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C ayla Kluver Alera A Princesa Herdeira T radução Maria José Figueiredo

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Page 1: A Princesa Herdeira - Planeta · xxx Medidas drásticas ... solto pelos ombros, ela tinha ... para além dos meus aposentos, dos da minha irmã e dos dos

Cayla Kluver

AleraA Princesa Herdeira

TraduçãoMaria José Figueiredo

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Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 -242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2009, Cayla KluverPublicado com autorização de

Taryn Fagerness Agency LLC e Sandra Bruna Agencia Literaria, SL

© 2009, Planeta Manuscrito

Título original: Legacy

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Guidesign

1.ª edição: Abril de 2011

Depósito legal n.º 326 471/10

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráfi cas

ISBN: 978-989-657-187-0

www.planeta.pt

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Í N D I C E

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

i A opção mais óbvia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

ii Um encontro pouco agradável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

iii Os inimigos dão -se a conhecer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

iv Traição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

v A Steldor pela calada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

vi Segredos e revelações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

vii Partida sem explicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

viii Um chá e uma conversa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

ix Boa pescaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

x Um encontro clandestino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

xi Regresso da mansão dos mortos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

xii O piquenique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136

xiii A sala dos dignitários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

xiv O confronto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

xv Um enigma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

xvi Propostas pouco sedutoras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188

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xvii Actos repugnantes e missões bem -sucedidas . . . . . . 199

xviii Práticas de defesa pessoal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

xix Tudo vê e tudo conta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

xx Nunca desarmado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237

xxi O maior pecado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246

xxii Um coração dividido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257

xxiii A Lenda da Lua que Sangra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268

xxiv O combate exibicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281

xxv É duro ser rei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293

xxvi O inimigo de fora e o inimigo de dentro. . . . . . . . . . . 308

xxvii Uma aula de história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318

xxviii Um Natal catastrófi co . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 330

xxix Um sinal de Cokyri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342

xxx Medidas drásticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354

xxxi Um apoio inesperado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368

xxxii Ultimato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382

xxxiii Com esta aliança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398

xxxiv Desejos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 411

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 421

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P R Ó L O G O

primeiro rapaz desapareceu no mesmo dia em queveio ao mundo. Nessa noite, a Lua amarelo -pálidaque dominava o céu fi cou vermelha, cobrindo ofi rmamento de uma pavorosa cor de sangue; aindanessa noite, o reino de Cokyri pôs abruptamente fi mao seu ataque impiedoso.

Por todo o território de Hytanica, continuaram a desaparecer das aldeias bebés do sexo masculino. O rei, numaatitude algo irrefl ectida, fi ngiu não se aperceber da situação,não procurando qualquer explicação para o facto; sentia umanecessidade desesperada de reforçar as defesas do reino, pois

receava que os cokyrianos recomeçassem a brutal chacina. Aca-bou por ser obrigado a prestar -lhe atenção quando começaram a

desaparecer crianças do interior das muralhas da cidade. Fez -se uma contagem do número de desaparecidos mas, antes de o soberano

decidir o que se havia de fazer, os desaparecimentos cessaram tão abruptamente como tinham começado. A última criança a desa-

parecer de Hytanica foi o fi lho recém -nascido de um abastadocasal de barões.

Uma semana depois, começara a Lua a perder a cor ver-melha, os corpos destas crianças, já em decomposição, foramencontrados do lado de fora das portas da cidade; era a última

palavra do maior inimigo que Hytanica tinha jamais conhe-cido. Os pais enlutados recolheram os corpos dos fi lhos para lhes

dar sepultura, mas durante muitos anos fi cou um mistério por

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resolver: tinham sido raptados quarenta e nove bebés, mas só foram devol-vidos quarenta e oito corpos.

