a publicidade ressignificada pela hibridação 1 · permite deduzir que o conceito de massivo...

14
A Publicidade Ressignificada pela Hibridação 1 Martina Eva Fischer 2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos Resumo O trabalho faz um resgate de alguns conceitos-chave no trabalho de Nestor Garcia Canclini, em especial o de hibridização, identificando o fenô meno na publicidade. Busca na teoria a conceituação do termo, associando-o à mestiçagem de Jesús Martin-Barbero. Num breve trabalho empírico, foram buscados alguns exemplos, flagrantes urbanos em que peças de mídia externa dialogam entre si e com seu entorno, ressignificando mensagens e espaços. Palavras -chave Publicidade; hibridação; significação. Hibridação. Palavra-chave no trabalho de Nestor Garcia Cancilini, que percebe essa característica/fenômeno tão presente nas definições de Pós-Modernidade 3 como estando especialmente presente na América Latina. Sendo palco de diferenças e conflitos por vezes abissais, estando em trânsito entre o papel de território-satélite de grandes potências e o de lugar em que o futuro se faz presente, nosso continente constitui um exemplo claro de como convivem, se misturam e dialogam “pares organizados dos 1 Trabalho apresentado ao NP Publicidade e Propaganda do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2 Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo e Habilitação em Publicidade e Propaganda pela Unisinos. Pós-Graduada em Marketing nível de Especialização pelo Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda na Unisinos, ligada ao GPAV – Grupo de Pesquisa em Audiovisualidades. Endereço eletrônico [email protected] 3 Para designar a contemporaneidade, Canclini sugere o emprego do termo pós-intra-modernidade, observando que este seria mais adequado a designar o que no Ocidente se seguiu à Modernidade. Entretanto, é o próprio autor que descarta o emprego da designação, sob o argumento de não se tratar de um termo simples e direto (Canclini, 2003:356).

Upload: hatram

Post on 08-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A Publicidade Ressignificada pela Hibridao1

Martina Eva Fischer2

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Resumo

O trabalho faz um resgate de alguns conceitos-chave no trabalho de Nestor Garcia

Canclini, em especial o de hibridizao, identificando o fenmeno na publicidade. Busca

na teoria a conceituao do termo, associando-o mestiagem de Jess Martin-Barbero.

Num breve trabalho emprico, foram buscados alguns exemplos, flagrantes urbanos em

que peas de mdia externa dialogam entre si e com seu entorno, ressignificando

mensagens e espaos.

Palavras-chave

Publicidade; hibridao; significao.

Hibridao. Palavra-chave no trabalho de Nestor Garcia Cancilini, que percebe essa

caracterstica/fenmeno to presente nas definies de Ps-Modernidade 3 como estando

especialmente presente na Amrica Latina. Sendo palco de diferenas e conflitos por

vezes abissais, estando em trnsito entre o papel de territrio-satlite de grandes

potncias e o de lugar em que o futuro se faz presente, nosso continente constitui um

exemplo claro de como convivem, se misturam e dialogam pares organizados dos

1 Trabalho apresentado ao NP Publicidade e Propaganda do VI Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom. 2 Bacharel em Comunicao Social Habilitao em Jornalismo e Habilitao em Publicidade e Propaganda pela Unisinos. Ps-Graduada em Marketing nvel de Especializao pelo Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda na Unisinos, ligada ao GPAV Grupo de Pesquisa em Audiovisualidades. Endereo eletrnico [email protected] 3 Para designar a contemporaneidade, Canclini sugere o emprego do termo ps-intra-modernidade, observando que este seria mais adequado a designar o que no Ocidente se seguiu Modernidade. Entretanto, o prprio autor que descarta o emprego da designao, sob o argumento de no se tratar de um termo simples e direto (Canclini, 2003:356).

conflitos das cincias sociais: tradio-modernidade, norte-sul, global-local (Canclini,

2003:XVII).

