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Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 3, p. 145-168, Jul./Set., 2018 145 A possibilidade da crítica no capitalismo tardio Artigos / Articles A POSSIBILIDADE DA CRÍTICA NO CAPITALISMO TARDIO. SOBRE OS REMETENTES E OS DESTINATÁRIOS DA TEORIA CRÍTICA Amaro Fleck 1 RESUMO: De acordo com parte da literatura, a teoria crítica de Adorno é um lamento sobre o fracasso da civilização moderna que é incapaz de dar conta de suas próprias condições de possibilidade. No presente artigo, questiono tal veredito, por meio da análise da questão de como a crítica pode ser feita e de quem seria o destinatário dela, em uma situação de quase completa dominação. PALAVRAS-CHAVE: Teoria crítica. eodor W. Adorno. Capitalismo tardio. Filosofia social contemporânea. De acordo com grande parte da literatura, Adorno é um pensador re- signado, que simplesmente lamenta o fracasso da civilização, e a sua teoria crítica teria sido feita a partir de lugar nenhum, sendo a expressão do inexpres- sável. Em outras palavras, ela seria algo como uma carta sem remetente, a qual foi escrita a partir de um lugar a que não mais é possível chegar, e também sem destinatário, isto é, teria sido composta em uma linguagem que não seria mais compreensível. Essa objeção aparece de forma exemplar na seguinte passagem de um livro de Terry Eagleton (1997, p. 52): 1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG – Brasil. E-mail: amarofl[email protected] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Professor de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Publicou, entre outros, os artigos: “Resignação? Práxis e política na teoria crítica tardia de eodor W. Adorno”, na Revista Kriterion, em 2017; “Da crítica imanente à crítica do sofrimento, na Ethic@”, em 2016, e “Necessária, mas não suficiente: sobre a função da crítica da economia na teoria crítica tardia de eodor W. Adorno”, também em 2016, nos Cadernos de Filosofia Alemã. is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License. http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2018.v41n3.08.p145

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A possibilidade da crtica no capitalismo tardio Artigos / Articles

A possibilidAde dA crticA no cApitAlismo tArdio. sobre os remetentes e os destinAtrios

dA teoriA crticA

Amaro Fleck1

resumo: De acordo com parte da literatura, a teoria crtica de Adorno um lamento sobre o fracasso da civilizao moderna que incapaz de dar conta de suas prprias condies de possibilidade. No presente artigo, questiono tal veredito, por meio da anlise da questo de como a crtica pode ser feita e de quem seria o destinatrio dela, em uma situao de quase completa dominao.

pAlAvrAs-chAve: Teoria crtica. Theodor W. Adorno. Capitalismo tardio. Filosofia social contempornea.

De acordo com grande parte da literatura, Adorno um pensador re-signado, que simplesmente lamenta o fracasso da civilizao, e a sua teoria crtica teria sido feita a partir de lugar nenhum, sendo a expresso do inexpres-svel. Em outras palavras, ela seria algo como uma carta sem remetente, a qual foi escrita a partir de um lugar a que no mais possvel chegar, e tambm sem destinatrio, isto , teria sido composta em uma linguagem que no seria mais compreensvel. Essa objeo aparece de forma exemplar na seguinte passagem de um livro de Terry Eagleton (1997, p. 52):

1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG Brasil. E-mail: [email protected] em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Professor de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Publicou, entre outros, os artigos: Resignao? Prxis e poltica na teoria crtica tardia de Theodor W. Adorno, na Revista Kriterion, em 2017; Da crtica imanente crtica do sofrimento, na Ethic@, em 2016, e Necessria, mas no suficiente: sobre a funo da crtica da economia na teoria crtica tardia de Theodor W. Adorno, tambm em 2016, nos Cadernos de Filosofia Alem.

This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.

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Para Herbert Marcuse e Theodor Adorno, a sociedade capitalista definha nas garras de uma reificao que a tudo permeia, desde o fetichismo da mercadoria e os hbitos de fala at a burocracia poltica e o pensamento tecnolgico. Esse monlito inconstil de uma ideologia dominante , ao que parece, vazio de contradies o que significa, com efeito, que Mar-cuse e Adorno tomam-na por seu valor aparente, julgando-a segundo a aparncia que ela desejaria ter. Se a reificao exerce seu domnio em toda parte, ento isso presumivelmente deve incluir, para comear, os critrios pelos quais julgamos a reificao e nesse caso no seramos de modo al-gum capazes de identific-la, e a crtica da recente Escola de Frankfurt tor-na-se uma impossibilidade. A alienao final seria no saber que estivemos alienados. Caracterizar uma situao como reificada ou alienada indicar, implicitamente, prticas e possibilidades que sugerem uma alternativa a ela, e que podem assim tornar-se critrios de nossa condio alienada.2

Essa citao afirma uma tese, a meu ver, correta: a hiptese da completa reificao, ou alienao ela mesma no relatvel, impossvel de ser denun-ciada, pois, mesmo para ser simplesmente percebida, preciso ainda haver alguma ciso, contradio ou antagonismo na totalidade social. S se pode criticar uma determinada situao, se ainda se capaz de, ao menos por um momento, distanciar-se dela. Mas discordo de que Adorno, em algum mo-mento, tenha defendido a hiptese da completa reificao ou alienao. Trata--se, aqui, de uma caricatura. Este um termo extremamente pejorativo na academia, mas no vejo motivo para tanto, pois o que uma caricatura faz (ao menos uma boa caricatura) exagerar alguns traos marcantes. Ainda assim, ela muitas vezes consegue retratar com alguma proeza seu objeto. O que Ea-gleton faz, nesse trecho, precisamente isto: ele exagera um trao, mas algo que realmente existe na obra de Adorno. O frankfurtiano de fato assevera que a dominao se disseminou a tal ponto que abrangeu vrias instncias subjeti-vas, psquicas. Isso cria uma situao de quase completa reificao e coloca em

2 Essa passagem na obra de Eagleton contradiz um trecho de outra obra dele, publicada apenas um ano antes, A ideologia da esttica, em que apresenta um retrato muito mais nuanado da teoria de Adorno. Cito-o: Adorno cabalista o suficiente para decifrar os sinais de redeno nos lugares mais improvveis na paranoia do pensamento-da-identidade, nos mecanismos do valor-de-troca, entre as linhas elp-ticas de Beckett ou na sbita dissonncia de um violino de Schnberg. A histria est transbordando de desejo de justia e bem-estar, clamando pelo dia do juzo, trabalhando para se autoderrubar, plena de poderes messinicos fracos: basta que se aprenda a procur-los nos lugares menos bvios. Mas h sempre uma outra estria. Se Adorno capaz de decifrar o desejo de felicidade num decreto burocrti-co, tambm depressivamente habilidoso para discernir a rapacidade que se esconde em nossos gestos mais edificantes. No pode haver verdade sem ideologia, transcendncia sem traio, nem benefcios que no sejam comprados custa da infelicidade do outro. (EAGLETON, 1993, p. 263).

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perigo a prpria possibilidade da crtica. O quadro, no entanto, se me permi-tem a metfora, no to negro como Eagleton sugere, pois haveria ainda, em muitas partes, um cinza escuro, capaz no s de denunciar o negro como de guardar a esperana do colorido.

