a problemática dos marcos historiográficos sobre o crescimento

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Page 1: A problemática dos marcos historiográficos sobre o crescimento

Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

A problemática dos marcos historiográficos sobre o crescimento urbano de Foz do Iguaçu - PR (décadas de 1970 - 1990)*

Emilio Gonzalez

PUC-SP

Boa parte dos estudos que tematizam o crescimento urbano da cidade de Foz

do Iguaçu têm apresentado resultados similares no que tange à explicação do agente

motor do processo de migração / imigração ocorrida na cidade após a década de

1970. Esses estudos, invariavelmente, apresentam o "Efeito Itaipu" como o elemento

causador desse crescimento urbano e demográfico. O início das obras dessa

barragem, em 1974, teria ocasionado uma nova dinâmica na história desse

município.1 Uma vez desencadeado esse crescimento não cessaria com a finalização

das obras em 1991, mas teria continuado até nossos dias devido a emergência de

uma nova fase econômica vivida no município após a década de 1980. Essa fase é

marcada pelo florescimento do comércio de importados no vizinho Paraguai, e o

desenvolvimento da indústria turística na tríplice fronteira. Esses dois últimos

elementos são apresentados pela historiografia como desdobramentos daquele

impulso inicial dado pelo "Efeito Itaipu" na cidade.

A presente pesquisa busca problematizar algumas dessas explicações que

associam mecanicamente todo um complexo processo de crescimento urbano, seus

efeitos e desdobramentos, bem como a migração/imigração2 e suas variadas

motivações àqueles marcos historiográficos assim encadeados. Buscamos apontar

para novas possibilidades de investigação e compreensão desse processo, e para

uma ruptura com essas formas de abordagem histórica.

Ao tratar do processo de crescimento urbano da cidade de Foz do Iguaçu entre

as décadas de 1970 e 1990, foram construídas duas vertentes historiográficas

* Esse artigo resulta da pesquisa intitulada "Experiências sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu", que vem

sendo desenvolvida desde julho / 2003 no programa de Pós-Graduação - Mestrado da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo - PUC / SP. 1 Edson Belo de Souza, por exemplo, adota a noção de "antes" e "depois" da Usina de Itaipu para indicar a ruptura que

esse marco assinala na história da cidade. Para o autor: ""A nova dinâmica que Foz do Iguaçu conheceu foi com a

Itaipu. Doravante um empreendimento que marcou a história recente do município, dividindo-se em dois períodos:

antes e depois da obra". SOUZA, Edson Belo C. A Região do lago de Itaipu: as políticas públicas a partir dos governos

militares e a busca da construção de um espaço regional. Florianópolis/SC: UFSC, 1998 (Dissertação de Mestrado em

Geografia) p.27, grifos meus. 2 Nesse texto, adotarei a utilização de ambas nomenclaturas (migração / imigração) pelo fato de que Foz do Iguaçu foi

alvo tanto de fluxos nacionais (migrantes), como fluxos oriundo de outros países (imigrantes).

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antagônicas entre si. A primeira — oficial — constituída por uma aliança entre o poder

público e o empresariado local; e a segunda, acadêmica, constituída por um esforço

conjunto entre jornalistas, estudantes e intelectuais da cidade. Nesse quadro, a leitura

do processo aparece polarizada entre o elogio e a crítica aos efeitos e conseqüências

do acelerado crescimento urbano sofrido pela cidade. Na produção de suas versões,

ambos autores concordam que esse crescimento urbano e demográfico tem em sua

base o início da construção da barragem de Itaipu. Diferenciam em sua avaliação, já

que enquanto a visão oficial associa e traduz esse crescimento como evolução —

também apresentada como desenvolvimento urbano — do município, para os autores

engajados numa visão crítica, esse mesmo crescimento aparece como sinônimo de

pauperização social, favelização, criminalização dos trabalhadores (migrantes/

imigrantes), o que teria resultado na criação de uma reserva de mão-de-obra para a

exploração capitalista, a especulação imobiliária, marginalização e aumento da

repressão policial.3

De fato, observa-se que após a década de 1970 a cidade de Foz do Iguaçu

passou a experimentar um intenso crescimento urbano, e que se estendeu até a

década de 1990. Segundo dados do IBGE, a população de Foz do Iguaçu, que na

década de 1960 contabilizava pouco mais de 28.000 habitantes,4 apresentava em

2001 uma população superior a 270 mil habitantes. Esse número, se multiplicado e

comparado à cifra existente em 1960, demonstra um crescimento em torno de 1000%

em apenas quatro décadas, algo em torno de 25% ao ano ininterruptamente.