interessante observar que o autor tece comentrios tambm quanto ao uso do termo

mestiagem para designar o mesmo processo especificamente quando ele se verifica na

Amrica Latina para outros autores dedicados aos Estudos Culturais na Amrica Latina,

entre eles Jesus Martn-Barbero, a mestiagem de raas e culturas (espanhis,

portugueses, ind genas, africanos, imigrantes europeus) implica uma mestiagem cultural

e justifica o emprego do termo. Entretanto, para Canclini, hoje o termo j se mostraria

insuficiente para designar fenmenos no-relacionados ou embasados na questo tnica:

combinaes de estilos de vida de diferentes geraes, ou de diferentes zonas de uma

cidade, por exemplo : designa-las como mestiagens seria parcial demais. A mesma

questo da impossibilidade de funcionar como sinnimos do termo hibridao

levantada, com argumentos similares, em relao aos termos sincretismo e crioulizao.

Pode-se deduzir da que Canclini abre mo de recorrer a termos mais tradicionais da

lngua para o fenmeno, preferindo em seu lugar adotar uma palavra nova, sem razes to

profundas no processo scio-histrico do continente. Essa opo pelo uso do termo

hibridao - uma palavra menos carregada de conotaes anteriores especficas -

poderia ser plenamente justificada na medida em que os fatos estudados por Canclini so

caractersticos da contemporaneidade. O autor se volta para o presente da cultura Latina ,

sua luz dirigida ao aqui e agora. Por que no usar, portanto, um termo atual?

Da mesma forma como Canclini prefere usar um termo menos carregado de conotaes

histricas para se referir convivncia de elementos do passado com novas tendncias e

movimentos, ele tambm vai propor um novo ponto de vista sobre as manifestaes

culturais, sugerindo que, alm ou em paralelo cultura popular e cultura de elite, existe

uma outra dimenso de comunicao, a do massivo (Canclini 2003:21). A leitura do autor

permite deduzir que o conceito de massivo proposto engendra no apenas as

caractersticas dos meios de comunicao de massa, mas tambm a de agente promotor

da hibridizao4. A hibridizao no teria a dimenso e importncia que tem na nossa

cultura se no fosse potencializada pelo massivo, capaz de derrubar a oposio entre o

culto e o popular (Canclini, 2003:362) e gerar um novo territrio de ao cultural.

A hibridao seria, conforme Canclini, (2003:284) explicada por trs processos

fundamentais: a quebra e a mescla das colees organizadas pelos sistemas culturais

(descoleo), a desterritorializao dos processos simblicos e a expanso dos gneros

impuros. Por descoleo o autor entende a agonia das colees no sentido clssico, que

davam acesso ao repertrio das grandes obras ou ao repertrio estritamente popular, e o

advento da possibilidade de renovao da composio e hierarquia de agrupamentos,

inclusive por parte de cada um de ns. Por desterritorializao o autor entende a perda

da relao natural da cultura com os territrios geogrficos e sociais e, ao mesmo

tempo, certas relocalizaes territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produes

simblicas (Canclini, 2003:309) Entende-se que da seria decorrente a expanso dos

gneros impuros referidos como terceiro processo integrante da hibridizao, estando

entre eles os grafites e os quadrinhos.

Alguns exemplos do hibridismo comentado por Canclini: as mdias externas que inundam

os grandes centros urbanos e as margens de rodovias de fluxo intenso. Ela no existem

isoladas: tm intensa relao com seu contexto, enfeitando, enfeitando, agredindo,

questionando, ironizando pela justaposio ao ambiente. Um outdoor de motel em meio a

um contexto miservel, um cartaz de um evento dirigido a empresrios num corredor de

fbrica, uma placa de vaga reservada para gestante ao lado de um fumdromo, uma

placa oportunista na porta de um pequeno negcio, mdias externas em contato,

ressignificando-se mutuamente: cada mensagem pode comportar leituras dirigidas,

centradas, por parte de experts em comunicao, mas elas no podem ser vistas e

interpretadas nica e exclusivamente de forma isolada. A comunicao de massa exposta

