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A Psicologia e os Desafios Contemporâneos da Reforma Psiquiátrica. In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; SATO, Leny. (Org.). Diálogos em Psicologia Social. Porto Alegre, 2007. p.361-370 1 A PSICOLOGIA E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Maria Cristina Campello Lavrador A Psicologia e os Desafios Contemporâneos da Reforma Psiquiátrica nos convidam a pensar sobre as estratégias de resistência que problematizam os saberes, os fazeres, os dizeres e os poderes que contornam as mais diferentes experiências da vida. Este é um dos recortes circunstanciais de uma experiência mais ampla de criação de si que implica variação nos modos de vida. Criação de si como “uma certa relação a si; essa não é simplesmente ‘consciência de si’, mas constituição de si” (Foucault, 1985, p.28) que implica um exercício ético no qual o homem “problematiza o que ele é, e o mundo no qual ele vive” (p. 14). Traçar múltiplos caminhos e compartilhar as incertezas são alguns dos desafios que se impõem a todos que estão implicados, de um modo ou de outro, com a invenção de novas possibilidades de/na vida em todos os dinamismos espaço-temporais. Ao nos referimos à variação nos modos de vida, somos interpelados sobre qual a nossa potência de diferir, de quais processos de subjetivação queremos ser partícipes, como podemos pensar e agir diferentemente? E, ao mesmo tempo, em que medida se é levado às sujeições e/ou às cumplicidades com os “estados de dominação” que tanto denunciamos? Perguntas que exigem problematizações sobre a atualidade e que também nos inclui. Um entrelaçamento do que estamos fazendo da vida, do mundo, do outro e de nós mesmos, “... um êthos filosófico consistente em uma crítica do que dizemos, pensamos e fazemos, através de uma ontologia histórica de nós mesmos” (Foucault, 2000, p. 347). Uma política, de uma estética e de uma ética da existência. Tarefa cotidiana e infinita de “uma vida”. Uma potência... Um cansaço... Mas, mesmo quando estamos exaustos, não conseguimos mais desacreditar na potência de possível, não conseguimos mais viver, pensar, sentir, fazer e dizer sem ter esse possível. Experiência limite, experimentações que exigem de cada um de nós uma paciência histórica, um perseverar na existência com suavidade, “... o trabalho crítico [...] sempre implica,

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    A PSICOLOGIA E OS DESAFIOS CONTEMPORNEOS DA REFORMA PSIQUITRICA

    Maria Cristina Campello Lavrador

    A Psicologia e os Desafios Contemporneos da Reforma Psiquitrica nos convidam a pensar sobre as estratgias de resistncia que problematizam os saberes, os fazeres, os dizeres e os poderes que contornam as mais diferentes experincias da vida. Este um dos recortes circunstanciais de uma experincia mais ampla de criao de si que implica variao nos modos de vida. Criao de si como uma certa relao a si; essa no simplesmente conscincia de si, mas constituio de si (Foucault, 1985, p.28) que implica um exerccio tico no qual o homem problematiza o que ele , e o mundo no qual ele vive (p. 14). Traar mltiplos caminhos e compartilhar as incertezas so alguns dos desafios que se impem a todos que esto implicados, de um modo ou de outro, com a inveno de novas possibilidades de/na vida em todos os dinamismos espao-temporais. Ao nos referimos variao nos modos de vida, somos interpelados sobre qual a nossa potncia de diferir, de quais processos de subjetivao queremos ser partcipes, como podemos pensar e agir diferentemente? E, ao mesmo tempo, em que medida se levado s sujeies e/ou s cumplicidades com os estados de dominao que tanto denunciamos? Perguntas que exigem problematizaes sobre a atualidade e que tambm nos inclui. Um entrelaamento do que estamos fazendo da vida, do mundo, do outro e de ns mesmos, ... um thos filosfico consistente em uma crtica do que dizemos, pensamos e fazemos, atravs de uma ontologia histrica de ns mesmos (Foucault, 2000, p. 347). Uma poltica, de uma esttica e de uma tica da existncia. Tarefa cotidiana e infinita de uma vida. Uma potncia... Um cansao... Mas, mesmo quando estamos exaustos, no conseguimos mais desacreditar na potncia de possvel, no conseguimos mais viver, pensar, sentir, fazer e dizer sem ter esse possvel. Experincia limite, experimentaes que exigem de cada um de ns uma pacincia histrica, um perseverar na existncia com suavidade, ... o trabalho crtico [...] sempre implica,

