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A PONTUAÇÃO NÃO-GRAMATICAL DE GUIMARÃES ROSA: UM ESTUDO SEMIÓTICO AIRA SUZANA RIBEIRO MARTINS UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FEVEREIRO- 2006

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AA PPOONNTTUUAAÇÇÃÃOO NNÃÃOO--GGRRAAMMAATTIICCAALL DDEE GGUUIIMMAARRÃÃEESS

RROOSSAA:: UUMM EESSTTUUDDOO SSEEMMIIÓÓTTIICCOO

AAIIRRAA SSUUZZAANNAA RRIIBBEEIIRROO MMAARRTTIINNSS

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FEVEREIRO- 2006

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AA PPOONNTTUUAAÇÇÃÃOO NNÃÃOO--GGRRAAMMAATTIICCAALL DDEE GGUUIIMMAARRÃÃEESS

RROOSSAA:: UUMM EESSTTUUDDOO SSEEMMIIÓÓTTIICCOO

de

AAIIRRAA SSUUZZAANNAA RRIIBBEEIIRROO MMAARRTTIINNSS

Tese de Doutorado em Língua Portuguesa a

apresentada ao Conselho dos Cursos de Pós-

Graduação da Faculdade de Letras da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Dra. Darcilia Marindir Pinto Simões

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Agradecimentos À minha família pela compreensão,

aos amigos pelo apoio; e, especialmente, à professora Darcilia, pela orientação segura e amizade demonstrada ao longo do trabalho.

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O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é

isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram

terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou

desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me

alegra, montão. (Grande Sertão:Veredas, p. 20-21)

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SSIINNOOPPSSEE

Estudo semiótico da pontuação especial da obra de

Guimarães Rosa. Leitura semiótica dos ícones e índices

da oralidade. Identificação das vozes presentes no texto.

Leitura das pistas semióticas para a construção das

imagens mentais do texto. Interpretação dos usos

particulares dos sinais de pontuação. Ilustração dos usos

estudados.

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SUMÁRIO

SINOPSE ........................................................................................................................5

A PONTUAÇÃO NÃO-GRAMATICAL DE GUIMARÃES ROSA:

UM ESTUDO SEMIÓTICO ......................................................................................................8

1. INTRODUÇÃO –....................................................................................................8

2. A LINGUAGEM NA MODALIDADE ORAL E NA MODALIDADE ESCRITA ..18

2.1. A inter-relação oral & escrito ...................................................... 25

2.2. O ritmo da escrita......................................................................... 29

2.3. Conclusão .................................................................................... 35

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..............................................................................36

3.1. Sintaxe, semântica e pragmática.................................................. 43

4. A ORALIDADE E O DISCURSO ROSIANO...........................................................45

5. PONTUAÇÃO NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA...............................................50

5.1. O emprego da vírgula .................................................................. 52

5.1.1. Conclusão ................................................................................. 66

5.2. O emprego dos dois-pontos ......................................................... 69

5.2.1. Conclusão ................................................................................. 80

5.3. O emprego do travessão............................................................... 82

5.3.1. Conclusão ................................................................................. 91

5.4. O emprego do ponto-e-vírgula..................................................... 92

5.4.1. Conclusão ............................................................................... 108

5.5. O emprego do ponto .................................................................. 111

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5.5.1.Conclusão ................................................................................ 131

5.6. O emprego do ponto-de-interrogação........................................ 132

5.6.1. Conclusão ............................................................................... 140

5.7. O emprego do ponto-de-exclamação ......................................... 141

5.7.1. Conclusão ............................................................................... 145

5.8. O emprego das reticências ......................................................... 146

5.8.1.Conclusão ................................................................................ 149

5.9. O emprego dos parênteses ......................................................... 150

5.9.1. Conclusão ............................................................................... 151

6. UMA PRIMEIRA CONCLUSÃO. ........................................................................152

7. CONCLUSÕES........................................................................................................155

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................159

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AA PPOONNTTUUAAÇÇÃÃOO NNÃÃOO--GGRRAAMMAATTIICCAALL DDEE GGUUIIMMAARRÃÃEESS

RROOSSAA:: UUMM EESSTTUUDDOO SSEEMMIIÓÓTTIICCOO

11.. IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO ––

Nosso trabalho, com base na teoria da iconicidade de Peirce (1995), se

propôs fazer um estudo estilístico-semiótico dos sinais de pontuação na obra

de Guimarães Rosa, com vistas a descobrir os usos especiais dos sinais de

pontuação presentes na obra do autor. Nesta tese, damos continuidade à

pesquisa desenvolvida no Mestrado, em que fizemos um estudo de três sinais

de pontuação – os dois-pontos, o travessão e o ponto-e-vírgula – de Tutaméia,

última obra publicada em vida pelo escritor.

Optamos por concentrar nosso estudo nas seguintes obras: Sagarana,

Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém, Noites do Sertão,

Grande Sertão: Veredas, Primeiras Estórias, Tutaméia e Estas Estórias.