Ninguém chegou a saber por que motivo se tinham os cokyrianos reti-rado, nem por que razão não tinham conseguido destruir Hytanica e oshytanicanos. Os cokyrianos eram superiores aos hytanicanos em termosde força e de estratégia, as suas acções não estavam constrangidas por qual-quer código de guerra, e no entanto Hytanica não sucumbira. Havia quempensasse que eles tinham desistido por frustração, porque a verdade é quehaviam estado muitas vezes à beira de vencer; como também havia quempensasse que os governantes cokyrianos tinham por fi m decidido reconhe-cer a verdade da antiga lenda relativa ao nascimento de Hytanica.

Dizia a tradição que, no intuito de proteger a sua casa, que corria orisco de ser destruída, o primeiro rei de Hytanica consultara os sacerdo-tes do reino; estes tinham -lhe revelado que um sacrifício de sangue real einocente consagraria o solo, tornando o reino invencível. Depois de muitorefl ectir, o rei matara o seu próprio fi lho, derramando algumas gotas dosangue do bebé nos quatro pontos cardeais do reino, a fi m de proteger parasempre o povo que amava.

Eu nasci pouco depois do fi nal da guerra. Sou uma princesa de Hyta-nica e a primeira herdeira dos meus pais. Ao tempo que o meu povo se ins-talava num período muito aguardado de paz, aprendendo de novo a levaruma vida normal, também eu fui crescendo, com uma vida de liberdadeque as gerações que me antecederam, devastadas pela guerra, não tinhamconhecido. Mas tudo isto terá de chegar ao seu termo, e é aqui que começaa minha história.

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I

A opção mais óbvia

cho que vou vomitar.E continuei a andar de um lado para o outro

diante da lareira de pedra que ocupava grande partede uma das paredes da minha saleta, com as mãosdiante do peito, engalfi nhadas uma na outra. A minhairmã mais nova, a princesa Miranna, tinha -se reti-rado para os aposentos dela, depois de me ter dado

um abraço e me ter garantido que seria uma noite maravilhosa.A minha irmã tinha quinze anos, a pele clara e as faces rosadas,um cabelo louro que lhe descia pelas costas abaixo numa cascatade ondas e caracóis, e estava muito mais enamorada do que eu

pelo homem com quem eu ia jantar. Na verdade, fora indubita-velmente uma motivação romântica que a tinha levado a mandar

embora a minha criada e a ocupar -se pessoalmente de mim. Quer o vestido de um cinzento -brilhante que me ataviava o corpo quer o

delicado medalhão de prata que me adornava o pescoço tinham sido escolhidos por ela; e, embora eu costumasse usar o cabelo – que

era castanho -escuro – solto pelos ombros, ela tinha -mo prendidoatrás com uma simplicidade estudada, deixando umas farripasa enquadrar -me os olhos quase pretos, adoçando -me as feiçõesangulosas. Por esta altura, a única pessoa que se encontravacomigo nesta saleta ricamente decorada era London, o meu

guarda -costas, que também era membro da Guarda de Elite do rei.– Não vais nada vomitar, Alera. Descontrai -te – recomendou-

-me London com uma expressão meio divertida. Depois avançou

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para junto do sofá e pegou num dos livros que eu tinha na mesa de apoio,começando a folhear com ar distraído.

– Como vou conseguir comer? – perguntei -lhe, e até eu percebi queestava a falar num tom acima do normal. – Acho que não sou capaz depassar por isto.

– Vai correr tudo bem. Ele é que é o pretendente, um entre muitos. Talcomo os restantes, é ele quem tem de te impressionar e não o contrário.Além disso, tanto quanto consigo perceber, o sujeito não te interessa, porisso não percebo por que razão estás nesse estado de nervos.

– Não percebes que – respondi eu em tom frenético –, se alguma coisacorrer mal, o pai vai fi car profundamente desiludido?

– Bem, a não ser que tenhas decidido casar -te com Steldor sem medizer nada, a verdade é que, a longo prazo, o teu pai vai mesmo acabar porfi car desiludido.

