz da teoria staigeriana,

entenderemos melhor não apenas a epicidade do poema dramático, como também os recursos

literários epicizantes do teatro épico (criado por Brecht). Salientamos que o poema dramático

não possui uma relação de nexo causal com o teatro épico, um entrecruzamento distante ou

uma aproximação íntima com ele. Considerando, como de fato o fazemos, o poema dramático

como um épico – que traz em seu ventre a linguagem do pathos, e portanto do palco, – é

crucial que entendamos qual o tipo de linguagem cênica ele transporta em sua literariedade

narrativa, por ser ela parte visceral de sua gênese.

No penúltimo capítulo, mostraremos através da construção de Calabar – Um poema

dramático, de Lêdo Ivo, os elementos constitutivos que o configuram como um épico,

atentando para as aproximações e distâncias entre um épico da pós-modernidade e o modelo

clássico, aristotélico, como um modo, também, de mostrar que as inovações que a obra

apresenta não descaracterizam o gênero.

Ao final, apresentaremos nossa conclusão, no sentido de que o gênero épico, em vez

de ter desaparecido, ao contrário encontra-se, através do poema dramático — uma de suas

modalidades mais exuberantes ––, em progressiva ascensão nos dias atuais, recuperando seu

antigo prestígio. E é através da perspectiva taxinômica, portanto da Teoria Literária, que

podemos começar a avaliar, a mapear, a inventariar a dimensão ontológica e o grau dos

sentimentos épicos e patéticos que impregnam o carpe diem em que vivemos.

17

2. OS GÊNEROS

MUITO ÍNTIMO A UM FILHO O épico morreu mas em toda a parte Há um número de heróis Que não sei meu filho Se escrevo a verdade. (BARROS, Almir Castro. Cães de sina. Recife, Edições Pirata, 1979, p. 36)

2.1. O pathos, na Teoria dos Gêneros Literários, intertextualizado com a Poética, de

Aristóteles, com a História (a Teoria da Narração de Benjamin) e com o retorno do trágico

(questões sociológicas apresentadas por Maffesoli).

Para Aristóteles, tanto a tragédia quanto a epopéia pertenciam ao gênero narrativo. No

Capítulo V da Arte Poética, são assim resumidas as diferenças entre epopéia e tragédia:

“Todos os caracteres que a epopéia apresenta encontra-se na tragédia, mas nem todos os

caracteres desta última encontram-se na epopéia” (ARISTÓTELES, Arte Poética, 1453a).

Como se depreende do trecho citado, para Aristóteles, a diferença entre epopéia e tragédia não

estava tanto na estrutura (ambos imitam homens nobres em uma narrativa versificada), quanto

em outro ponto: ambas divergiam por não ter a epopéia limites temporais (enquanto o drama

desenvolvia-se durante uma única revolução solar ou, no mínimo, não se distanciava dela), e

também pela pluralidade de ação, no sentido de a epopéia “comportar diversas histórias”. É

Walter Benjamin quem modernamente, já no século XX, vai perguntar que tipo de histórias a

História historia, ou melhor, narra, como veremos posteriormente. Desde o início, no que

tange à nossa pesquisa, interessa-nos a questão do pathos, na tripartição aristotélica dos

gêneros literários, porque é principalmente pelo elemento patético, no dizer de STAIGER

(1969:121), que ocorre a confusão do trágico com o lírico.

“Obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão,

porque os juízos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria,

amizade ou ódio” (ARISTÓTELES, A Arte Retórica, 1356a). Embora o fim da Retórica não

fosse persuadir, mas ensinar o possível, sem persuasão não haveria como lidar com as paixões

– nem freá-las e/ou moldá-las, nem ministrar lições nobres através delas.

18

Nas artes miméticas, em especial na tragédia, era pelo pathos que o poeta conseguia o

êxito maior: a eclosão do fenômeno catártico, que expurgava sentimentos enfraquecedores,

como a compaixão e a piedade, entre outros tantos que Aristóteles examina. Ao deter-se na

análise da compaixão (com-paixão), o filósofo grego define tal sentimento compassivo como

sendo uma

(...) “espécie de pena causada por um mal aparente capaz de aniquilar ou afligir o homem que não merece ser ferido por ele”. (...) 12. (...) O que é pavoroso difere do que é lastimável, exclui a compaixão, e, muitas vezes mesmo, é útil para provocar emoções contrárias” (ARISTÓTELES, A Arte Retórica, 1453a).

A catarse, finalidade principal da tragédia clássica, beneficiava os ouvintes através de

seu efeito moral e purificador, por apresentar situações dramáticas verossímeis que lhes

traziam à tona os seus sentimentos debilitantes, proporcionando-lhes ou alívio, ou expiação

dessas emoções. Sendo o homem movido por paixões, a vivência do pathos, como

experiência fundamental, limpava/corrigia sentimentos enfraquecedores, principalmente os de

terror e piedade/compaixão nos cidadãos da polis, a maior parte deles encarregada de

defender a cidade. Pathos (a paixão-emoção cega) obliterava a razão e a enfraquecia; por isso

era importante mergulhar-se sobre as paixões capazes de dominar os homens, refreando-os e

escoando neles o excesso de emoções turbadoras da razão.

Aristóteles foi um dos primeiros a enfatizar o papel da paixão e da emoção na estrutura

social. Dentro de uma visão contemporânea, sobre os “transbordamentos” emocionais escreve

Michel Maffesoli:

Os transbordamentos podem ser considerados como um mal menor na experiência da paixão. (...) De fato, expressam a parte de sombra que sempre penetra o corpo social. (...) Encontramos aqui o processo catártico que consiste em liberar a paixão, e, ao mesmo tempo, liberar-se dela. Os gregos, em sua humana sabedoria, viram com clareza o interesse de tal liberação: protegia de uma degradação generalizada, concordando com os direitos da natureza e da própria força. Dessa forma, podia haver uma hierarquia específica, mas, ao lado do intelecto, a emoção tinha também seu lugar e devia contar com momentos, lugares para se colocar em cena, a fim de delimitar ou limitar seus efeitos perversos. (...) Relativiza o sentimento trágico da existência, e por isso assegura um inegável equilíbrio social. (MAFFESOLI, 2003, p. 89).

Embora muito mais visível na tragédia, o pathos não se restringia a ela; mesmo que a

eficácia da épica não dependesse apenas da habilidade retórica do narrador, mas também da

força do texto como referência cultural e religiosa, a ela se ligava fortemente. Tanto um bom

discurso como uma boa narração, para persuadir, precisavam entrar em contato com a paixão

que movia o ouvinte, a fim de transformá-lo e de livrá-lo de sentimentos perigosos para si

19

próprio e para a polis. Sem atingir esse objetivo, não havia o processo catártico, na tragédia,

nem o aconselhamento dado através do narrador.

Nesse aspecto, Benjamin aproxima-se muito da filosofia aristotélica, visto que, para

ele, a narrativa épica transmitia um aconselhamento aos seus pósteros. O filósofo alemão

apontava como uma das grandes diferenças entre o épico e o romance moderno (e lembre-se

que o romance originou-se do épico) o fato de que o romance é uma obra escrita, enquanto a

história contada pelo narrador era transmitida através da tradição oral, patrimônio da poesia

épica – tradição esta cada vez mais sem espaço dentro da sociedade pós-industrial, devido a

velocidade e a mecanização que desincentiva a escuta das narrativas, condenando-as, pois, à

extinção.

“O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. (...) O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado” (BENJAMIN, 1984, p.201).

Analisado pelo prisma da predominância quase absoluta do romance em relação a

todos os demais construtos literários, realmente o épico parece ter desaparecido. Entretanto,

não existe apenas esse ângulo da questão; analisando outros mais, encontramos subsídios que

contestam tal via – um tanto estreita – de mão única.

Se, a primeira vista, nos parece que provém da Teoria da Narração de Benjamim a

noção de que a arte de narrar está definhando devido ao épico encontrar-se em processo de

extinção, precisamos recorrer à citação-referência à qual essa ilação se vincula: “A arte de

narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção” (Id.,

p.200-201). É a sabedoria (considerada por ele o lado épico da verdade) que está em extinção,

transmitida através da oralidade narrativa, capaz de dar conselhos, “tecidos na substância viva

da existência” (Ibid., p.200), e feita de viva voz, com toda a riqueza retórica dos gestos,

entoações, pausas e ênfases, pois é nas coisas narradas que encontramos as qualidades de

quem as viveu ou de quem as relata. Sublinhe-se uma vez mais: é a sabedoria e não o épico

que está em vias de extinção, segundo Benjamin. No entanto, como o próprio filósofo

observa, “o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado” (Ibid., p.206); e é

justamente pela pressa – característica corrosiva e marca registrada das sociedades

contemporâneas – que “leituras dinâmicas” descuidadas e aceleradas originaram a versão

compactante e falsa de que a arte de narrar está desaparecendo por encontrar-se o épico em

extinção.

20

O próprio VICTOR MANUEL AGUIAR E SILVA (1999:392), um dos partidários da

idéia de que um gênero pode substituir outro prestes a extinguir-se e a desaparecer – “caso

típico do romance desde a segunda metade do século XVIII, em relação ao poema épico”,

três páginas mais adiante, como que revendo o perigoso direcionamento da afirmação acima,

substitui essa via de extinção e desaparecimento por uma “perda de status modelizante”. Em

outras palavras: após mencionar a possibilidade de desaparecimento do épico, logo a seguir

retoma esse conceito e, como que tendo revisto, ele é substituído por outro: o do seu

desprestígio por parte do público burguês, muito mais interessado no romance, por ser

literatura mais condizente com sua solidão e isolamento crescentes.

(...) As modificações sociais, culturais, ideológicas e políticas, ao alterarem o meio do sistema literário, em particular ao alterarem a constituição do público leitor, podem originar o desaparecimento de certos gêneros – na sociedade dominantemente burguesa do século XIX, por exemplo, o poema épico perdeu a sua capacidade de modelizar os realia, sendo a sua função modelizante assumida pelo romance (AGUIAR E SILVA, 1999, p.395).

Mesmo com a ressalva de que essa idéia da Taxinomia evolutiva é baseada na

historiografia clássica da literatura, mencionamo-la, por acharmos pertinente ressaltar a

diferença entre a extinção total de um gênero e a perda de status restrito ao seu modelo

tradicional.

Baseados nessa significativa mudança de angulação, percebemos o épico, não em

processo de decadência ou esvaziamento, mas sim resistindo heroicamente (bem ao seu estilo)

às investidas do romance, e, após um recuo estratégico, voltando a avançar progressivamente

– procedimento um tanto difícil de ser percebido ainda, talvez porque tenhamos nos

conformado passivamente (ou nos persuadiram) com a decretação de morte do épico na

contemporaneidade. A revivência ou reinstauração de um gênero é fenômeno que AGUIAR E

SILVA (1999:396) considera ocorrer com relativa freqüência. Não nos espantamos, portanto,

com a volta à cena do épico nos dias atuais, dentro inclusive do que Maffesoli denomina de

“regrediência”, ou seja, “a tendência que integra o arcaico, o primitivo, o animal no humano,

sem superar tudo isso” (MAFFESOLI, 2004, p.37-38a). Ao referir-se ao arcaico – ressalva se

faça – Maffesoli encara o vocábulo mais através da visão sociológica e literária (de eras

remotas) do que dentro da concepção histórica. Tal retorno ao passado configura a pátria

como um bem de pertença comum a ser partilhado.

Para o sociólogo francês, a pós-modernidade reinaugura o compartilhamento da

vivência do pathos, porque, ao voltar-se para o outro, a troca de experiências reinstaura-se,

21

reata-se “a proximidade da experiência vivida” por um grupo. O que ele denomina como

einstenização do tempo (MAFFESOLI, 2004, p.27), a contração do tempo em espaço, faz

surgir liames sociais entre as diversas “tribos” através dos gostos identificatórios. São eleições

afetivas que criam o elo de ligação e o sentimento de pertença, os quais abrangem também o

afetual, pelo que ele tem simultaneamente de carnal e de simbólico (MAFFESOLI, 2003,

p.55). Trata-se, então, de uma “forma de heroísmo, de uma nova sabedoria trágica” (Id., p.25)

o inclinar-se ao destino não de forma passiva, mas, de modo a fruí-lo e gozá-lo,

dionisiacamente. Diversamente do herói clássico – um eterno sofredor e atormentado, vítima

do destino e de resoluções definitivas – o herói moderno vivencia o destino como uma

experiência repleta de múltiplas possibilidades, muitas desconhecidas, residindo na própria

sensação de novidade, o prazer da aventura, mesmo que trágica.

Como muito bem caracteriza MAFFESOLI (2004:100), “a falha não pesa, alivia”, e,

muitas vezes, mais do que alivia, satisfaz: “a cultura do prazer corre junto à consciência

trágica do destino” (MAFFESOLI, 2003, p.25), o desejo de gozar o que o que se apresenta

dentro da relação “trágico-vivido-experiência” torna a aventura do presente fascinante, pelo

desafio de modelar-se a história à nossa própria vontade (Id., p.39): “Há uma forma de

fatalismo que podemos estigmatizar, considerar como regressão, mas que, ao mesmo tempo,

não assinala menos um possível renascimento, a necessária renovação de todas as coisas”

(Ibid., p.40). Há, uma diferença sutil, porém importantíssima, entre o drama e a tragédia:

Enquanto o drama, em seu sentido etimológico evolui, estende-se para uma solução possível, a tragédia é ‘aporística’, ou seja, não procura, não espera soluções nem resoluções. Podemos até dizer que ela repousa na tensão dos elementos heterogêneos. Seqüência lógica do processo dialético, esse drama conduz à síntese, ao passo que o trágico, para retomar um neologismo simultaneamente utilizado por Stéphane Lupasco e G. Durant, repousa, essencialmente, no ‘contraditorial’, ou seja, um contraditório vivido como tal. O que é uma outra maneira de falar de um presente aceito tal como é, e que não se projeta em futuro nenhum” (MAFFESOLI, 2004, p.28).

No carpe diem, o pathos trágico se esgota, embora se esgote infinitamente, porque o

eterno instante está atrelado ao eterno retorno, à temática do retorno cíclico das coisas,

revelando sua estrutura urobórica, que faz com que o acontecimento seja singular, “mas sua

originalidade se arraiga em um substrato arcaico-intemporal” (Id., p.26). Hoje, se “nada

acontece, tudo aconteceu”, como afirmou W. Faulkner (appud MAFFESOLI, Ibid., p.49); e,

se assim é, entramos na seara mítica, poético-épica, feita de repetição cíclica, na qual “o

passado nunca está morto, e para a qual o mito nunca é o passado” (MAFFESOLI, 2004,

p.49) – visão que, em sua abrangência, se opõe à histórica, para a qual o mito está sempre

ligado ao tempo passado.

22

Maffesoli cita também o fenômeno da interação global para explicar o

compartilhamento da paixão, vivenciada de modo onipresente: “Sou fulano porque o outro me

reconhece como tal” (MAFFESOLI, 2004, p.32). O pathos, na atualidade, liga-se à

teatralidade cotidiana, a um novo tipo de mitologia, a das máscaras, quando “o

descomedimento orgiástico”, de certa forma ligada ao carpe diem – “dedica-se a dialogar com

o desespero e a ludibriá-lo” (Id., p.119). O jogo de duplos passa então a ser a maneira pela

qual a mitologia moderna se expressa de mil formas, e na qual a paixão se liberta de seus

demônios, de seus fantasmas, de seus desejos, de suas fantasias e “dos excessos afetivos, já

não mais protegidos pela solidez do muro da vida privada” (MAFFESOLI, 2004, p.98).

A tensão patética é tão importante para STAIGER (1969:121), que ele chega a

reconhecer o patético como gênero especial. O pathos ligado ao fenômeno sociológico do

retorno do trágico, volta a ter enorme importância na estrutura social, mesmo que, na maioria

das vezes, não identifiquemos sua presença, com perfeita nitidez. Ou seja: a questão

taxinômica torna a ganhar imenso destaque na atualidade, posto que não podemos pensar em

“retorno do trágico” sem nos referirmos, direta ou indiretamente às paixões que o constituem

e que nele se movimentam.

2.2. Importância da taxinomia na contemporaneidade

O preconceito na atualidade contra a Taxinomia continua muito grande. É ainda muito

freqüente constatar-se desprezo ou hostilidade pelo estudo dos gêneros, como se o debate

fosse anacrônico e desprovido de interesse para os dias de hoje. As manifestações contrárias

ao assunto oscilam entre, de um lado, a rejeição total a ele, sob a alegação do teor ser

retrógrado e impermeável à contemporaneidade; do outro, a proliferação de novas teorias que

tentam, diplomaticamente, aliar diversas concepções críticas, para respaldar a validade de

refletir-se ainda hoje sobre a essência dos gêneros literários. Ambas as tendências, embora

aparentemente antípodas, têm um elemento comum: interligam-se à idéia de que a Taxinomia

pertence essencialmente ao passado; assim, enquanto uma a rejeita por considerá-la fora do

contexto de nossa época, a outra cria ininterruptamente teorias novas – algumas frutos mais de

imaginação do que de pesquisas consistentes, aplicando um verniz de atualidade ao assunto,

camuflagem cuja função é, no fundo, justificar o ressuscitamento de um debate já morto.

No Brasil, o Modernismo, por sua proposta estética de ruptura dos padrões

tradicionais, muito contribuiu para a reação de descaso contra a Teoria dos Gêneros: para

23

Mário de Andrade, um dos expoentes do Movimento, a discussão em torno do tema era

considerada árida. Dedicando-se intensamente à epistolografia, o escritor menciona a questão

dos gêneros literários em duas cartas, através dos seguintes fragmentos (ANDRADE appud

MORAES, Marco Antonio, 2001, p.17):

(...) todos os gêneros se baralham, isso até Croce já decretou e está certo. Romances que são estudos científicos, poemas que são apenas lirismo, contos que são poemas, histórias que são filosofias, etc. etc. (...) Discutir gêneros literários é tema de retoriquice besta. Todos os gêneros sempre e fatalmente se entrosaram, não há limites entre eles. O que importa é a validade do assunto na sua forma própria.

1

Essa fusão de gêneros é justamente o que contestamos na presente Dissertação, por

considerarmos que a difusão de “gêneros híbridos”, dentro dos quais o poema dramático

sempre está incluído, em nada contribui para o esclarecimento deles. Defini-los como textos

estranhos ou polimorfos somente adiciona à Ciência da Literatura terminologias obscuras.

Sempre ligado a elas, o poema dramático sofre pelos efeitos ambíguos de sua própria

nominação. Diante de duas categorias genéricas diferentes – poesia e drama –, a tendência

mais usual é procurar encontrar-se qual o gênero dominante/predominante, enquadrando o

poema dramático em um deles – como propõe os formalistas russos. Ao adjetivar os gêneros,

Staiger proporciona um exame mais acurado dos traços estilísticos que compõem cada um

deles: esses podem mesclar-se, combinar-se diferentemente entre si; os gêneros, porém,

continuam sendo apenas três.

Frisemos: como gênero, o lírico e o drama são de certa forma opostos: no primeiro, “o

sujeito é tudo, no dramático o objeto é tudo, a ponto de desaparecer no teatro qualquer

mediador” (ROSENFELD, 2002, p.27-28). Como estilos podem perfeitamente unir seus

traços fundamentais líricos-dramáticos, sem que a Taxinomia sofra qualquer arranhão. A

adjetivação staigeriana salientou os traços estilísticos de cada gênero, explicando com muito

mais clareza que um drama (substantivo) pode ser lírico (adjetivo), como um épico

(substantivo), pode ser dramático (adjetivo). ROSENFELD (2002:18) observa que “há

numerosas narrativas, como tais classificadas na Épica, que apresentam forte caráter lírico

(particularmente na fase romântica) e outras de forte caráter dramático (por exemplo as novelas

__________________________ 1 Trata-se de trechos de duas cartas: o primeiro é de Mário de Andrade endereçado a Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, José Olympio, 1982, p. 98, de 23 de novembro de 1926. O segundo pertence à carta de Mário de Andrade a Fernando Sabino, edição preparada por esse último, em obra intitulada Cartas a um jovem escritor, datada de 25 de janeiro de 1942, p. 23. de Kleist)” .

24

Adjetivando os gêneros, Staiger ampliou, em muito, o âmbito de atuação deles,

(...) podendo ser aplicados mesmo a situações extraliterárias. Pode-se falar de uma noite lírica, de um banquete épico ou de um jogo de futebol dramático. Neste sentido amplo esses termos da teoria literária podem tornar-se nomes para possibilidades fundamentais da existência humana; nomes que caracterizam atitudes marcantes em face do mundo e da vida. Há uma maneira dramática de ver o mundo, de concebê-lo como dividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modo épico de contemplá-lo serenamente na sua vastidão imensa e múltipla; pode-se vivê-lo liricamente, integrado no ritmo universal e na atmosfera impalpável das estações (ROSENFELD, 2002, p.19).

O único ponto de discordância nosso com relação ao trecho mencionado acima reside

em que, na contemporaneidade, o épico já não mais contempla, à distância, “serenamente”, o

mundo “em sua vastidão imensa”; pela flagrante tensão patética que o envolve, ele revê o

passado, e, como um feroz observador crítico, questiona o status quo – característica marcante

do elemento trágico-patético –, e, através da história que narra, constitui-se em uma

inigualável tribuna de debates sócio-políticos (nenhum outro gênero literário é capaz de

promover esse palanque de discussões inflamadas e acaloradas). Com esse modo de proceder,

o épico da atualidade surge para insurgir-se contra palavras de ordem demagógicas e

pragmatismos estéreis.

Ainda com relação a denominação “poema dramático” cremos que, mesmo de um

modo difuso e confuso, ela tentou, a princípio, aproximar novamente a poesia do drama –

como na Grécia Clássica, em que os dramaturgos eram poetas –, fazendo com que ambos

ocupassem um mesmo espaço estético. No entanto, de concreto, o que tal intitulação

conseguiu fazer foi apenas dividir em duas partes o poema dramático, fragmentando-o em

poesia e drama, sendo que essa poesia é caracterizada como lírica, uma vez que se acredita

que “o épico morreu”. O resultado é que, sem levar em conta a epicidade, seu horizonte

literário desvirtua-se e perde-se.

Convém agora indagar sobre o que nos parece, a princípio, uma grande ironia: se o

lírico e o dramático apontam para perspectivas históricas e vivenciais tão diversas, como

podem ser mesclados e confundidos através do pathos? Enquanto a voz lírica recorda

emoções, a dramática projeta. No Lírico, não há distância entre sujeito e objeto: ele sente, em

uníssono com a coisa,

(...) o sujeito como que abarca o mundo, a alma cantante ocupa, por assim dizer, todo o campo. O campo, surgindo como conteúdo dessa consciência lírica, é completamente subjetivado”. Na Dramática, desaparece de novo a oposição sujeito-objeto, mas agora a situação é inversa à da lírica. É agora o mundo que se apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado a um sujeito). De certo modo é, portanto, o gênero oposto ao lírico. Neste último o sujeito é tudo, no

25

dramático o objeto é tudo, a ponto de desaparecer no teatro, por completo, qualquer mediador, mesmo o narrativo que, na épica, apresenta e conta o mundo acontecido (ROSENFELD, 2002, p. 27-28).

O Dramático age diversamente:

Estando-se o ‘autor’ ausente, exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem intervenção de qualquer mediador, já que o ‘autor’ confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em determinada situação. (...) Concomitantemente impõe-se rigoroso encadeamento causal, cada cena sendo a causa da próxima e esta sendo o efeito da anterior: o mecanismo dramático move-se sozinho (Id., p.30).

Rosenfeld chama a atenção, também, para o momento da ação dramática, que acontece

agora – que não aconteceu no passado, mesmo quando se trata de um drama histórico.

Mesmo o ‘novamente’ é demais, pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, se apresenta sempre pela primeira vez. (...) Origina-se, cada vez, em cada representação, “pela primeira vez”; não acontece novamente” o que já aconteceu, mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ação é ‘original’, cada réplica nasce agora, não é citação ou variação de algo dito há muito tempo (ROSENFELD, 2002, p.31).

A pergunta, então, persiste e toma, inclusive, maior vulto: duas visões de mundo e de

momentos tão diferentes, como podem ser confundidos pelo pathos? – reindagamos,

perplexos. É que, no Lírico, a recordação vem do passado, mas não é passado, é presença

atemporal. “Este caráter do imediato, que se manifesta na voz presente, não é, porém, o de

uma atualidade que se processa e distende através do tempo (como na Dramática) mas de um

momento ‘eterno’” (Id., p.21). Permanece e torna-se presente. Já o Épico presentifica o

passado para reapresentá-lo ao presente. É um matiz tênue, por isso muitas vezes pouco

perceptível. No entanto, Antonio Rosenfeld, distingue ambos muito bem em O Teatro Épico:

O Eu não diz “apavorado acordei”; isso daria à recordação um cunho narrativo: há certo tempo acordei e aconteceu-me isso e aquilo. Mas o “eu acordo” e o pavor associado são arrancados da sucessão temporal, permanecendo à margem e acima do fluir do tempo, como um momento inalterável, como presença intemporal. “O elefante é um animal enorme – esta oração refere-se à espécie, é um enunciado que não toma em conta as variações dos elefantes individuais, existentes, temporais. “O elefante era enorme” – esta oração individualiza o animal, situando-o no tempo e, por isso, também no espaço. Trata-se de uma oração narrativa (Ibid., p.24).