nas ruas das cidades acontece num determinado tempo e espao, sua leitura se d num 4 Num livro posterior, podemos depreender, em parte, a opo por essas trs designaes (culto, popular e massivo). Em sua obra Diferentes, Desiguales y Desconectados, Canclini se refere teoria dos campos, de Bordieu, e faz uma crtica mesma, referindo-se a suas limitaes, entre elas a perda de la problemtica intrnseca de las diversas prcticas al reducir su anlisis sociologico a la lucha por el poder (Canclini, 2004:62).

determinado ponto de passagem, elas esto em dilogo com o espao que as circunda

pessoas, comunidades, outras mdias, as notcias da mdia. Podemos considerar a

presena dessa comunicao massiva em dilogo com a sociedade como um exemplo da

hibridao de que nos fala Canclini. Cartazes de propaganda (e mdia externa em geral)

nos prope aquisies, colees de bens de consumo (ou atitudes, ou ainda idias). Eles

tambm desterritorializam (e reterritorializam) conceitos. Levam realidades diversas a

pontos em que talvez nunca estivessem presentes salvo pela mdia. Ostentam, de forma a

no permitir opo ao morador ou pessoa em trnsito, uma mensagem. As produes

simblicas podem ser reforadas pelo contexto em que se colocam, ou desmentidas. Pode

haver complementaridade, ironia, crtica, humor nessa combinao de circunstncias da

mdia com o meio. Finalmente, quanto questo dos gneros impuros, a prpria mdia

massiva constitui um desses gneros impuros descritos por Canclini (ver exemplos no

anexo a este comentrio).

Temos, portanto, no dilogo que mdias externas estabelecem com a cidade um

hibridismo de que fala Canclini. Um retrato rpido, de passagem, da Amrica Latina

que nos conta e comenta o autor, um espao em que somos convidados a agir como

cidados em sentido intercultural (Canclini, 2004:53).

Cabe, antes de partir para alguns exemplos esmpricos, esclarecer como Canclini v a

questo do exerccio da cidadania. O autor fala nos novos modos de participao que se

estabelecem a partir da degradao da poltica e descrena em suas instituies, e tambm

no enfraquecimento da identidade estabelecida unicamente com base em repertrios

culturais tnicos ou nacionais (Canclini, 1999:37). Essa nova cidadania, prpria da ps-

intra modernidade e dos centros urbanos, se daria, conforme o pensador argentino, muito

mais com base no consumo dos meios de comunicao de massa e dos bens privados.

Canclini reconhece a fora e inexorabilidade do mercado, mas aponta que ela (a fora do

mercado) no implica a substituio do local pelo global na cultura, nem a

imprescindibilidade do modelo neoliberal para a consecuo da globalizao.

Seguem alguns exemplos de hibridizaes observadas nas ruas de Porto Alegre no

segundo semestre de 2005. Os registros fotogrficos ilustram os aspectos tratados ao

longo do texto, podendo servir ainda como inspirao para futuros trabalhos nessa

direo. Trata-se de um breve olhar cancliniano sobre a mdia externa: a comunicao

de massa em dilogo com o tempo-espao da cidade. Cidades e indstrias culturais me

atraem no s como objetos de conhecimento, mas tambm como lugares onde se

imagina e se narra (Canclini, 1999:66).

Avenida Venncio Aires, Bairro Santana, Porto Alegre.

Junto do Hospital de Pronto Socorro, oportunidades de negcios se fazem presentes, seja

para o caso de perspectiva de curas, seja para uma situao irreversvel. Vida e morte

justapostas na sinalizao de rua de negcios, proporcionando leituras inusitadas e quem

sabe reflexes filosficas aos transeuntes.

Terceira Perimetral, a caminho da Zona Sul de Porto Alegre.