Parei e olhei para ele. London tinha voltado a pousar o livro em cimada mesa e fora encostar -se à tapeçaria que cobria a parede, com os braçoscruzados diante do peito musculoso. O cabelo prateado caía -lhe sobre a testanuma franja despenteada, que contrastava bastante com os profundos olhosazuis, que tinha fi xados em mim como se estivesse à espera de uma resposta.

– Mas eu não o suporto! Como vou passar um serão inteiro com ele?– É só um serão. Acho que consegues sobreviver a um serão – comen-

tou London. Depois hesitou. – Mas espero que te apeteça uma conversaromântica depois do jantar – prosseguiu. – Está um tempo óptimo para darum passeio ao luar no jardim.

– Ele não vai querer passear comigo ao luar, pois não, London? – Emborasoubesse que London estava a meter -se comigo, a hipótese a que ele fi zeraalusão não me divertia mesmo nada, de maneira que ele tentou rapidamenteafastar a nova preocupação que sem querer tinha gerado.

– Se quiser, diz -lhe que não te sentes bem e que tens de voltar imedia-tamente para o quarto. Contra isso, ele nada pode.

Deixando -me cair numa das cadeiras de braços elaboradamente talha-das que tinha diante da lareira, tapei a cara com as mãos e soltei um gemido.Fora o meu pai, o rei Adrik, a combinar este jantar com Lorde Steldor, queera o jovem que ele preferia para meu futuro marido. O meu pai confi avaem Steldor e achava que não havia no reino outro tão capaz como ele devir a ser rei. E esse era o único critério de escolha de um marido para mim,

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porque, apesar de ser eu a herdeira do trono, seria o meu marido, e não eu, a reinar em Hytanica.

E, por muito que me desagradasse, até eu tinha de admitir que Steldor era a opção mais óbvia. Três anos e meio mais velho que eu, era fi lho de Cannan, o capitão da guarda, e há um ano, aos dezanove, tornara -se comandante -de--campo do exército. Era um jovem forte, simpático, inteligente e espantosa-mente belo, mas que me desagradara desde a primeira vez que o vira.

Uma pancada seca na porta interrompeu -me os pensamentos. London saiu para o corredor, para falar com o criado que tinha vindo chamar -me, e eu levantei -me.

– Temos de ir andando – observou ele, voltando a entrar na saleta. – Steldor já chegou e está à tua espera no vestíbulo principal.

London abriu a porta para me dar passagem e percorremos juntos os corredores do segundo andar da residência real, dirigindo -nos à escada privativa da família, que fi cava situada na parte de trás do palácio. A Resi-dência albergava, para além dos meus aposentos, dos da minha irmã e dos dos meus pais, uma biblioteca, uma sala de jantar, uma cozinha e a sala onde tínhamos as nossas lições, que também servia de sala de estar. A real sala de baile e a sala de jantar do rei eram as únicas zonas do segundo andar que eram usadas para eventos públicos.

Descemos a escada em caracol – era uma escada apertada – e London ofereceu -me o braço, seguindo a meu lado pelo corredor fora em direcção à entrada principal do palácio. Mal atentei nas intrincadas tapeçarias que adornavam as paredes, iluminadas pelas lamparinas que também nos alu-miavam os passos, porque me concentrei na fi gura de Steldor, que estava à minha espera na outra extremidade do corredor, a mão esquerda descon-traidamente apoiada na parede enquanto fazia voltear e revirar o punhal com a direita, dando a sensação de que tinha optado por aquela pose para conseguir impressionar -me.

– Diverte -te! – recomendou -me London com um ligeiro sorriso, detendo -se a meio do caminho ao verifi car que Steldor já se tinha aperce-bido da minha presença.

– Não me vais deixar sozinha com ele, pois não? – perguntei, um tanto nervosa.