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    penso, o trabalho sobre nossos limites, ou seja, um trabalho paciente que d forma impacincia da liberdade (Foucault, 2000, p. 351). Por tudo isso, continua insistindo em ns essa disposio de um combate aos desejos de manicmios (Lavrador; Machado, 2002) de todo tipo, que se espraiam pelo mundo e que nos espreitam. Estes se exprimem atravs de um desejo em ns de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar, que se fazem presentes em toda e qualquer forma de expresso que se sustente numa racionalidade carcerria, explicativa e, muitas vezes, desptica. Apontam para um endurecimento que aprisiona as experincias da vida ao obstruir a nossa potncia de agir. Especificamente com relao experincia da loucura, nossa preocupao de que esses desejos de manicmios ainda se faam presentes, algumas vezes, nos novos servios de sade mental e no encontro com a loucura. Que os mesmos se atualizem em prticas/discursos de exacerbada medicalizao, de interpretaes violentas, de posturas rgidas e despticas. Pois a lgica manicomial em lugar de possibilitar outros modos de vida, produz submisso, infantilizao e culpa, mesmo que sob uma nova roupagem. O que poderamos caracterizar como sendo uma forma de controle contnuo no qual o outro pode ser dissimuladamente tutelado e controlado ao longo dos dias e a cada instante.

    Ao se eleger e valorizar os valores transcendentes que depreciam a vida enreda-se nas teias do controle normalizador que busca sempre incidir sobre o singular para torn-lo homogneo, para lembr-lo que h um Modelo transcendente e arbitrrio a ser seguido. Por exemplo, a loucura nos incomoda porque desvia e nos mostra que possvel desviar, porque nos aponta que essa verdade transcendente sobre o mundo uma iluso, porque ousa misturar numa mesma vida a multiplicidade, ou melhor, porque nos indica que uma vida se faz na multiplicidade. E a somos interpelados: como pensar, fazer, dizer, sentir e viver diferentemente? Como conseguir rachar as coisas e as palavras, que se grudaram nos valores transcendentes para deixar advir uma gagueira na prpria lngua, como uma linha quebrada que aproveita as bifurcaes e cria desvios? Os regimes de controle contemporneos tentam calar e capturar os movimentos instituintes, propagando uma pretensa hegemonia. O que nos impe o desafio de criar estratgias de resistncia ativa em todos os dinamismos espao-temporais. Entendemos que esses so os desafios contemporneos candentes da Reforma Psiquitrica.

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    A vida no cabe em si

    Por que necessria uma linha divisria entre doena, sade e normalidade? Qual o significado da partio entre doentes e sos? O que esse mecanismo binarizador faz funcionar?

    Nietzsche rompe com a idia de que a sade algo individual, privado. Para ele, nem a sade nem a doena so entidades, as diferentes dicotomias so apenas jogos de superfcie. Entre doena e sade h continuidade, diz Nietzsche, a doena um desvio interior prpria vida, no h fato patolgico em si (Barros, 2003, p. 155).

    As variaes nos modos de vida nos incitam a afirmar a Diferena como pura multiplicidade e esta afirmao delineia variaes nos modos de viver. Entretanto, em determinadas condies institucionais e histricas a Diferena silenciada como se no fizesse parte da vida, como se no fosse constitutiva de sua multiplicidade. A medicina classificatria concebia a vida como sade e a opunha doena Foucault (1987). Sade e doena eram consideradas manifestaes independentes umas das outras, sem nenhuma relao entre si. Uma concepo binria que trata os termos por oposio, ou seja, se h doena no h sade e no h vida, e, ao 'contrrio, se h sade no h doena. A doena no era considerada como uma alterao ou um desvio da normalidade. A distino entre sade e doena se fazia a partir de critrios de ausncia ou de presena de determinadas qualidades, como: vigor, fluidez e flexibilidade que deveriam ser restabelecidas. A sade se remetia Natureza, concebida como harmonia ou equilbrio, e a doena Contra-natureza. Nessa perspectiva, no se colocava a possibilidade de aproximao ou de mistura, enfim, a possibilidade de variaes nos modos de vida. Posteriormente, sade e doena passam a compor um mesmo campo. A doena faz parte da vida, mas como um acidente, um desvio da 'normalidade', uma alterao dos processos vitais que caracterizam a "vida patolgica", uma "forma patolgica de vida". Os estados mrbidos seriam variaes, gradaes - por excesso ou por carncia - de um padro considerado normal: "quando os rgos funcionam com toda regularidade e