Já Staiger posiciona-se sobre a mesma questão de outro ângulo: a linguagem do pathos

confunde-se com a linguagem lírica porque:

Tanto o êxtase lírico como igualmente o arrebatamento patético podem fazer alguém solitário, deixar escapar espontâneas ou mesmo simples balbucios. (...) Assim como o autor lírico faz diluir a frase em fragmentos, às vezes mesmo em palavras isoladas, o patético quebra freqüentemente concordâncias gramaticais, e vai direto de um

26

ponto alto a outro em seu discurso. (...) O pathos foi assim, não raras vezes, considerado como gênero lírico, até certo ponto com razão, pois que o patético e o lírico transformam-se, com freqüência, um no outro, surgindo daí uma nova harmonia, a ode, que cria uma tensão toda particular. (...) Aristóteles pode vir em nosso auxílio: na Ética a Nicômano a alma humana é dividida em páthe, dynámeis e héxeis. A patética compreende as paixões, no sentido mais geral da palavra. O homem é movido por paixões. É por isso que Aristóteles, em sua Retórica, (1, 7) exige de um bom discurso que seja fiel ao tema, apropriado às circunstâncias, e, além disso, ‘patético’, isto é, atue sobre as paixões, dominando o homem. Aí também já se sugere a possibilidade do pathos vazio: os ouvintes participam do pathos (synomoiopathein) do orador patético, mesmo quando este nada diz. É assim que muitos conquistam a assembléia apenas pelo tom (STAIGER, 1969, p.120-121-122).

Para Staiger, a maior importância da Taxinomia é que a questão da essência dos

gêneros conduz inevitavelmente à questão da essência humana.

Posso ter vindo a conhecer a “significação ideal” – para falar como Husserl – do “lírico” por meio de uma paisagem, e do épico, talvez, por uma leva de emigrantes. Uma discussão pode ter-me incutido o sentido do “dramático”. Essas significações mantêm-se firmes; na opinião de Husserl é absurdo dizer-se que elas oscilam. O valor das obras que tentamos julgar de acordo com esta idéia é que podem variar. (...) Todavia, uma vez captada a idéia do “lírico”, esta é tão irremovível como a idéia do triângulo ou como a idéia do “vermelho”; é uma idéia objetiva e foge ao meu arbítrio (Id., 1969, p.14-15).

No entanto, a stricto sensu, há obviamente, o interesse literário na configuração

precisa da essência de cada gênero:

(...) quando chamo um drama de lírico ou um romance de dramático é porque sei o que quer dizer lírico e dramático. Não passo a saber isso ao me recordar de todas as poesias líricas e de todos os dramas que existem. Essa profusão enorme de obras viria apenas confundir-me. (...) toda obra autêntica participa em diferentes graus e modos de um dos três gêneros literários, e é essa participação que vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente (Ibid., p.14-15).

Staiger termina a parte introdutória de sua obra Conceitos Fundamentais da Poética,

afirmando:

(...) Que esse livro seja considerado como uma propedêutica da Ciência da Literatura, como instrumento que dá ao crítico uma rápida compreensão dos conceitos mais gerais, permitindo assim posteriores estudos especializados sobre a técnica particular de cada autor (Ibid., p.17).

Importa-nos diferenciar a linguagem lírica da patética, para esclarecer conceitos

confusos originados pela aproximação delas e, também, para entender com mais acuidade a

complexa essência de cada um dos dois gêneros. Mesmo sem nos determos muito nos

distanciamentos entre ambas, queremos apontar três diferenças que nos parecem as mais

relevantes com relação à nossa pesquisa: a primeira diz respeito ao transbordamento e ao

arrebatamento que tanto a linguagem lírica como a patética possuem dentro de si mesmas:

27

ambas necessitam de ímpeto para realizar seus intentos; no entanto, enquanto a atuação do

ímpeto lírico é introspectiva, ensimesmada, a do pathos, segundo Staiger não é nada discreta.

(...) O pathos não se derrama em nosso íntimo, (...) seu objetivo não é contagiar-nos com a disposição anímica e sim purificar a atmosfera com pancadas rudes como as de uma tempestade! (STAIGER., 1969, p.122-123).

O gênero épico, trazendo para a cena o narrador patético, faz com que seu

arrebatamento muitas vezes possa ser entendido como o transbordamento contido no gênero

lírico. No entanto, a não ser pela impetuosidade, um tem pouco a ver com o outro. O

transbordamento lírico é êxtase, enlevo, sentimento que se derrama, que vaza e/ou extravasa,

do interior para fora. O arrebatamento é precipitação, condução/transporte, conquista,

movimento de fora para dentro. Portanto, basta uma mínima observação mais acurada do

texto, para percebermos as enormes diferenças dos dois tipos de linguagens, inclusive a

inequívoca intenção de mudança do status quo, a partir de uma determinada circunstância

trágica.

O arrebatamento do homem patético é investido contra o status quo, enquadrando-se

nele o discurso político: “O status quo está sempre aquém daquilo que move o pathos. Dito de

outro modo, o pathos é nobre; mas a grandeza reside apenas no estar adiante, no que ainda

não é e deve vir a ser”. (Id., p.125-126) O pathos é, pois, uma força progressiva e, nesse

sentido – é exatamente essa característica que o faz nobre –, ele abrange o aspecto político:

observa, perscruta sagazmente, critica. E porque é levado somente pelo intuito de cumprir sua

meta até o fim, o herói patético não é caracterizado psicologicamente: vive apenas para os

seus objetivos, porque o pathos consome a individualidade (Ibid., p.128). O herói épico

trágico-patético mostra-se através de seus feitos e de façanhas. São suas ações, e não o que ele

pensa, o que importa na condução da narração, porque é a ação que leva o herói ao objetivo

desejado, obstinadamente: a conquista do Velocino de Ouro, a volta para a casa, a decifração

da esfinge ou o entendimento da revelação do oráculo.

Os heróis patéticos preocupam-se em viver apenas para os seus objetivos: o que

importa é a ação, o alvo, e não a disposição anímica e subjetiva do herói. Relembremos

STAIGER (1969:125-126): “O homem patético é levado pelo que deve ser e seu

arrebatamento investe contra o status quo. (...) O status quo está sempre aquém daquilo que

move o pathos”. Heróis épicos patéticos são Ulisses, ou os 10.000 soldados do exército grego

na saga contada em “Anábase”, de Xenofonte, ou Calabar, ou Frei Caneca, ou Tiradentes. O

“pathos do discurso político” faz com que os personagens compreendam o sofrimento, o

28

prazer, a vingança, a injustiça, como forças progressivas que o fazem avançar na busca da

verdade e da transformação social (STAIGER, 1969, p.126).

A segunda diferença refere-se à relação sujeito x objeto. Enquanto na Lírica o universo

se torna expressão de um estado interior – segundo definição de ROSENFELD (2002:27): “o

sujeito como que abarca o mundo, a alma cantante ocupa todo o campo. (...) O mundo,

surgindo como conteúdo desta consciência lírica, é completamente subjetivado”, enquanto

que, na Épica, a narração desdobra-se em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado):

No poema ou canto líricos um ser humano solitário ou um grupo – exprime-se. (...) O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação a outrem. (...) O narrador não está narrando a estória a alguém. (...) Já no caso da narração, o narrador, muito mais que se exprimir a si mesmo, quer comunicar alguma coisa aos outros que, provavelmente, estão sentados em torno dele, ouvindo (Id., p.24 ).

A terceira diferença relaciona-se às noções de palco e do público, que analisaremos

mais adiante, no próximo capítulo, quando tratarmos da noção do palco entranhada na

literariedade do gênero épico, muito importante para a Teoria Literária, pois abrange o

diálogo cada vez mais presente e vivo, em nossa época, entre emissor x receptor.

Trabalhamos até agora, dentro da Taxinomia, com relevantes aspectos históricos,

sociológicos, poético-filosóficos; cabe-nos acrescentar, a eles, nesse momento, também os

literários, cerne de nossa pesquisa. Os gêneros, relacionando-se com o sistema literário em si,

ligam-se, em seu aspecto diacrônico, à própria memória desse sistema literário,

desempenhando, portanto, importante papel na organização e transformação dele: imanência

das obras, leitura, interpretação e compreensão da literatura contemporânea são algumas áreas

de interesse taxinômicas.

(...) Esses fenômenos do declínio, da emergência e das modificações literárias resultam na dinâmica do sistema literário, conectada com a dinâmica de outros sistemas semióticos, e, em última instância, com a dinâmica do metassistema social (AGUIAR E SILVA, 1999, p.394-93).

Dentro também do quadro periodológico, segundo AFRÂNIO COUTINHO (1964:22)

é através da análise das formas ou gêneros literários que nos são fornecidas preciosas

informações sobre as aquisições que os mesmos tiveram, ou sobre os desencontros que os

tornaram impróprios ao desenvolvimento deles dentro da respectiva estrutura genérica. São os

gêneros literários que recolocam uma obra dentro da perspectiva da história literária, da

crítica analítica e, no caso do poema dramático, também na rota da dramaturgia e da

transcriação teatral, como mais adiante enfocaremos.

29

De imensa relevância para a Ciência da Literatura continuam sendo as questões

taxinômicas, portanto, posto propiciarem melhor compreensão e maior preservação do próprio

sistema literário. No entanto, convém insistirmos: cremos ser um dos mais importantes

tributos taxinômicos para a contemporaneidade a luz lançada nos sombrios “gêneros

híbridos”, por contribuir para um estudo mais sério de vários tipos de composições literárias,

desenraizando-as de achismos e invencionices que, sem qualquer embasamento teórico

consistente, abarrotam a Ciência da Literatura, desviando-a da pesquisa reflexiva, e, no caso

do poema dramático, prejudicando em muito o seu entendimento, a sua análise e a sua

repercussão.

30

3. O GÊNERO ÉPICO

O autor épico é comparável a um navegante ou a um andarilho. Lança-se a caminho em companhia de seu herói, para ver terra e homens desconhecidos. Percorre o orbis terrarum. Aqui e ali sempre vem algo novo de encontro a sua curiosidade. O passado desaparece como uma cidade no horizonte. Mas como ele observa tudo dentro de uma mesma ótica, a sua, considera tudo que existe pertencente a um mesmo cosmos (STAIGER, 1969, p.141).

3.1. Staiger e a conceituação do poema dramático dentro da sua reformulação da Teoria dos

Gêneros Literários

Filósofo profundamente marcado pelo pensamento de Heidegger, Staiger retoma e

reformula a Teoria dos Gêneros aristotélica, substituindo as formas substantivas “lírico, épico

e dramático” por designações adjetivas. Além desse processo de adjetivação propiciar,

concretamente, o delineamento mais claro dos traços estilísticos de cada gênero, também

amplia o âmbito “territorial” de cada um deles, podendo a lírica, a épica e a dramática

referirem-se a situações extraliterárias, como anteriormente.

Staiger é, pois, considerado o responsável por estender, vastamente, a área de atuação

da Taxinomia: se existe uma lírica, uma épica e uma dramática, é porque as esferas do

emocional, do intuitivo, do lógico constituem, ao final, a própria essência e realidade humana.

São elas que permitem fundamentar a existência desses conceitos básicos da poética, dos

quais se vale a Ciência da Literatura para representar as possibilidades fundamentais da

essência do ser, extrapolando as dimensões dos territórios taxinômicos. Sentir-mostrar-provar:

tarefas do gênero lírico, épico e dramático; o primeiro transborda sua essência anímica; o

segundo apresenta uma perspectiva, perscruta; o terceiro julga o mundo e, de alguma forma,

julga-se – nessa medida, prova alguma coisa para alguém, principalmente para si mesmo.

Tomando por base esses três estados do ser, vejamos em qual deles o poema dramático

transita mais à vontade. Sendo uma narrativa, imediatamente rejeita a classificação da lírica,

mesmo escrito em versos. Na lírica, o eu é soberano, e não existe a relação sujeito-objeto.

(...) a poesia lírica é a-histórica, não tem nem causa nem conseqüências; fala apenas àqueles que se encontram afinados em uma mesma “disposição anímica”. Seus efeitos são causais e passageiros com a própria disposição. A epopéia, ao contrário, tem seu lugar determinado na história. O poeta, aqui não fica sozinho. Está num círculo de ouvintes e lhes conta suas histórias. (...) E quando prossegue em seu caminho e suas histórias se espalham pela terra, seu público multiplica-se tornando-se todo um povo (STAIGER, 1969, p.110-111).

31

Tão importante é a epopéia, para o filósofo alemão – embora dedique mais páginas ao

dramático, porque analisa o elemento patético dentro dele –, que assim se expressa, ao final

da sua explanação sobre o gênero épico: “O próprio fenômeno épico permanece, sem dúvida,

conservado em toda poesia como fundamento imprescindível. Mesmo o lírico só encontra

palavras, porque o épico as pronunciara antes. Sobretudo o dramático constrói-se sobre o

terreno firme do épico” (STAIGER, 1969, p.118). Se o épico pulsa como fundamento de toda

poesia é que, dentro dele, está implícito o reconhecimento da contribuição do poeta, “que

percebe e encontra o ritmo latente e a maneira expressiva do seu povo e indica a esse povo

por intermédio da poesia os fundamentos sobre os quais ele pode assentar” (Id., p.55).

O poema dramático é um “poema para vozes”, como João Cabral de Melo Neto frisou

em Auto do Frade (poema para vozes). Ou seja, um poema que, devido à sua estrutura

literária e à co-participação do narrador, dialoga com a história, com a tradição, com o

confronto dela com a modernidade e, simultaneamente, com diversos segmentos da sociedade

de nossa época – trilha totalmente diversa à do poema lírico, que extravasa sensações,

impressões e sentimentos vividos. Mesmo voltado para o passado, o movimento do épico é de

fora para dentro, devido ao desdobramento sujeito e objeto: narrador e mundo observado.

Aproxima-se o poema dramático muito mais do gênero dramático, até pela menção do

termo em sua nomenclatura, mas não pode ser considerado um drama, principalmente porque

não se preocupa com o julgamento do mundo, mas sim com o registro e a observação do

mesmo. Esse julgamento – intrínseco no gênero dramático – está intimamente envolvido com

a noção do pathos trágico que, para Gerd Bornheim, inexiste sem dois pólos: o homem e a sua

medida transcendente.

O próprio de quem vive entregue ao mundo da aparência é fazer do homem a medida do real, fazendo com que ele recuse uma medida que o transcende. O homem se torna a teimosia de sua particularidade e rejeita um princípio (arke) que transcende sua particularidade (BORNHEIM, 1975, p.79).

O julgamento no fundo, portanto, acaba sendo o da própria medida do herói e de sua

resistência ou recusa a transcender as suas especificidades individuais.

O fenômeno trágico tem também a ver também com a busca verdade; ao realçar esta

interligação, Borhneim cita dois autores. Primeiro Zubiri: “Enquanto a obra dos filósofos foi a

forma poética da Sabedoria, a tragédia representa a forma patética da Sofia” (Zubiri, Appud

BORNHEIM, 1975, p.76). Posteriormente, Kiekegaard: “O herói trágico renuncia a si próprio

para exprimir o geral” (Kiegegaard, appud BORNHEIM, Id., p.91) e Bornheim acrescenta:

32

(...) não existe o trágico destituído de transcendência, de desmedida.. Na tragédia, não se trata de reduzir a realidade do herói à realidade que o transcende, mas de ver no transcendente a medida do herói. (...) O desenvolvimento da ação trágica consistiria na progressiva descoberta da verdade, da verdade no sentido de aletheia: manifestar-se, descobrir-se, ‘desesconder-se’. Não é a essência do herói, restrita a sua individualidade que vem à tona, mas a aparência na qual está submerso. A partir dos equívocos da situação mundana do herói revela-se a verdade. (...) Em última análise, toda tragédia quer saber qual é a medida do homem. Toda tragédia pergunta se o homem encontra a sua medida em sua particularidade ou se ela reside em algo que o transcende; e a tragédia pergunta para fazer ver que a segunda hipótese é a verdadeira. O não-reconhecimento dessa medida do homem acarreta, pois, o trágico. (...) O trágico reside no modo como a verdade (ou a mentira) do homem é desvelada. E o que vale para a tragédia grega, vale também para o fenômeno trágico como tal. Evidentemente não se trata de essências permanentes, mas de realidades históricas. Na medida em que os dois pólos mudam de natureza, se metamorfoseiam, é o próprio sentido do trágico que se transforma. Na medida em que os dois pólos perdem o sentido, o fenômeno trágico deixa de existir (BORHNEIM, 1975, et passin).

A parte dramática do poema dramático comporta essa exata dimensão trágica; e são os

elementos épicos patéticos que promovem tal transcendência, quando querem chegar à

verdade e perguntam qual a medida do homem dentro de sua realidade ilusória,

individualizada. Embora nem toda saga seja necessariamente patética, não há como as sagas

épicas não serem patéticas, mesmo quando não têm como tema épico a dor originada pela

fatalidade do destino, mas sim o amor – como por exemplo a Guerra de Tróia, que acontece

por causa de Helena –, ou o prazer, como em Electra, ao conseguir a almejada vingança. É

que a impetuosidade que se apodera deles, transforma-os em oradores patéticos, e contagia

quem os ouve, fazendo com que o épico transmita a experiência trágica, na medida em que

“des-esconde” a verdade e mostra/questiona a medida do herói, portadora da transcendência

do limite da sua particularidade individual (Id., p.79).

Não nos sendo possível classificar o poema dramático nem dentro do gênero lírico

nem do dramático, e, tendo ele praticamente todas as características ou, pelo menos – já que

não mais existem gêneros puros –, a quase totalidade das características do formato épico,

cremos ter dados concretos para poder considerá-lo um épico, e Calabar, uma epopéia, por

inserir-se na definição de Madelénat (appud STALLONI, 2002, p.78): “A epopéia é a

formalização de uma fala primordial, essencial – o épos –, proferida pelos poetas (...) que

dizem da gênese e da verdade do mundo”. Conclui STALLONI (Id., p.78): “Texto fundador, a

epopéia ancora-se na história de um país, do qual ele fornece a crônica, amplamente

alimentada de lendas e mitos”. Pensamos que, decretar a morte do épico, é condenar a

civilização à perda da compreensão do seu sentido, pois, como observa STAIGER

(1969:133), “quem esquece algo corre o risco de não captar o todo”.

33

Ao categorizar o poema dramático como sendo um épico, reconhecemos não só o fato

de que o gênero não morreu, como também de que o épico começa novamente a ganhar

dimensão e a questionar, inclusive, os espaços dos palcos em que os narradores

contemporâneos se encontram, dentro do contexto fenomenológico atual da espetacularização

do cotidiano promovida pela cultura de massa.

3.2. O pathos épico e a linguagem cênica do poema dramático: a noção do palco em sua

literariedade e gênese

“Se soubermos ver todas as características do trágico, certamente seremos capazes de compreender numerosas práticas sociais, (...) que sem essa apreciação pareceriam desprovidas de sentido” (MAFFESOLI, 2004, quarta-capa).

Se Staiger menciona o pathos ao tratar do gênero dramático, não significa que o

patético apareça só como elemento dele. O próprio autor admite não ter o drama direito ao

monopólio de exclusividade quanto à utilização do pathos:

O palco foi, realmente, criado segundo o espírito da obra dramática, como único instrumento que se adaptava ao novo gênero poético. Mas uma vez existente, esse mesmo instrumento pode servir a outras formas de criação e tem sido utilizado das maneiras mais diversas através dos tempos (STAIGER, 1969, p.120).

Sendo o patético um recurso retórico, estilístico, nada obsta que apareça também no

gênero épico. Heróis épicos podem ser heróis patéticos, ao vivenciarem a tensão do pathos

tragicamente em sua ação, perseguindo seus ideais até consegui-los (ou até morrer por eles), e

vivendo para realizar suas metas, que agirão como forças progressivas. A meta desses heróis

patéticos é a mudança do status quo: eles buscam a verdade e vão até as últimas

conseqüências para encontrá-la.

Para o Staiger, o gênero dramático comporta dois tipos de tensão: o problema e/ou o

pathos, sendo que ambos podem aparecer juntos em uma obra, ou não: segundo os exemplos

do autor, em Édipo ou em Schiller há a identificação e a união dos dois, enquanto que as

óperas italianas tendem mais para o pathos e as obras de Ibsen concentram-se mais no

problema, na poblematização (Id., p.139). Dessa explicação staigeriana inferimos que nem

todos os épicos são patéticos, assim como nem todos os dramas também o são; também

percebemos, por outro lado, que nem todo patético se refere ao sofrimento, há diversos tipos

de pathos (de paixões), como vimos: de prazer, de vingança, de compaixão – Aristóteles já

elencava vários tipos em sua A Arte Retórica.

34

A pergunta que nos ocorre diante de tão vasta e variada gama de paixões é: por quê, na

contemporaneidade, temos tanta dificuldade em assumir a vivência patética e em perceber o

épico dentro do contexto de nossa própria saga? Talvez devamos esse fato à própria evolução

semântica da palavra pathos, que, ao longo do tempo, foi modificando-se e ganhando uma

conotação inequivocamente pejorativa: ser lírico ou dramático envolve certa nobreza; o

patético, porém, é logo associado ao ridículo, a alguém que nos causa riso ou pena, acepção

muito diversa de suas origens etimológicas (o que vigora, também, para o entendimento do

vocábulo “Peripatético”) .

Também temos certa dificuldade em perceber a contemporaneidade como épica,

devido à falsa impressão de que o épico refere-se (tão somente) ao passado, desconsiderando

suas ligações com a ficção, com o debate histórico e com as novas concepções mitográficas.

No entanto, mesmo sem admiti-lo, continuamos sendo intensamente patéticos no sentido

aristotélico – cruéis, sinistros, emocionantes, comoventes, emocionados, gratos/ingratos,

compassivos, indignados, invejosos, coléricos, apaixonados –, ou seja: movidos pelas paixões.

Na modernidade – como observa STAIGER (1969:122) –, ao pathos também se lhe

acresce uma dimensão restrita, antes das teorias freudianas, à problematização, ligando o

termo pathos não mais diretamente à paixão, mas ao tom patético que provoca as pato-logias

que desorganizam e perturbam a mente do indivíduo, cabendo ao terapeuta pesquisar as

origens psíquicas que tornam seu paciente problemático, assim como competia à catarse, nas

tragédias, limpar estrago similar que acometia os cidadãos da polis. E já que todos os

caminhos parem nos levar de novamente ao palco, voltemos a um aspecto que ficamos de nos

deter mais, o que o fazemos a partir de agora: a incorporação dos conceitos de palco e de

público (assistência) aos componentes estruturais da literariedade épica.

Tivemos oportunidade de mostrar que a noção do palco, embora muito ligada à

tragédia, também existe na epopéia; havendo um palco – e esse palco, como lembra

STAIGER (1969:127), pode ser uma tribuna constituída até mesmo por uma simples pedra

para o orador subir –, a existência do público está implícita. A força da tensão patética é tal

que, mesmo quando se trata de um monólogo, o tom patético é sempre o de alguém se

dirigindo a outro, não importando, sequer, se a alteridade seja a dele próprio. STAIGER

(Id.:124) admite que, mesmo quando alguém fala consigo mesmo, nesse seu expressar-se

patético está compreendida uma outra presença objetiva, em relação a qual o narrador se torna

superior, posição que o possibilita aconselhar (ou aconselhar-se) com sabedoria:

Mesmo quando alguém sozinho expressa-se pateticamente – o monólogo de um herói trágico, os versos filosóficos de Schiller, ou como em Gryphius, o próprio

35

poeta expondo sua opinião, – há sempre uma presença objetiva, não apenas porque esses versos exigem recitação frente a um público, mas, o que é mais decisivo, porque o orador nesses casos dirige-se a si mesmo e impetuosamente blasfema contra ou procura persuadir-se da subcondição de sua existência no mundo (STAIGER, 1969, p.125).

A existência do palco (identificado no tom patético) é o elemento que revela o status

de superioridade do narrador épico com relação ao seu público, não só pelo tom que imprime

à narração, como também pela contribuição pessoal que acrescenta à história contada. Os

ouvintes reconhecem, no narrador épico, a sua contribuição enquanto poeta, “que percebe e

encontra o ritmo latente e a maneira de expressão de seu povo, e indica a esse povo, por

intermédio da poesia, os fundamentos sobre os quais ele pode se assentar” (STAIGER, 1969,

p.111). A superioridade do poeta épico reside nele ser reconhecido como uma espécie de

representante do povo com o qual já está empenhado, através de sua história.

Quando o poema dramático apresenta uma narrativa épico-patética, a incorporação do

palco à Teoria Literária é inevitável, ainda mais se entendemos a ribalta não como um mero

acessório, uma alternativa para a realização do poema dramático, mas sim como um de seus

pressupostos de existência, formador de sua gênese estrutural. É assim que, dentro de sua

linguagem teatralizada, o narrador épico, além de contar histórias de heróis e suas façanhas,

também atua, ele próprio, ao utilizar técnicas que enfatizam o patético, porque é assim que ele

consegue atingir seu objetivo de persuadir o público:

Há gestos patéticos que se dirigem ao espectador. Quem fala e gesticula dessa maneira não pode colocar-se como um simples narrador entre ouvintes. (...) O estilo patético, exige, conseqüentemente, um palco qualquer, mesmo que seja simplesmente uma tribuna. Já o primeiro homem que subiu a uma pedra, ou a uma elevação para falar a algumas pessoas e mostrar-lhes que estava adiante ou mais avançado que eles, preparava o palco (Id., p.126).

Nem toda dramática aberta é acentuadamente épica, no dizer de ROSENFELD

(2002:72), que entende, por dramática aberta (épica), as obras que se insurgem contra a

Dramática Pura (aristotélica), embora o autor mostre que, incongruentemente, são as obras

consideradas Dramáticas Puras, de rigor clássico, as que mais demonstram a própria crise

interna da dramaturgia aristotélica (Id.:84-85): o coro na Grécia Clássica, por exemplo, em

verdade realizava uma ruptura na dramática pura, pois, através dele, o autor interrompia a

ação dramática dos personagens, para introduzir comentários e reflexões a essa ação. Salvo

raríssimas exceções – que só confirmam a regra – a função do coro na tragédia clássica era

parabática, sem qualquer interferência no desenvolvimento da intriga.