– Não. Em minha opinião, há poucas ocasiões em que tenhas preci-sado tanto da minha protecção como esta noite. Além disso, se te deixasse

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sozinha com ele não seria grande chaperon; mas vou tentar proporcionaruma certa privacidade aos dois pombinhos.

– Estás a divertir -te à minha custa – queixei -me sem desviar os olhos deSteldor, que tinha metido o punhal na bainha, presa a uma das botas (eleusava botas até ao joelho), e avançava a passos largos em direcção a nós.

– Se queres saber a verdade – confi denciou -me London –, vou evitaraproximar -me muito, para não ter a tentação de ser eu a dar cabo dele, emvez de seres tu.

A súbita mudança de estado de espírito do meu guarda -costas apa-nhou -me de surpresa, mas não tive tempo de lhe responder, porque o belojovem que seria meu acompanhante esta noite estava a chegar ao pé demim. Embora viesse vestido com menos formalidade do que era habitualnele – camisa branca e colete cinzento -escuro com umas tiras de verme-lho nos ombros –, Steldor tinha um porte que tornava elegante qualquercoisa que envergasse. Era um homem alto e musculoso, de ombros largos,cabelo castanho muito escuro, quase preto, que ele usava solto, sem gran-des cuidados, até abaixo dos malares salientes; os olhos, contornados porcompridas pestanas de ébano, eram de um castanho -escuro e ardente quefazia desfalecer as mulheres, e o sorriso, de dentes muito brancos e alinha-dos, era irresistível. Tive um arrepio quando me apercebi de que, graças aovestuário que ambos tínhamos escolhido, como ao facto de sermos ambosintensamente morenos, éramos um par perfeito.

– Mylady – cumprimentou -me ele, beijando -me a mão com umavénia. – Permite -me que te acompanhe à sala de jantar – disse depois,percorrendo -me a fi gura com um olhar de aprovação.

Steldor atraiu -me a si ao mesmo tempo que lançava um olhar de pou-cos amigos ao meu guarda -costas e eu tive a certeza de que a atitude deLondon era de quem o avisava de que levava a sério as suas obrigações paracomigo. Enquanto percorria a segunda metade do corredor pelo braço deSteldor, os apetitosos odores que emanavam da cozinha abriram -me o ape-tite, e ocorreu -me, não sem um certo pesar, que aquela noite me daria pelomenos direito a uma refeição deliciosa.

A sala de jantar do primeiro andar era destinada a refeições íntimas.Tinha duas lareiras de mármore, uma de cada lado, e ao centro uma mesarectangular, com lugar para quarenta e cinco pessoas; por cima da mesa,três candelabros de velas em várias camadas (todas acesas) e ao longo das

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paredes, a intervalos regulares, lamparinas a óleo. Na outra extremidade da sala, diante de uma janela de sacada com vista para o pátio ocidental do palácio, fora posta para nós uma mesa pequena, coberta com uma toalha de linho branco e subtilmente iluminada por duas velas de chamas treme-luzentes, que juntavam a sua luz aos últimos vestígios do Sol, fi ltrados pela vidraça. Sentei -me diante de Steldor e ele serviu -me um copo de vinho, que aceitei com uma certa hesitação, pois gostava tanto – ou tão pouco – de vinho como do homem que me estendia a taça.

– Tenho de te dizer – observou ele – que estás esta noite excepcional-mente bela, Alera.

Fez uma pausa, como que a permitir -me que correspondesse com cumprimento igual e, vendo que tal não acontecia, lançou -me um sorriso impertinente.

– Estou habituado a que as raparigas que me acompanham se vistam bem, mas são poucas as que têm a extraordinária preocupação de se vestir a condizer comigo.

Fiquei espantada com semelhante desfaçatez, mas ele prosseguiu antes de eu ter tempo de formular uma resposta adequada e cáustica.

– Pareces -me um tanto abalada… mas talvez seja da fome, embora seja verdade que eu costumo ter esse efeito sobre as mulheres. Ficas melhor quando começares a comer. – E estalou os dedos, indicando ao criado que podia começar a servir -nos. – E nessa altura talvez consigas também recu-perar a fala.

