a prática da reportagem- ricardo kotscho

Upload: mara-menezes

Post on 09-Jul-2015

1.451 views

Category:

Documents


15 download

TRANSCRIPT

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    1/41

    -Hi

    .19

    SO

    :J

    ;~2

    53

    54

    55

    56

    57

    t " "{

    60(61

    62

    i ,'):3-,')~

    ' J' :_)

    C)"e!to ~~JusIC1:\ :unl,;;io SOCi:l! do Jddic:;HOJose Eduardo Far ia lorg. )T eoria co romanceDonalda SchuerO fot ei ri5t a o to ft s c .ona!TV ~ cnemaMarcos Rey-1)1")11(;0 ce uaqameoto s 'In iv c !a exr e rn aPauo Sandrom,~ esutisucaJose Lemos Montero+evou.cnes do BrasilContempor aneo;1922-1938\Edgard CaroneO sqnticndo eta Sl!gt;r~daGuerra Mund

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    2/41

    Direl;aoBenjamn Abdala JuniorSamra Youssef CampedelliPreparal;ao de textoEgan de Oliveira Rangel

    ArteCoordenal;ao eprojeto grafico (miolo)Antonio do Amaral Rocha

    Arte-finalRene Etiene ArdanuyCapaAry A. NormanhaAntonio U. Domencio

    B IBL /o rECA CENTRALFA MIGN " . DcREGIS~O: OD q'1D A T A : 0L V uTrro .i M U R I A E _ o M G _~ . *~~\~:ESI>:FC..~eeb?T. . . . . _

    m

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    3/41

    5. Perfil 42Um personagem raro 43Elis Regina 44Sonia Braga 45Um velho palhaco

    45"Urn dia na vida de ... " 46

    6. Levantamento 49Mordomias 49Quais os limites da "abertura"? 52"Comunismo internacional"? 53

    7 . Drama social 57o enfoque social na Editoria de Policia 58A Iorne tem nome 66"Guerra urbana" _67Contar ou nao uma historia real? 68

    8 . Grande reportagem 71Transamazonica 72Vale do Jequitinhonha 74Projeto Carajas 77

    II(,~

    1 - ". .~. .( .I ". . .: j

    .. .

    Pretaclo

    Nos ultimos dez ou quinzeanos, em qualquer rodinha dejornalistas neste pais, sempreque se fala de reporter/reporta-gem, [ala-se de Ricardo Kotscho.Tornaram-se quase sinimimos. 'por isso que um livro sobre re-portagem assinado por RicardoKotscho tem a [orca que so apalavra de um especialista lheconfere.

    E tem, tambem, uma vanta-gem adicional: Ricardo preferiusempre a chamada reportagemgeral, em um universo que seencaminha, rapida e inexoravel-mente, para a especializaciio.Por isso, ele pode ensinar, nateoria e na pratica, como se fazpara, com 0 mesmo brilho,transitar por assuntos tao diie-rentes como polit ica e policia, avida e a morte, a violencia naArgentina e a eleiciio de umPapa.

    Entiio, nas pdginas seguintes,conselhos simples sobre a ma-

    neira de enjrentar os desafiospara 0 reporter em qualquer cir-cunstancia: na solidao de re-cantos perdidos no [undao doBrasil ou na cr.mpanhia de todauma equipe de reporteres envol-vida no levantamento de dadospara uma mesma reportagem. Narotina, a s vezes tediosa, e naemergencia, quase sempre suio-cante.

    E niio sao apenas conselhos,que, isso, todo mundo acha quepode dar. Da teoria, passa-seinstantaneamente a pratica, naforma da reproduciio de textosnascidos exatamente da maneiracomo Ricardo Kotscho encaroucada um desses desafios. Fica fa-cil, assim, para 0 leitor, julgarno ato se os conselhos valem ouniio,

    De minha propria experienciapessoal de 22 anos de jornalis-mo, posso me antecipar e aiir-mar, com convicciio, que valem.CL6vIS ROSSI

    !I

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    4/41

    . . .

    1Uma opcao de vida

    Nos tempos mais bravos da ditadura, em que os reporteres maisfalavam do que publicavam - escrever, ate que escreviam, masa censura cortava quase tudo - meia duzia de tres ou quatrosonhadores viajava por esse Brasil para participar de seminaries,simposios, mesas-redondas, qualquer coisa, enfim, que se inven-tasse para romper 0 silencio.Os convites eram geralmente de escolas ou sindicatos, e aspessoas que iam a esses encontros nao se limitavam a perguntar

    coisas sobre a nossa profissao. Perguntavam de tudo, como seo reporter, naquele momento, fosse 0 detentor de todas as res-postas no pais da censura e da tortura.Participei durante muito tempo dessa quixotesca caravana semrumo certo, relatando as dificuldades vividas, as esperancas surgi-das aqui e ali para que urn dia pudessemos sair desse atoleiro.Muita gente nao entendia como e que, diante de tantos obstaculos,alguem ainda pudesse gostar desse offcio de reporter.E me lembro que dava sempre a mesma resposta: antes deser mera opcao profissional, este offcio e uma opcao de vida.Os mais velhos falavam que 0 Jornalismo e urn sacerdocio - etinham razao. Eu, por exemplo, queria ser padre, mas como padrenao pode casar e a unica coisa que sabia fazer era escrever, fui

    --.... ..~... - .------.- .. ~.'"'"'----~....- . -.-.-.. - - .i C , / f 3 L . / ( ) T E C ) . A (:l-~)\jTR,ij!_ r:/\fl/l"'_.~-~~:_~LJf \~, . !~. . "1~ :. ,0,-

    .""" ~- ..--~ ~--,- '-''''- _- . . . ., . . . . . , . - . _ . _ _ . ., , .

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    5/41

    8 UMA OPC;.ilODE VIDA

    muito cedo trabalhar numa redacao de jornal, a Folha Santamaren-se, que ja nem existe mais.Nao basta, porem, saber - ou pensar que sabe - escrever.Ser reporter e bem mais do que simplesmente cult ivar belas-letras,

    se 0 profissional entender que sua tarefa nao se limita a produzirnoticias segundo alguma formula "cientifica", mas 5 a arte deinformar para transformar.Por um motivo muito simples: e Jornalismo nao e uma cienciaexata. As tecnicas, qualquer um aprende em pouco tempo. Mas,antes de comecar a escrever, 0 reporter tem que definir bem defi-nido porque escolheu essa profissao, 0 que quer dela. Se for

    dinheiro, prestigio ou seguranca, melhor desistir logo, porque dFemexistir mil opcoes mais atraentes. 0 reporter so deve ser reporterse isso for irreversivel, se nao houver outro jeito de ganhar a vida,se alguma forca maior 0 empurra para isso.Que Iorca sera essa? Isso e tao dificil explicar como definiro amor. Daf a dificuldade de se fazer um livro teorico sobre Jorna-lismo. Como explicar, como definir, como conceituar, se nao haregras, formulas, receitas? Ate porque, se as houvesse, todos os

    jomais seriam iguais e todos os reporteres escreveriam da mesmaforma.o que procurei fazer neste l ivrinho foi responder por escri toe numa certa ordem as perguntas mais habituais que me fazem osestudantes e profissionais por ai, utilizando exemplos concretos dematerias em lugar. de nebulosas teorias. Se pedissem esse trabalhoa outro reporter, ele certamente faria diferente - e reside at 0Iascinio desta profissao, a sua multiplicidade de estilos e ideias, averdade nunca pronta, acabada.

    Pode-se fazer uma reportagem de mil maneiras diferentes, de-pendendo da cabeca e do coracao de quem escreve, desde que essapessoa seja honesta, tenha carater, principios, Nao, nao estou fa-lando da tal "objetividade jomalistica", da "neutralidade" do repor-ter, essas bobagens que inventaram para domesticar os profissionaisque nao se dobram aos poderosos de plantae, porque tern umcompromisso maior com seu tempo e sua gente. Esse compromissoe que tem de nortear sempre 0 nosso trabalho - 0 resto a gentevai aprendendo com 0 tempo. 0 leitor tem 0 direito de saber 0que pensa, de que lado esta aquele que the escreve - e uma infor-macae a mais para que ele possa tirar suas proprias conclusoes,

    .. .UMA OPC;.ilODE VIDA 9

    Voce vera pelos exemplos das materias aqui lembradas nestelivro que elas abrangem um periodo muito duro, muitas vezesamargo, sofrido, mas em que nunca deixou de faltar esperanca.Nao foi porque 0 reporter quiscsse falar mais das coisas ruins doque das coisas boas. Assim foi, simplesmente - e coube ao repor-ter retratar a realidade tal como ela era, lutando sempre para trans-Iorma-la naquilo que tem de errado, injusto, desumano. So assimvale a pena ser reporter, apesar de tudo, em qualquerepoca e emqualquer lugar.

    a l a L i O T E C A C E N T R A L F A , M I GFACUlDAOE MINASG ERAIS- MUR~AE~_9.. .~ - - - - - - - - - - - - - - - - -

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    6/41

    . .

    2o dia-a-dia

    . ( Quando ha urn grande assunto, e Iacil: 0 jornal chama logoseus melhores reporteres, mobiliza sucursais e correspondentes,aciona 0 departamento de pesquisa e monta urn esquema especialde edicao. Joga tudo naquele assunto, enfim. E 0 que acontecenas grandes tragedias, nos momentos de crise politica, nas copasdo mundo.o problema e que os concorrentes tambem fazem a mesmacoisa. E, no dia seguinte, os jornais saem mais ou menos parecidos,com coberturas extensas, mas geralmente sem gran des novidades. Asradios e as televisoes tambem ja terao explorado 0 grande assunto,o que realmente diferencia urn jornal do outro - e, em con-sequencia, urn reporter do outro - e a sua capacidade de trans-formar os pequenos fatos que fazem 0 dia-a-dia da cidade, dopais e do mundo em materias boas de ler. Afinal, 0 jornal tern quesair todos os dias e sao raros os assuntos realmente excepcionais.

    A pauta 0 reporter que ficar esperando 0 grande assunto Ihecair nas maos para fazer a grande materia da suavida vai e morrer de inanicao. Em media, os grandes jornais co-

    . .A PAUTA II

    brem uns cern assuntos por dia, e nao ha pauteiro, por mais genialque seja, capaz de criar cern pautas brilhantes para atender a todosos reporteres.

    Antes de mais nada, 0 reporter de "geral", que cobre 0 dia-a--dia - e todos nos comecamos e morremos profissionalmentefazendo 0 arroz com feijao dos jornais, essa e que e a verdade -,tern que' ter iniciativa, Rei vinte anos, quando comecei, nem pautahavia. A medida que os fatos despencavam sobre sua mesa, 0chefe de reportagem ia charnando quem estava mais por perto emandava fazer a materia. Ou 0 reporter mesmo ficava sabendopor alguma Ionte sua de urn born assunto, avisava 0 chefe e iapara a rua.o crescimento dos jornais e das redacoes tornou necessaria ainstituicao da pauta, principal elo de ligacao entre a producao ea edicao das materias, Em outras palavras, era preciso organizara bagunca para saber quem estava fazendo 0 que. Mas, se a pautaserviu para organizar e planejar melhor 0 jornal, de outro ladolevou a acomodacao do reporter, que aos poucos foi-se tornandouma figura passiva no processo, mero cumpridor de ordens cadavez mais detalhadas distribuidas pelas chefias.

    Ficar, porem, criticando a burocratizacao dos jornais e a galo-pante falta de criatividade dai resultante nao vai melhorar em nadaa vida dos que vivem de fazer reportagem, os "filhos da pauta"- principalmente se eles estiverem comecando agora.

    A melhor solucao ainda e aquela que os antigos me ensina-ram quando ainda nao existia a tal da pauta: e garimpar bonsassuntos, cultivando suas fontes, mantendo as antenas ligadas diae noite, onde estiver. Nao tern outro jeito: seja qual for seuhorario de trabalho, 0 reporter tern que chegar cedo ao jornal eir logo propondo uma boa materia para fazer. 0 chefe de repor-tagem, ou 0 pauteiro, ficara aliviado, porque e urn a menos comquem se preocupar (Iembre-se: eles ganham para dar service aosoutros, e tern que Iaze-lo mesmo quando nao ha bons assuntos napauta) .

    Se voce nao e de acordar cedo, como eu e a maioria dos repor-teres que conheco, tente deixar uma pauta ja encaminhada navespera, Na pior das hipoteses, procure chegar a redacao quandoa pauta ainda est a sendo montada. Em ultimo caso, se voce naoconseguir nada de born para Iazer, de uma olhada nas sobras dapauta (todo dia, menos nos fins de semana, costuma haver mais

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    7/41

    11 0 DIA-A-DIA

    assuntos a serem cobertos do que rep6rteres) e proponha umatroca. Nenhum chefe, por mais cioso da sua autoridade que seja,vai querer que voce Iaca uma porcaria se houver alguma ideiamelhor.