Foram excluídas as obras Magma (1997) e Ave, Palavra (1970). O primeiro

livro foi excluído pelo fato de o conjunto da obra de Guimarães Rosa ser

basicamente em prosa; logicamente, o gênero preferido pelo autor e,

conseqüentemente, a parte em que a genialidade artística do escritor se torna

mais evidente. A última obra, Ave, Palavra, onde se encontram poemas,

peças, reportagens, diários, notas de viagens e alguns contos, foi editada

postumamente, graças ao trabalho de Paulo Rónai, que reuniu todos os

escritos não publicados pelo escritor. Os textos desse livro são de extrema

originalidade, porém, entendemos que a obra organizada pelo próprio autor

ofereça material suficiente para o estudo pretendido. Embora a obra Estas

Estórias seja também uma publicação póstuma, decidimos incluí-la em nosso

trabalho, pois Guimarães Rosa, em seus últimos dias se dedicava à finalização

da revisão dos contos selecionados que fariam parte de sua próxima obra, já

tendo, inclusive, índices esboçados, nos quais Paulo Rónai se orientou para

organizar a publicação.

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Elegemos a semiótica lingüística de extração peirceana como

fundamento técnico-científico de nossa pesquisa, porque temos observado que

essa vertente semiótica, especialmente aplicada ao levantamento dos valores

icônicos ou indexicais dos sinais de pontuação, pode fornecer subsídios para a

objetivação dos fenômenos observados, no caso, o texto de Guimarães Rosa.

Conforme observa Pignatari (1987), a doutrina peirceana nos convida e nos

instiga a compreender melhor não apenas os signos não-verbais em suas

naturezas específicas, como também o próprio signo verbal em relação aos

demais.

Sabemos que, modernamente, o artista procura criar certa

“deformação” no texto com o objetivo de provocar inquietações no leitor.

Esse processo de interação entre texto e leitor resultará no surgimento de um

sentido dentre vários possíveis para uma obra. Essa concepção contemporânea

de arte pode ser respaldada na fundamentação da teoria semiótica adotada,

para a qual os signos presentes no texto apresentam instruções para que o

sentido do texto se construa na mente interpretadora do sujeito leitor.

De acordo com Iser (1996), o texto ficcional exige um sujeito, isto é,

um leitor; o texto, como material dado, é apenas virtualidade, que se atualiza

no sujeito. Guimarães Rosa tinha exatamente a mesma concepção dessa

relação dialógica da obra de arte, conforme podemos observar em seu arquivo

pessoal, hoje aos cuidados do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da

Universidade de São Paulo.

Em carta à Harriet de Onis (1959), o escritor afirma:

Pode parecer crazy de minha parte, mas quero que o leitor

tenha de enfrentar um pouco o texto, como um animal bravo e

vivo. O que eu gostaria era de falar tanto ao inconsciente

quanto à mente consciente do leitor.

Após a testagem dos esquemas semióticos em análises de variados

textos, comprovamos a eficiência dessa base teórica para o atingimento de

nossos objetivos de pesquisa. Isso porque, a partir de uma classificação

calcada na iconicidade diagramático-sintagmática, torna-se possível objetivar

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funções e valores inscritos nos signos que compõem o texto. Em outras

palavras: a identificação das funções sígnicas (ícone, índice e símbolo) serve

de base para determinação de funções intratextuais tais como: classes

gramaticais, funções sintáticas, valores estilísticos, etc, elementos estes que

orientarão (ou desorientarão) a leitura e a compreensão da mensagem contida

no texto.

A escolha da obra de Guimarães Rosa para corpus de nosso trabalho se

deveu ao fato de o texto rosiano se apresentar instigante em todos os aspectos:

no léxico, com a criação vocabular e a revitalização de arcaísmos; no nível

sintático, com a inversão da ordem tradicional dos vocábulos e sintagmas na

oração, o uso de orações condensadas, as construções elípticas e o uso dos

sinais de pontuação.

A pontuação empregada por Guimarães Rosa é um item que desperta a

atenção do leitor, fato comprovado por depoimentos obtidos durantes muitos

nos anos de magistério. Por esse motivo, fizemos um estudo detalhado da

pontuação em sua obra. Percebemos que, embora o autor não despreze as

regras gramaticais da língua portuguesa, é capaz de reorganizá-las para

alcançar determinado efeito expressivo.

A extravagante pontuação captável na obra do autor, empregada com o

objetivo de fazer realçar a linguagem própria do homem sertanejo, é capaz de

recriar a fala desse indivíduo e permitir que se formem imagens da cena

descrita nas mentes leitoras. A disposição dos sinais de pontuação na sua

escrita é capaz de recriar até mesmo o ritmo cadenciado típico das canções e

narrativas populares, formas de textos comuns na época em que a

comunicação se fazia oralmente. O texto rosiano, próprio para ser falado, faz-

nos relembrar os trovadores e os jograis. O papel da escritura é somente o de

fixar a história. O autor, para recuperar as características da fala ausentes na

escrita, utiliza os sinais de pontuação. Segundo Mattoso Câmara (1999), o

desaparecimento da mímica e das inflexões ou variações do tom de voz, que

têm valor expressivo na leitura do texto, carecem de suprimento por outros

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recursos; assim, na escrita, a pontuação pode viabilizar para o leitor a

recriação do jogo de pausas e cadências.

De acordo com observações de Mendes (1998), a forma como

Guimarães Rosa elaborou sua obra leva-nos a acreditar em sua intenção de

promover o resgate da época do livro feito artesanalmente, visto como uma

preciosidade, repleto de ornamentos, que, além de serem marcas autorais dos

copistas, funcionavam como signos orientadores para a leitura em voz alta.