Ocorre que mesmo após o final das obras da barragem de Itaipu, em1991, a

cidade de Foz do Iguaçu não apenas continuou inchando demograficamente, como

também experimentou uma nova fase de crescimento econômico, agora levado a cabo

pelo florescimento do comércio de importados e pela indústria do Turismo. Assim, para

explicar fatores da continuidade desse crescimento urbano, a historiografia, tanto

oficial quanto acadêmica, passa a vinculá-lo à nova fase econômica do município.

Argumenta-se que a cidade passaria a experimentar, já ao final da década de

1980, seu segundo e terceiro ciclo desenvolvimentista, mas agora não mais vinculado

3 Em um artigo ainda inédito, resultado de pesquisas anteriores, recupero parte dessa discussão, buscando inclusive

apontar avanços da historiografia produzida no interior da academia no sentido de desmistificar a memória oficial

edênica construída sobre a cidade. O problema é que ao produzir a crítica, a academia acabou produzindo uma leitura

muito limitada ao adotar uma linha excessivamente estruturalista para explicar tal processo, uma vez que a

preocupação desses trabalhos foi a de focar os "macro-sujeitos" da transformação urbana de Foz do Iguaçu, em

detrimento as experiências dos moradores dessa cidade. Entre esses trabalhos, destaco os seguintes: CATTA, Luis

Eduardo. O Cotidiano de uma Fronteira: a Perversidade da Modernidade. Florianópolis/SC: UFSC, Dissertação de

Mestrado em História, 1994; FOLMANN, Orestes. Pobreza em Foz do Iguaçu. Marechal Cândido Rondon / Unioeste:

Monografia de Graduação em História, 1996; e SOUZA, Edson Belo, op. cit. 4 Dados do FOZTUR - Secretaria Municipal de Turismo, 1997, citados por FOLLMAN, Orestes, op. cit., p.19.

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à execução de outro mega-empreendimento governamental, e sim ao

desenvolvimento do comércio de importados do Paraguai (Ciudad del Este) e da

exploração turística da tríplice fronteira.

Esses três elementos — Itaipu, Turismo e Comércio de importados — são

assim encadeados em um mesmo esquema explicativo, cada qual respondendo

diretamente a um período específico do desenvolvimento e crescimento urbano dessa

cidade entre as décadas de 1970, 80 e 90. Nessa leitura, a ocorrência dos fluxos

migratórios para a cidade teriam sido conseqüências desse crescimento, e não seus

fatores. Logo, quem tivesse migrado para a cidade durante a década de 1970, o teria

feito por que esperava trabalhar na construção da Usina de Itaipu; e quem tivesse

migrado após o final da década de 1980, o teria feito por que esperava empregar-se

no comércio de importados de Ciudad del Este ou no rentável mercado turístico que se

constituiu na cidade nesse período. Assim, além do marco da Itaipu, dois outros

elementos são incorporados ao campo memorialístico nessa discussão historiográfica

sobre Foz do Iguaçu, deixando "completa" e cronologicamente ordenada a narrativa

sobre seu processo constitutivo.

Aqui chama-se a atenção para o tratamento que essa leitura tem reservado à

discussão sobre o processo migratório que se assistiu na cidade nessas últimas

décadas. Visto dessa maneira, enquadrados e restritos às limitações temporais dos

marcos historiográficos acima discutidos, as heterogêneas categorias de migrantes

que vieram para esta cidade nessas últimas décadas parecem estar necessariamente

encaixadas em uma destas duas grandes explicações.

Pensar tal crescimento urbano dessa maneira acaba nos levando a

homogeneizar e simplificar uma complexa rede de relações e motivações histórico-

culturais. De fato, muito pouco se sabe ou se escreveu sobre os migrantes e

imigrantes que vieram para a cidade de Foz do Iguaçu. Um olhar mais atento sobre

esse período levaria a perceber que a heterogeneidade e a diversidade constituída no

tecido urbano dessa cidade não foi simplesmente resultado — ou, melhor dito,

"reflexo"— daqueles macro-projetos constituídos após 1970, como o "Efeito Itaipu".