    Esgotadas todas as tentativas de ja sair da redacao com umaboa pauta, entao 0 neg6cio e botar na cabeca que muitas vezessomos obrigados mesmo a tirar leite de pedra. De uma de artistae faca de conta que voce esta com a melhor materia do dia namao. Pegue so 0 tema que the deram, esqueca 0 resto da pautae va a luta - afinal, voce e um rep6rter, e nao um mere preen-chedor de formularies. Ate 0 final do dia, mesmo que aqueleassunto nao tenha rendido nada, no meio do caminho voce poderatropecar num assunto melhor. Na redacao, lamentando-se da sorte,e que isso nao vai acontecer.

    Lugar de reporter Com pauta ou sem pauta, lugar de re-e na rua porter e na rua. E la que as coisasacontecem, a vida se transform a emnoticia. Muitas vezes, quando ficamos sem assunto, 0 veteranoIotografo Gil Passarelli e eu saimos sem pauta nenhuma, semdestino certo - e nao me lembro de termos voltado algum diasem materia.Mesmo um assunto rotineiro como uma enchente na cidade,por exemplo - muito sol ou muita chuva serao noticia ate 0 fim

    do mundo -, pode acabar rendendo materia assinada na primeirapagina, se voce ja nao sair da redacao derrotado com aquele papo:po, outra vez essa mesma droga, justa comigo ... Reporter costumareclamar muito de tudo, faz parte do oficio, mas mesmo chiandotem que sair na chuva e se molhar. Foi 0 que aconteceu comigonuma das enchentes do verao de 83. Fim de tarde, materia quasepronta, 0 chefe me mandou dar uma volta pela cidade, porque achuva estava apertando. Xingando 0 mundo, escrevi a enesimamateria sobre enchentes em Sao Paulo. E a materia virou man-chete do jornal e foi publicada, na integra, na primeira pagina,Trechos dela:

    As Marginais alagadas, 0 Tamanduatei transbordando, 0 caos emtoda a cidade (da Praca da Se ate a extrema perlferia), caminh6es doCorpo de Bombeiros andando na contrarnao pela Rua da Consclacao,

    . .CADA HIST6RIA E . UMA HIST6RIA 13

    o histerlco e lnuti! barulho das sirenes por toda parte, gente ilhada,carros boiando, 0 entulho tomando conta das calcadas - e 0 pre-feito Antonio Salim Curiati desaparecido desde as 11 h da martha,quando foi visto pel a ultima vez despedlndo-se de Paulo Maluf, emBrasilia, para on de viajara na vespera, com 0 unlco objetivo de assls-tir a posse do ex-Governador na Camara Federal.[ ... ] Nenhum guarda de translto, nenhum llxelro, nenhum assls-

    tente social para recolher os mendigos jog a dos sob os viadutos -o centro da cidade lembrava uma praca de guerra entregue aosder rotados, seus hab itantes. I: nestas horas que nao ha. como es-conder 0 que acontece com uma cidade como Sao Paulo, entregueha tantos anos a governos blonlcos: ficam a nu a obra dos seustutores e a chaga das suas vitimas.[ ... ] Na velha Sao Joao, onde nem abrigos ha, as filas avancarn

    para 0 rnelo da avenida, mas os onibus nao chegam, presos emalgum lugar desta cidade onde os correqos transbordaram, as bocas--de-lobo entuplrarn, os semaforos enlouqueceram e carros foramsimplesmentc abandonados por seus motoristas.[ ... ] Grnldos, molhados, humilhados, os habitantes da outrora

    orgulhosa cidade viram-se jogados na vala comum dos moradoresde uma vilazinha qualquer. Como aqueles, podiam os paulistanosesquecer um pouco suas desventuras, vendo cachorro com um olhona testa, bezerro com duas cabecas e galinha com tres pes, aomodi co preen de CrS 200, num onibus estacionado em local prot-bido, mas devidamente autorizado pelo poder publico, em plenaPraca da Se.o cartaz do onibus-exposi

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    8/41

    14 0 DIA-A-DIA

    jomalista-cidadao que tomou chuva, denunciando 0 abandono dacidade e a ausencia do prefeito bionico, do que friamente enumeraras estatisticas de mais uma enchente. Por isso, nao existem for-mulas cientificas no jomalismo, especialmente na reportagem: cadahist6ria e uma hist6ria, e mereee urn tratamento iinico.Dia que tern enchente sempre rende materia. E quando naoacontece nada - 0 tempo esta born, 0 transite flui, os crimes sao

    banais e nao ha nenhuma crise na politica nem no futebol?Num dia assim, 0 Gil e eu saimos para dar uma volta no

    centro velho de Sao Paulo, e descobrimos que aquilo tinha viradouma imensa Ieira-livre. Voltamos com uma pagina de materia -pagina branca, dessas sem nenhum amincio, com onze fotos publi-cadas, coisa rarissima de aeonteeer em qualquer jomal. E aindaderam mais duas fotos e chamada na primeira:

    Se um forasteiro sair de olhos vendados pelo centro de SaoPaulodo ana cI~. graGade 1983,podera imaginar que esta na feira--livre de Caruaru, num dia de muito movimento. 0 pregao dosambulantes de todos as produtos, dos comestfveis aos jogos deazar (au da sorte). confundlndo-se com as ultlmos hits da rmlslcasertanea, Ihe dara .a irnpressao de que a metropole mudou deendereco,A crise vai aos poucos transformando a paisagem flslca e hu-

    mana da cidade, muitas vezes sem que as proprlos paulistanos seapercebamdisso. Ela acompanha as Indices do aumento do desem-prego, da mseria, ds falta de moradias e de todos as males queassolamesse imenso acampamento de brasileiros de todos as can-tos, especialmente do Nordeste.Quando a forasteiro abrir as olhos, vera que so a lmponencla

    dos arranha-ceus continua igual. No espaco livre que sobrou entreeles, cresce uma enorme feira-livre, sem corneco e sem fim, gentelargada nas calcadas e pracas - a lixo, a sueira, as buracos, asobras que nunca termnam, definitivamente incorporados ao cenario.

    (Folha de S. Paulo, 12 jun. 1983, p. 1 e 29.)o corpo da materia (umas 120 linhas) ia seguindo esse foras-teiro imaginario, apresentando os personagens encontrados no ca-

    minho - deficientes, desempregados, aposentados, indigentes, pla-quistas, urn sobrevivente hippie, engraxates, camelos, vendedores debilhetes, toda essa gente, enfim, que quase nunea sai no jomal,mas tambem faz 0 dia-a-dia da cidade.

    .. .SEM MEDO DE TOMAR POSI

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    9/41

    16 0 DIA-A-DIA

    A materia vai descrevendo 0 que encontra-mos pela frente e, no final, urn fato inespe-rado permitiu dar urn toque mais pessoalno relato da viagem. 0 objetivo dessas materias e fazer com queo leitor viaje junto, 0 reporter cumprindo sua funcao primeira:colocar-se no lugar das pessoas que nao podem estar hi, e contaro que viu como se estivesse escrevendo uma carta a urn amigo.o final da materia:

    Colocar-se nolugar do leitor

    As cenas vao-se repetindo monotonamente ate a Ponte do Llrnao,quando a rebocador encalha de vez. Daqui nao da para passar",explica a capltao Ezequiel, depois de topar numa pedra que quasederruba 0 Gil na agua. 0 rio nao tern calado, esta multo baixo".A pli, as margens do Tlete, so nos resta subir a barranca ate a

    Marginal, em frente ao Play Center. A motorista de taxi que nosrecolheu deve ter levado urn susto, quem sabe achando que setratava de quatro marcianos de coletes arnarelos perdidos na me-tropole aullstana.

    (Folha de S. Paulo, 27 jul . 1983, p. 10.)

    As vezes, a gente viaja muito e, quandochega no lugar, a pauta simplesmenteIura, independentemente da nossa vonta-de. Tinha ido a Porto Nacional, la no norte de Goias, para cobrir 0julgamento de alguns posseiros envolvidos num conflito de terra.Por falta de juiz, 0 julgamento fora adiado. Claro, aproveitei parafazer urn levantamento sobre os conflitos de terra na regiao, maso que rendeu materia boa mesmo foi a viagem de volta, de onibus.Foram mil quilometros percorridos em dezoito horas, de PortoNacional ate Brasilia. So ia ter aviao para Brasilia ria sexta-feira,no fim da tarde. E ainda era terca, service encerrado, nada parafazer. Foi ai que tive a brilhante ideia de perguntar se nao haviaalgum jeito de ir embora de onlbus ate alguma cidade onde pudessepegar urn aviao de volta para Sao Paulo. Urn trecho da materia,quer dizer, da viagem:

    Um flagrante demomento vivido

    Perdi as contas de ha quantas horas ja sstavamos viajando, quandochegamos a Gurupi, onde estava prevista uma troca de onibus, masnao de motoristas (sempre imaglnei que fosse 0 contrarlo [ ... ]Nao deu outra: entraram mais uns dez passageiros, todos cheiosde direitos, querendo sentar. Na parada seguinte, quando os pas-

    .. .UM FLAGRANTE DE MOMENTO VIVIDO 17

    sageiros sobreviventes vindos de Porto Nacional desceram para irao banheiro, seus lugares foram rapidamente ocupados pelos re-cem-cheqados [ ... ]Ao fim de meia hora de negociac;:6es, 0 onibus partiu com gente de

    pe, mulheres encarapitadas sabre a tampa do motor ao lado do moto-r ista, urn rapaz deitado no chao e dois velhos senhores passando 0resto da noite a discutir politica, embora as dois concordassemnum ponto: a governo nao tern jeito de ganhar as eleic;:6es. Avaca foi pro breo. Nlnquern aguenta mais nem ouvir falar emPDS. Nem no Interior ... "[ . .. ] Mas 0 contraste maior entre estes dois Brasis, 0 que viaja

    de onibus com dinheiro contado e 0 que vai de aviao por contade pessoas juridicas, e posslvel sentir no restaurante do aeroportode Brasilia.o poder econemlco e 0 politico cruzam seus olhares sobre asmesas, fazendo questao de que todos saibam como tratam 0 Minis-tro Delflm Netto com a intimdade de velhos amgos de lnfancia.Velhos senhores de barrigas estufadas, acompanhados de mocasnem tao mocas assim, franjas juvenis contrastando com largos lra-seiros, oculos sobre os cabelos, todas deixam urn forte perfumeno ar, urn pouco diferente daquele do onibus.

    (Fo lha de S. Paulo, 16 ago. 1982, p. 14.)No onibus que liga 0 Brasil real ao oficial, como no aeroportode Brasilia, em qualquer lugar e possivel registrar urn flagrante domomenta vivido. Nem e preciso ir tao longe: 0 fechamento deurn velho bar - essas coisas que a gente fica sabendo pelos amigos,conversando com todo mundo - pode servir de pano de fundopara contar historias da cidade de ontem e de hoje, escrachar avida mudando. E urn fato assim corriqueiro, como 0 fechamento

    de urn bar, quem sabe urn resto de pauta, acaba rendendo materiade primeira pagina, como aconteceu com 0 fim do Paribar:. Chegou a vez do Parlbar, era lnevttavel: hoe a noite, quandoos ultlrnos fregueses forem embora, e a italiano Franco Zanusofechar as portas do velho restaurante de mesinhas na calcada daPraca Dom Jose Gaspar, dasaparecera para sempre mais urn dossimbolos da Sao Paulo cavalheiresca e gentll de antigamente, gentesem pressa reunida em torno de bebidas honestas e boa comda.Era lnevltavel, mas nao se trata de morte sublta. 0 Pari bar foi

    morrendo aos poucos, lentamente, bern antes de explodir a crisedo Brasil do FMI. Ha urn mes, Zanuso tomou a dolorosa declsao depassar 0 ponto para uma cadeia de loas de roupas, vendo a movl-mento cair a cada dia, no embalo dos novos tempos de lanchonetes

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    10/41

    18 0 DIA-A-DIA

    e metros. Quem alnda se poderia dar ao luxe de ver 0 cair da tardee as pernas das rnocas bonitas, tomando alguns scotch legitlmos?"Quem tomava oito uisques passou a tomar tres. E quem tomava

    tres nao veio mais, porque 0 bom bebedor nao fica numa doses6 . .. ", filosofava, ontem a tarde, este italiano do Veneto, 56 anos,casado com uma piauiense. Em seu escrit6rio, instalado no poraodo Paribar, onde viveu os ultlrnos 32 anos, Zanuso passou a tardeatendendo a velhos cllentes, inconformados com 0 fechamento.