Vista por esse prisma, podemos afirmar que a obra de Guimarães Rosa

valoriza a palavra falada por intermédio do trabalho escrito. O texto impresso

seria uma forma de recriação da oralidade; e os sinais de pontuação, índices

orientadores da leitura em voz alta e da produção do sentido, como podemos

observar na seguinte passagem:

“[...] E, de escondido, de dentro do mato, o sacizinho o viu

passar. O sací se disse : � ‘ Li-u-li-u-lí! Já também vou, faz

tempos que careço duma viagem...’ Os écos. Porque o Saci vê

assim e imita a gente...” (“Cara-de-Bronze”, p.113)

Notamos que, muitas vezes, o leitor vê-se obrigado a ler o texto em

voz alta, pois certas passagens só fazem sentido quando pronunciadas com

expressividade.

Percebemos também que, a exemplo dos livros manuscritos pelos

copistas medievais, uma mesma palavra aparece grafada de diferentes

maneiras como saci, no exemplo anterior, que ora é acentuada e com letra

minúscula, ora aparece com letra maiúscula e sem acento. O mesmo acontece

com a palavra Qualhacoco, na passagem seguinte:

“–‘... um morro, que mandou recado! Ele disse, o Catraz, o

Qualhacôco... Esse Catraz Qualhacoco, que mora na lapinha,

foi no Salomão, ele disse... E tinha sete homens lá, com o

irmão dele, caminhando juntos, pelos altos... Você acredita?’”

(“O recado do morro”, p. 34).

As reticências — além de serem providas de significado específico —

são indicações de respiração semelhante à marcação teatral.

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Guimarães Rosa também realizava desenhos com palavras ou

palavras-desenho com ornamentos que devem ser respeitados ao serem

pronunciadas, como Cãtõte e J’sé-jórjo :

“E teve uma hora quando conversavam, acabado de fechar o

pasto dos Olhos-d’Água, que o Cãtõte não aguentou mais,

provocou discussão. Mas o J’sé-jórjo avançou para perto, num

gozo regozijo...” (“O recado do morro”, p. 223).

Notamos que o escritor, com o propósito de causar um efeito

expressivo especial, ignora as regras ortográficas. Nessa passagem, vemos o

duplo til no substantivo Cãtõte e a supressão do trema na forma verbal

aguentou. Observa-se também a grafia inusitada de J’sé-jórjo como uma

tentativa de recriação da fala truncada do homem rude do sertão de Minas. O

mesmo procedimento pode ser observado na grafia dos termos Li-u-li-u-lí e

éco, em exemplo já comentado. Nesse caso, provavelmente, ocorre a intenção

de instrução de leitura ou pode ser mais um exemplo de escrita especial

adotada pelo escritor.

Mendes (1998) vê, ainda, a possibilidade de se fazer analogia do texto

rosiano com uma partitura musical, onde a exploração do extrato fônico se

une aos sinais de pontuação, aos apóstrofos, fazendo a marcação de

compassos, ritmo, andamento, sinais de respiração e silêncios. Segundo ele,

no texto rosiano “há inúmeras palavras que, mais que escritas, são

praticamente desenhadas ou com marcações de ornamentos a serem

observadas na execução da possível fala-canto.” (p.59). De acordo com

Ângela Vaz Leão (1968), pode-se notar, inclusive, a presença de um fundo

musical em passagens de “O Burrinho pedrês” (1974). A descrição detalhada

de certas passagens leva o leitor a se colocar no ambiente do episódio narrado,

tamanha é a riqueza de detalhes.

Como podemos observar, a obra do escritor mineiro, além de ter o

emprego singular da palavra escrita, é rica em recursos expressivos, com uma

profusão de marcas visuais especialíssimas, portadoras de significados como

os sinais de pontuação e outros símbolos que necessariamente conduzem a um

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sentido, assim como o desenho que fecha o texto de Grande Sertão: Veredas

(1978): (∞). Somente uma teoria abrangente como a de Peirce seria capaz de

decifrar as relações de sentido presentes na obra rosiana.

A profusão de vírgulas, travessões, pontos-e-vírgulas, reticências,

exclamações e de outros sinais que não são propriamente de pontuação, como

aspas, capitulares, palavras escritas em itálico, conferem intenso dinamismo

às narrativas e demonstram os diversos malabarismos de escrita presentes na

obra do escritor. O aspecto visual do texto revela esse dinamismo nos textos e

causa impacto no leitor. É nítida a eloqüência do contador de histórias, que se

dirige ao leitor/ouvinte, procurando tornar reais e espetaculares as cenas

descritas.

Portanto, a leitura de textos rosianos, ou mesmo de passagens de obras

mais extensas, feita a partir das pistas oferecidas pelos sinais de pontuação

pode ser uma forma de o professor apresentar o texto do escritor mineiro ao

aluno. Dessa forma, o mestre terá oportunidade de demonstrar ao estudante a

importância dos sinais de pontuação, pois, além de terem a função de fazer a

delimitação lógico-discursiva no texto, são importantes recursos estilísticos.

Ao lado disso, haverá a oportunidade de desmitificar a leitura do texto

rosiano, aproximando-o do estudante e dando a este a oportunidade de

conhecer um universo literário muito especial.