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    uniformidade de que so capazes" (Bgin apud Canguilhem, 1978, p.36) O normal e o patolgico diferiam apenas por graus de intensidade. Canguilhem v nessa definio uma tendncia de se considerar a normalidade como um ideal de perfeio. A sade seria uma espcie de essncia ideal e a normalidade a forma ideal de vida. Nesse sentido, a vida no seria concebida como multiplicidade, no havendo espao para diferenas. Seguindo uma outra perspectiva, Canguilhem definiu de forma distinta os termos anomalia, anormal e patolgico. Anomalia est ligada s variabilidades da vida, se refere ao que desigual e irregular, e isto no implica obrigatoriamente sofrimento/impotncia. "No existe fato que seja normal ou patolgico em si. A anomalia e a mutao no so, em si mesmas, patolgicas. Elas exprimem outras

    normas de vida possveis" (Canguilhem, 1978, p. 113). A anomalia singular, se manifesta na multiplicidade, na relao com o outro, "o portador de uma anomalia no pode, portanto, ser comparado a si mesmo" (Canguilhem, 1978, p. 108). J a doena se manifesta numa seqncia cronolgica que interrompida por uma enfermidade que pode levar a uma incapacidade de instituir novas normas de vida por acreditar que s existe uma nica norma de vida. O doente doente por s admitir uma norma (Canguilhem, 1978, p. 148). Dessa forma, pode-se dizer que anomalia no doena, ou seja, a multiplicidade no doena.

    ...no nvel mais fundamental da vida, os jogos do cdigo e da codificao abrem lugar para um acaso que, antes de ser doena, dficit ou monstruosidade, alguma coisa como uma perturbao no sistema informativo, algo como um 'equvoco' (Foucault, 2000, p. 364).

    Por sua vez, o termo "anormal implica referncia a um valor, um termo apreciativo, normativo" (Canguilhem, 1978, p. 101), ou seja, implica um valor normativo institudo pela vida e aquilo que est fora das regras normativas. "Anormal quer dizer, precisamente, inexistente e inobservvel" (Canguilhem, 1978, p. l07). E tambm no implica necessariamente sofrimento e impotncia.

    Enfim, patolgico "implica em pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotncia, sentimento de vida contrariada" (Canguilhem, 1978, p. 106). O estado

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    patolgico exprime uma paralisao da vida, uma restrio criao de novas normas, expanso do viver, mas no uma ausncia de normas. Entendendo que no h uma sinonmia universal e a-histrica entre loucura e doena e sim uma sobreposio datada historicamente, pode-se dizer que a experincia da loucura no pertence necessariamente ao campo da doena. Assim, poderamos pens-la como estando prxima da noo de anomalia ou como uma manifestao da multiplicidade da vida? Segundo Canguilhem (1978), uma vida institui suas normas para se preservar e lutar contra os perigos que a ameaam. Mas, ao mesmo tempo, tambm tende a expandir-se ao encarar os riscos e arriscar a prpria vida. A concepo de sade no tem nada a ver com a de estabilidade e nem tampouco com um assujeitamento s normas. Faz parte da sade abusar da prpria sade, criando novas normas de vida que permitam que ela se expanda. "Viver , mesmo para uma ameba, preferir e excluir" (Canguilhem, 1978, p. 105). Quem levado a diminuir as normas de vida, na busca da estabilidade, e quem no consegue se abrir para as novas condies de vida aquele que no tolera o desvio, o porvir e no busca instituir novas normas para viver.

    Canguilhem parece simpatizar com [a] perspectiva nietzschiana ao postular que sade e doena se implicam num confronto e superao permanentes das tendncias mrbidas. [...] Ou seja, busca afirmar a vida no seu aspecto de criao e expanso permanentes (Barros, 2003, p. 159).

    Os termos anomalia, anormal, patolgico, e doena foram historicamente carregados de negatividade. E o termo sade carregado de idealizaes. por isso que Canguilhem nos provoca e nos faz pensar: estaramos hoje diante de um paradoxo com relao sade, pois em nome desta, procura-se extirpar da vida tudo o que a desassossega, tudo o que a desvia, tudo o que a faz diferir, tudo o que nos traz desassossego. Cada vez mais se busca e se propaga um ideal de perfeio: uma perfeita sade, uma perfeita alimentao, um perfeito corpo, um perfeito amor, um perfeito trabalho etc. "Em certo sentido, pode-se dizer que uma sade perfeita contnua um fato anormal" (Canguilhem, 1978, p. l06). Ou melhor, a perfeio, em se tratando da vida, no existe, em suma, um ideal. Uma vida multiplicidade, errncia, falha, processo.