Embora as questes de remetente e de destinatrio estejam profunda-mente entrelaadas e, ao menos no caso da teoria adorniana, todo destinatrio tambm um possvel novo remetente, gostaria de analis-las em separado, ao menos em um primeiro momento. Comeo, portanto, investigando as condies de possibilidade de se fazer a crtica de acordo com o diagnstico traado pelo pensador frankfurtiano, isto , de como seria possvel perceber a reificao e denunciar o que a produz, colocando-se, assim, na medida em que isso ainda possvel, fora da totalidade social quase oniabrangente (I); ento, passo a lidar com o problema de quem seriam as pessoas para quem a crtica feita (II); por fim, tento resumir minhas principais hipteses de interpretao e salientar algumas especificidades histricas que so bastante evidentes nesse quesito e que, sem dvida, influenciaram o diagnstico adorniano (III).

i dAs dificuldAdes de AindA se ser crtico

Antes de passar propriamente questo de como ainda se pode ser crtico, conveniente antecipar algumas observaes acerca do diagnstico da sociedade contempornea feito por Adorno. Apenas para ressaltar que a interpretao feita por Eagleton, no trecho supracitado, segundo a qual a sociedade hodierna seria como um monlito sem fissuras, uma totalidade coesa e fechada, no mais antagnica ou contraditria, dista muito da an-lise de Adorno. De acordo com o frankfurtiano, a sociedade, apesar de sua crescente integrao, segue estando profundamente cindida. A totalidade que caracteriza a presente sociedade ela prpria erigida sobre um antago-nismo que se reproduz e se manifesta em cada produto social, em cada frag-mento da experincia. Para ele, nada singular encontra a sua paz no todo no-pacificado. (ADORNO, DN3: 133). Portanto, o mundo est repleto de marcas de tais antagonismos e contradies. Justamente a identidade da situao objetiva e da conscincia subjetiva, que seria a condio necessria para uma totalidade coesa e sem fissuras, se mostra como quebradia, e [...] no mesmo instante paga com neurose, com sofrimento, com todos os

3 As citaes dos textos de Adorno, para melhor identificao, sero feitas sempre pelas iniciais da obra. No caso especfico da Minima moralia, em vez da pgina, referencia-se o nmero do aforismo.

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possveis fenmenos de mutilao, assim que se olha apenas um pouco sob a superfcie do consentimento feliz. (ADORNO, PETG: 113).

No entanto, como ele afirma na Minima moralia, faz parte do meca-nismo da dominao impedir o conhecimento dos sofrimentos que ela pro-duz. (ADORNO, MM: 38). O sofrimento naturalizado ou interiorizado por aqueles que sofrem, de tal maneira que este raramente visto como pro-duto de uma ordem social injusta ou irracional. A funo do terico crti-co justamente a de desnaturalizar tal sofrimento. Ele precisa, tal como um estraga-prazeres, trazer as pessoas conscincia de sua infelicidade (ADOR-NO, MM: 38), mas no simplesmente dizendo para os infelizes que eles so infelizes, caso ainda no o tenham descoberto, mas, sobretudo, mostrando que a causa de suas infelicidades no est neles mesmos, em suas fraquezas ou de-ficincias, tampouco em uma ordem imutvel qual se est fadado; a causa de tais sofrimentos reside, ao menos em grande parte, em uma ordem social cujo processo de legitimao exitoso, na exata medida em que consegue se eximir dos males dela provenientes. A tarefa do crtico , pois, a de deslegitimar tal ordem social. Cabe a ele mostrar queles que sofrem que os seus sofrimentos podem findar ou ser atenuados, se a sociedade for organizada de forma mais justa e racional; se, por exemplo, em vez de se orientar pelo lucro, pelo cresci-mento econmico desenfreado, ela almejar a satisfao das necessidades vitais e a prpria reduo do sofrimento.

O problema, porm, saber: quem ainda conseguiria escapar ao pr-prio mecanismo de dominao, para conseguir denunci-lo? Quem teria con-dies de perceber as marcas do antagonismo e desvend-lo? E mais: quem ainda teria condies de refletir acerca da denncia que desvenda o antagonis-mo? E que critrio pode julgar a veridicidade da crtica?

A) o crtico

No aforismo privilgio da experincia, na introduo da Dialtica ne-gativa, Adorno comenta precisamente sobre aquilo que aqui investigado. Ele observa que um conhecimento dialtico, uma experincia filosfica, precisa de mais sujeito para no definhar, e no de menos sujeito, tal como sugere o esprito positivista de nosso tempo. Uma consequncia disso que tal conheci-mento, ou tal experincia, no possvel para todos, mas s para alguns indiv-duos privilegiados por suas disposies e histria de vida. (ADORNO, DN: 42). Embora isso soe elitista e antidemocrtico, como o prprio frankfurtiano

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reconhece, quem imagina que qualquer pessoa pode fazer tais experincias que so necessrias para a crtica ignora o que o mundo administrado faz com seus membros forados. (ADORNO, DN: 42). E, posteriormente, refora:

Seria fictcio supor que, entre as condies sociais, sobretudo entre as con-dies sociais da educao, que encurtam, talham sob medida e estropiam multiplamente as foras produtivas espirituais, que com a indigncia rei-nante no domnio da imaginao e nos processos patognicos da primeira infncia diagnosticada pela psicanlise, mas de modo algum realmente transformados por ela, todos poderiam compreender ou mesmo apenas notar tudo. (ADORNO, DN: 42).

Em outras palavras, a dominao tamanha que chega a ser difcil perceb-la; to abrangente, que s poucos conseguem distanciar-se dela o suficiente para conseguir not-la. Assim, os nicos que podem se opor espi-ritualmente a isso so aqueles que esse mundo no modelou completamente. (ADORNO, DN: 42)4. Logo depois, o autor especifica:

Cabe queles que, em sua formao espiritual, tiveram a felicidade imere-cida de no se adaptar completamente s normas vigentes [...] expor com um esforo moral, por assim dizer por procurao, aquilo que a maioria daqueles em favor dos quais eles o dizem no consegue ver ou se probe de ver por respeito realidade. O critrio do verdadeiro no a sua comuni-cabilidade a qualquer um. (ADORNO, DN: 43).

importante aqui salientar o carter imerecido do privilgio da incom-pleta adaptao. No se trata de crticos que so mais inteligentes, ou que perceberam a reificao por um imenso esforo de pensamento, mas simples-mente de uma questo de sorte e de privilgio, de terem tido a oportunidade de uma formao espiritual que est em vias de extino. Ademais, tampouco se trata de crticos que no esto adaptados, que no foram moldados pelo sistema que tudo reifica, porm, de indivduos que no foram completamente moldados e adaptados. Eles tambm fazem parte, tambm reproduzem a m totalidade social e esta tambm se imiscui em seus pensamentos e em suas

4 Como ser visto logo mais adiante, mesmo os indivduos mais moldados e adaptados ordem vigente mantm certo distanciamento, ou, ao menos, precisam lidar com uma srie de frustraes que colocam em risco tal adaptao completa. Nesse sentido, o indivduo crtico (aquele que, portanto, pode ser o terico crtico) se diferencia do indivduo comum, por assim dizer, antes por uma questo de grada-o em sua capacidade de distanciamento do que por uma questo de sim ou no, de conseguir fazer algo que o outro no consegue (assim, ele capaz de se distanciar mais, de manter uma reserva maior, frente ao processo de adaptao sociedade vigente).