Buscamos investigar se, além do emprego dos sinais e pontuação ter

sua motivação nas questões sintático-discursivas, a colocação desses sinais

está ligada também à enunciação. Nosso passo seguinte foi a verificação dos

elementos de maior importância na pontuação do texto do autor. Nesta tese, a

partir da análise da pontuação na obra de Guimarães Rosa, buscamos

demonstrar os valores icônicos e indexicais dos sinais de pontuação na

configuração textual, com o objetivo de identificar os valores e funções

extragramaticais dos sinais de pontuação presentes nos textos do escritor

mineiro.

Decidimos utilizar como corpus de nosso trabalho a obra em prosa

publicada pelo autor, pelos motivos anteriormente declarados, por

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consideramos seus textos um patrimônio da literatura brasileira e ainda pelo

fato de estes se constituírem numa fonte inesgotável de estudos, dada a

riqueza de conteúdo oriundo de pesquisa, conforme declaração do próprio

autor em entrevista a Günter Lorenz, quando este se referiu à sua genialidade:

“Genialidade, pois sim. Mas eu digo: trabalho, trabalho, trabalho!” (cf.

Coutinho,1991).

Todo o material recolhido pelo autor, e com o qual ele se nutria para

elaborar seus textos - reunido no Instituto de Estudos Brasileiros da

Universidade de São Paulo - confirma a declaração transcrita no parágrafo

anterior: cadernetas com anotações, livros especializados, recortes com fotos e

textos sobre animais, fotos de bois, cavalos, vaqueiros e tropeiros, listas de

palavras, expressões, provérbios, etc. mostram que a originalidade presente na

sua obra resulta de um meticuloso planejamento. O conteúdo da pesquisa

incorporado ao enredo das histórias, à fala dos personagens, à fala do

narrador, faz com que o texto estabeleça um diálogo com todo esse material

recolhido pelo autor. É interessante notar que não há notas de rodapé para

esclarecer o leitor sobre a origem de determinado termo. O conteúdo da

pesquisa é incorporado ao texto, gerando um efeito de realidade.

Portanto, do trabalho de coleta resultaram textos produzidos com

maestria semiótica, uma vez que os signos que constroem sua trama são ali

estrategicamente colocados, talvez que com perícia de desenhista. Os signos

são trançados no texto como quem constrói armadilhas que ora capturam a

idéia e a entregam ao leitor ora capturam a idéia e o leitor. Por isso, a análise

do texto de Guimarães Rosa feita a partir de um suporte semiótico é uma

imposição da própria natureza do corpus.

Durante a elaboração de nossa dissertação de Mestrado, já tínhamos

decidido dar continuidade à pesquisa da obra de Guimarães Rosa, porque,

após levantamento em bancos de teses de universidades, constatamos que

existem numerosos trabalhos em torno da obra do escritor mineiro

concentrados, sobretudo, na área de Literatura. As poucas dissertações e teses

da área de Língua Portuguesa, cujo corpus é a obra de Guimarães Rosa, fazem

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estudos no campo da Morfologia, Lexicologia, Lexicografia e Filologia. As

pesquisas na linha da Semiótica são feitas, principalmente, na área de

Literatura e de Teoria Literária. Há também um bom número de abordagens

em outras áreas como Botânica, Geografia, Artes Plásticas, Cinema,

Sociologia, História e Psicanálise, conforme pudemos verificar em recente

seminário1 em que se discutiu exaustivamente a obra do escritor mineiro.

Percebemos que não há grande quantidade de trabalhos referentes ao estudo

da língua recriada por Guimarães Rosa, a despeito de sua intenção em

promover uma revitalização da língua, de acordo com declaração sua feita em

correspondência:

Deve ter notado que, em meus livros, eu faço, ou procuro fazer

isso, permanentemente, constantemente, com o português:

chocar, “estranhar” o leitor, não deixar que ele repouse na

bengala dos lugares-comuns, das expressões domesticadas e

acostumadas: obrigá-lo a sentir a frase meio “exótica”, uma

“novidade” nas palavras, na sintaxe... (Carta à Harriete de Onis,

1959)

Constatamos ainda que não há registro de pesquisas dedicadas à

pontuação empregada pelo escritor. Dessa forma, acreditamos que nosso

trabalho poderá ser útil para a comunidade de pesquisadores das Letras e da

obra de Guimarães Rosa, em especial.

Assim como seus livros resultam de cuidadoso trabalho com o

vernáculo, Guimarães Rosa se preocupava também com a permanência de sua

obra no quadro da Literatura Brasileira na posteridade, segundo declarou: “...

quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legítimos.”

(Coutinho, 1991:81).

Com o objetivo de provocar o estranhamento no leitor, procurava

“limpar” a palavra das impurezas da linguagem, empregando-a em sentido

absolutamente original. Também, segundo ele, incluía, em suas histórias,

expressões do Português medieval e neologismos.

1 II Seminário Internacional Guimarães Rosa – PUC Minas. 27 a 31 de agosto de 2001.

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Ângela Vaz Leão, em palestra no II Seminário Internacional

Guimarães Rosa, declarou que a linguagem do escritor mineiro já nasceu

velha, em virtude da grande quantidade de arcaísmos e expressões próprias da

linguagem da cultura sertaneja. Para a estudiosa, esses fatores sustentam a

permanência da obra rosiana. Como vemos, o projeto do autor mineiro em

relação à sua obra se concretizou, e a cada dia atrai um número maior de

pesquisadores.