36

Se o épico patético fala de cima de um palco para um público, tais elementos – palco e

público – terão que estar presentes. Daí os poemas dramáticos épico-patéticos já trazerem, em

seus âmagos, a linguagem do palco e da encenação como componentes da sua criação: não

chegam em algum momento posterior, como que acenando com uma possibilidade de

representação. São instrumentos da literariedade do poema dramático e, tão visceralmente o

compõem, que suas ausências descaracterizam o gênero. Face a essa indivisibilidade

estrutural, faz-se necessário debruçarmos um pouco sobre o teatro épico, para entendermos os

recursos literários de que essa dramaturgia lança mão; em contrapartida, também devemos nos

observar mais a sinalização teatral contida nos poemas dramáticos (rubricas, polifonia de

vozes, indicações de ambientação e de objetos de cena, cortes fragmentários, a música,

indicações espaciais e inerentes à dinâmica das cenas, as projeções cinematográficos, os

letreiros e, principalmente, a temática do tempo e do sonho utilizados no teatro épico) para

melhor compreendermos o gênero literário, enquanto forma de perceber o mundo.

3.3. Os recursos literários epicizantes no Teatro épico (didático) de Brecht, a linguagem

cênica do poema dramático e o processo de transcriação – terminologia originariamente

proveniente da Teoria Literária.

Rosenfeld, na parte intitulada Advertência, escreve sobre a importância do debate dos

gêneros literários, quando o assunto relaciona-se ao Teatro Épico:

O ponto de partida deste livro é a literatura dramática e não o espetáculo teatral. Isso se explica pelo fato de a palavra ‘épico’ ser um termo técnico da literatura, termo cuja aplicação ao teatro implica uma discussão dos gêneros literários (ROSENFELD, 2002, p.12).

Antes de Brecht denominar seu teatro de Épico, já havia muitos autores

comprometidos com a ruptura da Dramática Pura, cujos traços principais podem ser

enumerados, resumida e grosseiramente, tendo em vista quatro elementos principais: a

unidade de ação, a situação dialógica (com sua função de comunicabilidade), a

verossimilhança e a catarse – todas características próprias do teatro ilusionista. Na parte

relativa à “Assimilação da temática narrativa” Rosenfeld cita, entre os autores do teatro não-

ilusionista, George Buechner, Ibsen, Tcheckhov, Strindberg, Paul Claudel. Cada um a seu

modo quebrou com a Dramaturgia Pura aristotélica, com preciosas inovações dentro da

narrativa: Buechner, enfocando em suas peças a massa solitária (Id., p.78), Ibsen,

37

transformando o tempo em um tema de domínio épico (Ibid., p.83); Tcheckhov, encenando o

cotidiano anticênico e o tédio dialogado, na falta de ação posta em ação (Ibid., p.90-94);

Strindberg apresentando seu drama lírico-monológico e o mundo onírico-visionário de seus

personagens (Ibid., p.104-105); Paul Claudel, utilizando-se de projeções cinematográficas e

comentários musicais (ROSENFELD, 2002, p.142). No entanto, salvo essas e outras

manifestações isoladas, a dramaturgia pura reinava soberana até o século XX

A terminologia Teatro Épico nasce com Brecht (1898 – 1956) que assim intitulava o

seu Teatro Didático. Nele, a linguagem teatral é utilizada como instrumento didático para

elevar (e levar) a emoção ao raciocínio.

Duas são as razões principais da oposição de Brecht ao teatro aristotélico: primeiro, o desejo de não apresentar as relações inter-humanas individuais – objetivo essencial do drama rigoroso e da ‘peça bem feita’, – mas também as determinantes sociais dessas relações. (...) A segunda razão liga-se ao intuito didático do teatro brechtiano, à intenção de apresentar um ‘palco científico’, capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a ação transformadora. O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o impacto mágico do teatro burguês. (...) O que Brecht combate, ao combater a ilusão, é uma estética que encontrou a sua expressão mais radical na filosofia de Schopenhauer: a arte como redentora quase religiosa do homem atribulado pela tortura dos desejos, a arte como sedativo da vontade, como paliativo em face das dores do mundo, como recurso de evasão nirvânica e paraíso artificial. Combate ele sobretudo a ópera de Wagner, excessivamente ilusionista e de tremenda força hipnótica e entorpecente (Id., 2002, p.147-148).

Para romper com o teatro ilusionista, burguês, culinário – exclusivamente digestivo –,

Brecht utiliza diversas técnicas de distanciamento, uma vez que, segundo ele, “distanciar é ver

em termos históricos” (Ibid., p.155). “A chave de todo trabalho de Brecht está na palavra

distância (também falará em “separação”): distância entre o espectador e o palco, entre o ator

e o personagem” (BORHNEIM, 1992, p.69). Entre os recursos literários usados pelo teatro

épico para alcançar esse grau de distanciamento desejado, Rosenfeld enumera a ironia, em

primeiro lugar, e cita Thomas Mann, para quem “ironia é distância” (Mann, appud

ROSENFELD, 2002, p.156).

Em termos retóricos, a ironia é a afirmação de algo diferente do que se deseja

comunicar – geralmente o contrário –, na qual o emissor deixa transparecer a contrariedade

por meio do contexto do discurso, ou através da alguma diferenciação editorial, ou entoativa

ou gestual (é a contrariedade, geralmente sutil, o que diferencia a ironia do enunciado falso

simples). No entanto, a ironia considerada apenas como tropo retórico, como figura do

discurso, não se realiza plenamente.

38

Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, toda e qualquer parte aparentemente não-irônica se torna radicalmente irônica. Poeticamente concebida como princípio que articula a estrutura da obra de arte, a ironia preside à gênese e ao desenvolvimento de cada uma e de todas as partes. (...) A ironia poética é estrutural, e não apenas verbal (MELO E SOUZA, 2002, p.27).

Melo e Souza, ao focalizar a poética da ironia – a elaboração de uma ironia

especialmente poética –, observa que

O drama cômico não representa somente ações, mas também reflexões. Ao envolvimento emocional na experiência imediata das ações se contrapõe o distanciamento da consciência criticamente armada. A estrutura da comédia aristofânica é, pois, paralelística e contrastiva. Parábase, que é o movimento do coro, designa justamente a moção paralela e contrapontística do coro que se desvia do curso normal dos eventos representados, a fim de refletir sobre o sentido do que se representa. (...) A consciência crítica da ironia parabática se evidencia na recusa sistemática da ilusão dramática, que aparece pela primeira vez na dramaturgia aristofânica. (...) A função crítica da arte consiste em converter a ilusão da consciência na consciência da ilusão. A ironia suprema, no entanto, decorre do reconhecimento de que a consciência da ilusão não elimina a ilusão da consciência. Por isso é que a parábase tem de ser permanente (MELO E SOUZA, 2002, p.30-31).

Nesse sentido, a ironia não é simplesmente um recurso retórico, porém, segundo Melo

e Souza, um tropo vital. E ele acrescenta:

Poeticamente mobilizada como parábase permanente, a ironia se consuma numa bufoneria realmente transcendental, que perpassa, como um sopro divino, o todo e cada uma das partes obras-primas da poesia organicamente irônica da antiguidade e da modernidade. A caracterização da ironia como sobro divino de uma bufoneria realmente transcendental, que se encontra no fragmento 42 dos Fragmentos Críticos publicados em 1797 na revista Lyceum der scïnen Kristen, eleva o princípio irônico de composição poética ao estatuto privilegiado de uma revolução filosófica fundamental, principalmente ao postular o primado teórico da contradição e da inconclusividade de tudo o que é ou existe” (Id., p.31-32).

Enfim, é através da ironia poética utilizada pelo coro, que o público se junta a ele

criticando e recriminando

(...) os atos absurdos e ao apontar as desastrosas conseqüências dos desatinos humanos, ao se verem refletidos comicamente na imagem caricata da representação teatral, todos desatam a rir dos seus próprios defeitos. (...) A função essencial da parábase consiste, portanto, em operar o efeito dramático da catarse cômica (Ibid., p. 29-30).

Além da ironia, outro recurso literário empregado pelo Teatro Épico para obter o

efeito de distanciamento é a paródia,

(...) que pode ser definida como o jogo consciente com a inadequação entre forma e conteúdo. Se atravessadores ou gângsteres exprimem as suas idéias sinistras ou hipócritas no estilo poético de Goethe ou Racine o resultado é o choque entre

39

conteúdo e forma; a própria relação inadequada torna estranhos o texto e os personagens, obtendo-se o violento desmascaramento que amplia o nosso conhecimento pela exploração do desfamiliar (ROSENFELD, 2002, p.156).

Affonso Romano de Sant’Anna, em Paródia, Paráfrase e Cia., tece importante

comparação paralelística para compreendermos a paródia como recurso literário de

distanciamento teatral. Afirma ele que, enquanto a paráfrase repousa no idêntico e no

semelhante, “ocultando-se atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma”, reforçando-

o, portanto, a paródia, “por estar do lado do novo e do diferente é sempre inauguradora de um

novo paradigma” (SANT’ANNA, 2002, p.27).

Enquanto a paráfrase é um discurso de repouso, a paródia é um discurso em progresso. (...) Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças (...) Na paródia busca-se a fala recalcada do outro, (...) na acepção moderna: aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar para que se conheça o outro lado da verdade. (...) A ideologia tende a falar sempre do mesmo e do idêntico, a repetir suas afirmações tautologicamente diante de um espelho. Por isto é que, assumindo uma atitude contra-ideológica, na faixa do contra-estilo, a paródia foge ao jogo de espelhos, denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora de seu lugar “certo” (SANT’ANNA, 2002, et passin).

O pathos do discurso político, anteriormente mencionado, apresenta-se aqui em

plenitude: é na noção de desvio que a paródia inaugura, de forma insurrecta e transgressora, o

efeito de distanciamento usado pela linguagem teatral, visando desfamiliarizar o público com

os discursos manipuladores e as verdades absolutas da ideologia dominante, através da técnica

do estranhamento, apregoada inclusive pelos formalistas russos, que a aplicavam como

espécie de indução à prática reflexiva.

Além dos dois recursos acima citados, Rosenfeld ainda menciona mais um, marcante,

na encenação brechtiana: o elemento cômico, muitas vezes levado ao paradoxal, a fim de

acentuar os contrastes.

A combinação entre o elemento cômico e o didático resulta em sátira. Entre os recursos satíricos usados encontram-se também o do grotesco, geralmente de cunho mais burlesco do que tétrico ou fantástico. Não é preciso dizer que a própria essência do grotesco é “tornar estranho” pela associação do incoerente, pela conjugação do díspar, pela fusão do que não se casa – pelo casual encontro surrealista da famosa máquina de costura e do guarda-chuva sobre a mesa de necropsia (Lautréamont). No grotesco, Brecht se aproxima de outras correntes atuais, como por exemplo do Teatro de Vanguarda ou da obra de Kafka. Brecht, porém, usa recursos grotescos e torna o mundo desfamiliar, a fim de explicar e orientar. (...) Entre os recursos cênico-literários, Kafka utiliza títulos, cartazes, projeções de texto, os quais comentam epicamente a ação e esboçam o pano de fundo social. Se Brecht tende a teatralizar a literatura ao máximo – traduzindo nas suas encenação os textos em termos de palco – por outro lado procurou também literalizar a cena. Exige que se impregne a ação de orações escritas que, como tias, não pertencem diretamente à ação, que se distanciam dela e a comentam e que, ademais, representam um

40

elemento estático, como que à margem do fluxo da ação. São pequenas ilhas que criam redemoinhos de reflexão (ROSENFELD, 2002, p. 158).

Após esse rápido panorama dos elementos literários da linguagem do teatro épico,

passemos aos elementos cênicos do poema dramático, que, em geral, é associado de imediato

a um “teatro em versos” – perspectiva não muito promissora em uma época como nossa, em

que dizem que “o épico morreu”, que “a poesia morreu” e que o textocentrismo também

(Antonin Artaud chega a eliminá-lo de suas encenações, e o work in progress – a cena das

vertigens – originado da obra do mesmo nome de Joyce, intitulada depois de Finnegans Wake

–, faz com que o público interaja na ação dramática, uma das características da obra aberta).

Antes de avançarmos mais, necessitamos esclarecer que nem todo épico é escrito em

versos – o próprio Finícius Revém (em português) é exemplo de saga em prosa de um sonho

“para os que não dormem” (MACIEL, 2003, orelha). Também nem todo teatro em versos é

épico. Na Literatura brasileira encontramos diversos exemplos de teatro em versos, líricos,

como as peças teatrais de Vinícius de Moraes – “Cordélia e o Peregrino”, “Orfeu da

Conceição”, “Procura-se uma rosa” – ou as de Carlos Nejar com os seus “personae-poemas”

(cinco poemas dramáticos), assim denominados pelo próprio autor. Já o teatro em versos de

Emanuel de Moraes, embora não sendo lírico, também não pode ser considerado épico. Em

“Amadamente” (MORAES, 2001, p.190) o autor cria um “poema para televisão”, dividido em

seqüências (embora não usemos o termo seqüências em teledramaturgia, apenas em cinema);

“Cântico dos Cânticos” (Id., p.209) e “Os sertões” (Ibid. p.223) são “composição em poesia e

ballet”, o segundo baseado na obra homônima de Euclides da Cunha; em “Nem só de vice-

versa vive o homem” (Ibid., p.443) – obra vetada sua encenação em 1968 pela censura –, o

autor utiliza poemas concretos como linguagem teatral: em estilo minimalista – em um

mínimo de palavras e sem articulação discursiva, ele valoriza elementos plásticos e sonoros,

material utilizado posteriormente, em diversas técnicas da poesia experimental e da

transvanguarda.

Já épicos, porém, são, por exemplo, os poemas O auto do Frade, Morte e Vida

Severina, ambos de João Cabral de Melo Neto e Calabar, de Lêdo Ivo. Essas três obras

configuram-se em poemas dramáticos épicos, não por serem feitas em versos ou pela ação

dramática que sua ação move; mas sim porque o épos – em grego, palavra, discurso, voz,

palavra proferida; em CARDOSO (1989:site eletrônico), palavra inaugural, criadora, matriz –

e o pathos estão presentes no seu tom e na sua literariedade, e também porque o narrador

dirige-se a uma multidão, implícita, subjacente, mas visivelmente palpável, na pluralidade de

41

vozes narrativas que elas engendram. Tal polifonia de vozes pressupõe, desde o início,

alguém que se dirigem a vários, ou vários que se dirigem a muitos.

São épicas essas obras, outrossim, pela linguagem cênica que utilizam em seu

processo de criação literária – no quarto capítulo, voltaremos ao assunto quando mostrarmos

os componentes épicos do poema dramático de Calabar, de Lêdo Ivo –, principalmente no que

diz respeito à indicação de rubricas (“didascálias” – em linguagem teatral), linguagem que o

torna, simultaneamente também, uma espécie de roteiro – teatral e/ou cinematográfico. É

como se as rubricas quebrassem a musicalidade por vezes hipnótica da poesia, introduzindo,

através delas, o ritmo da encenação que impregna a leitura.

Todavia, não se confunda o poema dramático com “o teatro numa poltrona”,

denominação do poeta Alfred Musset, em 1832, para textos teatrais que não se destinam a

representação, contentando-se com o palco imaginário do seu leitor (RYNGAERT, 1995,

p.22). O poema dramático nem é texto teatral – é texto literário, cujo estilo patético pressupõe

o palco – nem exige a criação de palcos imaginários para suprir a ausência dos reais, por

alguma circunstância. Não se trata de um teatro que, pela dicotomia leitura-encenação, simula

o palco que lhe falta, para que o texto realize-se plenamente, complete-se. O poema dramático

patético, cuja literariedade já açambarca o teatral, leva o palco consigo onde quer que esteja

ou para onde quer que vá, sendo, esse seu palco, não uma ribalta imaginária a mercê da

criatividade do leitor, mas um componente estrutural dentro da relação autor versus

literariedade da obra; sua linguagem teatral é também um pressuposto de sua materialidade.

Desde ARISTÓTELES (Arte Poética, 1450b), a arte poética não se confunde com a

sua representação teatral: “Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz

parte da arte nem tem nada a ver com a poesia. (...) Quanto ao trabalho da encenação, a arte

do cenógrafo tem mais importância que a do poeta”. Na contemporaneidade, há linguagens

dramatúrgicas em que ambas desenvolvem-se juntas (no método de improvisação de Viola

Spolin, no Teatro do Oprimido, ou no próprio work in progress), mas nunca no poema

dramático, que se fundamenta em um texto literário. Se o poema dramático já não contivesse

em si as bases da representação teatral, deveria ser transcriado para chegar ao palco e

transformar-se em espetáculo. Transcrição teatral é conceituação terminológica oriunda da

Teoria da Literatura. O neologismo foi criado pelo crítico, poeta e escritor Haroldo de Campos.

A respeito do vocábulo originário escreve Linei Hirsch:

Nas reflexões de Jakobson de que a possibilidade de tradução estaria na “transposição criativa”, é que Haroldo de Campos encontra o termo Transcriação (Trans-Criação). O neologismo, criado para designar tradução poética, parece-me plenamente satisfatório para denominar as obras dramáticas advindas da Literatura, pois contém as idéias de

42

“transcodificação” e de “criação”, aspectos que julgo vitais em obras dessa natureza (HIRSCH, 2000, p.150).

Seguindo esse percurso, Hirsch estende o conceito para o teatro e, na análise

comparativa entre as obras literárias de base e as transcriadas, cita como procedimentos

literários utilizados a eliminação, a condensação (ambas sob o ponto de vista do dramaturgo), a

ampliação (oposta ao procedimento da condenação), a fragmentação e a associação (oposta à

fragmentação). No entanto, o poema dramático não necessita passar por esse processo de

elaboração se quiser transformar-se em espetáculo teatral. É que ele não é – nunca será demais

frisar – um texto literário alheio ao palco, nem um teatro poético, só porque foi escrito em

versos. Ele não é teatro, é um poema dramático, que traz a linguagem teatral na essência de

sua literariedade. Justamente devido a essa sua especificidade é que ele não necessita

submeter-se às etapas da metodologia transcriativa exposta por Hirsch, no caso de vir a ser

encenado, posto que ele já se constitui, em si mesmo, as bases do seu próprio roteiro, encenado

ou não.

Diante dessa característica sui generis do poema dramático, entendemos um pouco

melhor agora o porquê da sua conceituação genérica correta ser, em seu caso, de enorme

importância: a definição simples e simplista que o configura como um teatro poético, um “teatro

em versos”, prejudica bastante o interesse em sua encenação, por três motivos, a saber: pela

desvalorização da poesia na contemporaneidade, vista pelo mercado editorial como inútil ou de

pouco valor comercial em comparação com os romances ou livros de auto-ajuda; pelo declínio

do status do autor e do seu respectivo texto teatral; porque um “teatro em versos” é

imediatamente associado a um teatro literário, de raízes intelectualizadas e elitistas – entenda-

se: para poucos consumidores. Do ponto de vista da Teoria do Teatro, a literalidade do poema

dramático o prejudica. E tal preconceito cultural acaba, ironicamente, por levar ao palco,

apenas, poemas de autores renomados segundo critérios da cultura elitista, sem qualquer

transcriação, através de espetáculos que servem muito mais à satisfação da vaidade intelectual

da platéia do que efetivamente à literatura ou ao teatro.

A Taxinomia pode ser de enorme ajuda na tarefa de colocar, em pé de igualdade,

literariedade e palco, sem que um desabone o outro, e sem que ambos desincentivem a

realização de espetáculos teatrais de fortes tensões patéticas (sem conotações pejorativas,

óbvio). Compreendido em toda a sua epicidade, o poema dramático certamente desenvolverá

novas linguagens cênicas, pouco exploradas até então, podendo ser muito mais valorizado, em

todos os sentidos, do que até hoje vem sendo.

43

4. A VISIBILIDADE DA QUESTÃO TAXINÔMICA DO POEMA DRAMÁTICO EM

CALABAR, DE LÊDO IVO

QUE PAÍS É ESTE? Uma coisa é um país, outra um ajuntamento Uma coisa é um país, outro um regimento. Uma coisa é um pais outra o confinamento (SANT’ANNA, Afonso Romano de. Rio Grande do Sul: L&PM, 2001, p.50)

4.1. A construção dos personagens e a temática narrativa épica no poema dramático de Lêdo

Ivo

Consideramos Calabar – Um poema dramático como épico, porque ele traz, em si,

praticamente, todas as características estruturais do gênero contidas na divisão tripartida de

Aristóteles, como veremos a seguir. A obra foi escrita por Lêdo Ivo em 1985, embora o

embrião dela já se encontre na primeira parte da obra Finisterra (1965-1972), sub-intitulada

Lugar de Nascimento, da qual consta, na abertura:

ALAGOA AUSTRALIS (rica em pescado) Esse é o meu brasão dado por Nassau: três tainhas postas em pala no campo verde do escudo. (IVO, 2004, p.525)

Espécie de apresentação, essa poesia, sucinta e sumária, sinaliza o que a obra aborda:

o Estado de Alagoas, terra de Calabar e, também, dos ancestrais de Lêdo Ivo. Podemos

considerar diversos poemas de Finisterra como sementes que germinarão posteriormente,

dentro do poema dramático “Calabar”. Exemplos:

1. Em “Porto Real do Colégio”, a “ferrugem“ será tema recorrente em Calabar,

quando Uma Voz falar de canhões – “E a ferrugem radiosa protege os mortos” (Id., p.542).

Partindo de um objeto concreto – canhões –, a ferrugem está ligada às guerras, mas, também,

à ação do esquecimento da história pátria e do passado, corroídos pelo tempo;

44

2. Em Calabar, o autor retomará a temática do combate entre as traças e os velhos

livros do cartório de Porto Calvo, já aventada em Finisterra, constante do poema “A Guerra

interminável” (IVO, 2004, p.543), através da fala de um dos personagens de Calabar, O

Escrevente, “que é douto e lê livro velho e escreve em cartório quem nasce e quem morre”

(Id., 2004, p.715).

3 - Em “Lembrança de um ancestral” (Finisterra), Lêdo Ivo escreve, reveladoramente:

“O meu ancestral, que vinha de Porto Calvo, desceu do cavalo e, com o seu cheiro de pólvora

e as botas de couro cru pisando em seixos e calhaus, atravessou o rio Prataji. Era durante a

guerra holandesa, mas ainda hoje sinto os pés úmidos dessa travessia” (Ibid., p.548-549). Por

essa prosa poética, confirmamos que Porto Calvo não é só a cidade de Calabar, mas também

da ancestralidade do poeta, local que o acompanha, familiarmente, por gerações.

O próprio nome do livro – Finisterra – sugere o retorno à terra natal como finalidade

maior, bem supremo a abençoar o homem, valorizando a terra com berço natal e também

como última morada. E se não há esse bem? E se tal legado é negado pela própria terra de

nascença? Treze anos depois de Finisterra, Calabar – Um poema dramático surge

questionando exatamente essa herança bendita, ou maldita, conforme as circunstâncias. Para

Calabar, por exemplo, a terra negou tudo o que lhe era devido em vida, e até o sepultamento,

em morte; será, porém, que só negou suas bênçãos a ele?... Obviamente que não: continua

negando a milhões de brasileiros, apátridas em seu próprio território nacional.

No entanto, não é apenas em Finisterra que encontramos as primeiras idéias que serão

desenvolvidas ou transportadas para Calabar. No livro autobiográfico “Confissões de um

poeta”, Lêdo Ivo afirma em “Os navios somem”: “Onde não pisei, surge/ a marca dos meus

passos” (IVO, 1979, p.155). Em Calabar, Uma Voz afirma: “Calabar está / onde não está”.

(IVO, 2004, p.710). Também no Capítulo VIII de Confissões, O Mar Longe, lemos: “Sou um

homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta. Talvez as minhas perguntas sejam as

minhas respostas” (IVO, 1979, p.25). Em Calabar, O Escrevente fala: “As minhas respostas /

são também perguntas” (IVO, 2004, p.716).

Por essas rapidíssimas aproximações, percebemos que Calabar – Um poema dramático

vinha já sendo gestado, gerado, desde a época do Regime Militar, embora só em 1985 fosse

lançado publicamente. No dizer do próprio autor, em entrevista concedida e transcrita na

última parte (Anexo), “sem a ditadura militar, ele não teria sido escrito”. A constatação do

paralelismo entre essas duas obras de Lêdo Ivo nos leva de imediato a pensar em um outro

Calabar, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra. Embora o poema dramático em

questão baseie-se em um fato notório e gire em torno da chamada “traição” de Calabar, o

45

poema dramático de Lêdo Ivo não conta a história de um homem, em si, nem toma partido,

como faz Calabar – O Elogio da Traição. A trama envolve novos personagens totalmente

alheios ao ambiente da época ou a figuras envolvidas com Calabar – com exceção de sua

viúva, e o entrecruzamento deles com Calabar, vários séculos depois, dá-se de forma indireta.

Não se trata, pois, de uma obra baseada em pesquisa histórica – outra das inúmeras diferenças

do poema dramático para a peça de de Hollanda e Guerra. Em Lêdo Ivo, sequer há a citação

de nomes próprios, a não ser o de Calabar, que nem aparece em cena (no texto de Hollanda e

Guerra ele aparece de início, sendo torturado). Com número reduzido de personagens, o

poema dramático em análise procede ao julgamento dos julgadores, deixando no ar a

pergunta: com que direito um país sem decência, sem lealdade, sem moral, sem ética, sem

justiça arvora-se a julgar alguém ou alguma coisa? E, se julga, em que termos o faz?

Mesmo sem nos determos detalhadamente na comparação entre as duas peças de

Calabar, convém enfatizarmos, posto que é importante para o objetivo de nossa pesquisa, que

a de Hollanda e Guerra é parodística, pois “(...) o que o texto parodístico faz é exatamente

uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o

convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica”.