    (Folha Je S. Paula, 17 set. 1983, p. 1 e 17.)Esta era a chamada da primeira pagina. Dentro, 0 jornalabriu urn quarto de pagina para que se pudesse contar as historiasde Zanuso, seu bar e seus cIientes. Sera que nao havia assuntosmais importantes neste dia? Sim, claro que havia: guerras, crisese mudancas na politica economica nao faltarao jamais. Mas seraque 0 leitor nao tern direito tambem de, entre uma e outra des-graca, encontrar uma boa historia, conhecer a vida de urna figuraque nao e polit ico nem empresario, e que precisa de espaco para

    ser contada? Alias, se 0 leitor fosse mais ouvido, tenho certezaque a nocao do que e importante mudaria urn pouco nos nossosjornais. Cabe ao reporter, tambem, ser muitas vezes 0 porta-vozdeste ser misterioso e invisivel, pois e ele quem esta em contatodireto com as pessoas na rua e tern mais condicoes de saber 0 queesta interessando naquele momento.

    Mostrar algode novo queacontecendoNao despreze nunca uma pauta, antesde saber 0 que ela pode render, mesmoque 0 assunto nao seja muito agradavel.Uma pauta de lixo, por exemplo, poderender uma boa historia. Porque qualquer assunto serve, se puder-mos, por meio dele, mostrar algo novo que esta acontecendo, aindaque 0 terna ja seja batido. Ao fazer uma materia sobre a usina delixo de Vila Leopoldina, inaugurada quase dez anos antes, ericon-trei la urn museu, que serviu de "gancho" para mostrar mudancasnos habitos da cidade. Urn trecao:

    esta

    Uma das raridades cuidadosamente guardadas no Luxo do fixo, 0improvlsado museu da Usina de Compostaqem de Vila Leopoldina,e uma fotografia do primeiro essamento de Hoberto Carlos, na Bo-livia. Ao lade de 6culos, colares. botas de esqui, taximetros, cobrasem formol, rnaqulnas de calculer , aparelhos eletrodomesticos ant i-

    . . .REPORTER E FOTOGRAFO, JUNTOS 19

    gos, troteus, um busto de Afonso Schmidt, blchos empalhados, moe-das fora de clrculacao, ha tarnbern livros de Hist6ria do Brasil, 0Guia de civ ismo de Paulo Silva de Araujo, 0 volume quatorze daEncic/opedla dos munlcipios brasileiros e muitos plngQins de por-celana, que deixaram de enfei tar geladeiras paul lstanas.[ ... ] Alern dos desprezados plngUins de geladelra, este fim de

    l inha da sociedade de consumo Indica tambem outras rnudancas dehabttos da cidade: nos ultlrnos sels meses, por exemplo, caiu pelametade a contrtbulcao das latas no total do lixo recolhldo. Com acrise, as embalagens rnetal lcas foram substi tu idas por papelao.

    (Folha de S. Paula, 29 maio 1982, p. 31.)

    Reporter efotografo,juntoso telefonema de urn leitor, contando uma sacana-gem qualquer, pode salvar urn dia fraco de pauta.Pode ser urn trote, claro, mas e sempre born con-ferir com os proprios olhos e, em vez de ficar"checando a procedencia da informacao", como preierem algunsburocratas, omelhor mesmo e avisar a chefia e ir logo pra ruaver 0 que se passa. No Natal de 80, 0 telefonema de urn leitordeu meia pagina de jornal e a demissao do medico-chefe de urnposto do Inamps. Urn trecho da materia-demincia publicada pelojornal:

    o posto de atendlmento do Inamps da rua Conselhelro Crlsplnlanofoi fechado ontem as 14h30m - hora em que comecou a festa deNatal, com a confraternlzacao entre medicos e funclonartos no de-cimo andar. Centenas de segurados com consultas marcadas ou quenecessitavam de atendlmento de ernerqencta, assim como de guiaspara Internacao, deixaram de ser atendidos.Muitos segurados vieram de longe, como Marcolina Maria deJesus, 68 anos, que saiu de Cidade Jardim as 6h da rnanha, Semconseguir se levantar do banco do calcadao, gemendo de dores, Mar-colina implorava a quem passasse a sua frente: P reciso falar como medico. Estou ate agora sem comer".As quatra da tarde, seu estado se agravou e 0 rep6rter da Folha

    travou 0 seguinte dlalnqo com 0 agente de sequranca a paisanaque se recusou a revelar seu nome:- Aqui nlnquem entra.- Eu nao quero entrar. Tem uma senhora aqui fora passando

    mal. ~ preciso chamar um medico ai dentro.- Aqul nao tem medico. Ja foi todo mundo embora.- Tem, sim. Eu vi varlos medicos entrando.

    (Folha de S. Paulo, 19 dez. 1980, p. 14.)

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    11/41

    :-_ .-~;"::~ '''''d'';'_:l_,_;~.~~~~i't. , :> : (S ; l$ N h % i - 1 .. ~ W ' } ,J i fi " "l l !! f if Z ' i" F M ' iP ;t__":-~

    10 0DlA-A-DIA

    Enquanto 0 agente de seguranca procurava esconder 0 que sepassava la dentro, 0 fotografo ~i1 .Passarelli, no pre~io em frente,armado com urna potente teleobjetiva, flagrava a festinha de Nataldos medicos com as enfermeiras. Reporter e fotografo tern quetrabalhar sempre juntos, como os autores da letra e da .music~ deuma composicao. Se 0 Gil nao tivesse feito as fotos, sena a ~l~hapalavra contra a deles. No dia seguinte, sirnplesrnente desrnentmama materia e nada aconteceria. 0 reporter nunca deve se esquecerque 0 texto e as fotos tern exatamente a mesma importancia dentrodo jomal. Por isso, 0 reporter nao so pode como deve se preocu-par com 0 trabalho do Iotografo - e vice-versa.

    Duro mesmo e achar assunto em dia de plantaede domingo enos feriados. Para quem nao esti-ver disposto a passar 0 plantae na redacao len-do jomais e falando mal da vida alheia, so ha dUfs. opcoes: .se 0reporter ja sabe que vai ficar de plantae no proximo domingo,deve ele mesmo correr suas fontes e descolar alguma coisa paraIazer; ou, entao, ficar de olho nos boletins da radio-escuta (todojomal tem urn pessoal que fica ouvindo radio 0 d~a.~n~eiroe passaas ultimas para a chefia de reportagem) e no noticiano que chegados setoristas de Policia.

    Uma area que costuma render bem nos fins de seman a e aIgreja. Nao so porque e dia de missa: enos sabados e domingosque os movimentos populares ligados a Igreja fazem suas reunioese sempre aparecem bons assuntos para materias de cidade. Masate a ordenacao de um novo padre, que me foi comunieada poramigos, da materia, ajuda a mostrar 0 que acontece na cidade.Um trecho:

    Plantao dedo",~ingo

    Pocas cerimonias en palaciosy cuar teles, muchas fiestas enaldeas y en barrios rnarqlnales"o r itual de ordenacao do padre Fernando Altemeyer Junior, ontema tarde, na igreja de Sao Marcos Evanqellsta, extrema periferia da

    Zona Leste, esta chegando ao fim. Mas a festa continua. Depoisde dizer estes versos de Ronaldo Munoz (retl rados de La Iglesia quearno), 0 padre, com cara de menino, recebe a maior consaqracaode sua vida.

    .. .FERIADOS 11

    Sao mais de duas mil pessoas de todas as idades, com suasroupas de domingo, muita ernocao e alegria, que esperam no corre-dor central da igrejinha com telhado de brasilit 0 momento de darum abraco, urn beljo, dizer alguma colsa para Fernando, que agorae padre, oficialmente.o que seria apenas mais uma celebracao religiosa, com a partl-ctpacao de 40 padres e do Bispo Luciano Mendes de Almeida, Se-

    cretarlo-Geral da CNBB, acabou sendo transformado pelo povo doParque Sao Rafael e do s bairros vizinhos, de Sao Mateus a Sapo-pemba, numa grande quermesse, em que as palavras ditas no altarganhavam a dlmensao da realidade.Nao era para menos: desde seus tempos de seminarista, Fernando,hoje com 27 anos, convive com os 150000 paulistanos destes bairros-

    -dcrmltorlos. a maioria deles operartos na vizinha regiao do ABC.Foi aqui que ele se fez padre na pratlca, percorrendo as 35 comuni-dades de base, vivendo 0 dla-a-dla das 15 favelas que circundam aigreja.

    (Folha de S. Paulo, 6 ago. 1984, p. 4.)

    Camaval, Semana Santa, Finados, Natal, Ano No-vo: estes feriados constituern urn verdadeiro desa-fio para os pauteiros, Geralmente, nao acontece nada nesses dias,e e preciso encher 0 jornal de materias. Pior ainda: a nao ser queuma tragedia coincida com 0 feriado, acontece sempre exatarnentea mesrna coisa. Pode alguem irnaginar coisa pior do que ser esca-lado para cobrir carnaval na avenida, desfile do Grupo Dois, ernnoite de chuva? Mas, ja que nao tern outro jeito e a gente vivedisso, 0 negocio e ir hi e procurar 0 outro lado da historia quenao aparece na televisao.

    Feriados

    Vai entrar na avenida a sexta escolada noite, a Falcao do Morro.o tumulto e grande junto a cabine de ftscallzacao, onde se agitamdirlgentes da escola e da UESP, fotoqrafos larnbe-larnbe e dil igentesvoluntarlos do Juizado de Menores. Ali , ao longo de um qul lornetro.da passarela da Tiradentes ate a estacao , do metro da Ponte Pequena, mi lhares de sambistas das modestas escolas do Grupo Doisfazem um ultimo ensaio em meio a biroscas de bebidas e cavala-rianos da PM. E preclso tomar multo cuidado onde se pisa, poisos cavalos ja estao ha muitas horas por ali e 0 cheiro corneca aficar insuportavel. 0 menino magrinho, de 12, 13 anos, que vai ern-purrar 0 carrinho abre-alas da Falcao tem dificuldades para colo-ca-lc em Iinha reta. Dols coracoes de papel-alurnlnlo vermelho,

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    12/41

    12 0 DIA-A-DIAamarrados as pressas com fios de nailon, informam ao dileto pu-blico: "Falcao apresenta os mtos da Hist6ria com Iirismo e amor",Umdiretor da escola aproxlrna-se do menino aos berros:_ Anda logo com lsso, animal. Segura 0 coracao com a mao,

    moieque imbecil. Anda, ta na horal(Folha de S. Paulo, 20 fev. 1980, p. 14.)

    Num Domingo de Pascoa, 0 registro seco de urn acidente naMarginal do Tiete, transmitido pelo setorista de Policia a redacao,serviu de "gancho" para uma pequena materia sobre a fragilidadeda vida no transite paulistano - as tragedias nao escolhem diapara acontecer.

    Depois do almoco, como fazia todos os domngos, Davi Rodri-gues Diogo foi ate a calcada da rua Ingu, um reduto de casariohumlde na Penha, para avisar que iria ao Parquedo Piqueri. Logo,sua Brasilia ficou lotada - alern da mulher e de dois filhos, maisctncc crlancas da vlzlnhanca acompanharamDavi no passeio do Do-mngo de PascoaOntem a tarde, a igrea de Nossa Senhora da Penha ficou lotada:era a rnlssa de corpo presente de Davi, sua mulher Fatima, a filhaNatalia, de dols anos, e mais tres crlaneas, que morreram domngoa camnho do Parque do Piqueri. Depois, 0 enterro, no cernlterlode Vila Formosa.Aquelas centenas de pessoas humldes simplesmente nao conse-guiamentender a traqedla do Domngo de Pascoa,quandoa Brasiliase chocou com uma pilastra plantada no meio da via expressa daMarginal do Tiete, entre as pontes do Tatuape e de Vila Maria, nosentido Penha-Lapa. Mais do que isso, nao conseguiam entendero que fazem, ha mais de um ano, duas pilastras de concreto plan-tadas no meio da via expressa, se elas nao tem nenhuma func;aoaparente.

    ~:1 1 0 . . 1 , . . .. . :-J I I : :. ;. . . . ;' . ; ~:.:, ~::

    (Folha de S. Paulo, 21 abr. 1981, p. 9.).Todo ana tern 0 dia de Finados, e todo ana e preciso con tar

    como foi - urn ritual que nunc a muda. Ao sair da redacao parafazer 0 obvio,percorrendo os principais cemiterios da cidade,voce pode acabar encontrando urn angulo novo dentro de urn velhoassunto. Para isso, e preciso estar sempre atento exatamente paraalguma cena que fuja a rotina.