Cremos que a tríade ícone, índice e símbolo, que pode ser extraída de

esquemas diagramáticos, por exemplo, possa representar as estruturas

sintagmáticas do texto rosiano, justificando a sua pontuação e explicitando

seus recursos estilísticos.

Nesta pesquisa, inicialmente, tecemos algumas considerações sobre a

linguagem na modalidade oral e na modalidade escrita da língua, já que o

texto de Guimarães Rosa está ligado tanto à modalidade oral quanto à escrita;

em seguida procuramos estabelecer a inter-relação entre a oralidade e a

escrita.

Já que nosso objeto de estudo é o texto escrito, buscamos informações

sobre o ritmo que se observa na escrita, com o objetivo de identificar o ritmo

que captável no texto rosiano, tanto na leitura oral expressiva quanto na

leitura silenciosa.

Após alguns comentários sobre as principais obras pesquisadas para a

elaboração de nossa tese, fizemos um breve comentário sobre a sintaxe, a

semântica e a pragmática, já que esses fatores estão diretamente relacionados

com o emprego da pontuação. Em seguida passamos ao nosso objeto de

estudo, que é a obra de Guimarães Rosa, em que desenvolvemos um capítulo

sobre a presença da oralidade no texto rosiano. A seguir fizemos uma

apreciação geral da pontuação empregada pelo autor, para, finalmente,

passarmos ao estudo do corpus selecionado.

Estudamos o emprego dos seguintes sinais na obra do escritor mineiro:

a vírgula, os dois-pontos, o travessão, o ponto-e-vírgula, o ponto, o ponto-de-

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interrogação, o ponto-de-exclamação, as reticências, os parênteses. Por último

tecemos as considerações finais sobre a pesquisa proposta.

Por fim, esclarecemos sobre a terminologia utilizada na pesquisa.

Empregamos indistintamente as expressões língua escrita, modalidade escrita

da língua, escrita e língua oral, modalidade oral da língua, oralidade.

Por termos utilizado a teoria semiótica do filósofo norte-americano

Peirce, empregamos os termos, ícone, índice e símbolo. O signo, grosso

modo, se refere a qualquer coisa que substitui uma outra coisa para algum

intérprete. Em relação aos objetos que representam, os signos se classificam

em ícones ou signos que guardam semelhança com a realidade exterior;

índices ou signos que mantêm uma relação de contigüidade com a realidade

exterior e símbolos ou signos convencionais. O adjetivo indicial — relativo a

índice —divide espaço com o termo indexical. Ainda em relação à teoria de

Peirce, empregamos o termo abdução para fazes referência a um tipo de

raciocínio vago, com caráter instintivo, um tanto o quanto hipotético; semiose

se refere à ação do signo de ser interpretado em outro signo, já que, para

Peirce não há pensamento sem signos.

Os termos primeiridade, secundidade e terceiridade também dizem

respeito à teoria semiótica de extração peirceana. Esses nomes se referem às

categorias dos signos,ou seja, a primeiridade recobre o nível do sensível e do

qualitativo, e abrange o ícone; a secundidade diz respeito à experiência, ao

evento, relacionando-se, portanto, ao índice, e, por fim, temos a categoria da

terceiridade , relacionada ao símbolo, refere-se à mente, ao pensamento e à

razão.

Há, neste trabalho, também, referência a sentido e significado e

significação. Esclarecemos que sentido é o efeito total que o signo deve

produzir e produz imediatamente na mente, sem qualquer reflexão prévia.

Significado é o efeito direto realmente produzido no intérprete pelo signo, ou

seja, é aquilo concretamente experimentado concretamente em cada ato de

interpretação, dependendo, portanto, do intérprete e da condição do ato e

sendo diferente de outra interpretação. Significação é o efeito produzido pelo

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signo sobre o intérprete em condições que permitissem ao signo exercitar seu

efeito total; é o resultado interpretativo a que todo e qualquer intérprete está

destinado a chegar, se o signo receber a suficiente consideração.

O termo enunciado é empregado como frase ou oração e enunciação

se refere ao ato individual de utilização da língua. Desse modo a enunciação é

o conjunto de fatores e de atos que provocam a produção de um enunciado.

.

22.. AA LLIINNGGUUAAGGEEMM NNAA MMOODDAALLIIDDAADDEE OORRAALL EE NNAA

MMOODDAALLIIDDAADDEE EESSCCRRIITTAA

A palavra falada é imediata, local e geral. Quando falamos, falamos para ser ouvidos imediatamente, com quem está ali ao pé de nós, e de modo a que sejamos facilmente entendidos dele, que sabemos quem é, ou calculamos que sabemos que pode ser toda a gente, devendo nós, pois falar como se fosse qualquer. A palavra escrita é mediata, longínqua e particular. Quando escrevemos, e tanto mais e quanto melhor e mais cuidadosamente escrevemos, dirigimo-nos a quem não nos vai ouvir, que é ler, logo; a quem não está ao pé de nós; a quem poderá entender-nos e não a quem tem que entender-nos, tendo nós pois primeiro que o entender a ele. (Fernando Pessoa, A língua portuguesa, p. 56)

A observação de Fernando Pessoa sobre a diferença entre oralidade e

escrita é bem oportuna ao nosso trabalho pelo fato de Guimarães Rosa

escrever para ser ouvido. Logo, seu trabalho é bastante árduo, pois, além de

ter o cuidado de se fazer entender ao leitor, precisa de buscar recursos capazes

de criar o efeito de oralidade no texto escrito.