Isso significa dizer que até mesmo os movimentos migratórios anteriores à década de

1970 não foram algo tão insignificantes assim, conforme assinalado especialmente

pela memória histórica oficial desse município, para a qual a noção de "crescimento

urbano" aparece associada à outra noção, muito perigosa, que é a de

"desenvolvimento (no sentido de evolução) urbano" ou, em uma versão mais

difundida, "progresso".5 O perigo do enquadramento de diversas e heterogêneas 5 Essa noção aparece literalmente expressa no livro de memórias organizado por CAMPANA & ALENCAR. Para esses

autores: "Uma divisão simplificada da história de Foz do Iguaçu tem dois períodos: antes e depois de Itaipu. Terminou

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experiências e trajetórias a unicamente esses grandes marcos explicativos é o ponto

ao qual chamamos a atenção aqui.

Dados para uma revisão historiográfica: trajetórias e memórias de (i)migrantes

de Foz do Iguaçu

A cidade de Foz do Iguaçu, por conta da característica de seu crescimento

demográfico e de sua recente constituição urbana, é formada em sua maioria por

imigrantes e migrantes e descendentes. A cidade foi heterogeneamente constituída

por enormes contingentes de pessoas (estrangeiros, descendentes ou brasileiros) que

vieram em grandes levas para essa cidade nas últimas décadas.

É sabido que a cidade de Foz do Iguaçu não foi constituída a partir de um único

fluxo migratório, como ocorreu em outras cidades da região, principalmente aquelas

que se formaram a partir de projetos de colonização coordenados por empresas

privadas. Apenas para mencionar a heterogeneidade do tecido social de Foz do

Iguaçu, destaca-se que residem nessa cidade mais de 20 diferentes nacionalidades de

migrantes estrangeiros, além dos migrantes nacionais. Entre os migrantes nacionais, é

possível encontrar pessoas que vieram de várias partes do Brasil, especialmente dos

estados da região Sul, inclusive do Estado do Paraná. E entre os imigrantes

estrangeiros, encontra-se paraguaios, argentinos, bolivianos, uruguaios, chilenos,

europeus e asiáticos diversos, como chineses e coreanos, destacando também a forte

presença de árabes, com cerca de 15 mil pessoas entre imigrantes e descendentes,

constituindo assim a segunda maior colônias de árabes do Brasil, menor apenas do

que a colônia de árabes da cidade de São Paulo.

Cabe ressaltar que boa parte das pessoas que migraram para esta cidade não

vieram para Foz do Iguaçu apenas por aqueles motivos apontados, que é a

construção da barragem de Itaipu e o desenvolvimento econômico da fronteira. Pelo

menos, não diretamente. Alguns casos conhecidos reforçam essa idéia. Por exemplo,

ao final dos anos 1980, com o processo de abertura política ocorrida em vários países

da América, como o Paraguai, Chile e Argentina, vieram à tona elementos importantes

sobre a origem de muitos migrantes que viviam nesta cidade. Especificamente com

relação ao Paraguai, quando, em 1989, a longa ditadura de Alfredo Stroesner chegou

ao fim, soube-se de muitos paraguaios que haviam vivido clandestinamente na tríplice

fronteira, inclusive nomes conhecidos como o músico e compositor Teodoro S.

a era da evolução lenta e penosa, com surtos de progressos esparsos, e deu-se ingresso numa era de abrupta e

profunda transformação" CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (orgs.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu:

Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Comunicação Social, 1997, p.28.

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Mongelos, falecido em Foz do Iguaçu em 1966 e transladado para Asunción em

1994.6 A "fuga política" é narrada também paraguaio Aníbal Abbate Soley.7

Uma outra situação conhecida diz respeito aos muitos migrantes árabes que

vivem na cidade desde a década de 1950 e 60.Seria no mínimo um anacronismo

grosseiro afirmar que estes migrantes árabes teriam vindo para Foz do Iguaçu porque,

desde aqueles idos (1950 - 60), já viam na triplice fronteira um grande "mercado" onde

enriqueceriam. .As trajetórias desses migrantes mostra o quanto é perigoso enquadrar

suas experiências em marcos historiográficos preestabelecidos.8

Alguns depoimentos realizados com moradores de areas periféricas dessa

cidade também são reveladores no que tange ao mapeamento das "origens" e das

"causas" apontadas para processos migratórios. Em nossa pesquisa, realizamos

entrevistas em forma de "Histórias de vida" com imigrantes e descendentes de

imigrantes brasileiros oriundos de diversos lugares do país, e que atualmente vivem

em áreas periféricas da cidade. Os motivos da migração apresentados por esses

depoentes são muito diversos daqueles construídos pela historiografia da cidade Adão