Afinal, qual o lugar mais alto que os filhos buscam na vida? Neste caso, esse novo

nvel pode ser aquele prometido por um jogo eletrnico, onde a cada etapa vencida se

ascende a um patamar mais elevado, e no o proporcionado pela escola particular

originalmente anunciada no outdoor. Duas peas de mdia externa, gerando uma terceira

leitura. Afora a interferncia entre os dois outdoors, aqui, podemos nos lembrar de

Canclini tambm quando ele afirma: somos subdesenvolvidos na produo endgena

para os meios eletrnicos (comentrio meu: incluindo o de produo de jogos

eletrnicos), mas no para o consumo (Canclini, 1999:54).

Nem a proximidade com a f transformada em espetculo consegue salvar o pequeno

negcio de ferro velho da decrepitude. Ou seria o negcio em vias de falncia uma

ameaa queles que se recusam a participar do show da f?

Foto obtida no Bairro Glria (mais uma ironia?), Porto Alegre.

Bairro Cidade Baixa, Porto Alegre.

Entre um plano de sade e Jogos Mortais, qual voc prefere? Sade e lazer competem

pelo dinheiro do consumidor, mas tambm existe uma cumplicidade no-proposital entre

as mensagens: ou se adere a um plano de sade, ou se fica margem do acesso a

tratamentos de sade dignos e merce do sistema pblico de mdicos e hospitais

insuficientes e lentos.

No mesmo ponto mostrado pela imagem da pgina anterior, o mesmo outdoor que

anuncia um filme de terror estabalece outro dilogo com o entorno. Desta vez, um

mendigo, excludo do acesso ao consumo, nos desperta para um outro jogo mortal

engenderado pela sociedade de consumo. Quem no tem meios de participar do consumo,

vira protagonista de um verdadeiro espetculo de horror. A contradio explode,

sobretudo, nos pases perifricos e nas metrpoles onde a globalizao seletiva exclui

desocupados e migrantes dos direitos humanos bsicos (Canclini, 1999:54).

Zona Sul de Porto Alegre.

Entre casebres e lixo, uma casa de espetculos e festas (ver no detalhe foto de um evento

na referida casa) anuncia diverso e festa. Uma imagem pequena, localizada, insinua o

abismo social que cerca os latinoamericanos. Estamos entre o espetculo e a misria,

entre o glamour hedonista e a necessdidade de sobreviver.

Segunda Perimetral, Porto Alegre.

A cidadania se traduz numa srie de nos colocados s pessoas de bem. Cidado de

bem, na concepo da mensagem pintada no muro, se atm a seguir uma srie de regras,

constitudas especialmente de vedaes. Mas as pichaes confrontam a mensagem, e

nos falam de uma outra existncia, diversa da cidadania tradicional, em que grupos

encontram lugar e modo de expresso sobrepondo-se aos conceitos mais antigos. O estilo

dos grafismos nas paredes nos dizem tratar-se de manifestaes de jovens pessoas para

quem a expresso cidado de bem possivelmente parea antiga e caduca.

Contracapa do jornal Zero Hora, 27 de outubro de 2005.

Enquanto a mdia e os leitores temem as ameaas de uma epidemia de aftosa que acomete

o gado brasileiro e que vira manchete nos jornais e telejornais, dois pequenos negociantes

encontram a oportunidade de, literalmente, vender o seu peixe. Fatos geram negcios,

crises viram oportunidades, notcias viram publicidade. Que volta a virar notcia no

momento em que o jornal noticia o oportunismo dos comerciantes em seu corpo editorial.

Referncias Bibliogrficas

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hbridas. So Paulo, Edusp, 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. El consumo cultural: uma propuesta terica, in SUNKEL, Guillermo. Consumo cultural em Amrica Latina. Bogot, Convenio Andrs Belo, 1999. CANCLINI, Nestor Garcia. Latinoamericanos buscando lugar em este siglo cap 4. Buenos Aires, Paids, 2002. CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguales y desconectados: mapas de la interculturalidad. Barcelona, Gedisa, 2004. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1999