    De um lado e de outro, multldoes camnhando rumo aos tumulosdos seus mortos, levando flores e velas. Ali, bem no centro dos34 alqueires do cerntterto de Vila Formosa, nao parava nlnguem.

    .. .FERIADOS 2J

    Quando muito, passavamfamlias apressadas sobre as covas aban-donadas, para cortar camnho. A quadra 45, onde saoenterrados osindigentes, parecia umoasis emmeio as 1 877832 sepulturas deVilaFormosa,por onde passararn rnals detres rnllhoes depessoasnestesdlas, segundo 0 admnistrador JoseCosta.Pedacos de lapldes de outros tumulos, entulho, uma ou outra

    flor perdida no camnho, onze covas abertas - s6 isso fazialembrar que na quadra 45 estao sepultados mais de cem mortossem nome. Perdido em meio aquele vazio, Alvino Cardoso, passostrapegos, passou a rnanha toda procurando pela sepultura da irmaMaria, morta "ha uns dois ou tres anos' e enterrada ele nao lembramais onde.

    (Folha de S.Paulo, 3 nov. 1981, p. 8.)No Natal, e a mesma coisa. Mas nem sempre se pode confiarapenas na sorte para encontrar por acaso urn personagem comoAlvino, que pediu ajuda ao reporter para encontrar a sepulturada irma - e ai fiquei sabendo da quadra dos esquecidos i Sevoce se dedicar a fazer urn trabalho sempre na mesma linha, semceder aos modismos de cada epoca, e tiver disposicao para ouviras pessoas que ligam a qualquer dia e a qualquer hora, os assuntoscomecam a vir ate 0 reporter em vez de 0 reporter correr atrasdeles. 0 maior patrimonio de urn reporter e a credibilidadel-as pessoas precisam confiar em voce para contar historias que con-sideram delicadas porque mexem com a vida de outras pessoas.A historia de Natal, cuja abertura e reproduzida a seguir, chegoua s minhas maos pela amiga de urn padre que conhecia meu tra-balho. 0 jornal teve urn born assunto para a primeira pagina,num dia geralmente fraco, como costumam ser as vesperas de Natal.E a publicacao da reportagem ainda permitiu que muitas pessoas,tomando conhecimento da historia de dona Augusta, a mulherque cria filhos dos outros, passassem a ajudar suas criancas.Acabei ficando amigo dessa grande familia, voltando la todos osanos - e essa e uma das maiores satisfacoes que a carreira dereporter pode nos dar.Esta fazendo dez anos, neste Natal.Duas antigas lavradoras da fazenda do pai do ex-governador Ade-

    mar de Barros, emSaoManuel. que haviammgrado para SaoPaulo,sabiam de um drama que nao as deixava dormr direito. Elisa, amais nova, ja naquela epoca trabalhava na Maternidade do Hospitaldas Cllnlcas. e contou a sua irma Augusta, empregada domesticadiarista, 0 problema de Neusa, tarnbern empregada, que teve seu

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    13/41

    24 0 DIA-A-DIAfilho numa radio-patrulha e, ao receber alta, nso tinha para onde ir."Sa voce aparecer com crlanca aqui em casa, eu te mando em-

    bora", advertira a patroa, logo no lnlclo da gravidez.Augusta pensou, pensou e decidiu ficar com Marcelo, 0 filho de

    Neusa - e cornecou neste dia uma das mais belas htstorlas deamor, solidariedade e abnegactaOque a cidade de Sao Paulo jamaisconheceu. Nest'a vespera de Natal, sao 16 as crlancas abrigadasna modesta casa de dois comodos, cozinha e banhelro, todos filhosde empregadas dornesticas com 0 mesmo drama de Neusa.

    (Folha de S. Paulo, 24 dez. 1981, p. 9.)

    \0

    ~. .. .I I I

    . ~ "

    .~

    3Coberturas

    Se 0 assunto foge a rotina do dia-a-dia, 0 jomal monta urnesquema especial de cobertura. Isto pode envolver tanto a mobili-zacao de toda uma equipe para cobrir 0 mesmo fato quanto 0deslocamento de urn enviado especial para 0 local dos aconteci-mentos. Na maioria das vezes, nem da tempo para 0 rep6rter sepreparar melhor e se informar bern sobre 0 fato que vai cobrirantes de sair para a rua. Quando muito, tern' tempo de juntar cor-rendo alguns recortes no arquivo do jornal, Hue ira lendo no aviaoou no carro de reportagem.

    Ser convocado pela chefia para cobrir urn grande aconteci-mento pode significar a consagracao ou 0 fracasso para qualquerrep6rter que estiver comecando, Nestas horas, e tudo ou nada,tanto para 0 reporter como para 0 chefe que 0 escalou. Mas, seo rep6rter ja mostrou garra e talento no trabalho do dia-a-dia - epor isso mesmo foi convocado -, nao ha muito 0 que temer .

    Com 0 tempo, a gente vai descobrindo que a essencia dotrabalho do reporter e a mesma, tanto para cobrir urn acidente detransite na esquina do jornal, quanta a morte de urn papa ou umagrande tragedia, seja la onde for: contar tudo 0 que aconteceu, naoparando de garimpar a inforrnacao enquanto ele proprio nao estiverabsolutamente seguro sobre, t~o~ fato_s.9.~~cQl9.~!!!~_!!Q~1.

    \S /SL IOTECA Ci: jv 'n~AL FAM IG 1~D AD E M IN ASGER~IS- r v : ~ ~ ~ 3~ .

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    14/41

    . i '~.,!.. ; ~I I . ,. ". ~ '. . .' ". .. .. .a C. .. .

    . . .A TRANSMISSAO DA MAH:RIA 27

    .~onseguimos chegar, pela estrada de terra de Sao Luis doParaitinga, ~. uns qu~nze ~ui16metros de Caraguatatuba. Dai paraa frente, 0 jeito era ir a pe pelo meio da lama. Telex nem existiaas tele~o~es estavam todos quebrados. Todo dia era preciso leva;as matenas - g~ralme~te man~scritas, porque as poucas maquinasde escrever da cidade tinham sido requisitadas pelos comandos des?corro - ate Ubatuba, a 50 km de distancia, de onde saia nosfins de tarde urn aviao da FAB para Santos. La, 0 jornal seencarregava de apanhar 0 material. Diante das circunstancias ostextos tinham que ser curtos, secos e diretos, quase telegraficos,

    cara~uatatuba ja tem agua, qracas a uma mna encontrada pelosbombelros no Morro do Tatu, depois de dois dias de procura. Essamna, que foi precarlamente represada com 0 auxilio de sacos deareia, toras de madeira e 1,5km de mangueiras instaladas pelosb?mbeirOs, faz a agua chegar ate a praca Candido Mota, onde estasltuado 0 grupo escolar, principal centro de atendimento aos fla-gelados.[ ... ] Um camlnhao do Exerclto que transportava parte da ponternetallca movel, procedente do Rio Grande do Sui, a ser instaladaprovlsoriamente sobre 0 rio SantoAntonio, tombou ontem naestradade Sao Luis do Paraitinga, Ubatuba.[ ... ] Os flagelados continuam deixando a cidade, a pedido das

    autoridades. Muitas famlias que querem seguir para SaoJose dosCampos sao obrigadas a ir de avlao, ja que por via terrestre epraticamente impossivel deixar Caraguatatuba. 0 aeroporto de Uba-tuba esta sempre cheio de flagelados a espera de um aviiio.

    (0 Estado de S. Paulo, 26 mar. 1967, p. 22.)Quatro meses depois, sem ter sido sequer registrado pelo jor-

    nal - naquele tempo essas coisas demoravam, era preciso gostarmuito para nao desistir - e ganhando uma ajuda de custo de vezem quando, me chamaram para cobrir a morte do ex-PresidenteCastelo Branco, no Ceara. Aviaozinho fretado, 0 fotografo JosePinto e eu lev amos quase doze horas para chegar a Fortaleza.Quando chegamos, 0 esquife estava saindo. As fotografias eramtransmitidas por urn imenso aparelho de radioamador que instal a-mos no predio dos Correios. Juntava gente para ver. Para trans-mitir as materias, so tinha urn jeito: enfrentar as filas no telegratoda Western.

    26 COBERTURASPor isso, ja e born ir sabendo que numa cobertura dessas nao

    basta ter capacidade profissional e saber escrever. E preciso termuita resistencia fisica, esquecer a hora de comer e de dormir,encontrar urn jeito de veneer 0 medo, 0 cansaco e a saudade. 0jornal e 0 leitor nao que rem nem saber quais sao as dificuldadesque 0 reporter esta encontrando - querem 0 fato bern contado.o unico problema de voce se sair bern numa grande cober-tura e que, a partir dai, voce sera lembrado sempre que aconteceralgo de excepcional nao previsto na pauta. Os chefes, em geral,nao gostam muito de arriscar. Grandes coberturas significam tam-bern grandes despesas para 0 jornal, e 0 reporter que der mancadauma vez dificilmente tera urna segunda oportunidade.

    Mais do que 0 trabalho em si, e essa res-ponsabilidade que provoca urn permanenteestado de tensao no reporter, enquanto ele

    : - . 3 . 0 tern certeza de que seu material chegou a redacao. Levantaras informacoes po de ser, em muitos casos, a parte mais simplesdo trabalho. Dependendo do lugar onde se esta, 0 dificil e encon-trar urn jeito de transmitir a materia para 0 jornal. Mesmo como avanco tecnologico dos ultimos anos, que facilitou muito a trans-missao de materias por telex ou telefone, a primeira providenciado reporter, chegando ao local da cobertura, e saber como tarapara enviar seu material a redacao, As dificuldades encontradaspara a transmissao de materias das coberturas de que falarei emseguida ainda persistem em muitos pontos do Brasil.

    Estava trabalhando havia menos de urn mes no Estadiio, em67, quando me mandaram cobrir a tragedia de Caraguatatuba, umaenchente que deixou mais de trezentos mortos. A estrada que ligaa cidade a Sao Paulo simples mente tinha desaparecido, no trechoda Serra do Mar. Como chegar la? Isso costuma ser um problemapara 0 reporter mesmo resolver, na base do: "vire-se". A infra--estrutura _ transporte, acomodac;ao, esquema de transmissao dematerias _ varia muito de empresa para empresa, e geralmentedepende da iniciativa das chefias. No caso desta minha primeiraviagem como enviado especial, sai do jornal num fusquinha dareportagem, com motorist a, fot6grafo e uma ordem: "trate dechegar la e mandar materia 0 mais rapido possivel".

    A nansmlssaoda materia

    _ Mas, Castelo, como e que voce, homem acostumado a viajarem avtoes possantes e velozes, por todo esse mundo de Deus,

    B IB L IO T E C A C E N n = ? A L F A M / GF A C U ~~ A D E M ! N A S G E P .A IS - M U R IA E - M G

    -- _J~

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    15/41

    . .I. .. .. .. .. .I I II I II

    (. .I~I

    ( . . ~( ~ , f, ~,:4 '

    18 COBERTURAS

    vai ter a coragem de arriscar a vida num aviao tao pequeno comoesse?- Voce esta com algum pressentlrnento, Rachel?Este dlaloqo, conforme depoimento de familiares de Rachel de

    Queiroz, ocorreu no domingo passado, no sltlo Nao me Deixes, emOulxada, Ceara.[ ... ] Cornecam as despedldas, num misto de alegria e amargura .

    Castelo aproxima-se de Rachel e insis te:- Sou muito supersticioso. Se voce nao quiser, posso ir noutro

    transporte.Rachel, sorrindo, responde:- Deus Ihe acompanhe.Ugam-se os motores do avlao. Os passageiros acenam. Gente

    simples continua agitando os braces quelmados de sol para a"grande homem" que conheceram. Mais alguns minutos e a Pipperse perde no horizonte.

    (0 Estado de S. Paulo, 21 ju!. 1967, p. 7.)