Pereira da Luz, por exemplo, agricultor, natural do Rio Grande do Sul, mas que já vivia

no Paraná desde a década de 1960, narra que a necessidade de migrar para Foz do

Iguaçu surgiu em face aos conflitos de terra que estava vivenciando. Ele migrou para a

cidade em 1978, período assinalado pela historiografia como sendo o "auge" da

migração de trabalhadores que chegavam à Foz do Iguaçu para trabalhar na Usina de

Itaipu. Em seu depoimento, ao falar sobre sua vinda para a cidade, narra o seguinte:

Quando eu comprei a terra, e comecei a plantar, plantar. E fui desfrutando da

terra. E depois, chegou um dia que apareceu o dono, de todas aquelas terras,

aonde pegou a minha junto. (...) sobrou só uma tira de três metro... de largura.

E o comprimento de dois alqueire (...)Ninguém sabia porque achava que tava

tudo OK. Aí... de repente apareceu... inclusive o dono dessas terras era um tal

de "Gago", um tal de gago(...). Esse era o dono e chefe da jagunçada... que

comandava tudo. E aí então, depois daí, eu fiquei morando lá com a minha

sogra, e, a gente não tinha... não... poder aquisitivo, por exemplo, da gente

poder plantar bastante, porque as condições financeiras era precária. Então a

gente tinha que trabalhar, pra se manter. Então a gente não tinha condições de

6 Informações obtidas em: 13 Creadores Nacionales: "Campaña Nacional: Ñemomarandu". Asunción (Py): Dirección de

Cultura de la Municipalidad de Asunción, s/d, pp. 44 — 48. 7Aníbal Abbate Soley. depoimento publicado por CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (org.). Foz do Iguaçu: Retratos,

op. cit., p. 35, grifos meus. 8 Abdul Said Rahal, idem, p. 35, grifos meus.

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plantar bastante, e aí, fazer um futuro pra gente, plantava pouco, porque,

pessoa pobre, não tem condições, não tem uma condição financeira, um

custeio por exemplo, não tem condições. Aí depois eu peguei e... aí resolvi vir

pra Foz do Iguaçu. Cheguei aqui em Foz do Iguaçú em 78. Aí passei a

trabalhar numa pedreira, aí já fui melhorando, melhorando mais... aí as

condições financeiras foi melhorando mais bastante. A gente passou a

trabalhar numa firma que pagava certinho, e tal" 9

Em outro depoimento, Edna Maria Cardoso narra que sua família migrou para a

cidade em 1976. Neste período, a Itaipu ainda estava constituindo seu batalhão de

operários. Portanto, não parece descabido afirmar que todas as migrações ocorridas

nesse período estavam relacionadas à construção dessa barragem, conforme já

discutimos na primeira parte desse texto. No entanto, atentemos para os "motivos"

narrados pela depoente sobe a imigração. Seu argumento demonstra o perigo dessa

noção determinista que amarra todas essas a um motivo comum. Edna Cardoso

remonta o processo migratório de sua família lembrando que:

Quando a gente veio pra Foz, a gente veio, o meu falecido pai, ele veio com o

emprego garantido. Porque através de conhecidos... porque a gente não tinha

mais nada, a gente não tinha nem o que comer mais dentro de casa. A gente já

não tinha mais nada. Tava no sítio dos outros, não tava valendo a pena

trabalhar, nessas altura já. Então, através de amigos, arrumou esse emprego

pro meu pai nessa madereira, aqui no Agnelo (Antiga Madeireira localizada nas

margens do Rio Paraná, na região do Porto Meira). Meu pai e meu irmão mais

velho. (...) Aí depois, essas casinha ali do Profilurb I na época que foi

construída, eu cozinhava pra firma, que daí meu pai trabalhava lá, na

madereira, e minha mãe lavava roupa pros peão que construía as casinha, e

eu cozinhava praquela firma. Eu que fazia comida praquele pessoal ali no

começo.(grifos meu) 10

Os "motivos" aqui apresentados são muito diversos da explicação estabelecida

sobre o marco da construção de Itaipu, que teria atraído esses imigrantes para a

cidade. No depoimento acima destacado, a impressão que se tem é que,

independente da construção dessa barragem na cidade, a migração de sua família

ocorreria de qualquer modo. A construção da Itaipu pode ter aberto perspectivas para 9 Adão Pereira da Luz, morador do Morenitas I. Depoimento gravado em 23/06/2001. 10 Edna Maria Cardoso, moradora do Morenitas II. Depoimento gravado em 24/06/2001.

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esses migrantes, e isso não se pode negar. Mas colocar-se como horizonte,

"possibilidade", é muito diferente de colocar-se como "alvo", objetivo único. Portanto,

uma coisa é afirmar que a construção dessa usina despertou esperanças entre

aqueles trabalhadores que abandonavam seus lugares de origem, e optavam vir para

essa cidade. Mas isso não permite afirmar que ela foi a responsável — leia-se

"causadora" — desse processo migratório, que tem origens que fogem à nossa

compreensão caso não busquemos suas razões também no lugar de saída.

Para reforçar essa perspectiva, podemos citar o depoimento de Lúcia Maria

Jardim, que chegou na cidade em 1989, oriunda do estado de Santa Catarina. Desse

depoimento, destacamos a parte em que a entrevistada narra os motivos que a teriam

obrigado a vir para Foz do Iguaçu:

(...) quando eu separei, eu separei sem nada porque ... através da minha

separação que surgiu assim, foi porque o pai do meus filho, além de me judiá

muito de mim, me agredi que nem ele me agredia, daí começó maltratá os filho

dele. Até machucou um filho, tive que levá pro Hospital. Aí eu cheguei, fiquei

muito nervosa, aí foi onde eu separei dele. Saí assim sem nada. Saí

desesperada, peguei minha roupa e saí... daí, não tinha onde ficar com meus

filho, aí eu fui pra beira do asfalto, fiquei debaixo de uma toça de taquaruçú, na

beira do asfalto.

(...) Até incrusivemente na hora que eu ia indo pro trabalho, onde que ele tava

localizado lá (em Santa Catarina), o homem que ele tava lá na casa dele

chegou, e como ele me considerava muito, que sabia que eu era uma mãe

sofridera, que eu era uma mãe que sempre trabalhava, me chamou, e falou pra

mim: “o que que você tá fazendo aí, muié...some daí, o teu marido taí, e qué te

matá...!” Ai, como essa minha amiga tava alí... já tinha me convidado pra vir

pra cá...eu cheguei correndo de volta, falei pra ela, aí incrusivemente que ele

viu de noite, ele veio no meu barraco. Veio no meu barraco, tive que pousá no

mato, e no outro dia vim pra cá. 11

Aqui, se fôssemos abordar a trajetória dessa moradora simplesmente

buscando enquadrá-la em qualquer um daqueles marcos historiográficos

preestabelecidos — desenvolvimento turístico e comercial da fronteira — bastaria

identificar com qual dos dois elementos ela se relacionava (turismo ou comércio), e

concluir que mais uma imigrante infeliz havia sido enganada pela propaganda oficial

11 Lúcia Maria Jardim, moradora do Jardim Morenitas I. Depoimento gravado em 23/06/2001.

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de prosperidade e riqueza da fronteira, e que agora restava a ela amargar uma vida

marginal em uma das muitas favelas dessa cidade. O restante de sua trajetória

poderia se descartado, sem qualquer prejuízo à interpretação historiográfica, já que o

que interessava aqui — confirmar a relação dessa trajetória com o marco

preeestabelecido — havia sido realizado com sucesso. O "resto" —seu problema

conjugal, o medo da agressão, a vida no barraco de taquara, etc — seriam apenas

elementos secundários. O importante era saber se ela confirmava a tese da migração

massiva em função do desenvolvimento comercial e turístico pós - 1990.