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    As classificaes repartem, esquadrinham, separam. Assim, reduzem-se as variaes nos modos de vida, a uma nica forma de vida. Uma forma de vida padronizada, modelada, restrita, amedrontada, ou seja, uma negao e uma depreciao da vida. Uma vontade de verdade calcada em ideais de perfeio, na qual o erro, ou melhor, a errncia tende a ser descartada para poder se dizer o que o verdadeiro. Mas, a verdade uma mentira muitas vezes repetida, como nos diz Oswald de Andrade, ou a verdade a mais profunda mentira, como nos diz Nietzsche. E no que diz respeito ao erro-errncia, Foucault nos diz que no limite, a vida - da seu carter radical - o que capaz de erro (2000, p. 364). A errncia, a estranheza constituinte de uma vida e, paradoxalmente, tenta-se esmaecer exatamente esse carter radical da vida, ao se considerar o erro-errncia como algo negativo e que precisa ser extirpado ou, ao menos, controlado. Os mecanismos de regulamentao da vida promovem processos de expropriao da liberdade e da criao, diminuindo nossa potncia de agir. No entanto, algo sempre ir escapar a todo poder-controle: linhas de resistncia que nos instigam a experimentar outros dinamismos de espao-tempo, heterocronias, multiplicidades rtmicas, enfim, variaes nos modos de vida.

    Modulaes do controle sobre a vida

    Foucault, em seus ltimos escritos, acrescenta explicitamente, os modos de subjetivao na sua anlise sobre os modos de objetivao da loucura pelas prticas mdicas atravs do poder psiquitrico. O poder psiquitrico se incumbiu de produzir a verdade da doena e a doena como verdade no espao hospitalar. Ao mesmo tempo, poder e verdade estavam mutuamente implicados. Sem dvida se tratava de um jogo de verdade que envolvia relaes estratgicas de exerccio do poder, ... preciso distinguir as relaes de poder como jogos estratgicos entre liberdades [...] e os estados de dominao, que so o que geralmente se chama de poder (Foucault, 2004, p. 285). Mas ser que foi um jogo de poder aberto, ser que se jogava com um mnimo possvel de dominao? (Foucault, 2004, p. 284). Nos estados de dominao as prticas de liberdade so um fio excessivamente reduzido e situado em um nico lado. Ou ser que foi um jogo pesado e cerrado frente s prticas violentas das duchas e, depois, dos eletro-choques? Em que

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    medida se tratava de jogos estratgicos entre liberdades com possibilidades de inverso, de reversibilidade, e em que medida se tratava de estados de dominao, de violncia ilimitada e por isso sem possibilidades de inverso? Talvez uma mistura de ambos, por um lado, menos possibilidades de inverses visveis no sentido de que o poder mdico-psiquitrico se imps pela coero fsica e moral, e por outro, possibilidades de inverses invisveis no sentido de que gotas dgua ainda possibilitavam alguns suspiros do exerccio de liberdade. Mesmo quando a relao de poder completamente desequilibrada, [...] um poder s pode se exercer sobre o outro medida que ainda reste a esse ltimo [alguma] possibilidade (Foucault, 2004, p. 277). Em outras palavras, a loucura tentava resistir de algum modo, mesmo que fosse pelo silncio. O poder psiquitrico no controlava e no controla tudo, alguma coisa escapava e continua escapando. Os espaos de liberdade, mesmo que minsculos e invisveis, no subsumiram da vida social. Entretanto, imprescindvel um esforo de criar linhas de resistncia em todos os mbitos de nossa vida. O asilo, ao mesmo tempo, foi a face visvel e indispensvel da estratgia psiquitrica com suas prticas de recluso asilar que conjurava e seqestrava o que desestabilizava uma determinada ordem social. Diramos que o asilo ainda simbolicamente - com isso no estamos desprezando ou minimizando os indicadores de 56.582 leitos psiquitricos no Brasil - umas das faces visveis do disparate de uma sociedade, mas no mais indispensvel. Pois o asilo tem a proporo de uma cidade; no existem mais os muros do asilo. Eles explodiram, eles englobaram a cidade (Hassoun, 1999, p. 270). Supervalorizar essa face visvel do asilo, como um lugar especfico, pode desviar o nosso olhar do grande sonho e da ampla pretenso da psiquiatria: fortalecer e juntar-se a um modelo-projeto social global. O projeto psiquitrico, desde o incio, foi muito alm do asilo e do tratamento aos doentes mentais a medicina no tem somente como objeto estudar ou curar as doenas; ela tem relaes ntimas com a organizao social (Foucault, 1999, p. 295). Pode-se dizer que se ocupou menos do objeto doena do que de seu projeto global de controle social ou que intervir sobre a doena antes de tudo intervir sobre a ordenao da vida. A ordem psiquitrica se une ordem mundial ou a nova ordem mundial contra todos os perigos que rondam e ameaam desestabiliz-la. Ambas se serpenteiam, se tornam maleveis e palatveis ao sabor das ondulaes do capital, da mega indstria dos

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    psicofrmacos, para manter a sua onipresena, oniscincia e onipotncia assegurando certa regularidade, ordem e controle sobre a variao nos modos de vida.