    No Exterior Anos mais tarde, estava em Buenos Aires co-brindo mais uma crise que levari a a derrubadade Isabelita Peron pelos militares. "Quebrou 0 pau em Cordoba,e voce tem que se mandar para hi agora", me ordenou 0 ClovisRossi, assim que cheguei a noite ao hotel, depois de um dia decao. 0 Rossi tinha sido meu primeiro chefe no Estadiio, e foi 0mestre de toda uma geracao de reporteres, Palavra dele a gentenao discute. Ele ficaria em Buenos Aires, e eu tinha que ir panCordoba. Fui direto para 0 aeroporto: todos os voos cancelados.o primeiro voo, no dia seguinte, saiu as seis da manha, com maistripulantes do que passageiros a bordo. Nem deu tempo parasentir medo.Ate hoje nao sei como, mas no fim do dia mandei uma materiade mais de duzentas linhas, contando tudo 0 que estava aconte-cendo em Cordoba. So me lembro que 0 Rossi tinha me dadodicas sobre algumas pessoas que poderiam me ajudar por hi. Algunstrechos:

    [ . .. ] Quando cerca de t rezentos elementos do grupo guerrilheiro"Montoneros" deram lnlclo, as cinco horas da tarde de quinta-feira,a urn fulminante ataque slrnultanec a lojas e delegacias de Pollcla,parecia realmente que tinha chegado ao auge a crise que ha cercade dais meses transformou Cordoba, mais uma vez, no principalpalco de descontentamento popular. Mas, ao contrar!o do Cordo-

    . . .. .NO EXTERIOR 19

    bazo" de seis anos atras, quando houve uma lnsurrelcao popular,com 0 apoio de todos as trabalhadores, desta vez regist raram-seapenas alfoes isoladas dos chamados g rupos de vanguarda dosMontoneros".

    [ ... ] verdade que a rnoblllzacao de mais de dais mil policiaisdando tiros de metralhadoras para a alto, com seus carras trafe-gando na contra-mao, serviu tambern para aumentar a inda mais 0panlco e a lntranqullldade da populacao. Mas, a parte a maior efi-ciencia do aparelho policial, havia uma dlferenca baslca entre aCordobazo " de 69 e a ataque dos Montoneros de qulnta- fe ira: hacinco anos, combatia-se uma ditadura militar, e agora, bern au mal,ha um governo peronista, eleito com a apoio de quase setenta parcento da populaeao.

    (0 Estado de S. Paulo, 12 jul. 1975, p. 7.)Nas coberturas no Exterior, nao basta relatar 0que aconteceu:e preciso ajudar 0 leitor a entender por que tais fatos estao ocor-rendo, situando-os dentro de um contexto historico e lembrando

    as caracteristicas de cada pals. Fora isso, trabalhei uma temporadacomo correspondente do Jornal do Brasil na A1emanha Federalexatamente como se fosse urn reporter de "geral", e nao limitadoaos temas da chamada alta politica internacional. Assim, em meioa uma crise institucional na Alemanha, provocada pela onda deterrorismo, iniciei esta materia com a senhora do telex:Passava ja das 22 h de quinta- fe ira, hora de encerrar 0 expediente,

    e a sempre sollclta encarregada do telex do Cent ro de Imprensa deBonn estava cada vez mais lndocll.Perdi meu metro tres noites seguldas par causa de voces. Agora,chega." [ ... ]A senhora do telex nao era a unlca a pensar assim. Ao coutrarlo,era urn retrato vivo de uma Alemanha exausta, quase di ria humi-

    Ihada, ao final da semana mais conturbada vivida no pos-querra,Esquecer tudo a mais depressa posslvel parecia ser a objetivo

    de todos na sexta-feira a tarde. Mals uma vez, era preciso apagar 0passado [ ... ].Conciliar a calf a aos terroristas com urn retrato mais amistoso

    desse pais que ainda na o conseguiu superar os est igmas da guerrasera certamente 0 grande desaf io dos proxlrnos dias.

    (Jornal do Brasil, 6 nov. 1977.)A campainha do telex toca,anunciando recado urgente: Derrit

    Harazim, chefe dos correspondentes internacionais do JB, esta memandando para Roma. 0 Papa Paulo VI morreu. Eleito seu su-

    '< .." '"": ~ ~ - ": ~ ~ ', ... .. : .. '"- . '- ~ " ~~~~ ! : .# _ ' " '11; :. '0 0 ~.-.~~ .. .,........".,.'~_~ .. ~ _ ..,.._ ._~_~-.,.- - . . . . . .. _ : _ : . _ ' . , : _ . : , t _ , . . ' ' . , ' _ : : ' . _ : ; ; : ( _ \ _ - ' . ~ : - - _ : : -. : _ . ( ~ ~ _ ~ : ~ , : _ 7 : : ~ ~ , _ ? : : _ ~ : : , _ . - ~ - _ - ; . ; _ ' i : ; _ } { _ ; ' : ; ~ _ : _ : ~ _ - ~ j : _ { ; _ : ~ $ _ ~ p ' : . : _ . :_---"-::=_~"--_ _ : ' . ' ~ _ t \ : _ f ~ - - ' l ~ ; c _ ' ~ ; ; ~ \ ; . ' - - ~ ; _ ~ : , ; ~ _ - : : / : ' _ ~ - ~ ,~ . , $ { _ . _ ; : : 7 ' r : : ; : : , : < , : : - ~ : : ~ , - , ~ - - ; - ' , , . : - , ; : . , - ' , , : : . ; ' : '. .. : : ': : : . .

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    16/41

    .. .30 COBERTURAS

    !-

    cessor, pego um aviao para Veneza: 0 novo Papa, Albino Luciani,nasceu numa vila ali perto. 0 lugar e seus personagens podemnos ajudar a entender melhor quem e 0 novo Papa.Canale D'Agordo - So os vaticanistas, a Igreja e 0 resto do

    mundo foram surpreendidos com a elelcao de Albino Luciani parasuceder Paulo VI.t: esta, ao menos, a conclusao a que se chega, apos uma rapidaviagempela Veneza dos Papas(Luciani e 0 terceiro Papaveneto, soneste saculol e uma tarde de conversas com alguns moradores deCanale D'Agordo, pequena aldeia onde Albino nasceu. Entre eles,seu lrrnao mais novo, Edoardo Luciani, pai de nove sobrinhos donovo Papa. .Prepara teu vestido preto, porque teu cunhado vai ser 0 novo

    Papa,enos teremos que ir a Roma", sentenciou Edoardo a mulherMarinelli Antonieta, assim que soube da morte de PauloVI.Desde 0 ultimo inverno, com eteito, quando Albino esteve com

    seu lrrnao em Canale D'Agordo, a farnllla Luciani nao ~:1 sabia dodestino de Albino, como tema por ele.[ ... ] Aqui, a 976 metros de altitude, na quietude do Vale Agor

    dino, reqlao turlstlca dos Apeninos, a vida dos 1684 moradores dopaesino de Canale ja corneca a voltar ao normal, depots da tnevl-tavel lnvasao de turistas e jornalistas.[ ... ] EmCanaleD'Agordo, hoje, mais do que orgulho, todos tern'

    multa pena dele.(lornal do Brasil, ju!. 1978.)

    Um mes depois, a campainha do telex tocava de novo: "Albi-no Luciani, 0 papa Joao Paulo I, morreu. Volta para Roma".Cobrir os enterros e as eleicoes papais ate que nao foi diffcil. Romae um dos melhores lugares do mundo para se trabalhar: 0 governoitaliano oferece aos jornalistas estrangeiros todas as facilidades quese possa imaginar, para produzirem e transmitirem suas materias.

    Dificil foi cobrir as greves do ABC paulista na volta aoBrasil, a partir de 78. Quando a Policia resolve baixar 0pau, nao adianta mostrar carteirinha de jornalista. Umbelo dia, depois das greves, Luis Inacio da Silva, 0 Lula, presi-dente do Sindicato dos Metalurgicos de Sao Bernardo, e outroslideres dos trabalhadores iam ser julgados pela Justica Militar. 0comando do II Exercito forneceu credenciais para todos os jorna-

    NoABC

    LlMITES 31

    listas que pediram para fazer a cobertura - menos para os cor-respondentes estrangeiros e para mim. Quer dizer, me senti urncorrespondente estrangeiro no meu proprio pais. Como nesses casosnao cabia recurso nem apelacao, e eu estava impedido de trabalhar,fui ate Sao Bernardo, para ver como estavam as coisas por laoCheguei na casa do Lula e descobri que ele e os outros reusestavam todos la: tinham resolvido nao ir ao julgamento. Acabeiouvindo 0 julgamento pelo radio junto com eles, e deu uma belamateria exclusiva. Trechos:

    [ ... ] Enquantoos advogados discutiam artigos e incisos do Co-digo do Processo Penal Militar, a mulher de Lula, Marisa, passavao tempo todo atendendo 0 telefone e recebendo telegramas, ascrlancas do grupo escolar vizinho nao saiam da janela, e os slndl-callstas que estavam sendo julgados acompanhavamos acontecl-mentos por urn radinho de pilha.[ ... ] As cinco marmtas desapareceramrapidamente, e Lula, 0

    principal acusado no julgamento que prossequla na Auditoria Militar,dormu no chao, apesar de toda a confusao II sua volta.E . ] Urn amgo perguntou a Lula se ele ja havia preparadosua

    mala para levar para a cadeia, e ele achou gra~a: Na cadeia ninoguemprecisa de roupa, eu naovou passear.. ." Tarnbemnaoestavapreocupado com a famlia, em caso de condenacao: Aqui em casacada urn sabe 0 que preclsa fazer",

    (Folha de S. Paulo, 26 fev. 1981, p. 6.)Tern disso: as vezes, voce e impedido de entrar num lugar

    e acaba encontrando, onde nao esperava, um assunto ainda melhor.Por isso, e que insisto: lugar de reporter e na rna, mesmo semcredencial e sem pauta. A sorte tambem tem que ajudar, e claro,mas se tivesse ficado na redacao me lamentando da discriminacao,nunca iria achar os "reus" na casa de urn deles na hora do julga-mento.

    Limites Outras vezes, 0 acesso ate que e permitido, masnao vale a pena correr 0 risco. 0 jornal nao precisade herois, mas de reportagens. E cada um tem que conhecer seusproprios limites. Estava em Itatiaia, cobrindo urn incendio nareserva florestal, junto com 0 Iotografo Jorge Araujo, quando nosmandaram de la mesmo direto para Macae: explosao na plataforma

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    17/41

    32 COBERTURAS

    central de Anchova 1, na Bacia de Campos. S6 no terceiro diaa area foi liberada para a imprensa. Mas 0 helic6ptero com osjomalistas s6 tinha autorizacao para sobrevoar a plataforma. Nahora do embarque, resolvi ficar - e contei isso na reportagem.o fot6grafo tinha que ir, e poderia depois me contar 0 que viu -afinal, os fot6grafos tern obrigacao de enxergar tudo, e bern. Noaeroporto mesmo, deu uma boa materia, que saiu na primeira pa-gina. Trechos:

    Olto homens com rnacacoes cor de laranja da Petrobras reme-xendo nos escombros, junto a torre da sanda que desabou depoisdo lncendlo na madrugada de quinta-feira: foi isso que a rep6rter fo-togrMico Jorge Araujo, da Fo/ha, viu ontem de manha na plataformacentral de Anchova 1, na Bacia de Campos, depois de cinqiientaminutos de VQO de hel lc6ptero ate 0 local do acidente.[ ... ] Um rnecanlco que trabalha em navios-cisternas junto a pla-

    taforma F-5me diz que, a inda ha algumas semanas, um companheiromorreu e outro ficou lnvalldo, quando explodiu a bomba de carga quepuxa 0 61eo para a embarcacao, por uma falha do equipamento.

    t: ouvindo estas hist6r ias que os jornal istas s.1iochamados paraa embarque num helic6ptero da Uder. 0 tempo continua fechado,e a visibi lidade e minima. No caminho ate a pista, deslsto da viagem.[ ... ] No helic6ptero dos jornalistas que segue para a plataforma

    incendiada, conta-me Jorge Araujo depois, a lernbranca era a mesmaque eu estava tendo ca embaixo. Os colegas que morreram no act-dente da TAM, aqui mesmo em Macae, quando vinham fazer a cober-tura do recorde dos 5000000 harris dlarlos.