(SANT’ANNA, 2002, p.31). A paródia rompe com o discurso sempre sobre o mesmo e o

idêntico, repetindo suas afirmações tautológicas diante de um espelho. “Por isso é que,

assumindo uma atitude contra-ideológica, na faixa do contra-estilo, a paródia foge ao jogo de

espelhos denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora de seu lugar ‘certo’”, escreve

SANT’ANNA (2002:29).

Em Calabar, de Holanda e Guerra, a noção de desvio é clara desde o início, inclusive

frisada no subtítulo, aposto após uma vírgula: Calabar, o elogio da traição. Ou seja: a

grandeza está na traição, repensada como um ato heróico de subversiva resistência – como,

aliás, acontece com a própria peça, pois é evidente e flagrante o paralelismo de dois períodos

históricos que, em comum, têm a mesma marca opressora da falta de liberdade de expressão.

Ouçamos o personagem Mathias, caracterizando o então governador da província de

Pernambuco: “Calabar será executado sem a presença do povo, na calada da noite, para que

não diga coisas que não devem ser escutadas” (HOLLANDA, GUERRA, 1974, p.32). Assim

aconteceu em 1635, assim acontecia em 1973/1974.

Enquanto na peça Calabar – O Elogio da Traição os personagens são históricos, em

Um poema dramático, de Lêdo Ivo, eles são épicos, desde o seu próprio nomear: O

Alagoano, O Turista, O Escrevente, Uma Voz, e A Viúva de Calabar. Nenhum deles porta

nomes próprios, substituídos estes pela designação dos grupos segundo a sua naturalidade ou

46

a profissão a qual pertencem. Embora o Teatro de Arena, em São Paulo, tenha usado esse

recurso nos primeiros anos da década de 60, ele é escasso na dramaturgia brasileira, e, muito

mais ainda, no poema dramático que, em geral, narra a história de alguma figura nobre e

notória reconhecida pelas versões oficiais de nossa História, sendo portanto baseada em fatos

reais na quase totalidade das obras. A diferença, porém, entre a experiência teatral paulista e a

de Lêdo Ivo é que o Teatro de Arena colocava em cena, sem nome, apenas os agentes do

poder institucionalizado, como: “delegados de polícia truculentos, em vez de patrões, majores,

coronéis no interior, donos de fábrica na cidade, sem atrativos do pitoresco” (PRADO, 2001,

p.97). Já em Calabar, despersonalizado é o próprio povo que, massificado e sem identidade

própria, é importante apenas, dentro dos propósitos da indústria cultural, como objeto de

consumo e como valor de mercadoria.

Utilizando intensa ironia dramática – e vimos que a ironia dramática é um dos fortes

recursos literários utilizados pelo teatro épico para conseguir o efeito de distanciamento – os

personagens, sem a identificação de um nome de batismo que os distinga parecem, mesmo

que açambarquem o social, uma ilha solitária, cada qual vivendo quase que em “países”

distantes e diferentes. Em culturas isoladas. Todos vivenciam tragicamente algumas das

situações características da sociedade de massa: isolamento x coletividade, comunicação

interpessoal x comunicação global, liberdade pessoal x condicionamentos coletivos. Cada

indivíduo-massa adquire a cultura do seu grupo, interiorizando suas normas sociais e as

expectativas dos outros em seu comportamento individual.

Sem nome próprio, sem identidade própria, sem cultura própria, cada personagem

torna-se um porta-voz da ideologia que massacra o grupo inteiro ao qual pertence, mesmo

que, à primeira vista, pareça que O Alagoano ou O Escrevente ou O Turista só falem por si;

os três incorporam, porém, em seu discurso, a máquina social que lhes transformou em

produtos, que os formatou, que os programou. É nesse sentido que eles são densamente

épicos, por falarem de um eu-coletivo, transformando suas próprias vivências e experiências

em uma espécie de aconselhamento aos que os homens. São vozes coletivas, plurais. E justo

por representarem modelos de organização e funcionamento histórico-sociais é que nossa

primeira tarefa deve ser identificá-los, realçando-lhes os traços que individualizam cada um

deles.

Girando o poema dramático em torno do fato histórico da Segunda Invasão Holandesa

no Brasil (1630-1654), é em Alagoas que a ação acontece (os holandeses ocuparam do Rio

Grande do Norte a Recife), mais precisamente em de Porto Calvo, cidade natal de Calabar e

também, como vimos, da ancestralidade do autor do poema dramático. O Alagoano, primeiro

47

personagem a dirigir-se ao público, é a personificação do povo nordestino, ingênuo, mas

inteligente, massacrado, mas consciente e, principalmente, impotente – pelo menos assim

pensa ele – para reverter a situação, tornando-o conformado com sua sina, por não ver

perspectivas de mudança.

A cultura que O Alagoano possui é a que lhe é transmitida pela televisão, ou seja,

impingida pela cultura de massa, porta-voz da indústria cultural, que submeteu todas as

culturas diversificadas a um projeto comum hemogênico, reprimindo as demais formas,

através da depreciação.

No contexto da indústria cultural da qual a mídia é o maior porta-voz são totalmente distintos e independentes os conceitos de “popular” e “popularizado”, já que o grau de difusão de um bem cultural não depende mais de sua classe de origem para ser aceito por outra. A grande alteração da cultura de massa foi transformar todos em consumidores que, dentro da lógica iluminista, são iguais e livres para consumir os produtos que desejarem. Dessa forma, pode haver o “popular” (ou seja, o produto de expressão genuína da cultura popular) que não seja popularizado (“que não venda bem”, na indústria cultural) e o “popularizado” que não seja popular (vende bem, mas é de origem elitista) (FADEL, R.Y.C. et al, 2004, p.5).

Sob a aparência de oferecer múltiplas opções, a sociedade de consumo impinge ao

povo apenas as que lhes dão mais lucro: eis a vivência trágica do Alagoano, explorado em seu

trabalho, e manipulado até em seu lazer e em seu prazer.

O Turista – É o novo rico emergente, a classe média alta, aquele que “venceu na vida”,

e que está totalmente inserido e feliz por ter conseguido um status econômico que lhe permite

entregar-se a um consumismo alienante, desenfreado, irrefreado, buscando sempre novidades

– o que o leva a querer fotografar pessoas e lugares folclóricos, no sentido de exóticos, pois

para ele o folclore não significa mais nem tradição, nem aprendizado, nem conhecimento; é

mera curiosidade superficial (nada científica), esvaziada de sentido maior.

O Turista é o produto da indústria cultural que propicia felicidade através das lavagens

cerebrais. Sua paixão é a fotografia, através da qual ele vê o mundo através do limitado

campo das lentes de sua máquina fotográfica – objeto bem característico da indústria

tecnológica – e capta apenas o extravagante, o esdrúxulo, o esquisito, o que lhe parece

diferente à sua visão desfocada da realidade. O Turista espera ver a imagem do Brasil como

nos cartões-postais: nas belezas da terra está a segurança de uma natureza generosa e amiga, e

nas versões oficiais, o sentimento de segurança. Tudo está sob aparente controle através de

sua visão dicotômica: “traidores” e “inimigos da pátria”, de um lado, “homens de bem” e

heróis do outro, o joio separado do trigo. Tragicamente distanciado da essência das coisas que

o cercam, ele apenas preenche vagamente seu tempo tempo com um hobby colorido; é assim

48

também que vivencia a sua realidade, construída e inventada para proporcionar-lhe uma

felicidade ilusória dentro de um divertimento inofensivo ao sistema.

O Escrevente - Reportando-nos uma vez mais à “Guerra Interminável”, em Finisterra,

O Escrevente é o burocrata que vê “o vento do mar e as traças rorem o tempo” (IVO, 2004,

p.543) e a história nos velhos livros. “Escrevente” é designação ampla que pode abranger o

historiador, o escrivão e até o escritor que desempenha serviços burocráticos de escriturário...

Através da nominação desse personagem, percebemos uma crítica ferina à classe intelectual

que, muitas vezes, na prática, prestou serviços de escrivães, em vez de escritores.

Principalmente na Era Vargas, quando os intelectuais brasileiros, cooptados pelo sistema

através do Ministro Capanema, dividiram-se entre sua escrita e sua sobrevivência, ou entre o

idealismo e a ideologia.

(...) Mário (de Andrade) vive com particular dramatismo a tensão entre sua sensibilidade de artista, cônscio das exigências da escritura e seus impulsos de intelectual à procura de um melhor desempenho no “papel” de formador da nacionalidade e/ou no trabalho de construção social (LAFETÁ, 1974, p.116).

O Escrevente interioriza essa tensão dramática e vive dentro dela: de um lado possui

toda uma formulação intelectual-teórica que o faz, de todos, o crítico mais ferrenho do regime

sócio-político, mas, ao mesmo tempo, servindo à máquina do poder, escrevendo não as suas

idéias ou reflexões, mas apenas registros “oficiais”, também se torna seu maior aliado.

Rebelde, mas simultaneamente atrelado ao poder dominante, o máximo que consegue fazer é

questionar a função social da arte, embora viva às expensas do aparelho ideológico que a

restringe. É, no fundo, um “inimigo” que o poder institucionalizado vigia de perto, pagando

pelo seu silêncio ou, ao menos, pelos seus serviços.

É em O Escrevente que transita o conflito pungente entre o intelectual consciente e o

burguês em ascenção. De um lado, ele vivencia a ânsia da literatura enquanto instrumento de

maior conscientização, e, do outro, é cerceado pela política que o controla e o reprime. Sua

ação épico-trágica dá-se como que às avessas: mesmo quando critica, sua análise parece

beirar o demagogismo, porque em nada contribui, na prática, para a mudança do status quo. É

um intelectual esvaziado de ação, desgastado e dilacerado pela divisão projeto estético x

projeto ideológico, e distanciado na prática da efetiva realização de suas idéias.

Antes de prosseguirmos vejamos a relação desses dois personagens: O Turista e O

Escrevente. É notório que o épico se atém a um relato, portanto a um registro, e ambos os

personagens tentam, às suas maneiras, preservar a memória do que vêem – um através de sua

máquina fotográfica e o outro através do que escreve ou do que anota/guarda. No entanto,

49

enquanto o registro d’O Turista já está totalmente condicionado pela mídia, contaminado pela

cultura de massa, por jargões publicitários, por slogans comerciais e por uma visão enganada

e enganosa do mundo, o d’O Escrevente é um registro documental, que se pressupõe (ou se

pressupuporia) fiel. No entanto, não personificará ele, algumas vezes também, a estereotipia

da história positivista, que apenas dá voz e relato aos feitos dos heróis vencedores? Vem daí,

provavelmente, muitas de suas tantas dúvidas e agonias.

Uma Voz – Pela primeira vez não temos, em um personagem, a alusão a uma classe

social. Essa “pessoa” sem corpo, tanto pode ser a poiesis da poesia (questionando), quanto o

mito (agindo), quanto o coro parabático na Grécia clássica (comentando e interpretando os

acontecimentos), com a mesma função crítica que corta a ação dramática, para intervir e

acrescentar versões. É em Uma Voz que a epicidade do poema dramático eclode com mais

visibilidade. O tom de sua fala é estruturalmente épica, por insurgir-se contra o status quo e,

também, pelo tom assumido: pairando acima e fora do tempo e do espaço, ele é, nesse

sentido, quase que um sopro divino, na acepção de MELO E SOUZA (2000:31-32). No

entanto, a ironia poética de Uma Voz não é uma bufoneria transcendental: ela caminha muito

mais pela desmedida do trágico mencionada por BORNHEIM (1975:et passin), questionando

a medida do homem em relação às suas frustrações e à transcendência às suas

particularidades.

Não nos iludamos, porém: Uma Voz não é inconsútil, abstrata. Ela apenas não é

corporificada, talvez porque não seja mesmo corporativa, posto não estar a serviço de

nenhuma entidade representativa dos interesses de categorias profissionais, nem estar atrelada

a nenhuma classe, a nenhum governo, a nenhuma nação. Fala em nome da Latino-América,

que deveria ser unida por ideais comuns, e, dentro dessa latinoamericanidade, detém-se em

um Brasil que sonha com todos os tipos de libertações repressoras, um Brasil com dignidade e

riqueza para todos, uma terra de bênçãos e de fartura, ou seja, um país inexistente, ou, pelo

menos, tão aparentemente invisível quanto a voz que se ouve, embora epicamente concreta,

tragicamente vivida por cada um e por toda a sociedade. Uma Voz fala de uma tribuna – de

uma tribuna nobre, constituída dos anseios mais elevados de um povo – para todos os que

ainda querem ouvir seus conselhos orais.

A Viúva de Calabar – Ela entra apenas na última cena, e sua fala é constituída de

versos bárbaros, com mais de doze sílabas, podendo também ser considerada uma prosa

poética. O tom é insubmisso e insurrecto, beirando ao delirante. De início, como fizemos com

O Escrevente e O Turista, gostaríamos de tecer uma anologia importante: tanto Uma Voz

como A Viúva de Calabar são vozes: a primeira mítica, cíclica, incorpórea, impalpável, mas

50

enraizada arquetipicamente em cada um de nós; a segunda, uma voz emitida de um corpo sem

voz, porta-voz de todas vozes estigmatizadas e reprimidas, de todas as vítimas silenciosas ou

silenciadas, mas que não desistiram de lutar. A fala de A Viúva de Calabar é também a de

todos os grupos que, impotentes, são vítimas da repressão e de sectarismos ideológicos.

Mesmo sem ser ouvida pelo poder, essa voz grita, berra, constrange, pressiona e alicia aliados.

Desse modo, se detectamos em Uma Voz a poiesis, o agir da poesia no mundo, a voz épica,

n’a Viúva de Calabar encontramos a voz trágica, a voz do pathos. Ambas as vozes exortam a

que nos apossemos de nossas reminiscências: uma através dos ideais de um povo, a outra

através dos ideiais pessoais; e, se exortam, dirigem-se a muitos ou a quem interessar possa.

Na vida real, A Viúva de Calabar tem um nome: Bárbara Cardoza, mas ele não é

mencionado no poema dramático, pois, nomeá-la, seria restringir a homenagem que o poeta

faz, através dela, a todas as grandes heroínas trágicas, principalmente à Antígona que não

teve o direito nem de enterrar seu irmão, morto em batalha contra um tirano, amaldiçoado por

lutar contra ele. A Viúva de Calabar, tanto quanto o marido, também é a vítima: esquartejada

em sua emoção, em seu corpo, em sua História, ela se vinga, assumindo ser a reminiscência

viva do acontecido. Assim, torna-se ao mesmo tempo a narradora de suas emoções e a heroína

que continuará a missão de incomodar o mundo com sua presença, ao acrescentar à história

oficial o seu luto doloroso, a sua dor pessoal e emocionada. É o afetual, o dado afetivo

incorporado à narração, fazendo dela uma grande heroína contemporânea, em Calabar – Um

poema dramático, e expondo, através de seu ódio impotente, a guerra fria que fará, a partir de

então, contra todo um sistema injusto e brutal.

A Viúva de Calabar, singular e plural, sabe que é inútil defender seu marido ou limpar-

lhe o nome; então, não desperdiça forças contando o que aconteceu, pois não há como mudar

a versão oficial, amplamente difundida; diferentemente, alardeia o que fará e transforma-se,

de simples mulher, em uma espécie de pitonisa futurista, que luta – assim como o personagem

Uma Voz – por uma pátria menos conceitual e abstrata, mais digna e concretamente amorosa

para com seus filhos. Uma Voz poderia ser a d’ A Viúva de Calabar, no plano idelógico. No

entanto, ambas são diversas, pois A Viúva de Calabar é movida a ódio e arquiteta vingança,

mesmo que feita tão só de palavras e gestos. Sua presença – a marca de sua história pessoal –

sempre desafiará a manipulação da História – com sua dor pessoal viva, real, desgovernada e

sua perplexidade imensamente agônica. Uma Voz, ao contrário, não clama por desforra,

punição ou castigo. Seu brado é outro: ela lembra dos nobres ideais que deveriam ser

prioritários para uma nação, e pede para que não desistamos deles, nem os esqueçamos.

51

Existe ainda mais um personagem que aparece, en passant, antes das falas finais de

Uma Voz e d’a Viúva de Calabar: trata-se do guerrilheiro Messias Calabar, abatido em Porto

Calvo, após ter resistido a um cerco policial, segundo o âncora de um telejornal. Porém

Messias Calabar só aparece em retrato preto-e-branco; é uma foto, um mero dado a mais na

estatística governamental e na indução à credibilidade policial quanto ao combate à

criminalidade e ao crime organizado.

Messias Calabar é o sub-produto da sociedade de massa, nem produto é. É Calabar

transposto para a contemporaneidade, um Calabar que continua a ser apátrida, abatido como a

um bicho, sem direito a julgamento, nem defesa, nem voz. Messias Calabar é um nome – o

único nome de personagem que aparece no poema dramático – repleto de simbologia: logo o

associamos, inclusive, ao líder salvador até hoje esperado pelo povo humilde do Nordeste,

que lhes dará tempos fartos, messes de abundância e prosperidade; porém como todo redentor

transgressor e subversivo, Messias Calabar é morto e crucificado pela mídia, por ser elemento

perigoso e nocivo, a ponto de justificar um cerco de policiais para eliminar um único homem:

eis a mídia espetacularizando a vida, combatendo a violência com mais truculência, em vez de

extirpar as causas dos males sociais que a engendram. Morto “em praça pública”,

praticamente diante de nós, para servir de exemplo, não se sabe ao certo exatamente de quê,

ele é vítima – como tantos – dos meios de comunicação aliados do sistema, tendo, como

único direito o não ter direitos. Voltaremos, mais adiante, a esse riquíssimo personagem

épico, que nem consta da lista inicial, e que é introduzido através de uma rubrica, o que

amplifica a epicidade trágica estrutural através da qual ele é construído.

Após esse rápido mergulho através da denominação dos personagens, percebemos

com mais nitidez ainda que a saga que Lêdo Ivo narra não é praticamente a de Calabar,

embora toda a trama gire em torno de seu núcleo, nem propriamente relativa ao seu ato, mas

sim a saga do julgamento do país que o condenou por crime de traição contra a pátria, por

crime de lesa majestade, enquanto elevou à categoria de heróis Felipe dos Santos, Frei Caneca

ou Tiradentes, pelo mesmo motivo: por terem se rebelado contra o jugo português. A saga de

Calabar, observada sob diversos tipos de lentes, é, no final, a saga da nossa saga, de todos os

heróis anônimos que constróem esse país. A nossa saga. No centro do palco, o Brasil que

condenou Calabar, e que continua condenando seu povo. Em suma: a saga da mentira, da

farsa, da manipulação da história, a saga assassina de uma pátria vampira.

No que tange às partes, dividimos a obra “Calabar”, em quatro módulos: no primeiro,

os personagens são apresentados, sendo delineados seus respectivos traços e características

principais; no segundo, acirram-se as diferenças entre os personagens-classes e começa o

52

alargamento de questões-limites em torno do tema proposto: o(s) crime(s) de traição; no

terceiro, eclode o binômio: desilusão face à realidade nacional versus país sonhado, a pátria

ideal, pátria essa que parece remota, longínqua e até mesmo utópica. No quarto e último dá-se

o desfecho, com a ousada introdução de dois personagens importantíssimos: Messias Calabar

e A Viúva de Calabar, através dos quais o elo de ligação com o fato histórico no passado se

faz mais intenso. Analisemos cada um desses blocos.

– Primeira parte:

Os personagens são apresentados de forma ágil e precisa. Na pergunta de O Alagoano

para O Turista já de imediato caracterizamos ambos: O Alagoano pergunta se o outro procura

pelo povo ou se apenas quer paisagem (IVO, 2004, p.695); e O Turista responde-lhe que está

ali para ver o túmulo de Calabar (Id., p.695), como se a um “traidor” esquartejado fosse

prestado tal tipo de homenagem. O Escrevente também questiona O Turista, dentro de sua

linha de pensamento intelectualizada, perguntando-lhe “a quem traiu Calabar? (...) A que

pátria trai aquele que não tem pátria nenhuma?” (Ibid., p.696). Tendo em vista a leitura da

entrevista concedida pelo Autor e anexada à presente Dissertação, lembremos que o Brasil

estava sob o domínio de Portugal, que, por sua vez, achava-se sob o jugo da Espanha. Na

época, portanto, o Brasil ainda nem existia como Nação. Portanto, como poderia Calabar ser o

traidor de uma Pátria ainda inexistente? Sobre O Turista, O Escrevente acha que o

“estrangeiro de São Paulo” pouco sabe da realidade nordestina, do Major Calabar que viveu

“na sua terra estrangeira” (Ibid., p.696). Porém O Turista não está ali para aprofundar-se em

qualquer tipo de questionamento, apenas quer divertir-se, descontrair-se, buscar locais

exóticos para exibi-los como troféus (feito caçadores que empalham cabeças de animais

selvagens e as exibem orgulhosos, em suas salas). Diante desse comportamento, O Escrevente

o critica, embora a crítica possa ser entendida e estendida a todos os que se aprazem com a

cultura alienada que os automonitoriza o tempo todo:

Quem vê nem sempre vê. O melhor cego é aquele que vê na TV. Quem tem um olho é aquele que não vê na TV o que vê. (Ibid., p.700)

É quando Uma Voz intervém pela primeira vez, uma voz sem corporificação, em off

(na terminologia dramatúrgica), mas não uma voz fraca: ela é possante e produz eco. Embora

seja tão somente som, ela é a presença de alguém ou de algo – o sopro de alguma divindade, o

53

vate-cínio do poeta, a voz do destino, a consciência crítica, a reminiscência de objetivos

nobres quase totalmente esquecidos, ou o mito que atravessa séculos com seus

aconselhamentos.

Nesse primeiro momento, além de delinear os perfis e apresentar o conflito principal, o

autor introduz essa voz supranacional – que não tem perfil – mas que possui intensa

vinculação com a história apresentada, fornecendo, através dela, o tom épico dentro da

dimensão trágica, cujo substrato consiste em julgar Calabar em vez dos culpados dos crimes

de lesa cidadania. A morte de Calabar serve para desviar a atenção do crime maior, é usada

para encobrir o massacre da pátria contra todos os excluídos sociais ao longo da História. O

protagonista invisível, mesmo centralizando todas as atenções, é tão somente um núcleo, entre

milhões de outros, um elo – talvez dos mais frágeis – na engrenagem do sistema.

- Segunda parte:

As posições ideológicas de cada personagem delineadas a princípio tornam-se mais

visíveis agora, revelando cada vez mais as diferenças e contradições de cada grupo social: a

classe baixa, a média alta, já aburguesada, e a dos intelectuais. Não com intuito de

aprofundamento na questão, mas apenas por mera curiosidade, O Turista resolve perguntar

quem era Calabar (IVO, 2004, p.708), insistindo em querer fotografar ou o local em que ele

morreu ou o seu “amaldiçoado túmulo” (Id., p.710). O Alagoano que não sabe nada das

versões oficiais pois nem escola freqüentou, está, por isso mesmo, ironicamente,

relativamente a salvo da História contada nos livros; por isto, embora ele não saiba responder

à luz dos ensinamentos escolares, simpatiza com Calabar, principalmente porque, escolado na

vida, desconfia do que ouvira contra seu conterrâneo, assim como não acredita em tudo o que

escuta pela televisão (Ibid., p.709). O Escrevente também comenta sobre as mentiras diárias, e

trava-se, a seguir, um diálogo entre O Turista e Uma Voz, e esta lhe faz ver que “Calabar está

onde não está” (Ibid., p.710). Ao que O Turista indaga, perplexo: “Se ele não mora onde

mora/ onde mora Calabar?!” (Ibid., p.712).

UMA VOZ Calabar não mora na história escrita de qualquer cartilha que ensina o menino a ser mentiroso desde pequenino. Que ensina o garoto a crescer com medo de abrir a boca. (IVO, 2004, p.712)

54

Frise-se: o aconselhamento que Calabar pode fornecer não está nos livros escritos, mas

em seu silêncio ou em sua voz inaudível. O Turista continua querendo saber, insistente e

teimosamente, onde está Calabar, já que ele “não repousa no túmulo dos heróis” (Id., 2004,

p.714). E Uma Voz reitera:

Calabar mora no túmulo secreto dos guerrilheiros. Mora na cova escondida dos que morreram querendo mudar a ordem do mundo. Seus rastos esquartejados estão dispersos na vala dos desaparecidos que, embora pertençam à morte, ainda pertencem à vida, vivos enterrados enterrados vivos. (Ibid., p.714)

E prossegue dizendo que Calabar mora no sol, mora na chuva,

Calabar mora na terra dos que não têm terra nenhuma E seu cavalo salta a cerca de arame farpado que divide o mundo. (Ibid., p.715)

O Alagoano também pergunta a’O Escrevente, “que é douto e lê livro velho e escreve

em cartório quem nasce e quem morre” (Ibid., p.715) o que é o povo, recebendo como

resposta uma crítica ferrenha, extensiva a outro tipo de escrevente – o escritor, uma

autocrítica, portanto, referindo-se à sua própria classe:

As minhas respostas são também perguntas. (...) Poeta de livro que diz e não prova e vive espalhando que é sua e nova a velha trova é poeta do povo ou bobo da corte? (Ibid., 2004, p.716)

Nesta fala, o que O Escrevente questiona é justamente a função social de qualquer

escrevente (escritor ou escriturário...). Qual a função do artista na sociedade: revolucionário

ou mero cooptado? Terá validade e reconhecimento oficial apenas a arte absorvida pelo

55

sistema, a que torna um poeta do povo mero “divertissement” para as elites? Não será essa,

também, uma traição da pátria contra os seus filhos artistas mais sensíveis?