Olhei a direito para este homem com quem o meu pai queria que eu me casasse, sem saber bem como lidar com esta atitude de excessiva familiaridade. A entrada do pessoal da cozinha, com as travessas de legu-mes, uma variedade de qualidades de pão aquecido e uma galinha assada, livrou -me de ter de responder.

Steldor mandou embora os criados com um brusco gesto de cabeça, após o que começou a trinchar a galinha, servindo -nos aos dois. Come-mos em silêncio durante uns minutos, embora eu tivesse difi culdade em engolir grande coisa, porque ele continuava a observar -me, intensa e des-caradamente.

– Espero que venhamos a passar muito tempo juntos – disse por fi m, e a voz dele era uma combinação bem ensaiada de mel e desprezo, com uma suavidade de veludo dominada por uma sugestão de fastio que nem ele

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conseguia ocultar. – Embora seja preferível advertir -te de que o exército exige muito de mim. É uma vida que me agrada, naturalmente. Quando frequentei a Academia Militar, os meus instrutores de combate estavam sempre a dizer que eu era o melhor do meu ano e talvez mesmo de toda a história da escola; não sendo embora o mais alto da minha turma, era sem dúvida o mais competente e, como certamente será do teu conheci-mento, estava toda a gente espantada com os progressos que eu fazia. De tal maneira que terminei o curso um ano antes do previsto.

Empurrou um pouco o prato para a frente, a fi m de poder apoiar estu-dadamente o braço esquerdo na esquina da mesa.

– Depois de ter passado quinze meses como soldado raso, passei para a escola de ofi ciais e fui o mais jovem comandante -de -campo da história de Hytanica. No entanto, apesar das exigências do cargo, ainda consigo arranjar tempo para treinar os alunos da Academia no combate corpo a corpo; os instrutores da Academia Militar continuam a ter -me em elevada estima e recorrem a mim com frequência.

Durante todo este discurso, reparei que ele prestava mais atenção aos gestos que fazia do que àquilo que dizia; os movimentos dele eram de tal maneira fl uidos que pareciam quase ensaiados. Ao terminar a refeição, recostou -se na cadeira, agitando devagar o vinho no interior da taça, de novo numa pose perfeita.

– Não é que eu tenha feito alguma coisa de especial para conquistar esta admiração – prosseguiu jovialmente, com uns vestígios de condescen-dência na voz. – Acontece que nasci com talentos invejáveis, pelo que era natural que viesse a tornar -me favorito. Compreendes que assim seja, não compreendes, Alera? Passa -se o mesmo contigo.

– Passa -se o mesmo comigo? Em que sentido? – perguntei eu, conse-guindo por fi m replicar a semelhante arrogância.

– Ela fala! – comentou ele com uma entoação suavemente trocista. – Bem, tu não pediste para nascer na família real, pois não? – prosseguiu, já em tom prático. – Pois eu também não pedi para ser o homem mais admirado do reino.

– Mais admirado que o meu pai? Bem, nesse caso, calculo que deva sentir -me profundamente honrada por me encontrar aqui contigo.

– A maioria das mulheres sentir -se -ia de facto honrada. Mas, como tu és a princesa herdeira, tens o direito de te sentir apenas agradada.

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A agitação que sentia no estômago já não podia ser devida ao nervo-sismo. Steldor tinha realizado um feito novo: a sua simples presença dava--me volta às entranhas.

Vendo que eu não lhe correspondia, olhou de relance para a outra extremidade da sala, onde London se encontrava sentado numa cadeira, com os pés em cima da mesa rectangular.

– É uma pena não podermos dispensar o teu guarda -costas, não é?– Do teu ponto de vista, talvez.– Não te sintas ofendida, princesa – pediu ele com uma pequena garga-

lhada de auto -satisfação. – Queria apenas dizer que, se estivéssemos sozi-nhos, talvez conseguíssemos tornar esta situação um pouco mais… íntima.