    (Folha de S. Paulo, 19 ago. 1984, p. 1 e 23.),(

    Informac;aoe emocao Tristeza e alegria. Estes sentimentos se altern amnos trabalhos de cobertura, e nao ha como 0reporter ficar insensivel - nem deve. Afinal,ele e antes de mais nada urn ser humane igual aos seus leito res,e precisa transmitir nao so as informacoes, mas tambem as emo-c;oes dos acontecimentos que esta cobrindo. Intormacao e emocaosao as duas ferramentas basicas do reporter, e ele tera que lutarsempre consigo mesmo para saber dosa-las na medid a certa emcada materia. A vitoria de Tancredo Neves no Colegio Eleitoral eseu enterro em Sao J oao Del Rei, tres meses depois, sao doisexernplos de coberturas diffceis, em que pequenos detalhes podemser decisivos. Como, por exemplo, 0 reporter escolher onde vai

    .. .INFORMACAO E EMOCAO 33

    ficar. No Colegio Eleitorai, escolhi a praca em frente ao Congresso,e fiquei no rneio do povo, acompanhando a votacao; no enterro,eu e 0 fotografo Jorge Araujo alugarnos a janela de urn banheiroda casa que fica em frente ao cemiterio.Tancredo, 342.o povo reunido desde cedo em frente ao Congresso Nacionalcomeca a cantar 0 Hino Nacional em ritmo de samba.Tancredo, 343.Espoucam rojoes, a ernocao cresce, e chamado para votar 0 depu-tado federal Joao Cunha (PMDB-SPJ.Tancredo, 344.As 11h34m deste 15 de janeiro, explode 0 grito parado no ar du-

    rante 21 anos. t: 0 voto da vit6ria, 0 fim do regime militar. A multi-dao se abraca e chora, ergue os braces e pula. rompe os cordoesde isolamento, atravessa rampas proibidas e escala a cupula do Se-nado, agitando faixas e bandei ras.Trio eletrlco, bumba-meu-boi. charanga do Atletlco Mineiro. samba,

    frevo e maracatu, bandeiras do Brcsl] , do Corinthians. dos part idoscomunistas, do PMDB, do Flamengo, gente maca e gente velha, deterno au de calcao, cantando e dancando, um homem grita: A liberdade cheqou" [ ... ]

    (Folha de S. Paulo, 16 jan. 1985, p. 7.)o toque de sllenclo. Uma salva de 21 tiros de canhao. Apenas

    duzentas pessoas no cernlterlo. A cidade recolhida. calada. Foi 0ate f inal destes quarentas dias de sofrimento que abalaram 0 Brasil.Tancredo de Almeida Neves, 0 pr lmeiro presidente civi l depois de21 anos de regime militar, que morreu antes de tomar posse, fotenterrado as 22h54 m de ontern, na sepul tura numero 84 do pequenocernl terlo da Veneravel Ordem Tercei ra de Sao Francisco de Assis.em Sao Joao del Rei. em Minas Gerais.[ ... ] Por ultimo, falou 0 presidente Jose Sarney: 0seu compro-

    mlsso sera 0 nosso compromisso; a sua prornessa, a nossa pro-messa; a seu sonho, a nosso sonho. Em nome do povo brasileiro,adeus, ate sempre, saudade ", L a fora, as poucas pessoas que aindase encontravam perto da igreja aplaudiram dlscretamente.

    (Folha de S. Paulo, 22 abr. 1985, p. 1.)

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    18/41

    ( i 4Reportagem investigativa

    o ramo da reportagem mais dificil e, talvez por isso mesmo,o mais fascinante e 0 das chamadas materias investigativas. E voceprocurar descobrir e con tar para todo mundo aquilo que ~e est aquerendo esconder da opiniao publica. Nos tempos da ditadurade 64, mas nao so neles, os poderosos de plantae foram levantandobarreiras para impedir que a sociedade ficasse sabendo 0 que seestava passando.

    Em qualquer epoca, uma das funcoes principaisdo Jornalismo e a de fiscalizar os poderes pu-blicos - e e 0 reporter 0 encarregado desta

    tarefa. 0 exemplo mais pronto e acabado deste tipo de trabalhoe 0 celebre escandalo de Watergate, quando dois reporteres doWashington Post - Bob Woodward e Carl Bernste:n - levaram,com suas materias, 0 presidente Richard Nixon a remincia.

    Carl Bernstein era urn rep6rter de "geral" do Post e, a partirde algumas denuncias que 0 jornal recebeu, come

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    19/41

    36 REPORTAGEM INVESTIGATIVA

    Na casa dele nao havia ninguem, Os vizinhos nao sabiamde nada. E, se alguern sabia, tinha medo de falar. Com um deles,consegui pelo menos uma indicacao: Manoel Fiel Filho, 0 opera-rio, tinha parentes que moravam num outro bairro, "perto de umapadaria". Quando ja estava quase desistindo de encontrar estacasa dos parentes, encontrei, perto da padaria, um Bispo, Bispo,nessas horas, sempre costuma saber 0 que esta acontecendo nasua diocese. Nao deu outra: 0 Bispo tinha acabado de sair dacasa onde se encontrava Teresinha, a viiiva do operatic. Depois,foi so complementar 0 que ela me contou, ouvindo cole gas deservice, patroes, 0 coveiro, a zeladora do velorio e os dirigentes doSindicato dos Metalurgicos, ao qual ele pertencia. No dia seguinte,ate eu levei um susto quando vi a materia publicada no alto dapagina, na integra. Explica-se: fazia apenas tres meses que Vladotinha morrido - e todos nos, jornalistas, ainda vivfamos commedo. Minha mulher estava gravida, e disse que eu era maluco:a materia saiu assinada. Mas, enquanto os colegas ainda comen-tavam a materia na redacao, poucos dias depois chegava a noticiade que 0 comandante do II Exercito, General Ednardo D'AvilaMello - responsavel ultimo pelo que acontecia no DOI-CODI -tinha sido afastado do cargo pelo Presidente Ernesto Geisel. Tre-chos da materia:

    Como todos os diasdos ultlrnos dezenoveanos, desde que entrouna Metal Arte, Manoel Fiel Filho chegou a fabrica da Mooca antesdas sete da manha, na ultima sexta-feira [ ... ]

    [ ... ] 0 chefe do pessoal lembra que- Manoel nao mostrou ne-nhuma preocupa~o quando os dois homens Ihe dlsseram que eleprecisava ir ao OOPSpara fazer um reconhectmento ".[ ... ] Duas horas depois, Manoel e os dois homens chegavama sua casa, na Rua Coronel Rodrigues, 155, em Sapopemba.[ ... ] Ao se retirarem, Teresinha, desesperada, desrespeitou as

    ordens dos policiais e se aproximou do marido:- 0 que vao fazer contigo?[ ... ] No dia seguinte, sabado, um taxi parou em frente a casa

    155 da RuaCoronel Rodrigues. Um homemdesceu, jogou noquintalum saco de lixo e um envelope, e berrou:- 0 "seu" Manoel tentou 0 suicidio..Teresinha ainda tentou perguntar alguma coisa, mas rapidamenteo homem entrou no carro e desapareceu. Teresinha s6 teve tempode gritar:- Eu sabia que voces iam matar ele. Eu sabia que voces iammatar ele.

    . .os FENOMENOS E SUAS CAUSAS 37

    No saco azul de 20i com 0 emblema da Lixelra Ideal estavamacalca e a camsa de brim, 0 clnto e um par de sapatos. No enve-lope, com 0 timbre do Exerclto, os documentos deManoel.[ ... ] Como os gerentes de Manoel, 0 eletricista Antonio Pereira,

    seu concunhado, tambern procura motivos para tudo 0 queaconteceu."Como e possivel? 0 Manoel era um sueito calmo, ele nunca

    ia se sulcldar, Ainda mais com uma meia... Olha, nem que euestivesse vendo, eu ia acredltar que ele se suicidou. 0 Manoe!?Nunca![ ... ] Quem esta preocupada tarnbem e a zeladora da Igrea de

    Nossa Senhora de Lourdes, que ontem estranhava "essas perguntastodas por causa de um morro". E explicava: Agora mesmo metelefonaram do Exerclto, perguntando se fizeram vel6rio desse Ma-noel, se val ter mssa, que hora e a mssa e 0 enderec;:oda lqrea ",[ ... ] Mais espantados do que a zeladora da igrea da Agua Rasa

    estavam ontem os dirigentes sindicais dos metaiurqlcos. Joaquimdos Santos Andrade, presldente do Sindicato, repetia aos rep6rteresque Manoel nunca foi lider sindical, raramente participava das as-sernblelas e jamais U:'lI)U 0 mcrofone para defender poslcoes". 0presidente do Sindicato, depots deuma reunlao na rnanha deontem,proibiu os diretores e s6cios mats antigos de fazerem qualquer tipode declaracao em favor de Manoel.Na Rua Coronel Rodrigues, em Sapopemba,os moradores ta";'bem

    nao sabem 0 que fazer. Alias, a maioria nao sabe nem mesmo damorte de Manoel. S6 sabem que a casa 155 esta fechada desdesabado.

    (0 Estado de S. Paulo, 22 jan. 1976, p. 16.)

    Os fenomenos Da sucursal do Estadiio no Recife, chegarame suas causas noticias dando conta de que 0 Sindicato doCrime tinha voltado a matar - tanto, queate 0 entao Ministro da Justica, Armando Falcao, estava preocu-pado e pedia providencias as autoridades de seguranca do Nor-deste. Em apenas urn mes, num unico Estado - Alagoas - maisdecinqtienta mortes eram atribuidas ao Sindicato. De carro, juntocom 0 fotografo Josenildo Tenorio, que conhecia bern a regiaoe nao tinha medo de nada, percorri durante tres semanas as areasde maior violencia em Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ao ladodas informacoes quentes sobre os envolvidos nesse crime, foi pos-sivel mostrar as mudancas que estavam ocorrendo no sertao, eque levavam a esta situacao de violencia.

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    20/41

    .. .38 REPORTAGEM INVESTIGATIVA

    A serie de reportagens sobre 0 Sindicato do Crime serviucomo "gaucho" para mostrar aos leitores do SuI urn pouco da vidado Interior nordestino, seus personagens, suas historias. Nestas via-gens, que sao programadas com cuidado e permitem que 0 reporterse informe bern sobre 0 assunto, e sempre importante procurar ascausas dos fenomenos e nao ficar so nos seus efeitos. Para isso,deve-se estar disposto a ouvir muita gente, todos os lados envol-vidos, sem ter pressa.o mais dificil nesta historia e que nao se pode chegar numlugar e ir logo dizendo qual e 0 objetivo da reportagem. EmGaranhuns, Interior de Pernambuco, por exemplo, quando desco-briram que estavamos fazendo uma materia sobre 0 Sindicato doCrime, tivemos que deixar a cidade correndo. Alguns trechos dareportagem:[ . .. ] Essa operacao "peqa-plstolelro ", que em tudo lembrava as

    anti gas volantes dos tempos do canqaco, amedrontando populacoes,prendendo alguns suspeitos e lnumeros inocentes, cornecou na ves-pera do carnaval, em consequencla do assassinato, com todos osrequintes de crime orqanlzado, do gerente da Caixa Econornlca Fe-deral de Garanhuns, Raimundo Cemente da Rocha, e de sua amante,Nadir Pereira de Azevedo.[ ... ] Na sequencia da operacao, varlos outros crimes msteriosos

    foram esclarecidos, todos envolvendo 0 Sindicato do Crime, en-quanto 0 panlco tomava conta das pequenas cidades do agreste nafronteira de Alagoas e Pernambuco. Ao todo, mais de cinqGenta de-tencoes foram feitas, envolvendo mandantes, cruzeteiros. pistoleiros,coiteiros - e inocentes.[ ... ] As populacoes de Aguas Belas, Tupanatama, Uniao dos

    Palmares, Santana do Mundau, ternem a volta das valantes, com seuspoliciais encapucados dando tires de metralhadora para 0 ar. Todosandam armados, ninquern fala, a ameaca de vlnqanca paira no ar.[ ... ] Com Chico Heraclio morreu no ana passado 0 ultimo coronet,

    mas nao 0 coronelismo, posto que a estrutura aqraria que Ihe deuorigem permanece a mesma. Como em tudo, a lnfluencla do radioe da televlsao, das estradas e dos camnhoes, impos urn processodlnarnlco ao coronelismo, que perdeu seus estereotlpos, mas manteveos rnetodos. Os filhos dos coronets foram estudar nas cldades, for-maram-se bacharels, repartiram a terra que 0 pai Ihes deixou deheranca, 0 poder do coronelismo pulverizou-se, ganhou alguns ra-quintes do baeharelismo, desapareceu dos alpendres da casa-grandea figura austera de terno de linho e grandes chapeus - e, no en-tanto, em terras menores sobrevivem pequenos soberanos.