Estendendo a pergunta para o campo da crise da representação, nasce a seguinte

pergunta: o que não está a serviço da história positivista, o que não é tido como registro fiel,

será então apenas mimese, imitação esvaziada de sentido real, como Platão concebia? Através

da fala de O Escrevente percebemos o sutil questionamento do que seja a História, além da

crítica à classe intelectual, quando ela desempenha serviço burocrático muito aquém de suas

possibilidades criativas, agindo de modo passivo. Naturalmente O Alagoano não entende o

grau de angústia de O Escrevente, e ironiza:

Sempre digo e repito que saber ler e escrever faz mal às pessoas mais bem intencionadas. Todo fulano que tem muitas letras termina contando histórias mal contadas ilude sicrano engana beltrano vira mentiroso como os ciganos. (IVO, 2004, p.717)

No último verso, notamos a constatação do preconceito da classe pobre contra um

outro tipo de povo, sofrido e estigmatizado, intolerância baseada em crendices populares

também culturalmente imposta pela “cultura branca”, colonizadora. É “o roto rindo do

esfarrapado”, “o manco zombando do aleijado”, um apátrida desprezando outro tipo de

apátrida como ele, só que andarilho”. Eis a sociedade sedentária vaidosa de seu “endereço”

fixo, mesmo que às vezes tal endereço situe-se no meio do nada, contra outro tipo de nação,

cujos usos e costumes, bastante diversos, ela não entende bem, principalmente no que diz

respeito a esse andar sem pátria/lar.

A segunda parte – como a primeira – acaba com Uma Voz. Imediatamente antes dela

manifestar-se, porém, existe a seguinte indicação no poema dramático: “A cena escurece.

Rumores cruzam o palco: sereias de viaturas policiais, correrias, gritos abafados, marcha de

soldados” (Id., p.719). Dentro do texto, esta é a primeira rubrica – indicação que não é fala,

portanto não deveria ir ao palco, mas que aparece nele: através dessa trilha sonora de ruídos, o

presente já se funde ao passado – as sirenes policiais com a marcha de soldados. É o modo de

Uma Voz antecipar a passagem “do Major Calabar, vindo de grandes batalhas” (Ibid., p.720),

antes mesmo do flash-back ser apresentado ao público. É, pois, uma rubrica que gera uma

56

cena em elipse, e, simultaneamente, a fusão de duas situações, aparentemente sem nexo de

causalidade. O elemento comum a elas é a ação de militares – mesmo invisíveis: uns agindo

por meio de cavalos de força dos motores dos automóveis; o outro cavalgando seu cavalo

branco chamado Ventania, cujo nome já capta a “alma” ou a aura (única) de seu dono

Calabar, misto de mito e metáfora.

Voltaremos às rubricas, mais adiante; porém convém frisar nesse momento e nesse

módulo, que a presença delas é mais uma eloqüente prova da epicidade do poema dramático:

a direção da montagem da cena realiza uma parábase essencialmente épica, promovendo,

através do aparte do autor, um comentário metalingüístico sobre a sua própria obra.

- Terceira parte:

Diante de todos os questionamentos/depoimentos que ouve, O Turista já se mostra

decepcionado com a visão de uma História do Brasil tão desagradável, mas, exatamente por

isso, tenta ainda ignorar o incômodo dessa realidade tão contrastante com a imagem que ele

tinha; e fugindo mais uma vez da dura realidade, passa a falar das belezas do local,

principalmente do canhão.

Como é belo este canhão apesar de enferrujado E como este mar flameja de turmalina e topázio! Se há no Nordeste uma indústria que deva ser explorada (com o apoio indispensável do capital estrangeiro que tem dólar e norrau) é a indústria da paisagem. (...) No meu entender esta cor local é uma mina de ouro. Essa raça velha de troncos e raízes tem um pitoresco que vale um tesouro. (Id., 2004, p.724-725)

O Escrevente, como sempre, critica-o teoricamente, embora nada faça, além disso.

Uma Voz retorna à visão do canhão, mas o vê através da ferrugem. Lembremo-nos de que,

em “Porto Real do Colégio” (Finisterra), Lêdo Ivo já introduz o tema, ao escrever: “E a

ferrugem radiosa protege os mortos” (Ibid., p.542). Aqui, em Calabar, Uma Voz fala: “Da

guerra só restou esse canhão enferrujado/ que pertence a todas as guerras” (Id., p.527). E

nessa ferrugem, que corrói o próprio aço, está clara a metáfora do esquecimento, do abandono

57

ao que é nosso. “O tempo tapou os nossos ouvidos, para que não pudéssemos ouvir o grito

que atravessa as celas / e os corredores das fortalezas” (IVO, 2004, p.728). E termina

enfatizando: “A mesma ferrugem que cobre o canhão selou os nossos lábios./ Já não sabemos

falar./ Somos pó e medo” (Id., p.728).

O Alagoano volta a comparar o povo aos ciganos, agora, porém, como que revendo

conceitos e os entendendo melhor, apresentando conclusão diversa, bastante interessante. Diz

ele que o povo é semelhante “aos ciganos que não acham/ sua terra de nascença/ na imensidão

do mundo” (Ibid., p.730). Como que aprendendo mais sobre um povo sem pátria a partir dele

próprio, apaga-se a idéia do preconceito cultural: mentirosos, afinal, são todos, até mesmo os

que se enganam com a pretensa proteção da pátria.

Enquanto Uma Voz sonha com uma nação que ainda não foi descoberta nem achada,

O Turista em sua última fala, já preparando a próxima cena, como que se despede indagando:

Desculpe a minha pergunta já que, sendo de S. Paulo, não gosto de me meter na vida dos outros povos. Por quem espera esse povo, esse povo da Judéia, que tem um ar tão antigo e, dizem come formiga nestes tempos tão modernos em que o homem foi à lua? (Ibid., p.732)

O Alagoano responde que “O Nordeste espera o Cristo,/ espera o rei da esperança/ que

traga a espada e o pão” (Ibid., p.732). Em seguida, Uma Voz mostra Calabar já com a Morte

em sua garupa, sem se dar conta do destino trágico que o espreita e o espera, à traição. O que

fazer, a partir de agora, diante da conscientização do perigo sempre iminente que nunca

deixou de rondar cada um de nós o tempo todo? Quem nos defende, quem nos protege da

pátria amada?

- Quarta parte:

Começa a última parte do poema dramático, com “as figuras se apagando e um grande

vídeo” apresentando Messias Calabar já morto, estampado em um retrato – se fosse herói

imortalizariam-no em uma estátua (Ibid., p.734). A analogia é imediata: Cristo também foi

considerado subversivo e morto. O Messias provavelmente teria o mesmo fim de Calabar,

sendo abatido pela polícia, se vivesse nos dias atuais. Passaram-se séculos e a execução

sumária aos líderes oposicionistas do sistema continua, mesmo que através de métodos

diferentes. Messias Calabar representa a vítima silenciada de todo o sempre, sem direitos, só

58

deveres, acusações e punições. No silêncio de uma rubrica anônima ele repousa, como que

sem chão, como que sem terra – igual ao O Alagoano que, nada tendo de seu, vive em terreno

alheio.

Uma Voz fala do Major Calabar:

soldado de que pátria, na Pátria sem pátria. (...) Calabar, mulato além de bastardo! Ainda hoje te chamam de contrabandista ladrão de cavalo e filho da puta, sinal de que ainda não terminou a luta. (IVO, 2004, p.734-735).

O bloco finda com a entrada em cena de A Viúva de Calabar, cuja presença basta para

insuflar os ânimos, porque ela acusa a farsa montada com a sua própria chaga viva: “Que

igual ao meu amor perdido e esquartejado, (...) o meu ódio esteja em toda a parte” (Id., p.737).

Seu monólogo tem quatro páginas, e baseia-se todo no ódio que ela sente por quem matou seu

grande amor.

A minha vida me foi sonegada, não posso mais vivê-la (...) Não posso perdoar, nem esquecer. Malditos sejam os que perdoam, mil vezes malditos sejam os que esquecem! Maldito seja o dia de hoje, vento negro que derrubou um cavalo branco. (Id., p.738-739).

A Viúva de Calabar é a reminiscência viva, é a transmissão oral de sua experiência, é

o narrador épico e, ao mesmo tempo, a heroína patética, na preserv-ação da tradição dos

valores da memória involuntária coletiva, de que nos fala Benjamin (1984:et passin). A

Viúva de Calabar é o próprio phatos da tragédia épica – aquela que se dirige apaixonadamente

aos ouvintes, informando que o único objetivo de sua vida dali para frente será odiar os que

odiaram Calabar, lembrá-lo aos que tentarem esquecê-lo, cultuá-lo dentro de sua memória

afetiva, para todo o sempre.

Em outras palavras, A Viúva de Calabar, de esposa-sombra, torna-se guerrilheira:

rebela-se contra a ordem estabelecida, investe contra o status quo, e viverá, até o fim de seus

dias dedicando-se à realização de seus objetivos maiores: lembrar o assassinato do marido

pelas forças repressoras do poder dominante, assassinato político agravado pela pseudo-

59

justificação da barbárie através da manipulação da versão histórica. Eis, a partir do ponto

final, a sua nova saga – intensamente patética, trágica, épica. Por isso, é do passado que ela se

dirige a nós no presente. No último momento, eis a mudança sutil, magistral e inovadora da

substituição do herói dramático pela heroína trágica, como que a nos lembrar que a história

não cessa; que é no nosso instante eterno que a história se desenrola; que não somos vítimas,

mas heróis da resistência ao massacre – mesmo anônimos – e que, em vez de continuarmos a

nos acomodar com o déjà vu, devemos é, epicamente, aprender com as lições que as sagas, até

hoje, são capazes de ministrar.

Como se não bastassem todas as evidentes sinalizações de sua epicidade patética,

Calabar – Um poema dramático ainda contém, na sua constituição narrativa, portanto na

composição de sua literariedade, pelo menos três temas intimamente relacionados ao épico: o

aparente diálogo encobrindo monólogos trágicos; o sonho de Uma Voz como temática que

rompe com a unidade de tempo; e o fator tempo relacionado à memória, na figura d’A Viúva

de Calabar. Vejamos rapidamente cada uma delas.

No poema dramático objeto de nossa Dissertação, os diálogos entre os personagens

são tênues. Não há uma pergunta direta e uma resposta precisa, como na Dramaturgia Pura.

Existe quase que uma sucessão de monólogos, sob a aparência de diálogos. No caso do

protagonista Calabar, que não aparece em cena, nem monólogo existe, sendo o seu silêncio o

mais eloqüente dos seus discursos. Isso se dá, como nos lembra ROSENFELD (2002:105),

quando “o protagonista está essencialmente só ou se encontra em face de um mundo estranho

e adverso”. Calabar está só, em meio ao fogo cruzado de opiniões contrárias, a maioria hostil.

Só, porque onipresente, porém invisível; não tem como ser visto nem ouvido, embora sua

história continue viva. De todas as solidões, a maior sem dúvida, é a de Calabar (até sua viúva

tem a companhia do seu luto e da sua luta); porém os demais personagens também estão

isolados e sós face à máquina do poder, e tal condição gera, como conseqüência, uma ação

mais reflexiva, decorrente da “própria análise dos personagens e da situação” (Id., p. 85).

A estrutura épica do sonho, utilizada em Calabar – Um poema dramático, faz com que

a “narração progrida aos saltos” (Ibid., p.102), quebrando a unidade da ação. A maior de todas

as rupturas surge cada vez que aparece – em off – Uma Voz, que representa o sonho

idealizado, o sonho acalentado, o sonho feliz, presente na memória involuntária de um povo

abandonado e carente. Parecendo estar totalmente solta na trama, sua função, enquanto

recurso épico narrativo, é entrecortar a realidade e a ação do poema; e, se de tão visionária, às

vezes até pode soar desfamiliar aos nossos ouvidos, lembremos que, como elemento

essencialmente épico, “o sonho surge como atualidade estranha, como objetivação em face do

60

sujeito que sonha” (ROSENFELD, 2002, p.102). Nesse sentido, reportamo-nos novamente a

STAIGER (1969:128), quando afirma que “os heróis patéticos parecem irreais ao público”,

por se aproximarem, de alguma forma, com as “figuras mitológicas do pathos”.

Por fim, Calabar de Lêdo Ivo também apresenta outro tema épico – a recordação, que

subjetiva interpretações, ensejando a ruptura na ação.

A memória encerra o indivíduo na sua própria subjetividade, isola-o e suspende a situação lógica, base para o drama rigoroso. Ademais, o sujeito atual tende a objetivar o sujeito passado, estabelecendo-se, deste modo, a típica oposição sujeito –objeto da Épica. (...) A preponderância da memória de qualquer modo suscita um processo de subjetivação” (ROSENFELD, 2002, p.88).

A subjetivação máxima na narrativa de Calabar ocorre com A Viúva de Calabar, cujas

reminiscências acusam a Pátria o tempo todo. De Édipo, ROSENFELD (2002:87) observa

que ele “é de fato a ferida do país, ferida que precisa ser eliminada para libertar a cidade da

peste. Ele é e continua realmente sendo o assassino do pai e o marido da mãe”. O mesmo

ocorre com Calabar, que precisa ser silenciado (e esse silêncio o acompanha durante todo o

poema dramático) para não atrapalhar o sistema com sua periculosidade. No entanto, a Viúva

de Calabar não permite que se esqueça o brutal assassinato e a traição pátria. É nas suas

recordações afetivas que reside sua imensa força política, arma poderosa com a qual

enfrentará a desonra e promoverá a vingança. É o afetual, essencialmente carnal e simbólico,

(MAFFESOLI, 2003, p.55) que traçará a desforra.

Esses três temas – essencialmente épicos – impregnam a narrativa, constituem-na. Ela

ficaria extremamente depauperada ou, talvez, nem mesmo existira, sem seus “diálogos

monologados”, sem os sonhos imemoriais cortando a realidade vazia, sem as recordações

sendo incorporadas à história de um país. Nenhum desses temas épicos pode ser retirado do

poema dramático Calabar sem graves prejuízos estruturais a ele, porque eles estão ligados

visceralmente a sua gênese. Uma prova a mais atestando sua constituição épica..

4.2. Os encontros e aparentes desencontros com o formato épico aristotélico

Prof. Dr. de Letras Modernas, Yves Stalloni destaca os seguintes elementos

característicos do formato genérico da epopéia presentes na Poética aristotélica:

a) um nível elevado, um modo “superior” (“imitação de homens nobres”), como a tragédia: b) uma expressão versificada regular; c) uma forma narrativa (a ação é contada); d) uma extensão suficiente, uma forma alongada; e) uma liberdade na utilização da temporalidade; f) a pluralidade de ação;

61

g) a utilização do irracional (“como melhor meio para suscitar a surpresa, posto que não se tem diante dos olhos a personagem”) (STALLONI, 2003, p.77).

Examinemos, primeiramente os encontros: embora haja inovações narratológicas na

estrutura literária em relação a cada uma delas, Calabar enquadra-se plenamente nos itens “a”,

“c”, “d”, e, “f”.

• Um nível elevado, um modo “superior” (“imitação de homens nobres”), como a

tragédia: Em Calabar, Lêdo Ivo coloca um vilão como personagem principal. Assim sendo,

como chegarmos ao ensinamento nobre do pathos, se a trama gira em torno de um anti-herói?

Que nobreza pode haver em um traidor? Em Calabar, onde encontrar o conceito de grandeza,

esse tom um tanto pretensioso da fala patética mencionado por STAIGER? (1969:126).

Vamos achá-los nas qualidades nobres pátrias, que deveriam constituir-se em requisito

indispensável para julgar os atos de seus cidadãos, taxando-os de vis ou de grandiosos.

Perto da “vilã maior”, impune, Calabar não trai, defende-se. Embora não adentre pela

seara do comportamento dele, ao questionar o substrato da traição a obra desloca o enfoque

do que seja um “herói da pátria”, para o que é a pátria desse herói. Mesmo não sendo

considerado um homem de feitos nobres, pela História do Brasil oficial (pela História da

Holanda o foi) ², o poema dramático em apreço promove diálogos que levam a sociedade, em

última instância, a melhorar e evoluir, a rever através da literatura também a sua

grandiosidade histórica; e o que aduzimos é que, embora difamado, morto e esquartejado,

Calabar continua servindo de exemplo, principalmente exemplo de como agem os truculentos

métodos da repressão política, eliminando os que se opõem frontalmente à sua cartilha.

Liberdade de expressão? Democracia? Onde? Em qual pátria?

As epopéias narram ações heróicas; mas uma ação heróica não é, apenas, a saga de

heróis vencedores, considerados como tais pela história oficial de um país – lembremos do

exército grego dos dez mil soldados mercenários, tentando voltar para sua pátria, após serem

derrotados na batalha de Cunaxa, na Ásia Menor. Ou recordemos os deuses olímpicos, cujos

roubos, adultérios, vinganças, castigos e torturas não desqualificavam o valor heróico, épico, de

suas sagas e seus atos. No que diz respeito à figura de Calabar, ela enquadra-se no significado

dicionarizado do vocábulo herói: um “homem extraordinário por seus feitos guerreiros”

(FERREIRA, 2001, p.362). Na visão/versão dos holandeses, o Major Calabar queria o melhor

__________________________

² “Em Porto Calvo, sob comando de Arciszewsky, os holandeses prestaram-lhe honras fúnebres – àquele a quem

efetivamente deviam grande parte de seu sucesso”: http://pt.wikipedia.org/wiki/Domingos_Fernandes_Calab

62

para o Brasil, já que Portugal, ainda mais sob o jugo da Coroa da Espanha na época, tinha

esquema de dominação muito mais opressivo, tanto em termos econômicos (impostos

maiores) quanto culturais. Segundo o Prof. Dr. Frans Leonard Schalwijk, Calabar teria escrito

ao governador Waerdenburch, nesses termos: "Passei para essa causa sem querer recompensa,

e vim para melhorar minha terra, que não tem liberdade de espécie alguma" 3. Os holandeses

o consideram um herói (no registro de batismo de seu filho com Bárbara Cardoza constam

apenas personalidades ilustres da época). Só a História do Brasil o deprecia.

Mesmo aviltado, porém, Calabar não deixa de ser menos herói por ter escolhido a

dominação holandesa, em vez da luso-espanhola. Ao contrário, alia a bravura dos combates

(ganhou inúmeras batalhas) à coragem de exercer sua liberdade de opção, tão relativa que lhe

valeu a morte. Calabar é antes de tudo um rebelde contra as regras de uma colonização brutal

e só tal fato isolado já faz dele um herói: mesmo difamado, um bravo. Em nenhum momento

o poema dramático defende seu protagonista invisível expressa ou sectariamente; no entanto,

ao questionar sutilmente alguns dos muitos crimes da Pátria contra os seus filhos (miséria,

fome, injustiça, cooptação, manipulação, alienação, etc.), o poema dramático claramente

desloca a culpa centralizada em um homem para o poder soberano do Estado, que não

cumpre com seus deveres fundamentais de amparo e proteção a seus cidadãos. A única

escolha possível, à época de Calabar, era entre uma dominação mais branda ou mais

opressiva. Sim. Porém e depois da independência do Brasil, e agora: temos alguma escolha

frente a uma dominação que mal percebemos?

• Uma forma narrativa (a ação é contada). O poema dramático de Lêdo Ivo conta a

história do país em que viveu Calabar. O passado impregna toda a ação, mas serve apenas

para, tendo como ponto de partida um homem considerado traidor, denunciar e condenar à

traição a pátria que atraiçoa os sonhos diários de cada cidadão; no entanto, subjetiva o tema,

quando chama à autoria os juízes que os julgaram. Transcendendo o particular, vai â raiz do

mal, atingindo a dimensão trágico-patética.

• Uma extensão suficiente, uma forma alongada - Trata-se de uma obra cujo texto

ocupa quarenta e oito páginas (IVO, 2004, 691-739), o que corresponde a um espetáculo teatral

de uma hora a uma hora e vinte minutos, aproximadamente, como a maioria das peças

atualmente encenadas. O texto, constituído basicamente de diálogos monologados, fragmenta

a ação, o que acarreta a possibilidade de criação de uma requintada mise-en-scène, ou seja, de

__________________________ 3 Texto extraído de documento disponibilizado na Internet, sem número de páginas, nem data,

constando apenas título e nome do autor . V. referências biográficas.

63

recursos cênicos que alongarão, por si só, a duração da encenação teatral (jogo de luz, black-

out, trilhas sonoras, imagens em telões – todos expedientes que aumentam o tempo de

duração do espetáculo).

• Uma liberdade na utilização da temporalidade – Passado e presente se mesclam:

Calabar e Messias Calabar convivem, e suas sagas têm o mesmo fim trágico. Um período

grande é focalizado por esse épico (várias centenas de anos de revoluções solares, na

terminologia aristotélica): séculos XVII e XXI transitam em cena, mostrando a pouca

diferença que há – quer na forca ou garrote, quer nas armas automáticas e nas requintados

tipos de torturas criadas na era tecnológica; a mudança apenas, dá-se pela modernização dos

métodos de execução, pois a definição do conceito de traição continua sendo a dos grupos

dominantes e não a dos grupos estigmatizados, traídos em seus anseios de conforto e bem-

estar. Presente e passado mesclam-se, assim, na continuidade dos erros sócio-políticos e na

secular esperança do povo, esperança esta resumida em sentir orgulho de pertencer a uma

nação que defende seus interesses básicos e elementares de sobrevivência.

• A pluralidade de ação: em Calabar – Um poema dramático, a pluralidade de ação

aparece de forma também muito original: são interconectados, ao passado, personagens que

não tomaram parte na história, mas que com ela mantêm fortes ligações, por serem vítimas da

sutil e invisível traição da mesma pátria que os condenou à morte, em vida. Mesmo que não

tenham consciência do fato, existe uma espécie de união originada pela traição do país contra

cada um de per si e contra todos, no coletivo.

A pluralidade de ação no poema dramático de Lêdo Ivo ocorre ainda, pela

concomitância dos tempos: passado e presente. A Viúva de Calabar – a única testemunha

ocular a ter vivenciado a história –, assume a função de narradora dos fatos, dentro de sua

vivência emotiva: é a voz estigmatizada, a voz oprimida que conta o que houve (e não o que

ouve), através não do registro dos fatos, mas através da sua revolta e da sua dor. É ela quem

blasfema e quem amaldiçoa os que enlamearam o nome de uma figura politicamente

importante (pelo menos para os holandeses), de um valoroso militar que agiu conforme a sua

consciência. É ela quem fecha a ação, do momento em que sua vida muda radicalmente, e que

desafia o poder constituído, apenas com a fúria do seu amor – o que nos faz lembrar os versos

de MANUEL BANDEIRA ([1961], p.70): “– Não quero mais saber do lirismo que não é

libertação”. O lirismo dela é libertário, por clamar pela mudança do status quo político-social.

Tendo analisado, item a item, os elementos característicos do formato genérico da

epopéia presentes na Poética aristotélica, segundo STALLONI (2003:77), não incluímos o

item “g” porque, embora não se trate propriamente de um desencontro com o formato

64

clássico, a característica relativa à utilização do irracional será vista pormenorizadamente a

seguir, ao analisarmos o histórico e o maravilhoso. No entanto, queremos desde já adiantar

que o maravilhoso encontrado no poema dramático Calabar não se relaciona com o fantástico

tradicional a que estávamos acostumados, mas sim com a fantasia (ou fantasmagoria) do

mundo das aparências, a mitologia das máscaras, o disfarce do simulacro ou da simulação, a

maquiagem da realidade, expressões do fenômeno trágico na contemporaneidade, e “que vem

a ser o mesmo que purgar” (MAFFESOLI, 2003, p.120). Falaremos mais adiante sobre a

mitologia contemporânea, e sobre esse herói-persona/mito-pessoa, enredado em seus

múltiplos papéis.

O único desencontro frontal de Calabar com o formato épico, portanto, acontece tão

somente com relação à letra “b”, pois Calabar não apresenta uma expressão versificada

regular: ora é escrito em versos setessilábicos, ora em redondilhas menores, ora em versos

bárbaros, ora em rimas emparelhadas, alternadas, remotas e órfãs. No entanto, esse único

distanciamento seria o bastante para descaracterizar o poema dramático como pertencente ao

gênero épico? Pensamos que não. Convém não esquecermos de que a versificação regular a

que Aristóteles se refere é a do seu tempo, a mais tradicional obra épica da Grécia Clássica é

a Ilíada, é composta de 15.693 versos em hexâmetro dactílico (hexâmetro é verso composto

de seis sílabas poéticas, e dactílico faz alusão ao ritmo do poema, composto de uma sílaba

longa e duas breves, já que o grego não possui sílabas tônicas, e sim breves e longas). Não

podemos exigir de um gênero, para que seja reconhecido como tal, que ele possua a exata

formatação grega, ou seja, que no caso das epopéias elas sejam escritas em milhares de

hexâmetros dactílicos em plena era tecnológica. A irregularidade na versificação, em nossa

época, caracteriza-se como mais um elemento do teatro épico do qual a literatura lança mão,

para expressar-se de forma fragmentada, monológica, descontínua, abrupta, agressiva e

cortante.

4.3. Aprofundamento nos planos histórico e maravilhoso na epopéia pós-moderna e a

literariedade como função de integração entra ambos em Calabar – Um poema dramático.

a. O plano histórico em Calabar – Um poema dramático

Não há como falar de Calabar sem pensarmos no plano e do palco históricos aos quais

ele está ligado. No entanto, a obra vai muito mais além da obviedade: de forma sutil ela

questiona, poeticamente, a validade e a veracidade da história positivista, baseada em fatos já

65

deformados a partir da fonte devido a interesses sócio-políticos dos grupos dominantes,

embora sejam apresentados como registro da verdade absoluta e inconteste, relatos exatos dos

acontecimentos passados.

A busca épica pela verdade perpassa o poema dramático o tempo todo, denunciando,

principalmente, o que se esconde através do que se ouve ou do que se vê. As deduções

pessoais a que os personagens chegam já partem de dados viciados, manipulados, deformados

pelos grupos dirigentes. O próprio O Escrevente, que tem um exercício crítico mais elaborado

não consegue comunicar-se satisfatoriamente com as classes intelectualmente inferiores à sua.