É incontestável que o alfabeto foi uma das maiores criações da

humanidade. Essa invenção possibilitou ao homem criar uma infinidade de

mensagens por meio de um reduzido número de signos. A invenção dessa

técnica inteiramente artificial propiciou, inclusive, o surgimento do primeiro

ofício da linguagem, que é o de escriba. Marcuschi (2001) observa que numa

sociedade como a nossa, a escrita, sendo uma manifestação formal de vários

tipos de letramento, é mais do que uma tecnologia. A modalidade escrita de

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uma língua se tornou um bem social, essencial à própria sobrevivência, pela

forma como penetrou na sociedade moderna e impregnou a cultura. Por esse

fato, a escrita se tornou indispensável, simbolizando, mesmo,

desenvolvimento e poder. Na obra de Guimarães Rosa são comuns passagens

em que o personagem reconhece a superioridade do interlocutor devido à sua

capacidade de ler e escrever, como podemos ver nas passagens:

Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. (Grande Sertão:Veredas, p.14)

O que eu invejo é a sua instrução do senhor. (idem, p.49)

Para Goodoy (apud Catach, 1996), a criação do alfabeto foi

responsável pelo desenvolvimento do espírito humano, praticamente, em

todas as áreas do conhecimento, pois graças a esse feito, o homem foi capaz

de representar as operações abstratas. De acordo com Ong (1998), a escrita, a

espacialização da palavra, amplia quase ilimitadamente a potencialidade da

linguagem e reestrutura o pensamento. Assim como Goodoy, Ong acredita

que a cultura escrita é imprescindível ao desenvolvimento tanto da ciência,

como da história, da filosofia, ao entendimento da literatura e de qualquer

arte, e ainda é fundamental para a explicação da própria linguagem. A técnica

da escrita, segundo Auroux (1998), tornou possível não só uma reflexão mais

ampla sobre a linguagem como também a exteriorização do pensamento

simbólico, além de ter possibilitado a criação dos gráficos em forma de

árvore, tão utilizados em lingüística.

Para Marcuschi (2001), tanto a escrita quanto a oralidade permitem a

construção de textos coesos e coerentes e ainda permitem a elaboração de

raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas,

sociais e dialetais. Segundo o autor, a oralidade não é mais prestigiosa de que

a escrita pela “primazia cronológica” de que fala Stubbs (apud Marcuschi,

2001), nem a escrita é mais importante do que a oralidade. Pode ter ocorrido

que a escrita, ao impor-se de maneira violenta, receber um valor social

superior à oralidade, pelo fato de esta ser adquirida em situações informais. A

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escrita, ao contrário, é adquirida de forma institucional, na escola. Esse

pesquisador fundamenta seu trabalho sobre escrita e oralidade a partir de um

ponto importantíssimo. Para ele o mais urgente e relevante é a tarefa de

esclarecer a natureza das práticas sociais que envolvem o uso da língua

(escrita e falada). Essas práticas irão determinar o lugar, o papel e o grau de

relevância da oralidade e das práticas da escrita numa sociedade e justificar

que a relação entre as duas seja vista sob o prisma sócio-histórico.

No século passado muito se discutiu sobre a natureza da língua escrita.

Seria ela uma correspondência da oralidade? Ou, por suas especificidades, a

língua oral e a língua escrita seriam formas autônomas da linguagem?

Os povos antigos consideravam a escrita uma representação da

oralidade e, por isso, um elemento secundário com inúmeras diferenças,

necessitando, para isso, de vários artifícios para essa representação, como

notações de quantidade silábica ou de vogais, acentos e orientação de

entonação.

O conceito de Aristóteles traduz bem o pensamento do homem da

Antigüidade em relação à fala e à escrita:

Os sons emitidos pela voz são os símbolos dos estados de alma e as palavras escritas os símbolos das palavras emitidas pela voz. (apud Auroux, 1998)

Como podemos ver, nessa definição, basicamente de caráter fonético,

a escrita é tomada como uma representação da linguagem natural.

Embora a linguagem escrita fosse considerada um elemento

dependente da fala, a Antigüidade clássica nos legou a gramática, ou seja, a

ciência das letras, cujo interesse está no ensino da leitura, da escrita e no

estudo de textos fixados pela escrita.

Para os primeiros gramáticos, não havia distinção entre letra e som.

Essa concepção perdurou durante séculos. Ainda encontramos em gramáticas

de autores, que tiveram formação em obras do grego e do latim, noções que

demonstram ser a língua um elemento inseparável do alfabeto.