    OS FEN6MENOS E SUASCAUSAS 39

    [ .. . ] As "cldades-barraqens " de Lebret foram surgindo esponta-neamente, como passagens obrigat6rias dos mgrantes nos entron-eamentos rodovlarlos. mas sem uma infra-estrutura capaz de criarnovos empregos, acabaram remetendo os retirantes diretamente paraas capitais. Se continuar essa desenfreada e caotlca urbanlzacao, 0Sindicato do Crime - fenorneno de origem tipicamente rural _tende a desaparecer no futuro, mas ainda nao sera 0 fim da vio-lencla.A gerac;:ao de menores abandonados que hoe invade Recife ja

    corneca a se organizar em quadrilhas; sao os cangaceiros urbanosdos anos 70, formando um novo sindicato em que so muda a formade agir. Ja nao se mata por honra, vinganc;:a, terra, mulher oupolltlca, Mata-se slmplesmente para roubar, unlca forma encontradade sobreviver na cidade grande. Os parentes distantes sao substl-tuidos, na Capital, pelos companheiros de bando; emugar da fam-lia, a quadrllha,[ ... ] u delegado nao exagera nas suas queixas. Uma mulher

    vem pedir ajuda porque estao querendo matar seu marido. 0 escri-vao e 0 tlnlco investigador de plantae (os soldados estavam fazendouma diligencia) saem para atender 0 caso. Ape. Ao sair, 0 inves-tigador para de estalo e pergunta ao escrlvao:- Mas voce vai deixar a delegacia sem ninguem?- Nao tem problema. 0 amgo ai toma conta pra gente.o amgo era eu, que estava esperando 0 delegado.[ ... ] E, se de urn lado, nos ultlmos anos os mnlftindtos conse-

    gulram romper a htstortca predomlnancta das grandes propriedades- 0 poder do coronel hoe esta ligado mais ao cornerclo do quea terra -, de outro, cada palmo de terra passou a ser intensamentedisputado, muitas vezes entre pessoas de uma mesma famlia.Para resolver as dlverqenclas. surge sempre 0 brace longo e invi-

    sivel do Sindicato do Crime. Jarbas Gomes DUarte, preso como in-termedlarlo de pistoleiros, envolvido no crime do gerente da CaixaEconomtca, e um desses pequenos proprletartos que, diante de umadlflcil sltuacao financelra, acabou entrando para 0 Sindicato, ondeserve como coiteiro (sueito que ajuda a esconder pistoleiros pro-curados pela Pollcia). Como Jarbas, ha dezenas de outros em todoo agreste meridional, pequenos proprietarios incapazes de saldar suasdividas com os orgaos oflclals que financiaram as plantacoos e queforam atraidos pelo dinheiro factl do Sindieato - uma vez la dentro,eles sabem que so saem mortos.

    (0 Estado a e s. Paulo, abr. 1975.)

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    21/41

    ~o REPORTAGEM INVESTIGATlVAOs riscos nestas materias sao sempre grandes, as viagensdemoradas e as condicoes de trabalho as piores possiveis. Afinal,voce esta arras de urn assunto que todo mundo quer esconder, numlugar que nao conhece e sem con tar com a ajuda de ninguem.Mas, quando se consegue contar a hist6ria toda, no fim vale a pena.

    E 0 caso de uma serie de reportagens sobre 0 "escandalo damandioca" - urn Iantastico rombo na agenda do Banco do Brasilde Floresta, Interior pemambucano, que ganhou as manchetesdos jomais em 82. Fui para l a varies meses depois de estouraro escandalo, e ainda encontrei coisas fantasticas,

    A cena e inimagimlvel: depois desepercorrer unsdez qullometrosde picada de boi aberta em meio a mais brava caatlnga, leitos dosriachos secos ate a ultima gota, onde s6 restamarvores de pequenoporte com seus galhos tortuosos e emaranhados, e os mandacarus,os facheiros, as palmat6rias, os xiquexiques, os qulpas rasteiros,toda a especle de cactaceas, avista-se um verdadelro oasis comrepresas, urna enorme rnansao, piscina, postes com luz demercuric.No camnho, 0 unlco sinal de vida vem dos chocalhos das vacas

    edos bodes,perdidos emmeio a caatinga, comoa pedir por socorro,que nlnquem ouve. Mas aqui, neste paraiso aberto em melo aoinferno que entra no seu quarto ano de seca, tarnbern nao ha sinaide vida. S6 uma placa em que se Ie: "Entrada Proibida - Soblntervencao Federal".Apesar da prolblcao, e possivel atravessar a bela alameda ate 0

    local em que se encontram algumas casas da Fazenda Papagaio,0faraenlco proeto de Antonio Oliveira da Silva, ~ Antonio Rico, prin-cipal envolvido no "escandalo da mandioca", acusado pelo procura-dor Melo e Silva do desvio de mats de quatrocentos mllhoes decruzeiros.[ ... ] Mas ninguem na regiao duvida que, mais cedo do que se

    pensa, Antonio Rico, libertado no tim da semana passada, estarade volta ao seu paraiso na caatinga.[ ... ] Emagosto, quandoa Pollcla apresentou seis pessoas presas

    no Recife, envolvidas no escandalo, Inclusive 0 gerente do Bancodo Brasil, corriam versoes em Floresta de que Antonio Rico naofora preso em virtude do bom relacionamento que sempre mantevecom agentes da Polfcia Federal, que erampor ele hospedados commordomas durante as ftscallzacoes que faziam para descobrir plan-tal,:oesde maconha no interior de Pernambuco.Esta versao seria confirmada pelo advogadoAdilson Nunes, que

    defende 0 ex-gerente do Banco do Brasil, Edmflson Soares Lima:

    .. .os FEN6MENOS E SUAS CAUSAS 41

    "Ele e informante da Poltcta Federal e por isso ainda naofol preso",Mas a superintendencia da Pollcla Federal no Recife desmentia aInformaeao. '0 indiciado Antonio Oliveira da Silva naotem e jamaisteve qualquer vinculo com a Pollcla Federal."Antonio Oliveira da Silva s6 seria preso pela Polfcia Federal no

    Inicio de dezembro, numa mansao no bairro da Torre, no Recife,durante uma lnvestlqacao de contrabando.(Folha de S. Paulo, 10abr. 1982.)

    S IB L/O rE C A C E NT R AL F A MIGF PC U lD A O E M IN A S G E R A IS - M U R IA E M G

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    22/41

    5Perlil

    .' I

    Filao mais rico das materias chamadas humanas, 0perfil daao reporter a chance de fazer urn texto mais. trabalhado ~ sej~sobre urn personagem, urn predio ou uma cidade. Para 1SS0, enecessario que ele se municie previamente sobre 0 tema de quevai tratar: para ir fundo na vida de uma pessoa ou d~ urn lug~r,e preciso, antes de mais nada, conhece-lo bern: Estas .lllforma~oesprevias podem ser conseguidas tanto no arquivo do jornal comocom pessoas ligadas ao assunto.

    Preparar perguntas e levantar os pontos polernicos ~ue seraotratados na materia e 0 inicio do trabalho. Mas 0 reporter deveestar sempre livre de qualquer preconceito, qualquer ideia pre-fixa~da pela pauta ou por ele mesmo. E a sua sensibilidade que valdeterminar 0 enfoque da materia.Aqui, ao contrario das materias investigativas, e born deixarbern claro, logo de cara, qual e 0 objetivo da materia. 0 rep6rt~rtern que ganhar a confianca do entrevistado, para poder conseguirarrancar tudo dele. Sempre e born conversar urn pouc ... antes decornecar a materia propriamente dita - sentir, estudar 0 outrocomo numa luta de boxe.Urn born perfil pode ser feito em apenas algumas horas, sefor urn assunto do dia, que exija urgencia. Ou levar mais de urn

    . ..UM PERSONAGEM RARO 4J

    mes para ser concluido, como acontecia na revista Realidade, queia ouvir dezenas de pessoas que pudessem fornecer mais elementossobre 0 personagem central. Ha personagens transparentes, querevelam seu perfil na hora: vao falando sem esperar perguntas;outros, exigem muita paciencia do rep6rter, que nao deve ficaraflito quando a conversa foge do seu roteiro.

    Encarregado de fazer urna materia sobreos moradores de apartamentos - A vidaempilhada sobre lajes de concreto -,acabei, durante 0 trabalho, encontrando urn personagem raro, quemereceu urn perfil a parte .. Isso acontece muitas vezes: voce vailevantar urn assunto e descobre alguem com uma hist6ria tao boaque deve ser destacada da materia principal. Como aconteceu comecte zelador:

    Um persona gemraro

    o destino da cidade era crescer sempre, e, como nao havia rnalspara onde, so podia ser para cima. Casas comec;:arama ser derru-badas para dar lugar a pequenos predlos que, com 0 tempo, tam-bern foram consumdos por outros maiores, cada vez mais proxlmosdo ceu - ou do inferno.[ ... ] Predios onde e lnvlavel ate morrer, como se provou recen-

    temente, quando 0 Corpo de Bombeiros teve que ser chamadopararetirar pela janela 0 corpo de uma mulher muito obesa, cuo calxaoera mais largo do que as portas e os corredores.[ ... ] Os regulamentos sao rfgidos. Ha cerca de tras anos, houve

    um rumoroso caso de conflito condomlnial que termnou no Forum.Uma senhora Idosa tinha como unlca companhia noapartamento umpapagaio. A prlmeira provldencia do novo slndlco fol determlnar aretirada do papagaio. 0 julz deu ganhode causa ao sindico e soquando a senhora deixou 0 predlo com 0 seu papagaioos vizinhosflcaram sabendo 0 quanto havlarn sido Injustos. 0 papagaio eramudo.[ ... ] Zelador do Ediffcio Avenida Paulista ha quinze anos, Aurilio

    Arauo tem uma hlstoria bemdiferente da maioria dos seus colegasencarregadosde cuidar dos predlos da cidade. A comec;:arpelo seuapartamentodecobertura: movers classlcos. pinturas modernas,tudemulto amplo e bem cuidado.Apesar de todo 0 conforto e do trabalho relativamente tranqiltlo,

    nao era essa, certamente, a vida que 0 fazendeiro e empreiteiro

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    23/41

    44 PERFILAurilio Araujo esperava encontrar em Sao Paulo, quando saiu deAraxa, Minas, depois de alguns neg6cios malsucedidos.Logo ele conheceu 0 incorporador Fel ipe Hans. e cuidou da cons-

    trucao de alguns dos seus predlos na cidade. 0 Avenlda Paulistafoi 0 ultimo. Quando a obra ja estava quase pronta, Hans Ihe disse:"N6s ja estamos velhos, vamos flcar por aqui mesmo. Vamos to-

    mar conta desse predlo. Eu fico como sindico e voce como zelador",(0 Estado de S. Paulo, 15 dez. 1974, p. 68.)

    Morte de Elis Regina. Nestas horas, os jornais cos-tumam preparar enormes perfis com material de ar-quivo (quando se trata de personalidades mais velhasou muito doentes, esse material costuma ja estar ate pronto).Adilson Laranjeira, chefe de reportagem da Folha, queria algomais atual: era preciso saber como Elis estava vivendo nas ultimassemanas, 0 que poderia ter levado a cantora a morte. E me man-dou para 0 velorio, onde conversei com alguns amigos dela.

    "Como e que eu faco para isso nao acabar nunca mais?". per-guntou ela ha alguns dlas a Roberto de Oliveira, que produziu algunsdos seus melhores espetaculos de televlsao. Elis referia-se aquelemomento que parecia 0 mais feliz da sua vida - de arnor novo etranqiHlo, gravadora nova, casa nova, mil pianos de viajar 0 mundocantando as muslcas do novo disco que estava terminando de gravar

    ElisRegina

    [...Desde logo, os amigos que a conheciam melhor afastavam a htpo-tese de suicidlo. E lis era brigadora demais, vaidosa, estrela, maedemais para se matar, entregar os pontos", dlzla Valter Silva, queapresentou Elis Regina pela primeira vez na televlsao,[ ... ] Se voces pensam que os gauchos acabaram, estao muitoenganados. Eu ainda estou aqul."Era por lsso que costumavam charne- la de "ultlrna caudilha", masEl is ja parecla cansada desse papel . Nos ultl rnos tempos, sem deixarde lade suas preocupac;:6es polltlcas e sociais, Elis parecia buscarum pouco de paz.[... ] 0 temperamento sempre explosivo de Elis cedia lugar a uma

    mulher mais serena, e era como se fossem estripulias de lnfanclaque os amigos lembravam, durante 0 velorio, 0 que ela ja tinhaaprontado. [ ... ] "Ells botou na cabeea um dla que tinha que ser amelhor. E foi. .. ", contava 0 amigo, com dificuldades para falar.

    (Folha de S. Paulo, 20 jan. 1982, p. 29.)