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crticas. Por isso mesmo, a crtica precisa prestar contas sobre at que ponto, de acordo com sua possibilidade no interior da ordem estabelecida, est conta-minada por essa ordem, e, por fim, pela relao de classes. (ADORNO, DN: 43). Isto , a teoria s consegue sua independncia refletindo e percebendo o quanto est imersa na situao que ela critica. Por causa disso, o frankfurtiano previne as antecipaes do que seria uma sociedade correta:

Quem, a fim de escapar da objeo de que no sabe o que quer, pinta para si um estado de coisas justo, no pode abstrair dessa supremacia que se abate mesmo sobre ele. Se sua prpria fantasia permitisse imaginar tudo radicalmente transformado, essa fantasia mesma permaneceria ainda acor-rentada quele que imagina e tudo daria errado. No estado de liberdade, mesmo o homem mais crtico possvel seria totalmente diverso, exatamen-te como aqueles para os quais ele deseja a transformao. (ADORNO, DN: 291-292).

Mesmo o crtico est moldado. No obstante, ele ainda consegue uma distncia, embora mnima, que faz com que seja capaz de confrontar-se com tal realidade. Todavia, essa distncia no est acessvel a todos. No est aces-svel mesmo queles que, muitas vezes, so os que mais sofrem na situao vigente. Adorno se contrape, com isso, tanto a Lukcs quanto maioria do marxismo, por assim dizer, misericordioso. Os trabalhadores e os pobres no esto em melhores condies de perceber quo m sua situao, simples-mente porque desconhecem qualquer outra. A vida endurecida se interioriza neles, como se fosse algo inevitvel. A classe operria s se ops ao sistema capitalista como tal enquanto estava viva a lembrana de dias diferentes, do mundo pr-capitalista. Depois, lutou s por um melhor quinho na reparti-o do produto social, mas no pela transformao da sociedade e do modo de produo. A crtica ao privilgio transforma-se em privilgio: o curso do mundo dialtico a um tal ponto. (ADORNO, DN: 42). Ou, como sa-lientam outro trecho: Na linguagem dos oprimidos, porm, resta apenas a expresso da dominao, que tambm a privou daquela justia que a palavra autnoma, no-mutilada, promete a todos aqueles que so livres o bastante para diz-la sem rancor. (ADORNO, MM: 65). Tal tese, no entanto, cor-re o risco de aumentar ainda mais a opresso j vivenciada, na medida em que retira dos oprimidos a prpria capacidade de expressar o sofrimento do qual padecem, reforando o mecanismo de emudecimento social dos menos favorecidos. Pinzani (2011) argumenta, a meu ver com razo, que a teoria crtica precisa ouvir os mais pobres uma vez que a prpria articulao de

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sua situao na linguagem j permite a eles o rompimento ou atenuao de uma dimenso da dominao a qual so submetidos ao mesmo tempo em que no pode dar crdito total a seus relatos, visto que eles interiorizam as imagens dominantes na sociedade (inclusive e, sobretudo, a imagem que a sociedade tem deles prprios) e ao fato de que sua pobreza impede ou limita a articulao de sua situao (de modo que a autonomia no pode ser pressuposta, sobretudo nos indivduos em pior situao socioeconmica, pelo contrrio, ela precisa ser fomentada). Adorno deu imensa importncia aos estudos empricos conduzidos pelo Instituto (e por ele mesmo, em in-meras ocasies) e sempre foi um entusiasta deles, alm de suas obras mais especulativas terem vnculo estreito com tais estudos, apesar de nem sempre explcitos.5 Nessa perspectiva, seria injusto acus-lo de no dar ateno aos diretamente envolvidos e fazer uma crtica externa. Como ele mesmo nota, em passagem j citada, basta olhar com um pouco de ateno para ver quo quebradio o consenso feliz e o quanto se manifestam, em todos os luga-res, os sofrimentos existentes. Contudo, a teoria crtica adorniana parece dar insuficiente importncia ao papel reflexivo dos diretamente concernidos, como se seus relatos apenas indicassem os problemas que precisam ser mais bem diagnosticados pelo terico crtico.

Assim, a crtica da reificao segue sendo possvel, porque ela no completa, ao menos em alguns indivduos, os quais tiveram a imerecida sorte de terem ainda uma formao espiritual que no fosse simplesmente talhada sob medida para o mercado, para a funo social que a pessoa em questo pro-vavelmente desempenharia. Isso coloca uma srie de questes. Sendo a crtica um privilgio, como garantir que ela no seja feita visando apenas ao bem do privilegiado? Isso no levaria a uma espcie de paternalismo, no qual um te-rico iluminado diz como as pessoas deveriam se comportar?

5 Por isso, discordo da afirmao de Honneth, segundo a qual Adorno mantm ao longo de sua carreira uma atitude ambivalente em relao ao projeto de uma teoria da sociedade interdisciplinar e empiricamente controlada (HONNETH, 1993, p. 36-7), e que a pesquisa social emprica teria sido cada vez mais marginalizada, no percurso terico do frankfurtiano (cf. cap. 3). De todos os tericos vinculados ao Instituto, Adorno provavelmente foi aquele que menos se ateve a uma disciplina (e aquele, por sinal, que mais participou dos estudos empricos). Seu pensamento se caracteriza, antes, por ignorar as fronteiras entre os diversos mbitos do conhecimento do que pela tentativa de somar as divises do trabalho intelectual estanques em vigor. Como nota Renault (2009, p. 173), o aban-dono da interdisciplinaridade e da pesquisa emprica, no mbito da teoria crtica, s ocorre depois de terminada a obra adorniana, com a guinada rumo ao normativismo habermasiano (e, grosso modo, tal abandono se mantm desde ento).

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b) A boA crticA AquelA cApAz de explicAr os fenmenos sociAis

Tais questes talvez no encontrem, na obra adorniana, uma resposta conclusiva. Em primeiro lugar, no h garantia alguma de que o privilegiado que teve uma formao melhor no pense, por exemplo, que capaz de ver os problemas da sociedade por sua maior capacidade e justifique, assim, a hierar-quia existente. Nem toda crtica uma crtica correta. A sociedade capitalista to intransparente que mesmo aos olhos do mais agudo crtico tudo aparece obnubilado. As chances de erro, portanto, so sempre grandes, e preciso precaver-se o tempo todo contra elas.

Porm, h um critrio claro que d fortes indcios sobre a veridicidade da crtica. Sabe-se que a teoria crtica em geral no apenas em sua verso adorniana, mas tambm j no escrito programtico de Horkheimer, Teoria tradicional e teoria crtica, publicado quase trinta anos antes da Dialtica negativa se caracteriza no s pela recusa da no valorao daquilo que ela analisa, quanto igualmente por no separar a crtica, a denncia, da anlise explicativa. No se trata de explicar a sociedade, em um primeiro momento, e, em um segundo, critic-la, mas de fazer uma explicao da sociedade que j ao mesmo tempo sua crtica. Nesse sentido, o critrio de veridio da crtica sua prpria capacidade explicativa. Quanto mais a interpretao crtica da realidade capaz de explicar os fenmenos sociais, mais ela consegue mostrar o carter problemtico e contraditrio destes e mais exige a transformao deles.