E, inclinando -se, estendeu a mão para a minha, os olhos escuros observando -me preguiçosamente, como se eu fosse um presente que ele se preparava para desembrulhar.

– E não achas que isso seria um tanto impróprio? – censurei -o, pegando no guardanapo para lhe frustrar o gesto.

– E tu nunca fi zeste nada que fosse impróprio, princesa? – perguntou ele com voz arrastada e uma expressão de insuportável auto -satisfação. Vendo que, como resposta, eu me limitava a corar intensamente, levantou--se. – Dado que não pareces ter assim grande fome, que tal trocarmos a sobremesa por um passeio ao luar?

Tentei pensar numa desculpa, recordar -me dos conselhos de Lon-don, mas o meu cérebro tinha deixado de funcionar. Esse facto, combi-nado com uma impossível secura na boca, impediu -me de retorquir fosse o que fosse.

– Tomo esse silêncio como um sim – declarou ele, metendo -me a mão por baixo do cotovelo para me levantar. – Vamos até ao jardim?

Steldor contornou -me a cintura com o braço quando começou a conduzir -me para o exterior e London pousou os pés no chão com estrondo, para nos chamar a atenção para a sua presença. Depois levantou--se e trocámos um breve olhar.

– Não precisas de andar atrás de nós – declarou Steldor, mandando -o embora com um gesto. – A rapariga está em boas mãos.

– É uma afi rmação interessante, tendo em conta a tua fama – replicou London com frieza, dando a entender que não estava disposto a perder de vista o fi lho do capitão.

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Descemos o mesmo corredor por onde tínhamos vindo, dirigindo -nos à parte de trás do palácio e à pesada porta dupla que dava para o jardim, que se estendia desde as traseiras do palácio até à zona norte da cidade muralhada. Para além da muralha da cidade, que tinha doze metros de altura, estendia -se a fl oresta que ocupava as encostas escarpadas das mon-tanhas de Niñeyre.

Steldor cumprimentou os guardas do palácio que estavam postados à entrada, após o que segurou uma das portas para eu passar, mas vacilei, pois não sentia vontade alguma de ir passear com ele ao lusco -fusco; não tinha a menor confi ança neste homem.

– Não me parece que isto seja boa ideia – declarei, continuando a ten-tar exprimir -me com clareza e ciente de que os meus periódicos lapsos discursivos estariam muito provavelmente a ser entendidos como agitação juvenil, quando na realidade aquilo que eu mais queria era que o encontro terminasse.

– Claro que é… está uma noite linda.– Estou com algum frio e não trouxe nada para me agasalhar – insisti,

embora sem grande convicção. A esta hora, a temperatura ainda era con-fortável mas, dado que estávamos no princípio de Maio, era possível que refrescasse com o cair da noite.

– Não te afastes de mim, princesa, e eu garanto -te que não terás frio.Acenei com a cabeça e ele voltou a enlaçar -me pela cintura para me

conduzir para o exterior; um dos guardas do palácio assinalou a minha presença, em alta voz, aos colegas que patrulhavam a zona, alertando -os para o facto de eu me encontrar no jardim.

As estrelas começavam a luzir no céu nocturno e nós percorremos lentamente as veredas de pedra que serpenteiam pelo jardim murado, dividindo -o em secções. Embora houvesse tochas acesas ao longo de todo o perímetro, a luz vacilante das chamas não penetrava nas profundezas do jardim, onde a Lua era o nosso único guia. Steldor conduziu -me para uma das quatro fontes de mármore branco que fi cavam localizadas ao longo do carreiro principal e eu tive a certeza de que, para ele, o ambiente que nos rodeava era espectacularmente romântico; quanto a mim, posso dizer que o que na verdade sentia era um grande receio.