A partir dessa constatação, podemos notar, de imediato, que o plano histórico em Calabar

bifurca-se em duas trilhas: a primeira critica a História ensinada como sendo a versão

incontestavelmente real; a segunda indaga sobre o papel social do escritor e a validade de sua

crítica, afastada da prática.

A essas duas direções acresce-se uma terceira: em Calabar, a história é apresentada de

forma a que todas as direções que partem dela nos conduzam a uma pergunta final: qual o

limite do ser humano em aceitar o inaceitável, em concordar com o constructo cultural (sócio-

político) que o molda, o reprograma, e o “deleta”, no caso dele querer resolver viver de forma

diferente dos padrões pré-estabelecidos? O sofrimento de Bárbara não dói só nela, estende-se

a todo uma nação que crucifica, que vilipendia os seus heróis e os esquarteja, ao mesmo

tempo em que, tantas vezes, glorifica seus assassinos.

Nesse sentido, Calabar – Um poema dramático faz do passado histórico um “local” de

partida para o debate sobre questões paralelas que envolvem conceitos sobre nacionalidade,

cidadania, direitos e deveres dos cidadãos, pátria, exílio, nacionais estranhos em seu próprio

país, impunidade, violência, perseguição, queima de arquivos – e tantos outros heranças.

Percebemos logo que Bárbara não é só Bárbara: é A Viúva de Calabar, a vítima – como tantas

outras mulheres – do sectarismo ideológico, a que mais perde: o marido, o pai de seu filho, o

lar, a respeitabilidade, a dignidade.

Ainda como última observação no que tange ao plano histórico, não devemos nos

esquecer de que a noção dos gêneros literários está inerentemente ligada a ele: recordações,

julgamentos e epopéias são depoimentos históricos, para além do contexto literário (desde a

École des Analles sabemos que o imaginário integra a História, e a narração ficcional soma-se

ao modo de percebê-la e interpretá-la). Todos os três gêneros inscrevem-se na memória

coletiva, na partilha e na pertença comum. “Co-existem em um conjunto em que tudo compõe

um corpo”, conforme MAFFESOLI (2004:75). Tal vinculação é tão evidente que é comum

ouvirmos que o gênero épico perdeu status social após a ascensão do romance, mais adequado

66

aos anseios e necessidades de um novo público que surgiu com a revolução industrial.

Impossível mencionar status social sem pensarmos em História e sociedade. Portanto, o plano

histórico está contido já na noção de gênero, ab initio, e desde sempre a integra. Muito mais

difícil, porém, é captar nas epopéias modernas o elemento mítico-maravilhoso.

b. O plano maravilhoso em Calabar – Um poema dramático

Para encontrá-lo, lembremo-nos primeiramente de que, tal como aconteceu com

diversas noções conceituais vivenciadas de modo diverso na contemporaneidade, o

maravilhoso e o mítico, aqui englobando a utilização do irracional enquanto elemento da

epopéia (ARISTÓTELES, Arte Poética, 1460a), também passou por enormes transformações

até chegar aos nossos dias; hoje, o amplo âmbito do maravilhoso e do mítico abrange não só

a dimensão trágica dos arquétipos, como também, o jogo dos duplos, um dos elementos

responsáveis pelo que MAFFESOLI (2004:116) denomina mitologia da máscara.

Observa o pensador francês que as narrativas mitológicas na sociedade atual estão

ligadas a universos fantásticos, manifestando o desejo de estar-se em um outro lugar. Essas

narrativas mitológicas, diferentes das históricas – que se fundamentam em um sujeito senhor

de si – “permitem que todas as facetas de uma pessoa se atualizem” (MAFFESOLI, 2004,

p.93). Parece-nos tentativa vã, portanto, procurarmos em Calabar o “maravilhoso fantástico”

tradicional, que trazia o elemento mágico, sobrenatural ou irracional de forma óbvia. Na

epopéia pós-moderna devemos encontrar o maravilhoso através da duplicidade que ele

encena: o lado sombra – para usarmos a terminologia maffesoliana – anseia transcender-se e

encontrar o seu duplo.

Segundo Jung, apud MAFFESOLI (2003:22), “o trágico nas sociedades

contemporâneas alia a sombra encarnada dos sentidos e da paixão e a luz etérea da razão,

através de uma intensa sinergia” (grifo nosso).

O que entra em jogo é o meu ‘duplo’, a confrontação com a ‘participação mágica num eu coletivo’ (...) O ‘daimon’ continua a inquietar, pelo menos na perspectiva do ideal racional do Ocidente. Mas, se o situarmos numa perspectiva mitológica, veremos que ele traduz o transbordamento do eu por algo diferente do eu. É um desejo de infinitude que se empenha em descobrir e em viver algo diferente do simples encarceramento identitário. As manifestações contemporâneas de que tratamos podem entrar em eco com a visão poética, tal como enunciada por Fernando Pessoa: ‘Há em mim um excesso que é maior que eu. Um excesso do que não posso chamar de eu...’ (MAFFESOLI, 2004, p.93-96).

67

O conceito de mito sofistica-se e já não é detectado tão facilmente, pois são outras as

“divindades” e a noção do fantástico em nossa era tecnológica.

Talvez conviesse falar, no que tange à pós-modernidade, numa pessoa (“persona”) que desempenha diversos papéis no seio das tribos a que adere. A identidade se fragiliza. As identificações múltiplas, ao contrário, multiplicam-se. (...) O tempo se contrai em espaço, caminha de mãos dadas com a inversão temporal que faz com que a História linear seja menos importante do que as histórias humanas. Em síntese, o que passa a predominar é realmente um presente que eu vivo com terceiros, num determinado lugar. Esse sítio, ao mesmo tempo centrifugo e centrípeto, é o herói, pessoa-persona, local comum de sentimentos trágicos (MAFFESOLI, 2004, et passin).

O mito, na literatura contemporânea, visa, através do jogo de duplos, alcançar o desejo

que todos temos de um outro lugar; e o outro lugar que queremos, em Calabar, é uma pátria

melhor, menos injusta, agressiva e autoritária, com direitos, deveres e oportunidades para

todos; não uma pátria abstrata, com símbolos esvaziados de concretude. É nesta direção que

Calabar, a princípio um mito-pessoa-personagem, torna-se um lugar-referência, onde

afetividades de todos os tipos concentram-se, como em um local de eventos, uma praça

pública. Podemos até dizer que, nesse “lugar-Calabar”, ele não é uma estátua – nem podia,

aos vilões não se erigem monumentos ou se dedicam homenagens; ele é o que o excede dele

enquanto indivíduo, justamente naquela medida transcendente do homem que o liga à

dimensão trágica, conforme Bornheim.

O tempo inteiro jogando com os duplos, ou seja, “com a miríade de possibilidades que

os protagonistas do mito podem exprimir-se” (MAFFESOLI, 2004, p.93), Calabar transcende

a medida de Calabar, vivenciando sua dimensão épico-trágica; ele transforma-se em via de

acesso para o palco de dramas que estão presentes na atualidade; transforma-se em um sítio,

já agora na concepção heideggeriana: o que reúne em si o essencial de uma coisa, o real da res

(HEIDEGGER, 2001, p.153) – e aqui, no poema dramático de Lêdo Ivo, o essencial é

chegarmos ao real de uma pátria, para além dos compatriotas, dos patriotas, das patriotadas,

das patriotices, dos patriotismos e dos patrimônios. Calabar, no contexto do poema dramático

de Lêdo Ivo, é uma ponte (HEIDEGGER, 2001, p.131-137), que liga não apenas o passado e

o presente, mas que cria, na travessia de sua história, as margens dos bastidores da História e

de seus marginalizados. Por mais claro que nos pareça, convém enfatizar que, ao coisificar

Calabar como ponte ou local, não estamos em absoluto reduzindo o elemento humano a

valores materiais; ao contrário do que de início possa parecer, estamos esvaziando seu sentido

mercadológico e habitando-o, poeticamente.

68

Se a versão oficial sobre Calabar mascara-o, Calabar, ostentando sua máscara

mortuária, desmascara os reais traidores, que se escudam em máscaras para disfarçarem os

verdadeiros propósitos de seus atos antipatrióticos. O tempo todo o poema dramático de Lêdo

Ivo lida com o jogo de duplos e com a mitologia da máscara de que nos fala MAFFESOLI; e,

dentro deles, o mito não precisa de elementos mágicos para manifestar-se; ele está presente na

imagem desse real irreal, fantástico e destorcido, feito o tempo todo de dissimulação,

fingimento, omissão de informações, manipulação ideológica, demagogia, sobre os quais se

erige um país de fantasias. O mito, o fantástico, o maravilhoso em Calabar lida com um

extraordinário que aparenta ser realidade normal, mas que vive quase que exclusivamente de

imagens e slogans, de efeitos óticos, de montagens e trucagens, e do jogo de sombra e luz,

como se estivesse permanentemente atuando em um palco. O que de fato está.

c. A literariedade e sua função integrativa dos planos histórico e maravilhoso

Em seu ensaio O épico não morreu (as escritoras que o digam) – Uma fundamentação

teórica, Christina Bielinski Ramalho escreve:

Observando as manifestações épicas que integraram o classicismo greco-romano, e se orientando pelas formulações teóricas de Aristóteles e Staiger, Anazildo Vasconcelos da Silva verificou que a matéria épica definida como temática resultante da fusão de duas dimensões, uma real, outra mítica, fruto da atribuição de uma significação mítica ao evento histórico , nessas obras, era extraída dos feitos grandiosos que determinado herói havia realizado e que, por sua grandiosidade, haviam recebido, com o tempo, uma aderência mítica. Transportado para o poema, o herói era, portanto, um ser que agia tanto no plano histórico quanto no maravilhoso, o que lhe conferia uma dupla condição existencial: real e mítica (RAMALHO, 2005, p.9).

Estabelecendo a “ligância” entre história e ficção, temos “a literariedade, na epopéia,

que desempenha a função de integrar os planos histórico e maravilhoso da epopéia moderna e

pós-moderna”, segundo RAMALHO (2005:20). Embora o plano literário não tenha sempre

predominância estrutural, “muitas vezes estarão nele as marcas da submissão, da alienação ou

da transgressão do texto em termos da contextualidade política, religiosa, étnica, etc., na qual

a obra se insere” (BIELINSKI, 2005, p. 20).

Passemos, então, a detalhar as particularidades narrativas em Calabar – Um poema

dramático, observando como essa literariedade interliga os dois planos: histórico e

maravilhoso, ou seja, real e mítico. O intuito também desse exame mais minucioso é

percebermos, mais claramente, através dessa análise, como o gênero épico se afirma e

reafirma a todo o momento, em uma narrativa contemporânea repleta de riquezas inovadoras.

69

Na enumeração abaixo, alguns itens são apenas reforço do que já vimos, dentro agora do

enfoque ora proposto; outros acrescentam novos ângulos à questão taxinômica do poema

dramático, mais visivelmente explicitados através da vinculação do real e do mítico, através

da literariedade narrativa que os integra.

1 – Como abordamos anteriormente, a intitulação dos personagens da narrativa

transforma pessoas reais em conceitos abstratos e genéricos de grupos sociais. Referindo-se

através deles a categorias profissionais ou a um estado berço-natal (como O Alagoano), o

poema dramático de Lêdo Ivo mostra a pluralidade de vozes contida em cada um deles; cada

personagem não fala só por si, mas por muitos, como vimos anteriormente; essa polifonia

também está presente em Messias Calabar – junção de duas figuras históricas, a fim de formar

uma terceira, que carrega, em seu nome, conotações simbólicas e míticas; essas vozes

múltiplas encontram-se, também, na figura d’A Viúva de Calabar, cujo nome real não

aparece, fazendo-nos lembrar STAIGER (1969:128) ao afirmar que “o pathos consome a

individualidade”.

Fora Messias Calabar, que é um nome ficcional, Calabar é o único que conserva seu

nome real, embora não apareça nem uma única vez em cena. Esse recurso de retirar

fisicamente o personagem principal do palco, transforma o homem em mito, o que permite

mitificações fantasiosas e mistificações articuladas a seu respeito. A elipse do próprio

personagem principal é, pois, uma preciosidade. Esse Calabar invisível é intensamente

simbólico, como um “fantasma da liberdade” que aterroriza seus opositores; sua ausência o

direciona ao mito. Elíptico, ele ganha dimensão trágica: se, enquanto pessoa, Calabar não

pôde ir além de seus atos, o questionamento do tipo de poder que o julgou ultrapassa, alcança

debate de âmbito nacional, concernente à definição de vilanias mascaradas de legitimidade. A

supressão literária da presença física de Calabar na narrativa faz com que ele exacerbe as

vozes históricas intercomunicantes, sendo, ao mesmo tempo, fonte inesgotável para a

mitopoese, cumprindo, em toda plenitude, a sua dimensão trágica.

2 – Se as demais obras sobre Calabar enfocam-no de forma centrípeta – abordando os

prós ou os contras dos seus atos dentro do contexto histórico didático (aprendido em livros

escolares) –, a narrativa do poema dramático ora examinado age como força centrífuga: a

narrativa desvia-se do centro, do núcleo-Calabar, para colocar na berlinda todos os demais

cidadãos de uma nação que quase nunca reconhece seus rebeldes como heróis, apenas os

deprecia, os desvaloriza, os anula, e até mesmo os elimina, se preciso for. O poema dramático

de Lêdo Ivo não se atém à discussão em torno do personagem histórico, nem se importa muito

em conceituar Calabar como herói ou vilão. Esse é um mero “detalhe” face à acusação de

70

todas as demais traições que vêm sendo perpetradas até hoje, por diversas formas, contra os

cidadãos – desde a sonegação de informações, até a traição dos ideais e sonhos de uma

multidão de excluídos.

Tal reversão da força interna da ação de Calabar é constructo literário de rara beleza e

vigor: Calabar não precisa, em pessoa, comparecer a esse julgamento, porque nele, ele não é

réu: é vítima. E como vítima assassinada participa de corpo presente: na memória de um

povo, acusado de desmemoriado, que age assim apenas como defesa à sua sensação de

impotência histórica. Vimos que a memória é tema eminentemente épico, porque, na obra

aqui examinada, rompe com a continuidade da ação. O passado é lembrado, mas através da

subjetividade, e portanto da interferência, de quem pensa nele. Através da reversão da

trajetória vetorial do raio de ação narrativo de Calabar, o literário incorpora, à trajetória real e

histórica dele, o seu duplo: ele “é o grito que escutamos / em nossos tempos de surdos” (IVO,

2004, p;711); o que foi silenciado, mas cujo silêncio, fala; o que alcança o extraordinário, com

sua capacidade onipresente de estar em todas as partes, até – e principalmente – onde ele não

está (IVO, 2004, p.710).

3 – A função parabática em Calabar – Um poema dramático é exercida através de Uma

Voz. Ela rompe com a continuidade da ação dramática, tal como o coro, na Grécia Clássica.

ARISTÓTELES (Arte Poética, 1453a) afirma: “o coro deve ser considerado como um dos

atores; deve constituir parte do todo e ser associado à ação”. Pois Lêdo Ivo transforma esse

coro de pessoas concretas em Uma (única) Voz incorpórea, que continua fornecendo

ininterruptamente o tom épico no poema dramático ora observado. No entanto, essa voz

sempre “aparece” em off, invisível como Calabar – poderia muito bem ser a voz dos anseios

dele, vivenciados naquela época de trevas (é pertinente, aqui, relacionarmos, analogicamente,

esses monólogos, às escuras, com o título da obra de Thiago de Mello: “Faz escuro mas eu

canto, porque o amanhã vai chegar”). Consideramos porém essa voz como sendo a da poiesis,

porque ela é mítica: opera atuando sobre todos os seres, lembrando-lhes do essencial. Pode até

ter agido sobre os anseios de Calabar, sim, mas é supra-individual, é supra-humana.

Pela literariedade de Uma Voz também somos conduzidos ao caminho da interconexão

dos tempos narrativos, outra inovação audaciosa na obra em apreço, já que o gênero épico

sempre se voltou ao passado, quase que exclusivamente – pelo menos é desse modo que

estamos acostumados a identificá-lo. Em Calabar – Um poema dramático, o épico faz a

História dialogar com o presente, deslocando a narração das ações individuais (reais), para as

ações também reais, porém provindas de uma nação abstrata e que atinge todas as pessoas

“de-carne-e-osso”. Esse contexto da realidade física x realidade abstrata (metafísica) aparece

71

na construção da personagem de Uma Voz, que vive a simultaneidade de diversos tempos,

compondo a tragicidade do instante eterno. Ora ela se apresenta sua visão crítica dos

acontecimentos,

Major Calabar, soldado de que pátria, na pátria sem pátria galo indesejável, na aurora vermelha (IVO, 2004, p.734)

ora ela profetiza bênçãos quase que messiânicas, como um vate prenunciando vate-cínios –

prevendo futuros e pretéritos do futuro –, dentro do movimento cíclico do retorno do sonho:

(...) e sonho contigo: Brasil, América, Quem sonha contigo sonha com a América. Todos nós somos A América: essa miséria cercada de ouro esses homens acocorados que nos olham como os índios expulsos de suas tabas ou os negros que ainda hoje buscam os seus deuses [derrubados e as suas pátrias peridas. Somos a América. Nosso futuro está no passado, como a [aurora antes do meio dia e o candelabro das [constelações quebrado pelo sol. (Id., p.730)

O tom com que Uma Voz expressa-se é mais um elemento próprio do gênero épico:

ela revolta-se contra a perda dos valores tradicionais, insurge-se contra o esquecimento, e

lembra do que nos foi confiscado ao longo dos tempos:

Todos nós somos a América: esta miséria cercada de ouro, estes homens acocorados que nos olham como os índios expulsos de suas tabas ou os negros que ainda buscam os seus deuses [derrubados e as suas pátrias perdidos. Somos a América. Nosso futuro está no passado, (...) Nosso futuro está no futuro quando o povo sonha e é a América pátria de ouro e diamante raiz que do fundo da terra guarda o dia e o sol. (IVO, 2004, p.730-731)

Uma Voz, mais do que nenhum outro personagem integra, na narrativa, o real e o

ideal, o presente e o presente idealizado, confrontando o que existe com o que apenas existe

na dimensão do onírico, o que todos temos na vida concreta, e a vida concreta que todos

gostaríamos de ter. Ela nos conduz a um país praticamente lendário, fantástico, maravilhoso e

remoto, existente apenas em nossos sonhos mais recônditos. Voltaremos ao entrecruzamento

dos tempos no último item (nº 10).

72

4 – Mencionamos anteriormente o recurso da alternância de diálogos que, em verdade,

são monólogos reflexivos. Agora é o momento de observarmos que esse recurso epicizante,

enquanto elemento constitutivo da literariedade do poema dramático, liga o plano histórico ao

maravilhoso, através não do confronto dialógico, como era de se esperar, mas justamente do

um subtexto nele contido, do que está implícito nas entrelinhas. E esses não-ditos existem tão

corporeamente que são como a contrafala do que é exposto. A valoração do silêncio, ou da

interpretação ou do que é sutilmente sugerido, é mais um dos aspectos da mitologia da

máscara, do real e seu duplo, que incorpora a pausa, o próprio intervalo da fala fragmentada

em monólogos, para sublinhar as entrelinhas, as letras que o leitor ou o público devem

completar, como no “jogo da forca”.

Calabar não aparece em cena e Messias Calabar não fala: sua linguagem é silenciosa,

corpóreo-gestual (tão a gosto do épico patético); ele é só um rosto, igual a tantos na multidão.

No entanto, é personagem de vital importância para a trama, porque é através dele que a

narrativa trágica do poema dramático chega aos dias de hoje e convive conosco, dentro

mesmo de nossos lares, com a nossa devida autorização. É Messias Calabar quem faz com

que nos demos conta de que perdemos a capacidade de ficar perplexos. Talvez seja essa

indiferença enraizada a nossa parcela de cumplicidade nesse assassinato diário patrocinado

pela indústria cultural, cuja mídia é a porta-voz da ideologia dominante, propagando,

subliminarmente, as bases ideológicas em que se alicerceia. Messias Calabar é o elemento

que liga Alagoas ao Rio de Janeiro ou a São Paulo ou a Manaus, ou a Paris ou a Mongólia, e

que também une nosso país a um país-mito, violento e distante daquele em que queremos

viver.

Tal entrechoque de monólogos e diálogos torna dodecafônico o poema dramático

Calabar, através de um ritmo descontínuo e insubmissamente revolto. Tal tonalidade, feita de

quebras, é bastante diferente da do épico na Grécia Clássica, de versificação regular, e dos

épicos modernos, que procuram conservar, pelo menos, uma versificação harmônica. É,

porém, esta alternância descontínua – recurso épico por excelência – que permite o autor

lançar mão de um recurso literário extremamente difícil: a introdução de personagens já no

fim do poema dramático, criando um final aberto, reflexivo, em vez de um final com uma

mensagem fechada e definitiva, como nas epopéias tradicionais.

De grande impacto é a entrada de Messias Calabar e, logo depois, de A Viúva de

Calabar, cujo monólogo é emocionado e emotivo: ela é a única personagem que fala do século

XVII para o século XXI: ela vem do passado para depor, acusar, julgar e mostrar que Calabar

73

ainda vive dentro do seu sofrimento atemporal. Ela é a única testemunha ocular, a narradora

diretamente envolvida com os fatos, a que amou e a que tudo perdeu, a que pode, movida a

paixões tão intensas, aconselhar seus ouvintes – aconselhamentos raivosos, mas nem por isso

menos úteis – e, ao mesmo tempo, movimentar o ciclo épico-patético. O seu tom é do orador

patético que, mesmo falando sozinho – e lembremo-nos de STAIGER (1969:125) – dirige-se

a algum tipo de platéia. A alternância de ritmos faz com que A Viúva de Calabar surja como

uma espécie de visão fantástica e fantasma, de certa forma anunciando e prevendo, na

construção do poema dramático, o retorno do trágico na contemporaneidade, através do eterno

ciclo urobórico que enlaça sua dor épica, arquetípica, mitológica, que renasce todos os dias

para ser bicada pelos abutres, e que, exatamente por isso, mobiliza e contagia.

5 – Se falamos, no item número 1, das características dos personagens que

representam protótipos de miséria, de alienação, de intelectualidade teórica, de solidão, etc.,

precisamos agora abordar as caracterizações que aproximam do plano físico esses modelos

arquetípicos. Em Calabar – Um poema dramático apenas três personagens têm caracterizações

óbvias. O único dos três cujo objeto de cena não está descrito no próprio texto é O Turista,

que, caracterizado por sua mania de tirar fotos o tempo todo, deverá portar sua máquina a tira-

colo. Os demais personagens têm indicações de caracterizações através de rubricas: A Viúva

de Calabar, veste-se de negro, dando, de imediato, idéia de seu eterno luto; e Messias Calabar,

possui barba, a exemplo de santos e guerrilheiros (Jesus, Guevara, Fidel), todos líderes

considerados perigosamente subversivos (já foi tempo em que a barba era um sinal de

seriedade e respeito).

Fusão de salvador-subversivo-guerrilheiro, mero arquivo a ser queimado pelo poder,

Messias Calabar é, assim como Calabar foi, mais um atraiçoado pela pátria. Mais uma vez

alguém é morto em nome da defesa da ordem, da segurança pública, da defesa da pátria, dessa

mesma pátria que mata publicamente, em vez de acabar com as desigualdades sociais. É por

isso mesmo – insista-se – que pouco importa sabermos se realmente Messias Calabar (ou

Calabar) foi um marginal truculento (embora o “Messias” acrescido ao nome do segundo

deponha em sua defesa); o que vale é mostrar que seus atos de bandidagens foram e são

julgados justamente por aqueles que também os praticam, escudados nos privilégios da

legalidade e/ou da impunidade. De vultos históricos foram reduzidos a vultos, suspeitos.

Tais caracterizações (teatrais) nesses três personagens fazem parte da literalidade do

poema em apreço, surgindo como elementos importantes de seus perfis. No entanto, elas são

introduzidas no texto através das rubricas, que, em vez de indicações de pouca ou nenhuma

74

importância para a trama, acabam configurando-se em uma nova cena, uma cena dos

bastidores da história, evocada pelo autor para atingir mais plenamente o efeito de

distanciamento epicizante, desencorajando qualquer possibilidade de cumplicidade simbiótica

entre o poema e o público.

Autêntica metalinguagem literária ou parábase teatral utilizada pelo autor, essas

rubricas-didascálias, ao mesmo tempo que representam uma ruptura na narrativa, acrescentam

também uma nova modalidade de inflexão: embora não se confunda com o narrador, o autor,

ao utilizar o recurso parabático, reforça a linguagem teatral dentro da literariedade do poema e

gradua, ostensivamente, a intensidade da ironia poética que deseja imprimir à ação. Quer

acrescentando o universo do próprio escritor à sua obra, quer criando verdadeiros mundos

paralelos inexistentes sem a presença delas, essas indicações são de grande importância para a

questão taxinômica do gênero épico, motivo pelo qual sentimos necessidade de continuarmos

a analisá-las um pouco mais, através de um novo aspecto: a ironia dramática, que se constitui

em um recurso estilístico integrador dos planos histórico e fantástico, ao intensificar a tensão

entre a verdade e o julgamento dela.

6 – O significado dicionarizado do termo “rubrica” abrange, entre outros, três tipos de

acepções (FERREIRA, 2001:615), a saber: apontamento, nota (feita pelos escritores) e firma

ou assinatura abreviada, reconhecida como autêntica pelos escreventes (escriturários e

tabeliões, que dão autenticidade aos registros, aos dados, aos apontamentos). Em certo

sentido, pois, as rubricas estão ligadas ao ofício diário de O Escrevente, que é o personagem

que, a rigor, rubrica documentos oficiais, autenticando-os, atestando-lhes a veracidade e

dando-lhes fé. Entretanto, na obra poética ora examinada, nenhuma rubrica é destinada,

endereçada ou atribuída a tal personagem – contraste interessante de se observado, mais uma

vez realçando a defasagem entre a sua prática e teoria (“faça o que eu digo, mas não faça o

que eu faço”). Todos os demais personagens têm rubricas em Calabar – Um poema dramático.