H, portanto, um critrio que permite avaliar a crtica, isto , ver se ela correta ou no (a saber, seu poder explicativo, sua capacidade de analisar a situao em questo). O problema levantado h pouco recordando: se o fato de que se s aqueles que tiveram uma formao espiritual privilegiada seriam capazes de contrapor-se vida endurecida, mutilada, e denunci-la, em vez de tom-la como um fato natural e inevitvel, no pode acarretar uma situao na qual a crtica feita antes com o intuito de manter o privilgio do que de abo-li-lo fica, ao menos em parte, respondido. No h garantia alguma de que isso no ocorra, contudo, h indcios para julgar que uma crtica que chegue a tais concluses fracassa, pois uma teoria crtica que busque a manuteno do privilgio teria, a princpio, mais dificuldades para explicar certos fenmenos, por exemplo, inmeras patologias que ocorrem nas camadas mais desfavore-cidas da populao, sem questionar as causas que produzem tais patologias e, assim, demandar a abolio das mesmas. Nesse caso, como nos demais, uma anlise aprofundada da situao leva necessariamente ao questionamento das causas que a geram e exigncia da transformao dessas causas. A teoria

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crtica correta no seria uma dentre um leque de possveis escolhas a se fazer, mas o resultado da anlise objetiva da realidade levada at as suas ltimas con-sequncias. Algo que Horkheimer j notara, ao afirmar que qualquer esforo intelectual consequente, preocupado com as questes humanas, desemboca analogamente na teoria crtica. (HORKHEIMER, 1975, p. 155). A teoria crtica, assim, se faz fiadora da ideia spinoziana de que a verdade ndice de si mesma (ADORNO, DN: 43).

No entanto, preciso um esclarecimento sobre o conceito de verdade e seu uso, na teoria crtica, especialmente porque os autores vinculados a tal projeto recusam a concepo predominante da verdade como correspondn-cia (a qual afirma, grosso modo, que verdadeira a sentena que corresponde a um determinado estado de coisas). Adorno (assim como os outros tericos crticos) adota antes um uso prximo ao hegeliano, de acordo com o qual ver-dadeiro a correspondncia da coisa com seu conceito (nesse caso, um amigo verdadeiro, se ele faz aquilo que se espera de um amigo, e falso, se no o faz).6 O conceito de verdade, ao menos nessa acepo, possui valor normativo: No conceito enftico da verdade est inclusa a correta ordenao da sociedade. (ADORNO, SLCS: 60). No se trata, porm, de contrastar a ideia de uma sociedade correta com a sociedade existente, pois tal ideia s surge da crtica, portanto da conscincia da sociedade quanto a suas contradies e necessi-dades. (ADORNO, SLCS: 57). A prpria verdade tem um cerne somtico, ao menos segundo o frankfurtiano, pois, em ltima instncia, ela consiste na negao do sofrimento, no clamor de sua abolio.

A teoria crtica fica, assim, em uma posio bastante frgil. Ela precisa convencer aqueles que levam uma vida lesada de que a causa de seus sofrimen-tos est na ordem social e de que possvel transform-la, todavia, para tanto, ela se defronta, por um lado, com discursos que ajudam a legitimar a ordem, que reforam os mecanismos de dominao e, por outro, com discursos cr-ticos que elegem bodes expiatrios e cujas solues podem ser ainda piores do que os males a remediar. quase desnecessrio dizer que no h garantia alguma de que obter sucesso em tal empreitada. Em primeiro lugar, o seu

6 Nas prprias palavras de Hegel: Um verdadeiro amigo; e se entende com isso, um amigo cuja ma-neira-de-agir conforme ao conceito de amizade; igualmente se fala de uma verdadeira obra-de-arte. No-verdadeiro, ento, quer dizer o mesmo que mau, inadequado em si mesmo. Nesse sentido, um mau Estado um Estado no-verdadeiro, e o mau e o no-verdadeiro, em geral, consistem na contra-dio que tem lugar entre a determinao ou o conceito, e a existncia de um objeto. Podemos fazer uma representao correta de um tal objeto mau, porm o contedo dessa representao algo em si no-verdadeiro. (HEGEL, 1995, p. 82).

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discurso carece da formao, que est em grande medida ausente para poder ser compreendido (ao passo que o discurso que elege bodes expiatrios au-menta as chances de xito em condies de pior formao). Mesmo para julgar a teoria crtica como a melhor explicao de dado fenmeno j preciso ter sido um privilegiado, gozar de uma educao que no foi oferecida a todos.7 Alm disso, a objetividade qual a teoria apela fugaz: ela pretende explicar os fenmenos com base em sua observao atenta e em sua anlise mais rigorosa possvel, mas sabe que a promessa de certeza oferecida pelo positivismo uma quimera e, por conseguinte, no a repete.

c) AlienAdos ou reificAdos? sobre o problemA do pAternAlismo.

No entanto, resta a dvida acerca do possvel paternalismo da teoria crtica. Objeta-se, com isso, que a teoria crtica (a qual denunciaria a alienao das pessoas que esto, em geral, conformadas com a sua situao) coloca-se a si mesma em um pedestal privilegiado e arroga-se uma postura de mestre, ou-torgando a si prpria a funo de ensinar aos indivduos alienados o que seria a vida correta, muitas vezes contra a manifesta vontade das prprias pessoas. Mais precisamente, aqui seria o caso de que o indivduo, o qual, de forma imerecida, teve o privilgio da formao espiritual e que, por causa disso, no foi talhado sob medida para a mera reproduo do existente, seria paternalis-ta ao dizer para aqueles que, em sua viso, esto completamente moldados, adaptados, que eles vivem uma vida falsa, mesmo que tenham optado por ela. Este um assunto deveras atribulado e exige um bocado de cautela. Existe hoje um quase consenso liberal-democrtico (qui ps-moderno) que advoga pelo igual valor de todas as opinies e escolhas, o qual, no mnimo, pressupe certo grau de autonomia bastante desenvolvido nos indivduos. Esse quase consenso condena como autoritria toda conduta que, como o caso da teoria crtica, no consiste em simplesmente corroborar tais opinies e escolhas. No que segue, gostaria de comentar porque, em minha viso, a teoria crtica no incorre nem no erro do autoritarismo nem no do paternalismo, a partir da

7 Zuidervaart (2007, p. 66-70) observa que, para Adorno, a experincia filosfica se autentica a si mesma, e critica o terico frankfurtiano, por no articular contextos de justificao em que a concep-o de verdade pudesse ser publicamente testvel. De fato, no h tal porto seguro, no pensamento adorniano. Talvez se pudesse dizer que, se as pessoas no fossem lesadas, tanto em suas vidas quanto em suas capacidades cognitivas, elas poderiam chegar a um acordo sobre a verdade, mas isso de nada adiantaria para lidar com a situao, que, aos olhos do frankfurtiano, importa: uma situao em que as pessoas so lesadas e em que o mecanismo de dominao mascara at mesmo os sofrimentos que a dominao causa.

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A possibilidade da crtica no capitalismo tardio Artigos / Articles

diferenciao da crtica da reificao frente crtica da alienao e da discusso acerca da funo social do terico crtico.