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Muito já se discutiu sobre a língua escrita. Essas reflexões foram

responsáveis por um grande avanço no pensamento do homem acerca desse

assunto. A concepção segundo a qual a escrita é uma transcrição da oralidade

foi abandonada. Conforme lembra Achard (1996), sincronicamente, os

grafemas e fonemas não se correspondem. Além do mais, a morfossintaxe da

língua escrita não só é mais prolixa do que a da língua oral como também é

mais sistemática. É importante salientar também que as marcas prosódicas

entonativas e acentuais presentes na oralidade não são transcritas na escrita. É

importante também lembrar que, na escrita, as frases são organizadas em

sintagmas bem delimitados; no oral, diferentemente, essa organização só se

observa em situações de escrito oralizado. Por esse motivo, geralmente, no

estudo da língua oral há certa parcimônia em relação à tradição gramatical,

que se aplica exclusivamente à língua escrita. Como podemos observar, todos

esses procedimentos podem revelar certa autonomia de cada uma das

modalidades da língua.

Vachek (apud Catach, 1996) propôs o seguinte modelo de esquema

para representar o papel de cada elemento da tríade língua / fala / escrita:

Língua

ou norma lingüística universal)

norma da língua falada norma da língua escrita

expressões orais expressões escritas

Esse quadro traduz a moderna concepção da fala em relação à escrita,

para a qual não há uma relação de hierarquia entre as duas modalidades, mas

de complementaridade.

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De acordo com Debove (1996), o sistema oral só atinge sua

completitude na presença perceptível do produtor da fala. Há ainda a presença

de outros elementos que podem caracterizar o discurso falado, como as

marcas de plural muitas vezes não-audíveis, e a presença dos elementos

dêiticos, situando a fala no tempo e no espaço. São também comuns, no

discurso oral, as interrupções, as sobreposições, as retomadas e ainda as

marcas prosódicas entonativas e acentuais.

Na obra de Guimarães Rosa, observam-se as marcas do discurso oral

citados por Debove, como as retomadas de turno, e marcas de uma suposta

conversa do narrador com seu interlocutor. A pontuação, além de ser um traço

de estruturação lógica dos enunciados, é também um mapa orientador da

entonação desse enunciado muito próximo do discurso oral, como podemos

ver nas passagens seguintes:

Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela — já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... (Grande Sertão: Veredas, p. 11)

E o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço destino que me praz. (“Antiperipléia”, p. 13)

Hã, a’ bom. Oi: em uma covoca da banda dali, aqui mesmo pertinho, tem onça Mopoca, canguçu fêmeo. (“Meu tio o Iauaretê”, p.177)

Ô homem! Inteligente como agulha e linha, feito pulga no escuro, como dinheiro não gastado. Atilado todo em sagacidades e finuras — é de fímplus! de tintínibus... — latim, o senhor sabe, aperfeiçoa... Isso, para ele, era fritada de meio ovo. O que porém bem. (“— Uai, eu?”, p.177)

Pois, por exemplo: o dia deu-se. Foi sendo que. (idem. p.178)

Vemos, nesses excertos, a transcodificação da oralidade, com os

recursos próprios da escrita. Notam-se as características do discurso oral,

como a presença do locutor e do ouvinte, dos elementos dêiticos, situando a

fala do narrador no tempo e no espaço e, inclusive, frases truncadas que

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mantêm certa coerência no contexto, com possibilidade de finalização pelo

interlocutor ou leitor.

Debove (1996) acredita na independência semiótica dos sistemas

escrito e falado, em relação ao conteúdo que veiculam, havendo,

evidentemente, a influência de um sobre o outro.

Segundo a autora, a idéia defendida por Santo Agostinho de que o

escrito significava o oral, devido ao seu aparecimento tardio, não se sustenta,

pois, desse modo, para se ter acesso ao escrito deveríamos, antes passar pelo

sistema oral, o que não acontece. Ela lembra o fato de, na leitura, ao

depararmos com uma palavra de significado e pronúncia desconhecidos,

recorremos à língua escrita para a obtenção da informação. Além do mais, é

pela leitura que ampliamos nossa competência lexical e, conseqüentemente,

nossa capacidade de expressão. Inversamente, sabemos que o indivíduo que

se expressa de maneira precária tem pouco ou nenhum hábito de leitura.

Muñoz (1998) afirma que nas escritas modernas, a interação

oral/escrito se processa de diversas formas. Isso faz com que possamos

distinguir as variedades puras e as variedades intermediárias do oral ao escrito

e vice-versa.

As características do texto se apresentam de acordo com a intenção do

falante ou do escrevente.

Vejamos o esquema proposto por Muñoz:

Oral tipos intermediários

escrito

.textos orais não destinados à escritura

.textos orais destinados à escritura (declarações à imprensa, aos tribunais, à classes)

.textos escritos para ser lidos (textos científicos, obras literárias, periódicos)

.textos escritos para ser lidos oralmente (discursos políticos, peças teatrais)

.textos escritos para ser lidos visualmente e não oralmente (selos, etiquetas, textos em que há a conjunção de elementos gráficos)

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As formas intermediárias refletem e exemplificam a estreiteza e

complexidade das relações de correspondência entre os respectivos recursos

lingüísticos, as particularidades de seu uso que permitem converter as idéias

de um canal a outro. Nota-se a presença do discurso oral até mesmo nos

trabalhos acadêmicos, nas referências internas, por meio das expressões

“como já disse acima”, “como acabo de dizer”, “como afirmei anteriormente”,

etc.