    A partir do sculo XIX, todos nos tornamos psiquiatrizveis; a mais tcnica, a mais racionalizante das sociedades colocou-se sob o signo, valorizado e temido, de uma loucura possvel. A psiquiatrizao no alguma coisa que acontea aos mais

    estranhos, aos mais excntricos dentre ns; ela pode nos surpreender a todos e por toda parte, nas relaes familiares, pedaggicas, profissionais (Foucault, 1999, p. 296).

    Essa afirmao continua cada vez mais atual, pois o aparato psiquitrico hoje procura incidir sobre as nossas tristezas transformado-as em depresso, sobre os nossos medos transformando-os em pnico, sobre as nossas inquietaes transformando-as em ansiedade, sobre as nossas alegrias transformando-as em euforia. Enfim, incide sobre o que difere, sobre o que desvia, sobre o que se apresenta como variao em nossos modos de vida. Entretanto, talvez hoje, os exerccios do poder psiquitrico podem estar mais prximos desses jogos estratgicos entre liberdades, pois designamos psiquiatria a tarefa de solucionar todos os nossos desconfortos, endossamos a medicalizao e a patologizao do cotidiano. Muitas vezes, trata-se da liberdade como livre-arbtrio, a partir da qual as escolhas se do por adeses cegas, sem uma prtica refletida sobre a liberdade, sem um exerccio de problematizao sobre que estamos ajudando a fazer de ns mesmos?. O problema da liberdade e o seu avesso, os estados de dominao, bem como as condies do nosso tempo que afunilam as possibilidades de prticas de liberdade continuam nos provocando a pensar. O valor de verdade da psiquiatria ainda se mantm atravs do poder/saber/fazer que quer controlar, dominar e subjugar o que difere. Esse querer se encontra com outros quereres moralizantes que no suportam o estranhamento das variaes nos modos de vida. Pois quando no se compreende, moraliza-se e destila-se o imperativo de um dever encegueirado que constitui a vontade de verdade. Entretanto, no basta somente desmontar o aparato psiquitrico, preciso, antes de tudo, desmontar essa vontade de verdade. Interpelarmos porque ainda fazemos parte dessa

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    engrenagem, porque ainda nos submetemos aos seus podres poderes. O que somos nesse tempo que o nosso? [...] O que somos hoje? (Foucault, 2004, p. 301).

    Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou

    engendrar novos espaos-tempos, mesmo de superfcie ou volume reduzidos. ao nvel de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistncia ou, ao contrrio, a submisso a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criao e povo (Deleuze, 1992, p. 218).

    Muitas vezes, deixamos escapar por entre os dedos essa potncia de acreditar/agir. Entretanto, possvel inventar - via contgio, contaminao, epidemia e no por decreto ou conscientizao - outras formas de lidar com a loucura, acolhendo sua alteridade, abrindo portas em todos os sentidos e desobstruindo a potncia de inveno de possveis. Desobstruir a potncia de possveis implica um combate s prticas-intervenes-discursos reificadas, que produzem subjetividades mortificadas e entorpecidas. As resistncias e os combates lgica manicomial passam pela luta pelo fim dos desejos de manicmios, que nos habitam, e pelo direito a desrazo, que nos perturba, que nos traz desassossego e, tambm, vida, um sopro de vida, oxignio em meio ao ar rarefeito, marolas em meio ao marasmo.

    O direito a desrazo significa poder pensar loucamente, significa poder levar o delrio praa pblica, significa fazer do Acaso um campo de inveno efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras da Verdade, chame-se ela identidade ou estrutura, significa devolver um direito de cidadania pblica ao invisvel, ao indizvel e at mesmo, por que no, ao impensvel (Pelbart, 1993, p. 108).

    Estamos nos referindo, ao mesmo tempo, aos desafios que se impem ao movimento da Reforma Psiquitrica e a todas as experincias de vida. Todos ns estamos um pouco

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    entorpecidos e mortificados. Todos ns precisamos, um pouco, poder pensar loucamente. Todos ns precisamos de um pouco de oceano indomvel. Os chamados loucos e no loucos.

    No haver sempre um incontrolvel a todo e qualquer dispositivo de controle? No haver sempre algo que escapa?

    Referncias

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