Elas aparecem grafadas em itálico e apresentam o palco como referência do épico, porque não

são apenas orientações exclusivamente cênicas: elas participam do arcabouço literário, que,

sem elas, desfalca-se da ironia poética e dos recursos epicizantes que o compõem.

Após a página que contém a lista de personagens, a obra começa com uma grande

rubrica, onde estão contidas as localizações históricas, a ambientação, e também indicações

sobre o cenário. Lê-se nela:

Escuridão. Num grande vídeo instalado no fundo da cena, são piruetados fragmentos de filmes sobre as riquezas e atrações do Nordeste, e destinados a atrair turistas e investidores. O slogan “Conheça o Nordeste” é repetido diversas vezes, em várias

75

tonalidades, que vão do aliciamento ao desafio. As imagens se diluem e surge o cenário. É a praça em que, em 1636, Domingos Fernandes Calabar foi esquartejado e exposto ao escárnio público. Esse cenário deve ostentar, além do pelourinho, os seguintes elementos: casas baixas e brancas, coqueiros e mar ao longe, uma igreja, um canhão enferrujado e, mais distante, um letreiro com as palavras Motel Califórnia. Quando o pano sobe, estão no palco O ALAGOANO, O ESCREVENTE e o TURISTA. Fala O ALAGOANO, como num Prólogo. (IVO, 2004, p.691)

Desde esse primeiro momento percebemos que, mais do que meras indicações, as

rubricas no poema dramático de Lêdo Ivo funcionam como polaridades que veiculam intensa

carga de ironia dramática em vários momentos do poema. Nessa rubrica específica acima,

inclusive, o autor utiliza a terminologia teatral – Prólogo –, que, aqui, não é apenas um

vocábulo sem função ou uma das partes da poética grega, mas sim uma indicação de como foi

construída essa primeira fala e de como ela deve ser encenada (uma vez mais, a literariedade

carregando o palco em seu ventre). O letreiro “Motel Califórnia”, em Alagoas (crítica ferina

ao hibridismo cultural), e o slogan “Conheça o Nordeste” são outros dois nítidos exemplos da

veemência da ironia dramática; de certa forma, eles detonam o elemento fantástico pelo viés

do absurdo e da desfamiliarização, fazendo com que a realidade (aparente) contenha a sua

própria abstração (surreal). Parece-nos patente que o objetivo desse recurso literário é

desconstruir na narrativa o discurso do poder, também absurdo, mas aparentemente lógico.

Há diversos tipos de rubricas no poema dramático Calabar, a maior parte delas é

alusiva, principalmente, à entrada e à saída do personagem Uma Voz: “A luz apaga” ou “A

cena escurece”. E, após, “A cena volta a iluminar-se” (Id., p.707). Há também rubricas

maiores em tamanho, as quais, além das sugestões ou descrições de cenário, ainda sugerem

efeitos de iluminação, como a abaixo, colocada antes de mais uma entrada de Uma Voz:

A luz se apaga. Refletores iluminam as figuras imóveis dos personagens. No vídeo, uma cena de miséria do Nordeste (como, por exemplo, a de crianças numa favela dos mangues do Recife). Torna-se a ouvir UMA VOZ (IVO, 2004, p.730)

Nessa outra, além da indicação da iluminação de cena, há também a direção do foco

que o canhão de luz deve atingir, para passar todo o clima que o texto exige: “As figuras se

imobilizam. Uma claridade lunar confere uma atmosfera de presságio às casas baixas e

brancas e ao mar longe” (Id., p.733).

No entanto, como pretendemos nos ater mais àquelas que intensificam a ironia

dramática, mencionaremos a que, para nós, é a mais notável, a mais brilhante de todas: a

76

responsável por introduzir em cena Messias Calabar. Começamos por assinalar que, por

tratar-se de personagem tão importante, elo de ligação (sutilíssimo) dos crimes do passado aos

do presente, introduzi-lo em uma rubrica – que, como já foi mencionado anteriormente, é

indicação desvinculada da trama – já em si é uma ousadia, um arrojo e um risco literário

imenso. No entanto, Lêdo Ivo supera facilmente as dificuldades, através do uso da ironia

poética, ao transportar uma pessoa viva, já morta, para o “ao vivo”, tratando-a como mero

dado, mera informação usada para apresentar falsa imagem à população de proteção e

segurança. Abaixo, transcrevemos, na íntegra, a rubrica de Messias Calabar, para mostrar toda

a força e fúria da ironia dramática nela contida:

As figuras se apagam e o grande vídeo volta a ocupar o fundo da cena com as suas imagens sobre a abundância e a beleza do Nordeste. De súbito, ouvem-se gritos, rumores de pessoas correndo, vozes sufocadas, apitos, tiros – toda uma cena invisível de perseguição. Enquanto isso, as imagens turísticas se diluem e passa a ocupar o vídeo o retrato em preto-e-branco, tipo carteira de identidade, de um rapaz barbudo. O locutor anuncia, então, que na cidade alagoana de Porto Calvo, um guerrilheiro chamado MESSIAS CALABAR foi abatido após ter resistido ao cerco policial. Enquanto permanece no vídeo, o retrato de Messias Calabar, ouve-se UMA VOZ (Ibid., 2004, p.734)

É uma rubrica impressionante em vários aspectos: além de resumir a trágica história de

alguém sucintamente, em poucas linhas, quase de forma minimal, ainda consegue concentrar

intensa ironia poética por utilizar determinadas idéias-chaves, muito cuidadosamente

escolhidas, como a perseguição invisível (entendível só por ruídos), o preto-e-branco do

retrato (incomodando o colorido das imagens da vida), a voz do locutor por trás da imagem,

portanto um narrador que relata uma história sem ter participado dela (como a maioria dos

personagens de Calabar), e, pior ainda, sem sequer aparecer frente a frente no vídeo, sendo

apenas uma presença sonora, uma voz em off, com todas as conotações e jogo de palavras

que essa expressão implica: “de fora” da tela dos fatos, falando dos de fora da sociedade – dos

marginalizados. Interessante assinalarmos que, se o discurso em off de Uma Voz é poético,

por ser principalmente onírico, beirando ao ideal, à realização plena, o do âncora televisivo é

apenas uma ausência da sua imagem, invisibilidade vazia e destituída de sabedoria ou

vivência dos fatos. Só post mortem Messias Calabar consegue seus quinze segundos de fama

(muito aquém dos famosos 15 minutos previstos pela teoria de Andy Warhol, formulada nos

anos 60), em cadeia... nacional. Como seu homônimo Calabar, não será aclamado como herói

insurrecto, mas tratado como um rebelde perigoso. No entanto, a sua mudez é muito mais

77

eloqüente do que qualquer palavra em sua defesa, pois todos os párias sociais se identificarão

com seu mutismo/castração e com seu assassinato.

Notemos também que essa rubrica cria uma cena áudio-visual constituída tão somente

por ruídos sonoros, com total elipse de imagem: a perseguição será ouvida, enquanto a foto

estará estampada em um telão (como se fosse uma tela de televisão de 28 polegadas...). Não

podemos deixar de observar que tais elipses são bem próprias do gênero épico, que não

encena diversas cenas que extrapolam à narração. Não é mostrado, por exemplo, um campo

de batalha; apresenta-se, apenas, o resultado dela através da reação do herói, vencedor ou

vencido. Todos esses recursos reforçam o paralelismo entre vidas fracassadas, frustradas

(outro tema essencialmente épico, como vimos anteriormente) e aquela apresentada pela

mídia, nos telejornais.

7 – O Alagoano, inculto porém observador, tem consciência da manipulação do

sistema, porque percebe que a imagem do paraíso social que ele vê em seu aparelho de

televisão contrasta totalmente com a realidade em que vive. Por isso, como que a preparar a

cena em que Messias Calabar aparece já executado pela legalidade, ele antecipa seu ponto de

vista, denunciando e sublinhando a farsa que diariamente os meios de comunicação impingem

ao povo:

(...) que no país em que estamos mentir virou profissão como doutor e alfaiate, médico e tabelião. E os que estão de cima mentem como se estivessem todos cumprindo grande missão. A respeito do Nordeste nunca vi tanta mentira no rádio e televisão. Mal comparando, parece um conto da carochinha. (...) As mentiras são tamanhas, são tão acontecedeiras, que até parecem lombrigas. São de encher açudes secos e, se mentira engordasse, haveriam de engordar até as nossas barrigas.

(IVO, 2004, p.703-704)

A inadequação da fala de O Alagoano é outro viés seguido pela ironia poética, na

construção narrativa de Calabar – um poema dramático. Não se trata, aqui, dele expressar uma

sabedoria popular – simples porém valiosa enquanto experiência adquirida –, mas sim dele

apresentar colocações inalcançáveis a uma pessoa analfabeta.

78

Minha terra não é minha. E de quem é minha terra se não tenho a escritura do chão do meu bisavô que, como eu, nunca foi dono do terreno onde nasceu, do roçado que plantou, da cova onde se findou?

(...) Se o que é meu não me pertence como posso ser traidor?

(Id., p.698-699)

Outro exemplo que ilustra a proposital “inadequação” do linguajar, e que acaba por

originar o estranhamento, o distanciamento e a ironia dramática, pode ser encontrado no

monólogo poético d’A Viúva de Calabar, quando ela impreca ou pronuncia expressões de

baixo calão, em um momento em que a dor deveria enobrecê-la... Possuída de intenso furor,

ela não se importa em comunicar-se através de um linguajar à altura de uma respeitável dama

enlutada, muito menos através de uma linguagem épica, tradicionalmente elevada. Traída em

sua emoção e em sua afetividade, frontalmente Bárbara denuncia, em versos bárbaros, as

barbaridades sofridas. É raro encontrarmos, no épico, gênero das sagas heróicas e, portanto,

associado a pessoas virtuosas, distintas, nobres, respeitadas, elegantes e polidas, um linguajar

entremeado de palavrões e obscenidades, ainda mais no final do poema, quando a

memorização dá-se com maior facilidade (nem sempre nos lembramos dos desenvolvimentos

de uma peça ou de um filme, mas, em geral, nos recordamos dos seus finais).

A Viúva de Calabar rompe com o discurso acomodado e sóbrio esperado de uma viúva

enlutada. Se foi mansa, meiga e dócil até aquele momento, a partir da morte de Calabar não

será mais mulher de falas adocicadas e comportamento discreto. Em seu sofrimento

desmedido, ela acaba investindo contra o status quo, contra a impunidade; ela rompe com a

fala aristocrática do épico tradicional e lança-se a uma poesia de versos longos (muitos

considerarão seu monólogo como prosa poética), de acordo com o tumulto de suas sensações;

e atirando palavras, arrebatadamente, como verdadeiras munições de armas de fogo, ela inicia

seu solilóquio da seguinte maneira: “O meu amor agora é sangue e mijo” (IVO, 2004, p.736).

ua revolta segue em um crescendo, até a maldição:

Que, igual ao meu amor perdido e esquartejado, a este amor [que dói como um espinho entre as [em minhas pernas, o meu ódio esteja em toda a parte: no fogo sinaleiro que, armado nas praias, avisa as caravelas, no torneado do meu catre, na franja da minha cortina na [prata escura de minha colher, na [louça do meu jarro, na dobra do [lençol de Bretanha que envolvia

79

[o meu corpo quando eu acabava [de gozar, nos pêlos de minha boceta que ele jamais voltará a separar [com os seus dedos grossos, na minha unha quebrada de tanto ralar mandioca. (IVO, 2004, p.737)

A poesia de Bárbara transgride o convencional, o previsível, a conveniência e parte

para uma agressão quase que masculina, como se só assim pudesse se fazer entender pelos

“senhores do mundo”, pelos “donos do poder”. Épica, ela fala da sua história pessoal

encravada na outra; e esse afetual, como vimos, é território do sagrado e do mito

(MAFFESOLI, 2003, p.55), portanto do simbólico, que, nesse poema, transporta o alegórico

em si.

8 – O componente alegórico do poema dramático de Lêdo Ivo é também um meio da

literariedade integrar o plano histórico do maravilhoso, o real do mítico. Calabar é a alegoria

de um país mergulhado por traições políticas de todas as espécies, um Brasil tragado pela

onda gigantesca de impunidade, injustiça social e escândalos antiéticos. Frente a tanta

corrupção, Calabar, lutando pela causa que achava mais justa, torna-se um mito, uma lenda,

um símbolo. A proximidade da dimensão histórica com o fantástico-maravilhoso alegórico

parece-nos bastante visível, já que a alegoria trabalha com elementos figurativos, e portanto

simbólicos, mas nem por isso menos críticos: por ser figura polêmica, Calabar é a pessoa-

persona perfeita para levar avante questionamentos que estão por trás dos lemas ufanistas e

dos conceitos cada vez mais difusos de pátria, cidadania, exílio, respeitabilidade,

responsabilidade, traição e ética. A alegoria, em Calabar – Um poema dramático, age como

uma espécie de acariação entre o físico e o metafísico, o concreto e o abstrato, o real e o real

construído (forjado e ilusório).

9 – Dentro da construtura literária de Calabar, encontramos também a paráfrase e a

estilização da realidade, ambas vivenciadas pelo personagem O Turista, que reafirma,

ininterruptamente, os códigos preestabelecidos, introjetados em seu cotidiano pela mídia e

pelas informações por ela transmitidas. Observemos que, na estilização, “não ocorre uma

‘traição’ (grifo nosso) à organização ideológica do sistema como ocorreria na paródia, onde

há uma perversão do sentido original” (SANT’ANNA, 2002, p.39). O Turista reitera o

estabelecido, e vive permanentemente sob os efeitos hipnóticos dos danos da lavagem

cerebral que a mídia lhe causa. É o protótipo do consumidor da cultura de massa, distanciado

da concretude do real. Ele aceita as regras do sistema, vive dentro delas, espelha-as. Não

80

percebe que ele próprio é uma mercadoria de consumo, um ser replicante, programado e

padronizado, um robô que passou pelo mesmo processo massificador idêntico ao dos produtos

fabricados em série; foge obcecadamente da visão das mazelas sociais, camuflando-as sob o

verniz de um ufanismo incondicional, esvaziado, e vivendo permanentemente no fantástico

(no “Fantástico Show da Vida”).

Dentro de seu mundo simplório, estandardizado e alienado, O Turista vive o tempo

todo no irreal, na fantasia, no delírio. Ele é a demonstração mais eloqüente de que o declínio

da aura na obra de arte tal não atinge exclusivamente as manifestações artísticas (as próprias

fotografias que ele tira não têm qualquer preocupação artística), mas alcança a natureza

inteira, nela incluindo-se o próprio homem, vítima da modificação da relação mítica dele com

as coisas que o cercam (apropriadas agora pelas técnicas de reprodução, para serem

inesgotavelmente comercializadas e lucrativas). Como em uma cena de reversão de

expectativa, de tão trágico O Turista acaba por parecer um personagem cômico, devido à sua

total cegueira. Nele, a literatura integra o plano histórico (alienação cultural) ao plano

maravilhoso (na acepção do fantasioso), chegando a beirar o grand guignol.

10 – Ficamos, no item nº 3, de retomar o enfoque sobre o entrecruzamento dos tempos

cronológicos no final de Calabar – Um poema dramático, porque nos parece que há a ser

observada, ainda, uma importante angulação articulada à teoria staigeriana na qual baseamos

a presente dissertação.

ROSENFELD (2002:15-41), ao analisar os gêneros lírico, épico e dramático, percebe

o lírico como voltado para um presente eterno, o épico como um presente baseado em um

passado, e o dramático como um presente que acontece pela primeira vez. Entretanto, em

Calabar, Lêdo Ivo esgarça esses tempos, como que a questionar se o tempo ontológico

realmente obedece a esta rígida tripartição cronológica e exterior ao ser.

Sentir-mostrar-provar, nesse sentido cresce o distanciamento. (...) No modo de ser lírico ainda não existe distância entre sujeito e objeto. O eu escoa-se com o transitório. No épico, forma-se algo contraposto a uma perspectiva. No ato da contemplação fixa-se o objeto e ao mesmo tempo o eu que observa este objeto. O Eu e o objeto ainda estão ligados nesse mostrar-se e olhar-se mútuo. Cada um provém e realiza-se no outro. no modo de ser dramático, entretanto, o objeto está como que orientado ad acta. O homem não observa, julga (STAIGER, 1969, p.165).

Dentro do tempo ontológico, como muito bem Staiger demonstra, sentir, mostrar e

provar não estão necessariamente dissociados. O ser caminha para uma plenitude total,

unitária, cujas partes compõem o todo uno. Assim, a fala da Viúva de Calabar, datada de

1635, não presentifica o passado, não traz o passado para o presente: seu passado é hoje,

acabou de acontecer ainda há pouco, igual à morte de Messias Calabar, na cena anterior à

81

dela. Ela situa-se em um passado que é o seu presente, e concomitantemente o seu futuro, na

proposta que ela assume de lembrar Calabar o tempo todo e por todo o sempre:

O meu amor agora é sangue e mijo. Jamais voltarei a vê-lo em seu cavalo branco escalando as dunas de Porto calvo. (...) De hoje em diante serei uma mulher sozinha e a minha solidão pingará, como uma goteira, em minha [bacia de estanho. (IVO, 2004, p.736)

É através d’A Viúva de Calabar que o tempo que se contrai no espaço, einsteiniza-se

conforme MAFFESOLI (2004:27), pois ela é a personificação da sensibilidade trágica,

atemporal. Porém, se sua essência é a de uma figura épica, e o é, por que ela não narra o

acontecido? É que, também para ela, os fatos só importam na medida em que desestruturam e

destruíram sua vida afetiva e emocional; quaisquer que sejam as versões, elas não mudarão

nunca a sua verdade pessoal, o desmoronamento de seu universo, sua vida desmoronada.

A Viúva de Calabar luta contra o esquecimento de verdades maiores; ela dirige-se

principalmente a uma contemporaneidade que se orgulha, cada vez mais, das suas

afetividades e ligações emocionais temporárias, da fugacidade com que vive seu aqui e agora,

seu carpe diem dionisíaco. As recordações são sua denúncia – a única arma de vingança que

está ao seu alcance. Lembrar é vital para ela. Reportando-nos a STAIGER (1969:133), “quem

esquece algo, corre o perigo de não captar o todo”. Sua estratégia não está na narração dos

fatos; está na narração dos seus sentimentos, da história da sua dor, dentro da História do

Brasil.

Sua voz é a de um presente que, embora eterno – característica do lírico –, acontece

em todas as épocas passadas, mas que renasce novo, qual fênix, como se acontecesse agora

pela primeira vez, através de muitos Messias Calabar. É pela simultaneidade dos três tempos

cronológicos – passado, presente e futuro –, que A Viúva de Calabar pode usar uma lírica

agressiva, uma linguagem atual, posto que ela não é só passado, ela personifica o tempo de

todos os tempos.

A Viúva de Calabar rompe com o teatro ilusionista, não só por não se apresentar como

uma pessoa individualizada chamada Bárbara, como também por dirigir-se diretamente ao

público, como aliás O Alagoano também o faz (IVO, 2004, p.725), através – no caso dele – de

indicação expressa aposta entre parênteses, escrita em letras minúsculas: “(à parte)”.

Interessante observarmos que, se o teatro épico objetiva ser um teatro não-ilusionista, no qual

82

o ficcional não se confunde com a realidade, o poema dramático não-ilusionista de Lêdo Ivo,

apropria-se da realidade de Bárbara, fazendo-a converter-se n’A Viúva de Calabar, para

questionar a falsa realidade em que vivemos.

Conseqüência direta da intercomunicação de tempos é que, de narradora encoberta

(ROSENFELD, 2002, p.94), A Viúva de Calabar transforma-se em heroína da narrativa: no

final do poema dramático, ela não é mais a viúva de um mártir, mas a vingadora de seu nome

e da honra familiar profanada. Passa da ação passiva (lástima e amargura), para a reação de

contra-ataque (guerreira, guerrilheira insubmissa). Tal mudança – de narradora em heroína –

faz com que ela transcenda o seu tempo, mesmo que ela fale para nós do seu hoje de 1635.

Como heroína, vítima sobrevivente da repressão, e lutando contra ela, passa a ter uma saga

épica e patética, porque ela é movida pela sua extrema paixão (amor e sofrimento), e pela

raiva que sente do poder dominante, truculento e hipócrita. Ela sabe que não pode limpar o

nome de seu marido nem de sua família; mas, ao romper com o discurso feminino tradicional,

lacrimoso e acomodado, e, também, ao romper com a barreira (narrativa) do tempo, a Viúva

de Calabar, em vez de mito, quebra a redoma antes mesmo de ser por ela aprisionada, e é

apenas a mulher lutadora em sua desmedida intensamente trágica, unindo o realismo ao

idealismo em um tempo único, criado literariamente de forma magistral por Lêdo Ivo.

83

5. CONCLUSÃO

Na perspectiva da estética da recepção, o gênero literário constitui um fator relevante da problemática da comunicação literária considerada sob o ponto de vista do leitor-receptor, pois este encontra no gênero um conjunto de normas e de convenções de “regras do jogo”, que contribui para configurar o seu “horizonte de expectativas” e que o orienta na leitura e na compreensão do texto, desde as estruturas retórico-estilísticas às estruturas semânticas e aos componentes pragmáticos. (AGUIAR E SILVA, 1999, p.384).

Percebendo o poema dramático como uma das manifestações do gênero épico na pós-

modernidade, pretende essa nossa Dissertação ser uma contribuição a uma maior precisão

taxinômica com relação a ele, para que, escutando-o melhor, possamos, conseqüentemente,

entender melhor também sua estrutura, perspectiva, finalidade, literariedade e bem como suas

contribuições extraliterárias, como as ontológicas.

Desde a sua nomenclatura, o poema dramático tem sido alvo de uma série de

permanentes equívocos, o que o tornou por vezes um gênero híbrido, composto por dois

gêneros que caminham em direções diferentes: o lírico e o dramático, e, devido a tal

aglutinação, não tem despertado grandes interesses nem por parte da Teoria Literária, por seu

componente teatral, nem pelo lado das Teoria do Teatro, por sua literariedade. Prejudicado

desde o início, portanto, por uma terminologia dúbia que lhe é mais danosa do que ampla,

uma exata categorização é extremamente importante em seu caso porque muda inclusive a

perspectiva de sua proposta estética: enquanto transbordamento lírico, ele recorda o passado;

porém enquanto narrativa épica, ele observa-o, até para revê-lo; apreciado como gênero lírico

ele é “teatro literário”; como gênero épico é literatura que traz, em sua literariedade textual, as

noções de palco e público consigo, através da presença do narrador.

Para agravar ainda mais a já bastante nebulosa situação de sua categorização,

esbarramos com a idéia preconcebida de que o gênero épico está em extinção, desde a

ascensão do romance (subgênero oriundo do próprio épico), que o sufocou progressivamente,

a ponto dele quase inexistir na contemporaneidade. Se assim fosse, não adiantaria “trocarmos

de gênero”, enquadrando o poema dramático em um que praticamente já desapareceu. Não se

trata, porém, de mera substituição aleatória de gêneros, mas de definir o poema dramático

com precisão, através da Teoria Literária, pois dependendo de quem fala, do quê fala e de

como fala, a concepção da obra de arte (incluindo a sua linguagem cênica) muda

radicalmente, posto que o horizonte de recepção é inteiramente outro, move-se outra direção.

84

Mostramos que, embora seja no gênero dramático que mais transparentemente a

tensão patética se evidencie, ela não é exclusiva do drama, pois, sendo uma característica

estilística (como a problematização), pode também aparecer no gênero épico, que pouco

difere do dramático, no contexto da poética aristotélica. O patético liga-se mais ao trágico do

que ao drama, e está sempre presente quando o sentimento do trágico envolver os dois pólos:

homem x sua medida transcendental.

Também enveredamos pelo que seja imagem mítica na pós-modernidade, o fantástico,

cuja presença não é mais detectada, exclusivamente, pela utilização de elementos

sobrenaturais: ele aparece no jogo de duplos, na mitologia das máscaras que criam personas e

universos ficcionais paralelos, multiplicando os papéis dos personagens trágicos – no caso de

Calabar, ele transforma-se em uma espécie de local, por onde transitam as mais diversas

emoções e interpretações, e onde o tempo espacializa-se. Além dos planos histórico e do

maravilhoso, examinamos a literariedade narratológica como forma de integração de ambos e

aproximamos essa literariedade da linguagem teatral, já que o épico patético traz em seu bojo

a noção do palco como referência e pressuposto de sua materialidade.

Finalmente, aplicando nossa teoria à construtura de Calabar, de Lêdo Ivo, o

analisamos através de sua voz épica, mostrando que nenhuma das inovações nele contidas

descaracteriza-o como gênero épico, que se apresenta e transparece através de diversos

recursos epicizantes, tais como: a ironia dramática, a metalinguagem das rubricas (que atua

também como parábase permanente), a alegoria, a paródia e as temáticas épicas que,

subjetivando a ação, rompem com o rigor da Dramaturgia Pura, aristotélica. Dentro da

literatura brasileira, e por que não universal, Calabar é um belíssimo exemplar do que nós

chamaríamos de um épico dodecafônico, mas nem por isso menos épico ou menos patético.

Após todo este percurso, esperamos ter deixado claro que é importante tanto para o

leitor quanto para o diretor/encenador que o horizonte de expectativas do poema dramático

seja claro, a fim de que haja uma compreensão mais ampla das suas pretensões – literárias e

extraliterárias. A Taxinomia não é assunto “ultrapassado” e inútil dentro da pós-modernidade,

pois é justo à luz dela que podemos desfazer a confusão da fusão de “gêneros híbridos”

“mistos”, “estanhos”, “compostos” ou “polimorfos”, que vagam pela teoria literária,

justamente por falta de definição mais clara de sua constituição e perspectivas .