Percebe-se que esses marcos historiográficos assim preestabelecidos vem

reduzindo o complexo e gigantesco crescimento histórico de Foz do Iguaçu, bem como

o atual formato urbano e seu heterogêneo tecido social, explicando-os muitas vezes a

partir de causas externas à sua dinâmica. O perigo é atribuir o papel de agente social

transformador e construtor do processo histórico à Hidrelétrica de Itaipu, e ao mercado

turístico e comercial, restando aos trabalhadores e imigrantes um papel secundário no

processo, como meros coadjuvantes, determinados pela estrutura social e política

elaborada por aquelas instituições.

Não se pode negar a grande importância que a construção da Itaipu teve na

definição do formato urbano da cidade de Foz do Iguaçu. Contudo, da forma como

está narrada essa relação, os indivíduos inseridos nessa cidade deixam de ter sua

própria trajetória, pois passam a ser considerados simples objetos determinados pelos

projetos da Itaipu Binacional e de outros "macro-sujeitos" da cidade, como o Turismo e

o Comércio de importados.

É problemático ainda dividir rigidamente a trajetória histórica de Foz do Iguaçu

entre "antes e depois" de qualquer um desses marcos, porque corre-se o risco de se

perder de vista a historicidade das relações construídas em meio a este processo.

Nesse caso, o foco da história volta-se exclusivamente para os grandes marcos

historiográficos, como a construção da usina de Itaipu, no qual suas "rupturas" e sua

"trajetória" são interpretadas como o próprio processo histórico, relegando aos sujeitos

"de carne e osso" apenas um papel secundário na História.

Fontes e Bibliografias CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (orgs.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu:

Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Comunicação Social, 1997

CATTA, Luis Eduardo. O Cotidiano de uma Fronteira: a Perversidade da Modernidade.

Florianópolis/SC: UFSC, Dissertação de Mestrado em História, 1994

FOLMANN, Orestes. Pobreza em Foz do Iguaçu. Marechal Cândido Rondon /

Unioeste: Monografia de Graduação em História, 1996.

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AMADO, F. & FERREIRA, Marieta (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de

Janeiro: F.G.V., 1998.

SAMUEL, Raphael. “Teatros de Memória”. In Projeto História 14: Cultura e

Representação. São Paulo: PUC, 1997. pp. 41-81.

SOUZA, Edson Belo. C. A Região do lago de Itaipu: as políticas públicas a partir dos

governos militares e a busca da construção de um espaço regional. Florianópolis/SC:

UFSC, Dissertação de Mestrado em Geografia, 1998

SOUZA, João Carlos. Na luta por habitação: a construção de novos valores. São

Paulo: EDUC, 1995.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:

Zahar editores, 1981.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia

das Letras, 1989. 13 Creadores Nacionales: "Campaña Nacional: Ñemomarandu". Asunción (Py):

Dirección de Cultura de la Municipalidad de Asunción, s/d.

Adão Pereira da Luz, morador do Morenitas I. Depoimento concedido a Emilio

Gonzalez em 23/06/2001.

Edna Maria Cardoso, moradora do Morenitas II. Depoimento concedido a Emilio

Gonzalez em 24/06/2001.

Lúcia Maria Jardim, moradora do Jardim Morenitas I. Depoimento concedido a Emilio

Gonzalez em 23/06/2001.

2 - ANEXOS QUE DEVEM CONSTAR O TEMA DO TRABALHO (MÁXIMO DE 20 LINHAS)

Neste trabalho busca-se discutir a intervenção e a construção dos sujeitos históricos

no processo de transformação urbana da cidade de Foz do Iguaçu / PR, a partir da

década de 1970. A proposta central do trabalho é pensar de que forma os moradores

das áreas periféricas de ocupação territorial urbana (invasões) interpretam suas

experiências, reivindicando sua participação no processo histórico de construção

dessa cidade. Utilizando-se de fontes orais, buscamos partir das próprias narrativas

desses moradores para identificar como eles construíram e foram construídos nesse

processo, e quais as (novas) relações que estabeleceram com essa cidade, e a forma

como eles percebem e interpretam seus respectivos papéis no processo histórico. O

trabalho também desenvolve uma discussão acerca de alguns problemas e limitações

encontradas nas análises produzidas sobre a cidade de Foz do Iguaçu e seus

moradores priorizando apenas aspectos econômicos e quantitativos.