Em primeiro lugar, h que se questionar se os termos reificao e alienao podem ser tomados como sinnimos, como foi o caso na passa-gem supracitada de Eagleton. Penso que no. Alis, no s os dois termos no so sinnimos, como Adorno faz meno de suas diferenas e explica porque adota um e recusa o outro. Alienao remete em especial s obras do jovem Marx (o termo tambm usado por Hegel, porm, em um sentido bastante distinto), sobretudo aos Manuscritos econmico-filosficos, e tese nelas contida segundo a qual o homem se encontra alienado de sua prpria natureza, na sociedade capitalista, porque no mais o dono dos produtos de seu trabalho, tese esta que alude a um passado em que o fenmeno da alienao no ocorre, uma vez que os homens eram os donos imediatos daquilo que faziam. Para Adorno, essa tese problemtica:

Os homens, sem nenhuma exceo, ainda no so de maneira alguma eles mesmos. Com toda a razo, poder-se-ia pensar com o conceito de si pr-prio a sua possibilidade, e essa possibilidade se ope de modo polmico realidade do si prprio. exatamente por isso que o discurso sobre a alienao do eu insustentvel. Apesar de seus melhores dias hegelianos e marxistas, ou mesmo por causa deles, esse discurso se tornou apologtico porque d a entender, com facetas paternais, que o homem seria separado de um ser-em-si que ele sempre foi, por mais que ele nunca tenha sido, e que, por consequncia, recorrendo s suas , ele no pode esperar nada que se submeta a uma autoridade, quilo que justamente lhe estra-nho. O fato de esse conceito no figurar mais em O capital de Marx no apenas condicionado pela temtica econmica da obra, mas possui um sentido filosfico. (ADORNO, DN: 232).

Como fica claro nessa citao, para Adorno, a tese da alienao simplesmente insustentvel. Ela d a entender que a essncia humana era realizada em formaes sociais anteriores e deixou de s-la, o que falso. No h uma boa natureza original qual se possa recorrer, para denunciar o estado atual do mundo, porque, na viso de Adorno, a histria foi at agora pr-histria, a histria da cegueira, do fetichismo, da superstio. No adianta contrapor a sociedade capitalista com as formaes sociais anterio-res, pois elas eram igualmente ms e problemticas (o frankfurtiano, por sinal, jocosamente observa que as caracterizaes contemporneas das cida-des medievais costumam dar a impresso de que uma execuo tinha lugar

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expressamente para o divertimento do povo.) (ADORNO, DN: 164). A emancipao pretendida no de forma alguma o retorno a uma situao passada, como o romantismo advoga. Alm disso, tambm essa ideia de uni-dade consigo mesmo, de no estranhamento ou no alienao como algo bom, problemtica para o frankfurtiano:

Para alm do romantismo que se experimentou como mal do sculo, como sofrimento com a alienao, levanta-se a expresso de Eichendorff: bela estrangeiridade. A disposio reconciliada no anexaria o estranho a um imperialismo filosfico, mas encontraria sua felicidade no fato de o estra-nho e o diverso permanecerem na proximidade por ns conferida, para alm do heterogneo tanto quanto do prprio. (ADORNO, DN: 164).

Trata-se antes de uma reconciliao com o diverso, no de uma trans-formao deste em familiar. A alienao, tornar-se outra coisa do que aquilo que seria a sua real natureza, por conseguinte, sequer algo problemtico. Como ideal de condio emancipada , assim, mais interessante a ideia ei-chendorffiana de uma bela estrangeiridade do que tal concepo de que o bom o original, o autctone, o primeiro.

O prprio Adorno assevera que a crtica da alienao tem facetas pa-ternais, pois consiste em criticar uma determinada situao a partir de um modelo arbitrrio de realizao, a verdadeira natureza. Entretanto, o mesmo no vale para o termo reificao. Dizer que algo est reificado significa, sim-plesmente, que esse algo se tornou uma coisa. Portanto, s faz sentido criticar a reificao daquilo que no era ou no devia ser um objeto, mas sim um sujei-to. A crtica da reificao remete igualmente obra de Marx, mas, sobretudo, sua obra tardia, em especial tese segundo a qual a opacidade produzida pelo fetichismo da mercadoria faz com que as relaes pessoais se objetifiquem e deixem de ser controladas pelas pessoas, tornando-se, com isso, um autmato, o capital. Nesse caso, nas palavras de Marx, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele [...] se autovaloriza. (MARX, 1985, p. 130). O importante a notar que ele o prprio agente do processo, ao passo que as pessoas participam no mesmo meramente como engrenagens, como meios pelos quais o valor alcana seu objetivo.

O termo reificao, porm, comumente associado teoria do Lukcs de Histria e conscincia de classe, que se distingue fortemente do emprego mar-xiano do termo. Se a reificao algo objetivo aos olhos de Marx (as pessoas tornam-se coisas e as coisas tornam-se sujeitos), ela principalmente subjetiva

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para Lukcs ( a conscincia que est reificada). Se Adorno recusa, de forma veemente, o termo alienao, ele ambguo quanto ao conceito de reificao. Penso que ele se aproxima do uso marxiano e mantm reservas maiores com o emprego lukcsiano. Mesmo assim, ele sempre recusa a crtica da reificao como uma crtica que faz apelo a uma situao passada em que tal fenmeno ainda no se dava.8 Objetivamente (por conseguinte, na acepo marxiana), o termo adequado para tratar da condio dos humanos, na sociedade atual: eles so antes os objetos da sociedade do que os seus sujeitos. Enquanto tal, a crtica da reificao aponta para a inexistncia da autonomia, da autodetermi-nao. Se os indivduos so apenas engrenagens no processo social, a liberdade deles ilusria, assim como as suas escolhas.

A crtica da reificao, ao contrrio da crtica da alienao, no corre o risco de ser paternalista. Adorno no critica o indivduo, por ele preferir a vida falsa vida correta, mas critica a situao social, por ela impor um mo-delo de vida sobre o indivduo, por ela no permitir que as pessoas se auto-determinem. Nesse sentido, a teoria crtica pode muitas vezes mostrar como ilusria a crena de que as pessoas so o resultado de suas escolhas, de suas preferncias e, portanto, responsveis pela sua situao atual; ela evidencia como mesmo as escolhas so foradas, predeterminadas: a opinio dominante adora apresentar alternativas entre as quais se deve escolher, uma das quais se deve marcar com uma cruz. [...] Ao pensamento filosfico, porm, em suas situaes essenciais, cabe no jogar esse jogo. A alternativa previamente dada j um fragmento de heteronomia. (ADORNO, DN: 35). Pode-se retrucar que ainda isto, a denncia da falta de autonomia, paternalismo, que as pes-soas preferem ser engrenagens, no entanto, nesse aspecto, h que se perguntar o que significa esse preferir. Adaptar-se ao inevitvel um mecanismo de au-topreservao, muitas vezes necessrio; o que a teoria crtica faz demonstrar que muito do que se apresenta como inevitvel na verdade no o , que pode-ria ser transformado.

O prprio Adorno, todavia, sugere que a crtica no deve focar no fen-meno da reificao: O lamento sobre a reificao evita mais do que denuncia aquilo que produz o sofrimento dos homens. O mal est nas relaes que condenam os homens impotncia e apatia, e que, no entanto, teriam de

8 Criticando Heidegger, Adorno comenta que a necessidade filosfica passou sem ser percebida da necessidade de contedo coisal e de solidez para a necessidade de escapar da reificao no esprito, realizada pela sociedade e ditada categorialmente para os seus membros, por meio de uma metafsica que condena uma tal reificao, indicando-lhe os seus limites por meio de um apelo a algo originrio imperdvel. (ADORNO, DN: 84).