Mais especificamente ainda, é através da questão taxinômica do poema dramático

patético, com sua respectiva inserção no gênero épico, que nos damos conta da atuação do

quanto a contemporaneidade voltou a ser épica, embora tal dado seja ainda muito pouco

percebido pelo enorme apelo do dramático que a mídia fomenta e exacerba, como porta voz

85

da indústria cultural, posto que lucra muito mais com o drama (catártico) do que com o épico

(crítico). No entanto, através do pathos do debate político, tão atual e importante em nossos

dias, percebemos que o gênero épico recupera o terreno e o status perdido, ou pelo menos um

status maior, aumentando o interesse do público com relação a ele, ao promover um exercício

muito mais crítico – frise-se – do que o gênero lírico e do que o dramático, o primeiro

comprometido com impressões e sensações interiores, o segundo preocupado em solucionar a

pergunta: “por que razão?”, em geral incursionando pelo campo da psicologia para explicar o

comportamento e o perfil dos personagens. O poema dramático configurado como épico

patético enseja a raríssima oportunidade de analisarmos, em conjunto, a literariedade e a

linguagem cênica, não através da interdisciplinaridade da literatura e do teatro, mas porque

ambos são indissolúveis: um contém o outro em sua gênese, como pressuposto de sua

materialidade.

O retorno trágico nas sociedades contemporâneas e a volta da oralidade, incrementada

pela imprensa falada (rádio e televisão), propiciaram, cada um ao seu modo, a nova eclosão

do épico, que promove um debate social intenso, interessando-se por histórias passadas e por

passados históricos. Simultaneamente, a poesia, também comprometida com observações

desfamiliares, ajuda a repensar as relações de poder, sociais e interpessoais. Nesse sentido, a

relação da questão do poema dramático com o gênero épico, longe de ser apenas uma

polêmica teórica a mais, sem conseqüências práticas maiores, traz para a contemporaneidade

um riquíssimo diálogo de vital importância, contribuindo largamente para auferirmos, mesmo

que ainda incipientemente, a dimensão do pathos em nosso cotidiano e a intensidade do

ressurgimento da epicidade do ser-poético, com a sua capacidade originária e imemorial de

narrar histórias e de narrar-se.

86

6. BIBLIOGRAFIA

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 8ª edição – 11ª reimpressão.

Coimbra: Livraria Almedina, 1999.

ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Tradução de Isis Borges da Fonseca. São Paulo:

Martins Fontes, 2000.

ARISTOTELIS De arte poetica liber. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit

Rudolfus KASSEL. Oxford: Oxford Universtity Press, 1982.

BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. 2ª edição aumentada. Rio de Janeiro: Editora do

autor, [1961].

BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Nilolai Leskov. In:

Magia e técnica, arte e política, vol.1. Tradução de. Sérgio Rouanet. 7ª edição. São

Paulo: Brasiliense, 1984.

______. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: BENJAMIN, W.;

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. e HABERMAS, J. Textos escolhidos.

Tradução de José Lino Grünnewald. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

(Col. Os Pensadores).

BORNHEIM, Gerd. O sentido do trágico. São Paulo: Perspectiva, 1975.

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

Disponível em http://paideumanet.t5.com.br/zelia.doc /

http://www.paideuma.net/zelia3.htm Acesso em 29 de janeiro de 2007.

COUTINHO, Afrânio, Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria São José,

1964.

FADEL, R. K. L; OLIVEIRA, F. C. C. Os meios de comunicação de massa e sua evolução

para os Blogs. XIV ENDOCOM - Encontro de Informação em Ciências da

Comunicação, evento componente do XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da

87

Comunicação – INTERCOM (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de

Comunicação), Porto Alegre/RS: 2004. Disponível em:

http://reposcom.portcom.intercom.org.br/simple-search?query=fADEL /

http://reposcom.portcom.intercom.org.br/handle/1904/18455 /

http://www.portcom.intercom.org.br/institucional/a_rede/endocom/2004/Fadel.pdf.

Acesso em 10 de dezembro de 2005.

FADUL, Anamaria. Indústria Cultural e Cultura de massa. Disponível em

http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/c_ideias_17_053_a_059.pdf. Acesso em 10

de janeiro de 2006.

FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Mini-Aurélio Século XXI, 4ª edição.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In Ensaios e Conferências. Tradução de

Márcia Sá Cavalcante Schubak. 2ª edição. Petrópolis/Bragança Paulista: Editora

Vozes/Editora Universitária São Fransisco, 2004.

_________. A Coisa. In Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.

Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

HIRSCH, Linei. Transcriação teatral: da narrativa literária ao palco. O Percevejo – Revista de

Teatro, Crítica e Estética, Departamento de Teoria do Teatro, Programa de Pós-

Graduação em Teatro, Ano 8, nº 9, ISSN nº 0104-7671. Rio de Janeiro UNIRIO,

2000.

IVO, Lêdo. Poesia Completa – 1940 - 2004. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

_________. Confissões de um poeta. São Paulo / Brasília: Difel/INL, 1979.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas cidades, 1974.

88

MACIEL, Maria Esther. In: Orelha de Finnegans Wale / Finnicius Revém, de James Joyce.

Tradução de Donaldo Schüler. 5ª edição brasileira. São Paulo: Ateliê Editorial,

2003.

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno – o retorno do trágico nas sociedades pós-

modernas. Tradução de Rogério de Almeida, Alexandre Dias. São Paulo: Zouk,

2003.

_________. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio

de Janeiro: Atlântica editora, 2004.

MELO E SOUZA, Ronaldes de. Introdução à poética da ironia. Revista Linha de pesquisa,

ano 1, nº 1. Rio de Janeiro: Universidade Veiga de Almeida, outubro de 2000.

MORAES, Emanuel de. A Poesia e o palco. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São

Paulo: EDUSP/IEB, 2001.

PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 2ª edição – 2ª reimpressão. São

Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

RAMALHO, Christina Bielinski. O épico não morreu (as escritoras que o digam) - Uma

fundamentação teórica. Comunicação apresentada no 2º Simpósio de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura (de 27 e 28/6/2005) – Coord. Programa Pós-

Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. (Deptº de Letras), [acervo pessoal

da autora], 2005.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4ª edição – 1ª reimpressão. São Paulo: Editora

Perspectiva, 2002.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Tradução de Paulo Neves. Introdução à análise do teatro. São

Paulo: Martins Fontes, 1995.

89

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Editora Ática,

2002.

_________. Intervalo Amoroso e outros poemas escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 2001.

(Col. L&PM Pocket).

SCHALKWIJK, Frans Leonard. Por que Calabar? – Motivos da Traição. Disponível em

http://www.longoalcance.com.br/brecife/calabar/calabar3.htm. Acesso em 20 de

setembro de 2005.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Tradução de Celeste Aída Galeão. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. (Biblioteca Tempo Universitário).

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Tradução e notas de Flávia Nascimento. 2ª edição.

Rio de Janeiro: Difel, 2003.

FONTES SECUNDÁRIAS:

ABRÊU, Eide Sandra Azevedo. Walter Benjamin e o tempo da grande indústria. Disponível

em: http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol02_atg2htm. Acesso

em 28 de abril de 2004.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica,

Arte e Política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 2ª edição. São Paulo:

Brasiliense, 1986.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2004.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: MOULIN, Nilson. 9ª reimpressão.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

90

CASTRO, Manuel Antonio de. A essência do agir e do saber. Rio de Janeiro: UFRJ (material

em apostila xerocada), 2004.

CASTRO, Manuel Antonio de. Questões, Conceitos e Jargões. Rio de Janeiro: UFRJ

(material em apostila xerocada), 2004.

COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea – Criação, encenação e

recepção. São Paulo: Editora Perspectiva. (Col. Estudos).

COSTA, Lígia Militz. A poética de Aristóteles – Mimese e verossimilhança. 1ª edição, 3ª

reimpressão. São Paulo: Editora Ática, 2003.

FRIAS, Rubens Eduardo Ferreira. A raposa sem as uvas – Uma leitura de Ninho de cobras de

Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004.

HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,

Marcia Sá Cavalcante Schubak. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes,

2004.

_________. Poeticamente o homem habita. In: Ensaios e Conferências. Tradução de Márcia

Sá Cavalcante Schubak. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

_________. A Coisa. In: Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.

Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

HOLANDA, Chico Buarque; GUERRA, Ruy. Calabar – O elogio da traição. 2ª edição. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

LIPOVETSKY, Gilles, CHARLES, Sebastian. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário

Vilela. 1ª reimpressão. São Paulo: Barcarolla, 2004.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: O desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo:

EDUSP, 1996.

91

MACIEL, Maria Esther. Teatro de palavras: Mallarmé, Paz e Pessoa, in Vôo transverso –

Poesia, Modernidade e Fim do Século XX. Rio de Janeiro/Minas Gerais: Sette

Letras/UFMG, 1999.

MAFFESOLI, Michel. A Parte do Diabo – resumo da subversão pós-moderna. Tradução de

Clóvis Marques. São Paulo: Record, 2004.

MICELLI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Difel,

1979.

MORAES, Vinicius de. Teatro em versos. Organização de Carlos Augusto Calil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995.

NEJAR, Carlos. Teatro em versos, prefácio de Antônio Hohlfeldt (reunião em um volume de

Miguel Pampa, Fausto, Joana Das Vozes, As Parcas, Ulisses, Fogo Branco / Vozes

do Brasil, O pai das Coisas e o inédito Auto do Juízo Final ou Deus não é uma

Andorinha). Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução,

notas e posfácio de J. Guinsbug. São Paulo: Editora Schwarcz, 1992.

PALLOTINI, Renata. O que é dramaturgia? São Paulo: Editora Brasiliense, 2005. (Col.

Primeiros Passos).

PEIXOTO, Níobe Abreu. João Cabral e o poema dramático – Auto do frade (poema para

vozes). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001.

PONTIERO, Giovanni. Os Personae – Poema de Carlos Nejar, tradução de Patrícia Bins.

Porto Alegre: Tchê!, 1986.

PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? Disponível em:

http://www.albertopucheu.com.br/pdf/ensaios/literatura_serve.pdf. Acesso

em: 02.10.04.

92

RAMALHO, Christina Bielinski. O mito em tempo de hibridismo. In: Cerrados. Revista do

Programa de Pós-Graduação em Literatura. Brasília: Universidade de Brasília, nº 6,

Ano 12, 2003.

RENNÓ, Elizabeth. A aventura poética de Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de

Letras, 1988. (Col. Afrânio Peixoto).

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução e apresentação de

Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998.

SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria literária. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Editora Ática, 2003.

SPOLIN, Viola. Improvisação para teatro. Tradução de Ingrid D. Koudella. 3 ª edição. São

Paulo: Perspectiva, 1992.

93

7. ANEXO

Após termos concluído nossa Dissertação, conseguimos através do Acadêmico da

Academia Brasileira de Letras e da UFRJ, o Prof. Dr. Antônio Carlos Secchin, contato com o

autor Lêdo Ivo, que muito gentilmente dispôs-se a responder nossas perguntas sobre a obra

“Calabar”, de sua autoria, corpus da presente dissertação.

Optamos por nada alterar em nosso texto, em face de não encontrarmos nenhuma

divergência entre as respostas de Lêdo Ivo e o teor de nossa análise a elas relacionado (ao

contrário, em duas perguntas nossas ele corrobora inclusive nossas reflexões); exceção apenas

se dá com relação à opinião pessoal do poeta sobre o conceito de “pós-modernidade”, do qual

não podemos fugir, uma vez que, por existir e estar consignado em inumeráveis obras de

Teoria Literária, necessita ser debatido e analisado pela Ciência da Literatura. Da entrevista

que nos foi concedida, apenas procedemos a uma rápida menção da mesma às páginas 44 e

52, a fim de enfatizar alguns aspectos desenvolvidos por nós, antes mesmo do recebimento e

leitura do documento do autor.

Estamos muitíssimos orgulhosos com o depoimento em anexo, e cremos ser o

documento transcrito a seguir, enquanto registro do pensamento e da experiência literária de

um intelectual do quilate de Lêdo Ivo, de imenso valor historiográfico e de enorme relevância

literária, o que vastamente amplia os horizontes de nossa Dissertação.

94

ENTREVISTA DE LÊDO IVO CONCEDIDA ATRAVÉS DE CARTA, SOBRE SEU

POEMA DRAMÁTICO “CALABAR” 4

1 – Elizabeth Rennó em A aventura poética de Lêdo Ivo (Coleção Afrânio Peixoto, da

ABL, 1988) afirma que Lembrança de um ancestral, em Lugar de Nascimento (Finisterra), é

realmente o embrião de Calabar. O senhor concorda com ela no sentido de que Calabar é uma

espécie de colheita das sementes plantadas em Finisterra?

LÊDO IVO – Há na minha poesia uma grande carga de ancestralidade. Sou um poeta

geograficamente situado. A minha terra natal, com as suas lagoas, mangues, caranguejos,

peixes, e o grande mar e seus navios, tem uma importância muito grande em minha poesia,

muito embora outras terras e outros mares estejam presentes nela. Assim, sou ao mesmo

tempo um enraizado e um desenraizado (Paris, viagens). E o desenraizamento me permitiu

enraizar-me. Calabar, herói dos alagoanos, é um personagem familiar desde a infância – daí a

origem do poema.

2 – É clara a conotação de Chico Buarque e Ruy Guerra de lançar Calabar na época de

70, como uma referência indireta ao regime político. O seu poema dramático, escrito em

1985, quando aparentemente a anistia tinha trazido paz ao país, foi escrito com o intuito de

não fazer com que esquecêssemos as vítimas insurrectas, como a viúva de Calabar, ou não

houve esta intenção proposital?

LÊDO IVO – O meu poema Calabar é ao mesmo tempo um poema do passado e um

poema do presente. É uma metáfora. Sem a ditadura militar, ele não teria sido escrito. É um

poema de perseguição, de morte e de perda. E ao mesmo tempo um poema que busca a

imemorialidade.

3 – Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra centraliza-se no Elogio à traição, ou seja uma

paródia, segundo Affonso Romano, em que há o emergir do que foi reprimido. Sua obra,

até por ser um poema dramático me faz pensar que ela é um épico, um épico moderno, que

__________________________ 4 A presente carta é datada de 11 de janeiro de 2007, registrada, e foi recebida em 19 de janeiro de 2007. Tem as

seguintes características: é escrita à máquina de escrever bastante antiga, em papel tamanho letter, com correções

feitas à mão com caneta esferográfica. O material é constituído por uma primeira página, na qual o autor dirige-

se à Mestranda (em papel timbrado da Academia Brasileira de Letras), e mais outras cinco, com as vinte

respostas datilografadas apenas em uma face. O autor anexou à remessa um artigo ainda inédito de Assis Brasil:

“A Trajetória poética de Lêdo Ivo – Transgressão e Modernidade”, Ed. Educan (ainda no prelo).

95

traz para a modernidade o repensar de conceitos como pátria, cidadania, memória, alienação.

Ou seja: “Calabar está onde não está”, como afirma Uma Voz (p. 710). Esta minha visão

corresponde às intenções do seu poema dramático?

LÊDO IVO – Durante a ocupação holandesa no Nordeste, o Brasil pertencia à

Espanha. Era, assim, a colônia de uma colônia, pois Portugal fora incorporado à Coroa

Espanhola. A chave do poema está nos versos: “Mal perguntando, pergunto / a quem traiu

Calabar? / A que pátria trai aquele / que não tem pátria nenhuma / e é soprado em toda a parte

/ como o vento e a espuma; / A que pátria trai aquele / que, montado em seu cavalo / ou

escondido na duna, / sendo o seu próprio soldado / marcha incógnito na bruma / e de noite

segue a esteira / na sua terra estrangeira.”

4 – Acho interessantíssimo que o senhor em Calabar mostra a saga não de uma

pessoa, mas de um país, invertendo o julgamento da História. Para o senhor, o que é a

História?

LÊDO IVO – Para mim, a História é uma ficção. Para mim, não há verdade histórica.

Há a versão do vencedor, do vencido, do observador, do pesquisador, etc. Como poeta, não

estou interessado na verdade, e sim na mentira, no mito, na mitografia, na mitologia. Calabar

é uma figura mítica.

5 – O senhor gosta de teatro? (João Cabral, que era muito amigo seu, achava-o

ridículo). Pergunto-lhe também porque gostaria de saber se o senhor tinha consciência de

estar usando técnicas de teatro épico. Inclusive na primeira página o senhor dá indicações de

objetos de cena, como o letreiro com a placa Motel Califórnia...

LÊDO IVO – João Cabral de Melo Neto gostava de propalar juízos excêntricos ou

mesmo estapafúrdios. Se ele achava teatro ridículo, por que várias vezes escreveu peças

destinadas ao teatro e a representação? No caso de Calabar, recorri também a técnicas

cinematográficas e até de televisão. Considero-o um poema moderno... ou pós-moderno,

como dizem os bobalhões.

6 – Quando o senhor colocou “poema dramático” em Calabar, já tinha em mente a

possível encenação do mesmo?

7 – Calabar é seu único poema dramático? Calabar já foi encenado? Quando e onde?

Em caso negativo, o senhor idealiza algum ator específico para algum personagem? Por

exemplo: Calabar, o senhor teve na época algum ator em mente?

96

LÊDO IVO – Naturalmente, escrevi Calabar para ser encenado. Ao escrevê-lo, eu o

encenava, como um diretor de teatro. É um poema dotado de visualidade. Entretanto, ele

jamais foi representado. Espero que um dia o seja.

8 – Há uma passagem em que O Alagoano fala com certo desprezo pelos ciganos, mas,

logo em seguida, como que revê esse conceito. Penso que a interpretação podia ser: um

exilado em seu próprio país falando de um povo sem pátria, e que a primeira reação dele seria

a de estranheza, porque ainda lhe parece mais substantiva uma miséria localizada, com

endereço certo, do que uma liberdade sem terra nem nacionalidade. É isso ou o senhor não

pensou em nada disso quando escreveu esse trecho?

LÊDO IVO – Não há no poema nenhum desprezo pelos ciganos. “Vira mentiroso /

como os ciganos” são versos que refletem uma realidade. Aliás, os ciganos integram as

minhas recordações de infância. A eles aludo em Confissões de um poeta. O problema da

errância (do homem sem pátria e sem lugar definido) sempre me preocupou.

9 – Ao criar personagem de Uma Voz, que aparece sempre em off, o senhor pensava

na incorpórea Voz do Poeta bradando por resistência cultural?

LÊDO IVO – Essa Voz pode ser a Voz do Povo, do narrador, de um observador

privilegiado, etc.

10 – “Sou um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta. Talvez as

minhas perguntas sejam as minhas respostas” – o senhor escreveu em A Confissão do Poeta.

E, o interessante, é que no seu poema dramático, esta fala é de O Escrevente (716). Diante

disso, pergunto-me se o escrevente (termo ambíguo, irônico e amplo), engloba todos os que

escrevem: escritor, escrivão e historiador? Os três registram os fatos... Vejo O Escrevente

como alguém dividido entre sua ideologia e sua sobrevivência (como os intelectuais no

Governo de Getúlio que exerceram quase que as funções de escrivãs burocratas). Houve

realmente de sua parte essa intenção crítica de questionar o papel do escritor diante dos

problemas da classe média?

LÊDO IVO – Na sua pergunta está a resposta. Realmente, o escrevente – aquele que

escreve a história – tem uma posição ambígua. Lembre-se de que ele diz: “Todos nós

mentimos”... É um historiador, logo é um mentiroso, o portador de uma verdade encoberta.

97

11 – Sobre as rubricas (didascálias...): quando o autor interrompe a leitura da ação

dramática, é para guiar a futura encenação ou para questionar, através da metalinguagem o

papel do autor?

LÊDO IVO – Para ambas as coisas: para guiar e questionar.

12 – Não tendo nomes próprios, O Alagoano, O Turista e o Escrevente representam a

classe pobre, o novo rico, e a classe média, ou O Turista é apenas a classe média alienada e O

Escrevente a classe média intelectualizada? E A Viúva de Calabar, que possui um nome

próprio, na vida real: o senhor não a chamou de Bárbara como que a homenagear nela todas

as mulheres vítimas da repressão sócio-política?

LÊDO IVO – No poema, os personagens são de algum modo arquetípicos. Na

individualização da viúva de Calabar, está embutida a idéia das mães, esposas , namoradas de

brasileiros, vítimas da repressão. Além disso, eu quis produzir uma representação do amor e

da sexualidade, e ainda da perda. A maldição de Bárbara se estende dos anos de chumbo ao

então “dia de hoje.”

13 – Muito interessante é a caracterização que o senhor faz para alguns personagens:

O Turista, com uma máquina fotográfica a tiracolo; de alguma forma ele também tenta

registrar o mundo – como O Escrevente -, só que de uma ótica bastante deturpada, como se

sua lente estivesse embaçada e o impedisse de ver a realidade. Também a barba em Messias

Calabar, lembra-nos de imediato Che ou Fidel ou algum salvador-guerrilheiro latino-

americano. É isso mesmo?

14 – Na fala da Viúva de Calabar, que me lembra muito Antígona – porque ambas

vivem da tradição, da reminiscência trágica – a cena volta ao dia da morte dele, faz como que

se fosse um flash-back. E, no entanto, ela tem uma fala muito moderna e uma lírica bem

agressiva até, bem diferente da que se espera de uma viúva enlutada. Acho genial esse

entrecruzamento não só de linguagens, mas também de tempos, intensificando o tempo

trágico, cíclico. Foi essa a sua intenção ao fazer com que ela fosse o único personagem, na

última cena, a falar do passado para o presente? A aconselhar-nos com sua experiência?

LÊDO IVO – A sua pergunta captou com rara felicidade a minha intenção ao

apresentar a Viúva de Calabar apenas no final do poema dramático, como uma figura do

teatro grego. Assim, ao tempo da guerra holandesa e ao tempo da ditadura militar, se

acrescenta o tempo do teatro grego, que é a origem do teatro ocidental. Essa alocução final é

também uma memória, um relato “histórico”.

98

15 – Messias Calabar: como se originou a criação da introdução de um personagem

através de uma rubrica no livro e através de um telão no palco? E por que ele não aparece no

rol de personagens, sendo um dos personagens mais importantes, exatamente por entrar mudo

e sair calado, sem direito à sua própria fala?

LÊDO IVO – Ao adotar o nome Messias, levei em conta o caráter “messiânico” de

Calabar. No Nordeste, há ainda resquícios do sebastianismo (a volta do rei Sebastião, morto

na África ao combater os infiéis), do Esperado, do homem que vem salvar a Nação montado

num cavalo branco. O cavalo branco de Calabar exprime essa reminiscência mítica. Ao

mesmo tempo, cabe notar que o Messias Calabar (o Calabar da guerra holandesa e o

“Calabar” `traidor` do Brasil ditatorial de 64) tem a sua morte comunicada pela televisão.

16 – Existe um personagem preferido para o senhor em Calabar? Ou melhor: partindo

de sua definição de Autor como sendo o personagem que a obra cria (Confissões, 170), qual

dos personagens da obra escolheu o senhor?

LÊDO IVO – “Calabar” poema é um coro – um coro grego, no sentido teatral.

Calabar é, evidentemente, o protagonista.

17 – Quando o senhor colocou, após o título Calabar – Um poema dramático já tinha

em mente a possível encenação do mesmo? Para o senhor, o poema dramático é um teatro

feito por poetas, um teatro feito em versos ou uma poesia para ser encenada?

LÊDO IVO – Escrevi Calabar para ser encenado. Sua leitura é para mim uma

visualização e uma representação. Como já disse, espero que um dia seja representado.

18 – O senhor podia falar um pouco sobre seu processo criativo nessa obra específica?

LÊDO IVO – O meu processo criativo está explicitado em muitos sítios de minha

obra. Em Confissões de um poeta você pode encontrar o que procura (e que eu penso você já

achou).

19 – As duas últimas perguntas têm relação com Calabar, mas são mais amplas: Um

dos temas mais presentes em sua poesia é o sonho. Elizabeth Rennó (A Aventura Poética de

Lêdo Ivo, 1988, ABL) analisa essa temática mais sob o ponto de vista junguiano. Eu acho,

porém, que o sonho em sua poesia tem conotações mais sociais do que psicanalíticas. Por

exemplo: Uma Voz fala muito dos sonhos enquanto ideais esquecidos, desejos que continuam

99

no inconsciente coletivo, mas que não estão apenas lá. Será que o senhor pode falar um pouco

mais sobre a relação desta simbologia do sonho no contexto da sua poesia?

LÊDO IVO – Realmente, o sonho ocupa um lugar inconfundível em minha poesia.

Não apenas o sonho individual como também o sonho coletivo. Remeto a sua curiosidade ao

poema “Confidência do sonhador a seu filho no berço” (Estação Central, pág. 505 do Poesia

Completa). Os sonhos da ancestralidade fazem parte do sonho individual, inclusive porque,

como acentua Goethe, somos seres coletivos. Sonhamos também os outros.

20 – Ainda baseada em Elizabeth Rennó, sua obra poética está dividida em três partes:

até 1946, com Uma Lira dos 20 anos, depois até 64, com Estação Central e, a terceira fase

após essa data, terminando com Calabar. Porém como este livro dela (A aventura poética de

Lêdo Ivo) oi publicado em 1988, e a partir daí surgiram muitas outras obras poéticas suas. O

senhor acha que Calabar termina mesmo sua terceira fase? Há uma quarta fase em sua obra

depois de Calabar? Em caso positivo, qual a característica principal, a seu ver, dessa fase, ou

dessas fases posteriores às que ela cita?

LÊDO IVO – Não me divido em fases – isto compete aos críticos e estudiosos da

obra. O livro Poesia Completa, que aborda todo o meu trabalho desde a adolescência, deve ser

a resposta à sua pergunta. Acho que a minha poesia é uma continuidade.

Só mudo para tornar-me eu mesmo.