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Objeto de Pesquisa (máximo 3 linhas)

O foco central da pesquisa consiste no estudo de duas áreas ocupadas na periferia da

cidade de Foz do Iguaçu entre 1993 e 1995, conhecidas como Jardim Morenitas I

(legalizada em 1995) e Jardim Morenitas II.

Fonte/Corpo Documental (máximo 3 linhas)

O trabalho desenvolve-se sobretudo a partir do diálogo com documentos produzidos

pelo poder público (Prefeitura Municipal), textos historiográficos, e depoimentos orais

concedidos por moradores das áreas em estudo.

Abordagem da problemática / Metodologia do Trabalho (máximo 5 linhas)

A partir de uma leitura da produção historiográfica (oficial e acadêmica) sobre o

crescimento urbano da cidade após a década de 1970, vem se buscando apontar

algumas limitações existentes nesses trabalhos. Tomando como base desse diálogo a

História Oral, interrogamos tal processo incorporando à interpretação o olhar dos

moradores da cidade, construído a partir de sua própria experiência social na cidade.

Estágio Atual da Pesquisa (máximo 5 linhas)

a pesquisa vem sendo desenvolvida desde agosto de 2003 no programa de pós-

graduação / Mestrado da PUC / SP. O trabalho já produziu o levantamento e diálogo

com a produção acadêmica (bibliografia específica) sobre o tema. Alguns depoimentos

de moradores da área em estudo (seis no total) já foram arrolados. Atualmente, a

pesquisa tem se desenvolvido sobretudo no âmbito teórico.

resumo expandido da pesquisa

Na pesquisa que venho desenvolvendo no programa de mestrado da PUC / SP,

busco interrogar o processo de crescimento urbano experimentado em Foz do Iguaçu /

Paraná nas últimas três décadas (1970 - 2000), tomando como ponto de partida o

diálogo com experiências de moradores que viveram esse processo de crescimento e

reordenamento urbano na condição de ocupantes de áreas periféricas da cidade. As

chamadas invasões constituem portanto meu objeto de estudo.

Para elaborar esse trabalho, venho estabelecendo um diálogo com a historiografia

já produzida na cidade sobre esse processo. Para boa parte dessa literatura, o

crescimento urbano de Foz do Iguaçu pode ser explicado e entendido como reflexo

das políticas de urbanização e agenciamento de mão-de-obra desencadeados pela

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empresa Itaipu a partir da década de 1970. A construção dessa usina hidrelétrica,

iniciada em 1974, teria mobilizado um enorme contingente de trabalhadores que

teriam migrado de todos os lugares do Brasil e do Paraguai para o parque de obras

que ali se instalara. Esse monstruoso crescimento urbano teria se seguido em função

do desenvolvimento comercial e turístico da tríplice fronteira na década de 1980 e no

decorrer da década de 1990. Nessas narrativas, os sujeitos do crescimento e

desenvolvimento urbano de Foz do Iguaçu são, respectivamente Itaipu, Ciudad del

Este, Cataratas do Iguaçu, Mercosul, etc.

Com esse trabalho, busco pensar o surgimento dessas áreas de ocupação pela

cidade invertendo a perspectiva acima apresentada. Entendemos ser equivocado

explicar a cidade construída ao longo desses anos, especialmente as ações de seus

moradores, tomando-os como meros reflexos dos macro-projetos econômicos e

políticos levados a cabo na cidade durante esses anos. Aqui, chamamos a atenção

para o fato de que essa forma de abordagem esvazia os sujeitos (homens, de carne e

osso) de sua experiência, negando seu papel como ator e interventor na construção

da cidade.

Por isso, busco interrogar as trajetórias desses moradores — muitos dos quais

imigrantes — buscando perceber as diversas memórias que povoam o tecido urbano

dessa cidade, presentes no cotidiano, construídas nessa luta pela sobrevivência legal,

ilegal ou marginal nessa fronteira. Aqui, busca-se recuperar faces de uma cidade que

não vive apenas em função das Cataratas do Iguaçu, da Usina de Itaipu ou de outros

elementos apresentados como "sujeitos" do desenvolvimento da cidade. Interrogar

como esse processo foi construído, vivido e interpretado por esses sujeitos na luta

pela moradia e pelo direito a cidade consiste portanto no maior desafio da pesquisa.