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ser alterada por eles; e no primariamente nos homens e no modo como as relaes aparecem para eles. (ADORNO, DN: 163). Isto , a crtica deve des-tacar aquilo que reifica as pessoas, em vez de afirmar que elas esto reificadas. A conscincia, reificada na sociedade j constituda, no seu constituinte. (ADORNO, DN: 163). A reificao , por assim dizer, um sintoma do pro-blema, mas no o prprio problema.9 Mais ainda, Adorno se distancia do uso lukcsiano de reificao, predominantemente subjetivo, por no acreditar que seja possvel uma conscincia correta nessa situao social (como seria o caso, em Histria e conscincia de classe, do ponto de vista do proletariado): Assim como no h uma vida correta no falso, tampouco pode haver uma conscin-cia correta nele. (ADORNO, MWG: 591).

Por fim, gostaria ainda de fazer uma observao sobre a crtica ao pa-ternalismo. evidente que nenhum terico crtico se coloca na funo de rei--filsofo, no cabendo a ele decretar como a sociedade ser organizada, sequer elaborar um plano a ser simplesmente ratificado pelas pessoas. Nesse sentido, acho que toda a crtica ao paternalismo est, grosso modo, mal colocada, pois no leva em conta a funo social do crtico. Ele no o pai ou governante que decide o que se pode ou no fazer, nem mesmo o tutor que ensina a criana a educar seu gosto. Antes, aquele que confronta a sociedade com os pr-prios critrios dela, que rememora algumas das promessas no cumpridas da prpria ordenao social e que analisa as patologias, em busca de suas causas. Assim, o crtico no est nunca em uma situao de poder, porm, sempre na posio daquele que exige mudanas, embora no seja ele prprio o agente de tais transformaes (pode at participar delas, mas a sua principal funo foment-las). Ora, cabe a ele, de fato, mostrar como e porque muitas relaes que as pessoas no tomam como problemticas o so. Nesse caso, preciso confrontar as opinies dominantes e no as corroborar. No por estar em um pedestal que tornaria a sua viso correta e as demais erradas, como os crticos do paternalismo costumam objetar, no entanto, argumentando e apontando s pessoas evidncias e indcios que elas at ento no teriam percebido. En-

9 Zuidervaart nota igualmente a funo apenas secundria do conceito de reificao, na obra adorniana. Cito-o: Adorno chamou a reificao da conscincia um epifenmeno. O assunto com o qual uma teoria social crtica realmente precisa lidar por que a fome, a pobreza, e outras formas de sofrimento humano persistem apesar do potencial cientfico e tecnolgico para mitig-las ou elimin-las. (ZUIDERVAART, 2011).

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fim, o terico crtico, por mais que o queira, no est em condies de obrigar algum a ser maior de idade.10

ii dAs dificuldAdes de AindA se ter pblico

Tendo-se visto quem o crtico, o terico capaz de ainda se distan-ciar o bastante da situao vigente para denunciar as suas mazelas e con-tradies, resta analisar qual o seu pblico-alvo. Segundo a interpretao aqui proposta, a teoria crtica de Adorno considera que as possibilidades para a emancipao no estavam dadas, no momento em que ele escreveu e teorizou. Isso no leva a um recolhimento terico resignado, mas antes a um engajamento em tarefas de resistncia, na tentativa de transformao de fatores subjetivos e melhorias dentro da ordem existente, ao menos at que as precondies para uma transformao emancipatria voltem a estar pre-sentes.11 Seu pblico-alvo, por conseguinte, deve ser tambm algum capaz de, mesmo que apenas futuramente, transformar a sociedade. Isso significa que se trata, aqui, de um possvel sujeito revolucionrio, tal como fora o proletariado, no comeo do sculo XIX. Para o frankfurtiano, contudo, o proletariado est ento completamente integrado sociedade, no mais uma fora hostil a ela e nem d mostras de que poderia voltar a ser. Adorno tampouco credita ao lumpemproletariado, ral ou plebe, alguma capaci-dade transformadora, at mesmo porque, nos anos sessenta, em especial na

10 Pode-se objetar que tal teoria crtica, embora no implique num paternalismo poltico, resulte mes-mo assim num paternalismo epistmico, ao ver patologias que no so sentidas como tais pelos sujeitos diretamente envolvidos. o caso, para mencionar um exemplo, do antissemita ou do homofbico, que so considerados por tal teoria crtica como indivduos patolgicos, embora eles prprios no se vejam como tais ao contrrio, a patologia, para eles, estaria presente antes nos judeus ou nos homos-sexuais. Nesse caso, no vejo como uma teoria possa permanecer crtica sem certo grau de paternalismo epistmico. Uma teoria que se coloque em grau de igualdade com os diretamente envolvidos pode apenas corroborar a compreenso mundana destes, reforar suas intuies pr-tericas, todavia, no as transformar. Outra objeo seria a de que tal teoria crtica criaria patologias de antemo, consideraria patolgicos os indivduos simplesmente por eles no se adequarem aos seus critrios de sanidade. Uma teoria crtica que fizesse isso estaria, evidentemente, equivocada. Ela sempre parte da constatao do sofrimento, do mal-estar, da violncia, e vai em busca de suas causas, nunca de um ideal prvio. No caso do homofbico ou do antissemita, ela deve partir da constatao de que tais indivduos apresen-tam um comportamento violento, antissocial, e perceber as contradies de seus discursos e procede-res, alertando o restante da sociedade para o perigo iminente a tais atitudes e sugerindo medidas para precaver a disseminao delas.11 O diagnstico de Adorno, assim como a questo relativa ao engajamento poltico e prxis transfor-madora que seria ento possvel, assunto do primeiro captulo de minha tese de doutorado (FLECK, 2015). Tal assunto recebe tratamento acurado em Jurez (2012) e Freyenhagen (2014).

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Europa, tambm ele estava integrado ou era quase inexistente. Tampouco poderiam ser os estudantes ou a juventude tal sujeito. Na verdade, em sua viso, no parece haver qualquer indcio de um grupo social capaz de opor alguma resistncia organizada ao sistema capitalista. Isso no faz com que ele adote uma variante de pensamento mgico que pense que a transformao possa se dar sem um ou mais grupos sociais que a proponham, exijam e lu-tem por ela. Muito menos que adote a ideia de que certas instituies sociais, como o direito ou a democracia, teriam em si algum potencial emancipa-trio que bastaria desenvolver.12 Tais instituies tm servido, sobretudo, reproduo da ordem existente, e apelar para supostos aspectos contrafatuais os quais lhes seriam intrnsecos pode parecer to dogmtico quanto o velho comunista que segue achando que, apesar de todos os indcios apontarem para o contrrio, o proletariado est ganhando conscincia e, quando menos se espera, far a revoluo.

No que segue, argumento que Adorno pensa concomitantemente em dois destinatrios distintos: as geraes futuras, capazes de engajarem-se em uma transformao radical e verdadeiramente emancipatria da sociedade, quando as condies assim o permitirem; e os indivduos da sociedade atual, na medida em que no esto plenamente adaptados sociedade e podem, por isso, promover melhorias (no emancipatrias) dentro da situao vigente e colaborar, na medida do possvel, para a criao das precondies necessrias para uma maior transformao futura.