    . . .SONIA BRAGAIUM VELHO PALHAc.:O 45SoniaBraga

    Urn born perfil pode pintar no meio da materia sobrea filmagem de Gabriela, em Parati. Sonia Braga, apropria, no intervalo das filmagens, rodeada de crian-cas e cachorros, toda enlameada, com seu corpo mal cobertopor trapos andrajosos, comecou a falar sobre a vida comigo -e deu uma materia dentro da materia: "Faco sucesso por que aspessoas querem isso".[ ... ] Seria impossivel imaginar qualquer outra mulher no papel

    de Gabriela. Porque Sonia Braga faz Gabriela brincando, com prazer.Como ela diz: "Gabriela e um cheiro, uma cor, uma metafora". Ametafora e a liberdade: A I iberdade da sexualldade, a I iberdade poll-tica, a Iiberdade de cada um viver do jeito que gosta".[ ... ] "baixinha, cadeiruda, portanto sem nada dernais ", como ela

    propria se define. A lnfancla em Maringa, depois Curitiba, teatroamador em Sao Paulo, ate chegar a primeira dama da Rede Globo,o Rio a seus pes, depois 0 resto do Pais, esta agora muito inte-ressada na Hlstdrla do Brasil. 0 pessoal da minha faixa de idade- eu tenho 31 anos - nos ultlrnos tempos se apaixonou por suar.~opria hlstorla, cada um na sua. 0 processo de abertura crlounovos sentimentos, uma coisa libertadora, esta na hora de se fazeruma fusao das nossas muitas htstcrlas."

    [ . .. ] F aco sucesso porque as pessoas querem isso, e uma formade aceltar sua raca, seu fisico, e nao os modelos de fora. Pernasgrossas, seios fartos, ventre proeminente, ela da rlsada quando lem-bra de uma fase em que andou rechonchuda demais: "Um dia, euestava trocando de roupa no camarim, junto com a Wilza Carla, eela br incou comigo: 'pois e, Soninha, nos, as gordinhas .. .' Menino,emagreci dez quilos numa semana. ..

    (Folha de S. Paulo, 11 maio 1982, p. 25.)Em casos como esse da Sonia Braga, 0 perfil mais pareceuma entrevista - e e assim mesmo, rotulos a parte. Quando 0personagem se abre, nao e preciso a gente ficar falando dele. Elemesmo faz seu proprio perfil, e 0 reporter trata apenas de prestaratencao para ser fiel ao que ouviu. Gravador, nestas horas, soatrapalha. 0 ideal e ficar papeando, anotar uma coisa ou outra.

    Claro, ha personagens incriveis por ai, quaseanonimos, que tambem dao belos perfis, por-que, afinal, nao se pode viver so das sonias bragas.A indicacao da pauta era singela: urn palhaco vai fazer 85

    Um velhopalhaco

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    24/41

    46 PERFILanos. Urn amigo que estava fazendo urn filme sobre a vida delefoi quem deu a dica. Pois a hist6ria do Estrimilique, 0 velhopalhaco, acabou dando uma das mais belas hist6rias human asque tive a oportunidade de contar. Deu pagina inteira, capa dosegundo caderno.

    Num acanhado banheiro improvisado de camarim, ele seguia cal-mamente seu ritual: de camiseta de malha e ceroulao de rendas,vai pintando 0 rosto com um cui dado de quem se prepara para aastrela. Depois, lava as maos, calca um sapatao debochado ja meiogasto, veste a camisa estampada de azul e verde, a calca bambole,coloca a gravata-borboleta - uma borboleta, literal mente - e ajeitasobre as orelhas seu grande trunfo - um complicado engenho aco-plado a uma seringa, que daqui a pouco 0 fara chorar escandalosa-mente, esguichando agua sabre as crianc;as."Quantas vezes eu ja fiz isso? .. " - pergunta-se 0 velho palhaco,

    sem esperar a resposta, que nem ele sabe. A diretora da EscolaMuni:.:ipal Candido Portinari, em Sao Bernardo do Campo, pede queas crtancas fechem os olhos. Com seu paleto de losangos de todasas cores, peruca de careca, la vem ele todo lampeiro, feliz da vida.No meio da roda, sozinho, Estrimillque improvisa seu picadeiro

    e a diretora pergunta: Voces sabem quem e essa figura?" Nao,as crlancas naoconhecem a sua hlstoria, sabem apenas que e umpalhaco que veio animar a festinha de anlversarto da escola. Masnao se trata de um palhaco qualquer: diante delas esta Tobiasnandes, a Estrimilique, a mais velho palhaco ainda em atividade noBrasil. Hoje, ele esta completando 85 an as de vida e 80 de pa-lhaco, urna carreira que iniciou em parceria com a pal, dando carnba-Ihotas e se fazendo de cachorro, enquanto a tia, acrobata, tomavafolego apes urn dos seus nurneros no Circo Chileno.

    [ . . . J Nem por isso, porern, ele pensa em parar: "Enquanto existircrlanca. eu quero ser 0 Estrimllique. Sabe, eu ja fui de tudo nocirco, desde eletricista a administrador, mas eu gosto mesmo e deser palhaco, Nunca quis fazer outra coisa na vida ... "

    [ . . . J 0 show ja havia terminado. Cantou-se um emocionado Para -hens a voce, mas a crlancada. que agora 0 agarrava e apalpava,para ver se era de verdade, nao queria mais ir embora. Nem ele.

    (Folha de S. Paulo, 13 mar. 1982, p. 27.)

    "Urn dia navida de ... "

    Entre as mil maneiras de se fazer urn perfil,uma delas e acompanhar urn dia na vida dopersonagem ou do lugar. Em 85, lancei nadia na vida de ... , mostrando 0 cotidiano deFolha a serie Um

    . ."UM DIA NA VIDA DE..... 47

    pesso.as das mais diferentes areas de tivid dP d a IVI a e, a comecar pelorest ente da Republica Jose Sarney Por incrivelre foi , .', . que possa pa-cer, OJ a matena da serie mais Iacil de marcar e de fazer. Em-bora .tenha falado muito pouco com ele, apenas acorn anhando: 7 ~d~a e procurando nao atrapalhar, deu para mostrar :uma ma-de:~~e~a2~ Ia~~~~, to~an~o duas paginas de jornal, que ser Presi-I epu lca. nao e dos melhores empregos no mundo -pe 0 menos no Brasil, Alguns trechos:

    [ . . . . J 0 Secretarlo de Imprensa, Fernando Cesar Mesquita apenas:e 7 ~ ~ 1 ; ~:r~::~:~ no Palacio do Jaburu, onde mora 0 Pr~sidente,Logo na entrada da bela chacara Ii beira do IP I' . ago que deu nomeao a a~IO, 0 primeiro espanto: junto Ii portaria apenas um soldadoe um vlqla Dei meu f . . '. . nome e UI autorizado a entrar. Como cheguei

    tad pouco antes da hora marcada, sentei-me diante da casa pro]e-~o~eior Os~ar Nie~eyer, ate que aparecesse alquern. 0 fotoqrafo

    r~ Marl: suqertu que a gente tocasse a campainha. Mas fiquelna d.uvlda. Nao sabia se ficava bem tocar a campainha da cas a doPresidente da Republica.. [ ... ] Num canto do sofa da sala de visitas, sozinho, 0 Presidenteja de terno escuro, barbeado e penteado, lia um jornal. Antes deTancredo Neves ser internado no Hospital de Base de Brasilia, JoseSarney era um homem muito falante, que tinha nas conversas umprazer quase cornparavel ao que sente em ler e escreverAgora, ao contrarlo, fala pouco, pesa cada palavra das suas frases

    sempre curtas, pontuadas por longos sllenclos.[ ... ~ O. assessor especial Celio Borja era 0 mais preocupado com

    a aparencl~ cansada de Jose Sarney nesta quarta-feira. "lsso naopode contlnuar assim. 0 presidente tem d ldI orrru 0 pouco e aiele a~aba ficando lrrltado." 0 adjetivo mais correto talve; fossempacrente,

    [ . .. ] ~ hablto de dormir pouco, que tanto preocupa Borla no~nta~~~, e anter ior 1 1 fatalidade que levou Sarney Ii preSiden~i~ daepu IC~. De martha, durante 0 cafe, sua mae, dona Kiola, me dizia

    que ele sempre dormiu muito pouco" S . arney costuma ficar lendoate de madrugada para espantar a lnscnia.[ ... ~. qu~ndo Sarney chega em casa, pouco antes de uma da

    ~a~de, ja ha pessoas esperando para falar com ele no escrltor!o doa uru. Quando consegue se livrar delas, da de cara com a ge teoutra vez. n ,- Muito trabalho, Presidente?- Nao, hoje ate que esta pouco ...

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    25/41

    48 PERFIL[ ... ] Urn ajudante-de-ordens vern avisar que o. Presid~nte me

    recebe por alguns mnutos para completer a materla. Mals ~xata-mente: dcls mnutos. Tlnha preparado 28 perguntas, mas tratel logode escolher uma 86._ Presidente, 0 que muda na vida de urn homem, quando elese torna Presidente da Republica? .Sarney ouve a pergunta, toma urn folego, camnha pelo gabmete._ A vida muda totalmente. A sua vida pessoal acaba. Mas, 0

    barro do politico e essemesmo, quandosente que esta trabalhandopara 0 bern de todos. Nao tenho rnals tempo para nada. Estoudormlndo quatro horas por nolte.[ ... ] Arrlsco outra pergunta._ Quando 0 senhor val dormlr como e que se sente? 0 que

    mats 0 aflige neste momento, Presldente? ._ Temos uma serle de problemas malores do que os mstrumen-

    tos para decidir sobre eles. Naotemos ainda uma visualizal;ao com-pleta detodo 0 quadro. E comose, em vez deentrar numa guerra deposlcoes, estivessemos no melo de uma batalha campal...

    (Folha de S. Paulo, 2 jun. 1985, p. 1, 10 e 11.)

    ';\. "1s ." ,~.f~ >,, "I~~~r.. ,. . . .

    . .6

    Levantamento

    Fernando Pedreira, urn senhor de cabelos grisalhos, scmprecalmo, mesmo nas horas mais nervosas do jomal, era 0 diretorde redacao do Estadiio quando a censura saiu de hi em meadosdos anos 70, depois de uma longa, tenebrosa temporada de arbf-trio.

    Mordomias Ja dava, pelo menos, para respirar um pouco .Um dia ele me chamou na sala dele e comecou,como quem nao quer nada, a mostrar uns recortes de jornal quefoi juntando em cima da mesa. Eram pequenas noticias publica-das por varies jornais, inclusive 0 Estadiio, falando da boa' vidaque levavam ministros e altos funcionarios num pais que, ja na-quela epoca, morria de fome, embora a propaganda oficial garan-tisse que viviamos numa "ilha de paz e prosperi dade em meio aurn mundo conturbado".o Pedreira me fez ler aqueles recortes e depois pegou uma,materia do New York Times, publicada no domingo anterior, emque 0 ex-correspondente do jornal norte-americano em Moscouretratava os privilegios de uma nova casta: os superfuncionarios

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    26/41

    50 LEVANTAMENTOdo Estado. "Ricardinho, 0 que voce acha da gente fazer a mesmaaqui? V e isso com calma e depois volta a falar comigo. Nao ternpressa."Achei que dava uma bela materia e 0 Pedreira mesmo medeu as primeiras dicas. 0 mais dificil num levantamento dessetipo e saber por onde comecar. Como 0 diretor do jornal, pelasua propria funcao, freqiientava 0 alto mundo da vida politica eeconomic a do Pals, e conhecia algumas intimidades da corte insta-lada em Brasilia, era ele a pessoa mais indicada para mostrar 0caminho das pedras. A gente conversava dia sim, dia nao, iajuntando as pecas do quebra-cabe

  • 5/10/2018 a pr tica da reportagem- ricardo kotscho

    27/41

    S2 LEVANTAMENTOForc,:asArmadas, em virtude das tentac,:1iesoferecidas pelos orgaosciv is do governo, empresas estatais e privadas.3. GrupoS e comportamentoUm tecnocrata do governo, desses de salaries de CzlS35.000,00

    divide a sua classe em tres grupos:a) ados conscientes, que tem uma preocupac,:ao.social .e ~iscor-dam do modelo economico, pr incipal mente no que dlz respelto a con-

    centracac de renda. Nao passam de 10% do total;b) ados cinicos, meros funclonarlos publlcos especiali~ados, quese limitam a cumprir tarefas e cuidam de encher a eurrlculo, co~conferencias, simposios, artigos e coqueteis. Sao literal mente apoli-ticos, querem a poder pelo poder e seriam seguidores da filosofladelf in iana. Const ltuem a maior ia absolute, com 80%;c) final mente, ha as convictos: sao as que concordam com ~modelo econemtco. estao no governo porque acham que a governo eperfeito e nao se filiam a Iideres au a grupos: seguem sempre ospoderos