Steldor deteve -se ao lado de um banco que tinha sido colocado ao pé da fonte e, sentando -se, puxou -me para baixo, fazendo -me sentar a

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seu lado. Depois, tomou as minhas mãos nas suas e olhou -me nos olhos, explicando -me em silêncio que o seu interesse por mim era muito anterior à minha consciência do mesmo; o coração começou a bater -me com toda a força no peito, de apreensão em relação àquilo que ele faria a seguir.

– Tu encantas -me, Alera – sussurrou, aproximando -se mais, e eu senti--me tonta com o odor intenso e sedutor que dele emanava; era um cheiro profundo e almiscarado, no qual se sentia o calor da noz -moscada e da canela, entretecido com um leve toque a violeta. Enquanto aquela fragrân-cia me invadia, ele começou a brincar com um caracol do meu cabelo, após o que fez deslizar suavemente a mão por trás do meu pescoço, encostando os lábios aos meus, num beijo fi rme e indesejado.

Eu afastei -me, de olhos muito abertos, espantada com gesto tão pre-sunçoso e, por instantes, ele pareceu -me quase irritado; mas depois deixou cair a mão com um sorriso velhaco.

– Não fazia ideia que seria o teu primeiro beijo – troçou, e eu senti as faces a arder. – Não é que eu me importe, claro. Acontece que és mais inexperiente do que eu imaginava.

E estendeu a mão para me tocar no colar, afagando -me ao de leve a clavícula.

– Isto signifi ca, como é evidente, que haverá muitos outros primeiros.Olhei para ele indignada, enquanto procurava palavras capazes de

exprimir os meus sentimentos. No momento em que ele parecia preparar--se para voltar a beijar -me, uma voz veio interromper -me a humilhação, a incredulidade e o desagrado, interrompendo simultaneamente o novo avanço do meu pretendente.

– Princesa! – chamou London, tornando -se visível. – Lamento ter de te interromper, mas surgiu uma emergência no palácio e tenho de te levar para os teus aposentos. Tens de vir de imediato comigo.

Levantei -me de um salto, tomada de profundo alívio, e só por pouco não desatei a correr para junto do meu guarda -costas. Steldor também se levantou, mas de sobrolho franzido, fazendo tenções de me acompanhar; London, porém, levantou a mão.

– Vais ter de te ir embora. Este assunto não te diz respeito.Steldor olhou para London com ar irritado, como que tentando

intimidá -lo, mas o meu guarda -costas correspondeu àquele olhar com sere-nidade. Descontando o facto de London ser ligeiramente mais baixo que o

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meu pretendente, os dois homens estavam bem um para o outro; tinham até a mesma aparência de juventude, embora London tivesse quase o dobro da idade de Steldor, e esse era um dos factos que faziam do homem sob cuja sombra protectora eu vivia há dezasseis anos um mistério para mim.

Ciente de que London, que era vice -capitão da Guarda de Elite, estava hierarquicamente acima dele, Steldor recuou. Eu encaminhei -me apressada para casa na companhia do meu guarda -costas, sem sequer olhar para trás, mas imaginando que o meu acompanhante daquela noite, vendo o seu encontro subitamente interrompido, tivesse entrado no palácio pouco depois de nós e atravessado o corredor a passos largos e decididos.

– Tinhas razão, esta noite eu precisava mesmo de ser bem protegida – confessei, não sem uma certa hesitação, quando London e eu íamos a subir a escada em caracol reservada aos membros da minha família.

– Pois precisavas.Era evidente que London tinha perdido o sentido de humor a respeito

daquele encontro, parecendo antes fumegar por dentro, embora eu não conseguisse perceber se a irritação era com Steldor ou consigo mesmo.

– E o teu pai quer que tu te cases com aquele porco? – murmurou ele.– Aparentemente.Fiquei surpreendida com a sinceridade com que London expressou

a sua opinião sobre Steldor. Eu sabia que ele não tinha a melhor das opi-niões sobre o homem que o meu pai escolhera para meu marido e sentia--me agradecida por ter alguém com quem partilhar o meu ponto de vista, mas até esta altura ele limitara -se a ouvir as minhas queixas, sem nada responder.