A) GerAes futurAs

O primeiro destinatrio da teoria crtica so as geraes futuras. Uma vez que a emancipao estava bloqueada, cabia teoria crtica salvaguardar a ideia de liberdade para um momento em que esta pudesse novamente se rea-lizar. Trata-se, aqui, da ideia da teoria crtica como garrafas jogadas ao mar, na esperana de que algum posteriormente as recolha e faa bom uso delas.13 ,

12 O que no significa, obviamente, que Adorno seja contra a democracia ou o direito, ou que no acreditasse que esse era o sistema poltico e jurdico mais adequado para a sociedade em que vivia. Apenas significa que ele no acreditava que a democracia pudesse emancipar as pessoas de sua condio de objetos, de engrenagens. Direito e democracia podem acarretar, em sua viso, melhorias dentro da ordem existente, mas so demasiado limitados para conseguir tornar tal ordem justa, correta e racional.13 O lugar do trabalho crtico e persistente aqui e agora, mesmo quando no h vista destinatrio para o que se tem a dizer. Adorno no se dirige a ningum definido: classe, organizao, movimento,

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especialmente, uma ideia de resistncia: manter vivo o ideal de uma sociedade verdadeira, justa e emancipada em um momento em que at mesmo tal ideal corre perigo de desapario. No obstante, s faz sentido manter vivo tal ideal por se cogitar que, em dias melhores, ele possa ser realizado. Foi visto que, segundo Adorno, o sistema capitalista segue sendo antagnico e contraditrio. Embora reconhea que a economia social de mercado foi capaz de atenuar os antagonismos sociais e que o modelo econmico intervencionista, de tipo keynesiano, consegue instituir de antemo mecanismos que evitem ou ame-nizem as crises (ADORNO, PETG: 50-2), ele pensa que o capitalismo conti-nua tendo tendncias problemticas (por exemplo, em direo formao de monoplios cada vez maiores), as quais, em algum momento, devem explodir ou ultrapassar os limites em que so toleradas. No cabe teoria crtica, ao menos em sua verso adorniana, fazer prognsticos econmicos, mas a sua prpria afirmao de que o modo de produo capitalista no tem encontrado objetivamente obstculos para a sua reproduo tem tambm validade hist-rica. Do jeito que o mundo vai, hoje ou amanh podem surgir situaes que, embora sejam muito provavelmente catastrficas, ao mesmo tempo restauram a possibilidade de ao prtica que est hoje obstruda. (ADORNO, apud WIGGERSHAUS, 1995, p. 566).

Uma crise do capitalismo, por exemplo, pode excluir uma parcela con-sidervel da populao e criar nela um potencial transformador ou hostil reproduo de tal sistema. Uma crise ecolgica pode minar as condies de re-produo da vida nos padres atuais e obrigar a uma mudana sbita para um modelo radicalmente distinto. At mesmo uma situao de contnua prosperi-dade, como a vivida na poca, ao menos na sociedade alem, poderia conduzir a uma melhoria de vida que, entre outras coisas, fizesse com que as pessoas aumentassem as suas expectativas e exigncias. Como ser visto mais adiante, no presente estudo, Adorno critica aqueles que pensam que, quanto mais pio-ra a situao, melhoram as chances de mudana, pois um dos pr-requisitos para uma transformao emancipatria justamente um entendimento au-tnomo e independente que s se faz possvel com certa espcie de liberdade das necessidades imediatas mais prementes (ADORNO, PETG: 104-105). O fato, portanto, de que as precondies objetivas de uma transformao emancipatria no estivessem mais presentes no deve ser interpretado como um destino duradouro, mas como algo que, quando menos se espera, pode

partido. Para usar uma imagem que lhe era clara, trata-se de, como um nufrago, lanar ao mar garrafas com bilhetes, sem prejulgar o resultado, mas, sobretudo, sem esmorecer. (COHN, 1986, p. 24-25).

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deixar de ser vlido. certo que os dois fatores os quais, na viso de Adorno, impedem a possibilidade de emancipao a saber: a ausncia de uma classe organizada antagonista e a intensificao da dominao, em especial por meio de sua interiorizao (o fato de o sistema dominar cada vez mais as prprias instncias psquicas dos indivduos) so estruturais e quase impossveis de serem removidos.

Todavia, aqui pode ter vigncia igualmente o conselho de precauo de Marx, segundo o qual tudo o que aparenta ser slido e estvel na sociedade burguesa pode, como num passe de mgica, se desmanchar no ar. Acima de tudo, o capitalismo que enfrenta continuamente uma tenso criada pela necessidade de engajar, de forma permanente, as pessoas em seus mecanismos e, ao mesmo tempo, frustrar as expectativas de tais pessoas, ao no realizar as promessas que faz (de riqueza material, de satisfao das necessidades etc.).

b) indivduos no plenAmente AdAptAdos

A teoria crtica de Adorno, entretanto, no endereada apenas s ge-raes futuras, tampouco almeja s uma transformao emancipatria. Como venho argumentando, embora uma ordem correta das coisas no estivesse no horizonte das possibilidades, ao menos de acordo com o frankfurtiano, disso no decorre uma aceitao resignada do existente. Muito pelo contrrio, tal diagnstico implica um engajamento em prticas que, apesar de no propria-mente emancipatrias, consigam transformar o mundo em algo menos hostil, menos falso. A despeito de uma libertao dos obstculos que impedem a emancipao estar por ora descartada, h inmeras lutas que podem ser trava-das e melhorias que podem ser conquistadas dentro deste estado de no liber-dade. Se a teoria crtica, como foi visto no primeiro tpico, se engaja na luta por tais melhorias, ela precisa, portanto, ter tambm um destinatrio que j esteja presente na atual sociedade. Designo tal destinatrio como indivduos no plenamente adaptados, mas isso logo exige algumas especificaes.

Em primeiro lugar, pode-se abordar uma tendncia (bem diagnosticada por Adorno) geral de crescimento do fator adaptativo. Como as pessoas so incapazes de transformar, precisamente por sua falta de liberdade, a situao social em que vivem, elas tendem cada vez mais a se adaptar a ela.14 Alis,

14 Evidentemente, mesmo em uma sociedade liberta, as pessoas tambm precisam se adaptar socie-dade, mas isso ocorreria de forma muito distinta. Em primeiro lugar, porque seria um processo de mo dupla: tanto a pessoa se adapta situao quanto esta transformada por ela (portanto, adapta-se

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isto simplesmente uma necessidade, elas precisam se adaptar. Contudo, elas podem fazer isso de forma crtica, mantendo certo distanciamento e mesmo oposio, qui at resistncia, ou podem, ao contrrio, buscar se identificar com a situao social e mesmo ver o inevitvel como se fosse uma escolha sua, fazendo da necessidade virtude. Isso, evidentemente, uma questo de gradao. Pode-se ser mais ou menos adaptado situao social. Para Adorno, impossvel se estar nos extremos: no se adaptar em nada a ela, tampouco se adaptar completamente. Mesmo o mais completo pria no sobreviveria na sociedade em completa oposio a ela, porque at em suas instncias psqui-cas mais profundas ele precisa, ao menos em parte, se adequar, se endurecer. O contrrio que pode surpreender. A afirmao de que ningum se adapta completamente parece contrariar boa parte das observaes feitas sobre a teo-ria adorniana, mas isto , de fato, o que ele sustenta:

Pois nas prprias necessidades dos homens catalogados e administrados h algo que reage naquilo em que eles no esto completamente controlados, o excedente da parcela subjetiva da qual o sistema no se assenhoreou com-pletamente. As necessidades materiais precisam ser respeitadas mesmo em sua figura invertida, causada pela superproduo. (ADORNO, DN: 86).

Essa passagem explicita certo limite mesmo dominao quase onipo-tente: os indivduos tm necessidades corporais que no podem ser moldadas a bel-prazer. Pelo contrrio, elas exigem sua satisfao e provocam reaes de des-contentamento, quando frustradas. Em outra passagem, o frankfurtiano ainda mais enftico:

Por conseguinte, o que a indstria cultural apresenta s pessoas em seu tempo livre , se minhas concluses no so precipitadas, sem dvida consumido e aceito, mas com uma espcie de reserva, de forma parecida a como tambm os ingnuos no aceitam como simplesmente verdadeiros os acontecimentos do teatro ou do filme. Talvez ainda mais: no se acredita inteiramente neles. A completa integrao da conscincia e do tempo livre evidentemente no est bem realizada. Os interesses reais dos indivduos ainda so bastante fortes para resistir, no limite, ao confinamento (Erfassung) total. Isto concordaria com o prognstico social de que uma sociedade cujas contradies fundamentais persistem inalteradas no pode tornar-se totalmente integrada sequer na conscincia. (ADORNO, Fr: 654-655).

a ela), embora em menor medida. No capitalismo tardio, no entanto, as pessoas so cada vez mais impotentes, o que significa que esse processo, em vez de ser de mo dupla, praticamente unilateral, e a situao social assim imposta aos indivduos sem que estes possam transform-la, mesmo nos seus menores detalhes.

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Isto , apesar de tudo, as pessoas mantm um distanciamento frente quilo que assistem ou consomem, uma espcie de reserva que pode ser maior ou menor. Aqui se abre um campo, por conseguinte, no qual a teoria crtica pode atuar. Ela deve ser capaz de fomentar nos indivduos as instncias crticas que permitam a eles se distanciarem mesmo em seu contnuo processo de adaptao. Para tanto, precisa se engajar no processo de educao e ilustrao da sociedade, processo este que, contra as tendncias dominantes na sociedade atual, pode ser capaz de fortalecer o que resta de independncia e autonomia nas pessoas (ADORNO, EnA: 690).

Mas aqui importante, novamente, delimitar claramente o campo do que seria possvel para Adorno, ao menos segundo minha interpretao. Minha hiptese de que a teoria crtica adorniana tem duplo objetivo: por um lado, a desbarbarizao da sociedade, um processo que pode e precisa ser feito imediatamente e que realizado, sobretudo, pela educao e pelo esclarecimento, os quais aumentam a capacidade de reflexo crtica dos in-divduos e, portanto, sua aptido para lidarem de forma mais distanciada com a totalidade social e sua adaptao a ela; por outro, a efetiva emanci-pao, a qual significa cabalmente a conquista da autonomia pelas pessoas por meio da abolio do processo que as subjuga, que as torna meras en-grenagens, a saber, o modo capitalista de reproduo social, abolio esta que no pode, pois, ter xito, e que, portanto, deveria ser encampada por geraes futuras, em um momento no qual a conjuntura fosse diferente. Resta saber at que ponto a prpria desbarbarizao da sociedade j um passo rumo emancipao ou, melhor, um meio de criar as precondies necessrias para ela. Penso que a desbarbarizao um passo importante, necessrio, para se criar as precondies de uma mudana consciente na ordem social; no entanto, s isso no o suficiente, preciso contar com a possibilidade de uma crise ou situao em que a prpria ordem social mostre suas fragilidades.

iii concluso: os mAus bocAdos de um crtico em umA situAo de prosperidAde

bastante provvel que, dentre os distintos pontos da crtica social adorniana, este a questo do remetente e do destinatrio seja, por assim dizer, um dos mais datados. Ao menos um daqueles que precisa de mais contextualizao histrica, para ser compreendido. Isso por um motivo muito

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simples: Adorno escreve sua obra tardia, no decorrer de um processo de grande prosperidade econmica, o qual pode at ser considerado inclusivo, pois, em especial na Alemanha, realmente elevou o padro de vida mesmo das camadas mais pobres em um nvel considervel. Os perodos de prosperidade costumam ser, tambm, momentos de comodismo ou, ao menos, de integrao. Isso criou uma espcie de sombra que paira sobre a obra adorniana, a qual consiste no temor de o capitalismo conseguir administrar de forma permanente as suas tenses e contradies, a tal ponto que consiga manter as pessoas subjugadas, porm, mesmo assim, no hostis ao processo que as subjuga. Um pouco como na obra beckettiana: o pior parece no ser a efetiva possibilidade do fim de partida, da catstrofe total, mas sim a perpetuao da agonia, do estado de espera em que ficam os indivduos reduzidos ao estado de espectadores passivos de sua prpria desgraa, ainda que cmoda. Mais ainda, mesmo a situao de prosperidade no teria conseguido, aos olhos do frankfurtiano, afastar de vez as possibilidades de recada na selvageria que marcara de forma indelvel no s a sociedade alem, mas tambm a sociedade moderna em geral. De qualquer forma, o tempo no qual Adorno escreve sua obra tardia contrasta fortemente com nossa poca, marcada pela rpida deteriorao do padro de vida, causada por crises como a do capitalismo e a ecolgica ou climtica. Antes de concluir, gostaria ainda de mencionar outra vez que um pensamento datado no , por isso, menos interessante. Mau o pensamento que j surge obsoleto ou, ainda, aquele que conquista sua permanncia ao custo de sua abstrao.

Enfim, para recapitular, no presente artigo, afirmei que, segundo o au-tor frankfurtiano: 1) a possibilidade da crtica permanece aberta, na medida em que continua havendo indivduos no totalmente modelados pela socieda-de; 2) a crtica feita por eles correta, na medida em que capaz de explicar a sociedade e suas patologias; 3) tal crtica no paternalista (ao menos no sen-tido poltico), principalmente porque ela no consiste em dizer que as pessoas so alienadas e, portanto, no vivem do modo certo, mas sim por criticar o processo de reificao que impede que essas pessoas se autodeterminem; 4) ela endereada s geraes futuras, uma vez que estas podem dar fim ao processo de reificao, em um momento que se mostrar oportuno (diferente, portanto, do contemporneo a Adorno); 5) ela tambm endereada aos indivduos da sociedade que lhe foi presente, na medida em que eles no esto plenamente adaptados e que se pode fomentar a capacidade crtica destes, resistindo assim contra a barbarizao da sociedade.

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FLECK, A. The possibility of critique in late capitalism: on sender and addressee in Adornos late critical theory. Trans/form/ao, Marlia, v. 41, n. 3, p. 145-168, Jul./Set., 2018.

AbstrAct: According to a certain part of the relevant literature, Adornos critical theory is a lament on the failure of modern civilization to explain its own conditions of possibility. In this paper, I question this verdict by analyzing the problem of how criticism can be done and who the addressee (audience) for it would be in a situation of almost complete domination.

Keywords: Critical theory; Theodor W. Adorno; Late capitalism; Contemporary social philosophy.

refernciAs

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Recebido: 2016-09-29

Aceito: 2017-05-08

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