Recordando -me do beijo de Steldor, comecei a limpar a boca, repug-nada. London reparou no que eu estava a fazer e ergueu uma sobrancelha num gesto sardónico.

– Calculo que não era assim que tinhas imaginado que seria o teu pri-meiro beijo.

– Mas por que toda a gente acha que foi o meu primeiro beijo? – per-guntei, irritada com o facto de a minha vida ser tão transparente.

– Não te esqueças de que estás a falar comigo – replicou ele com um sorriso cúmplice.

Eu desviei os olhos, desejando conseguir impedir -me de corar.

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– Bem, seja como for – prossegui –, ainda bem que tu apareceste. Quem sabe que mais teria ele em mente.

– Não tinhas pensado em lhe dizer que te sentias maldisposta se as coisas começassem a dar para o torto?

– Sim, mas quando estávamos os dois sentados naquele banco, come-cei a ter difi culdade em pensar. Ele tem um espantoso… – E calei -me, per-dida a batalha para evitar que a cor me subisse às faces.

– Um espantoso quê?– Cheiro, tem um cheiro espantoso – concluí na defensiva, com as

faces em chamas.– O homem cheira bem? – arreliou -me London com uma grande garga-

lhada. – Como se ele precisasse de mais algum traço para atrair as pessoas! Para além de tudo o que tem, ainda cheira melhor que os outros todos!

Ao chegar aos meus aposentos, entrei na saleta, dei as boas -noites a London e fechei a porta. Ele ia agora retirar -se para a ala leste, para a zona do primeiro andar onde vivia a maioria dos guardas solteiros. Como meu principal guarda -costas, era seu dever proteger -me desde que eu acordava até que me retirava; durante a noite, os corredores eram regularmente patrulhados pelos guardas do palácio.

Arrastei -me pela saleta fora em direcção ao meu quarto, sentindo as pernas pesadas de fadiga. Ao entrar no quarto que era o meu refúgio desde que me lembrava, deixei -me cair na cadeira que estava diante do toucador, tirei os ganchos do cabelo e abanei a cabeça, deixando cair sobre os ombros os pesados caracóis. Olhei para o espelho, permitindo que os meus olhos vagueassem pelos móveis e os objectos nele refl ectidos, que tão bem conhecia: a cama de dossel de dimensão generosa, coberta por uma manta de cor creme e por uma série de almofadas de penas, delicio-samente macias; um par de canapés de almofadas altas e cor -de -rosa que me acenavam diante da lareira; uma casa de bonecas e mais uns quantos brinquedos da minha infância, entre os quais um pião e uma corda de sal-tar; e várias estantes a abarrotar de livros.

Levantei -me, atravessei o quarto afundando os pés na carpete espessa e fui abrir uma das portas duplas de madeira que davam para a varanda. Sentindo uma brisa fria tocar -me na pele, estremeci, mas nem por isso dei-xei de sair para o exterior, enquanto esperava por Sahdienne, a jovem loura de cara redonda que era a minha criada pessoal. Durante o dia, conseguia

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avistar daquela varanda o terreno ondeado que se estendia até ao lago que assinalava a fronteira ocidental do nosso reino. À noite, porém, só conse-guia ver aquilo que o luar me permitia discernir: as formas imprecisas dos edifícios da cidade, por esta altura mergulhados em sombras.

Ao ouvir estalar a porta do meu quarto, voltei para dentro; Sahdienne desapertou -me o vestido e correu as cortinas da janela que fi cava à direita da varanda, enquanto eu vestia a camisa de noite. Meti -me por baixo das cobertas da cama, aninhei a cabeça entre as almofadas e adormeci antes de ela ter acabado de arrumar o quarto.