O sistema oral está relacionado ao diálogo ou a suas variantes como a

entrevista. Esses tipos de realizações podem apresentar diferentes graus de

formalidade. No diálogo familiar, que constitui a quase totalidade dos textos

empregados pelo falante, há interrupções, retomadas, sobreposições e

mudanças de turno da fala. Nesse tipo de texto, os participantes colaboram

ativamente na produção da própria forma produzida, podendo o enunciado,

em sua forma sintática, ser único para os dois interlocutores.

A modalidade oral formal apresenta um vínculo mais estreito com a

escrita, pelo fato de ser freqüentemente transcodificada para a modalidade

escrita na norma padrão da língua. Tannen (apud, Kato1995) acredita que

podemos encontrar estratégias de língua oral na prosa moderna, bem como

estratégias de linguagem escrita na linguagem oral mais tensa. Segundo a

autora, as diferenças formais se dão mais em função de gênero e de registro

do que em função de modalidade.

Debove (1996) afirma que os enunciados escritos e orais estão

misturados e sua autenticidade nunca é certa; só existem fortes presunções. A

maioria das características consideradas específicas da escrita é encontrada no

oral e vice-versa. Em virtude disso, chegamos a dispor de quatro formas de

discurso e não de dois: 1) a linguagem falada; 2) a linguagem escrita; 3) a

linguagem oralizada ou discurso escrito que é falado, como a leitura em voz

alta; 4) a linguagem transcrita ou discurso falado que é escrito, como a

tomada de notas.

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A mesma autora alerta que é preciso distinguir a transcodificação de

um sistema em outro, que produz o oralizado e o transcrito, da “adaptação”,

que mudaria a forma do conteúdo, preservando a forma de cada um dos dois

sistemas. De acordo com a pesquisadora, temos a adaptação quando um

jornalista corrige uma entrevista ou um conferencista diz o texto de maneira

diferente. Os dois sistemas, o oral e o escrito, não são postos em jogo pelo

escritor no momento em que concebe aquilo que representa o oral, nem pelo

poeta, no momento em que concebe diretamente para o oral o que escreve.

Leão (2002), ao se referir à presença da oralidade na obra de Guimarães Rosa,

prefere empregar o termo “estilização”, ou seja, para ela, o autor de Tutaméia

não fez uma transcodificação, tampouco uma adaptação, pois elaborou, de

maneira singular, a fala do homem sertanejo. Preferimos empregar o termo

“recriação”, já que o autor, dentro das possibilidades do sistema da língua,

criou palavras, buscou um léxico considerado desusado e resgatou os

significados originais de certas formas da língua. Para criar os efeitos

pretendidos, ou seja, recuperar na escrita o ritmo e a entonação da fala

sertaneja, o autor utilizou todos os recursos de que a língua dispõe (além das

letras), como tipos de letras, destaques em itálico, negrito, capitulares e a

pontuação.

Muñoz (1998) lembra que nessa transcodificação da fala em escrita, há

diversos graus de formalidade que se traduzem em diversos graus de

elaboração dos recursos léxico-gramaticais, incluindo aí os sinais de

pontuação.

2.1. A inter-relação oral & escrito

Pouco se lê a respeito do assunto pontuação. Nos manuais,

geralmente, as linhas dedicadas ao assunto se referem ao aspecto normativo e,

muitas vezes, as recomendações quanto ao emprego dos sinais de pontuação

são ligadas a razões equivocadas.

Segundo Laufer (apud Rocha, 1997), as contradições encontradas a

respeito do emprego da pontuação devem-se às inúmeras teorias acerca da

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diferença entre linguagem oral e linguagem escrita que nem sempre se

combinam.

Como já observamos anteriormente, por muito tempo a escrita foi

considerada um sistema secundário, sem importância, simples ramificação da

língua oral. Para Bloomfield (apud Numberg, 1991), a escrita seria um mero

registro da linguagem feito por signos visuais. De acordo com Chafe (apud

Numberg,1991), somente os aspectos da escrita que tivessem alguma ligação

com a oralidade mereciam atenção. Embora ainda muito se discuta sobre o

assunto, entende-se, atualmente, que a escrita é um sistema semiótico

independente, dotado de regras próprias.

Muñoz (1998) sintetiza a opinião geral, afirmando que a relação

estabelecida entre os dois sistemas não é de identidade, mas de equivalência,

pelo fato de existirem pontos em comum entre os dois sistemas, como a

língua. Há elementos na língua falada sem correspondência na língua escrita,

assim como há recursos na escrita que não podem ser expressos na fala. A

pontuação consegue suprir grande parte dessa limitação da língua escrita.

Ainda hoje especialistas se dividem quanto ao fato de ser a pontuação

motivada pela sintaxe ou pela prosódia. O assunto é tão polêmico que em

1978, Nina Catach, estudiosa do assunto, organizou um simpósio dedicado

somente ao problema da pontuação.

Acreditamos que, enquanto o texto era destinado à leitura em voz alta,

a colocação dos sinais de pontuação atendia a fatores de natureza prosódica. A

partir do momento que a leitura passou a ser visual, devido à invenção da

imprensa na Idade Média, as motivações de ordem gramatical passaram

também a determinar a pontuação.

Os especialistas ainda se dividem. Alguns como Numberg (1998) e

Smith (apud Rocha, 1997) consideram a pontuação desvinculada da fala,

sendo, portanto, um assunto exclusivo da escrita.

Para Halidday (in Rocha, 1997), a pontuação está relacionada tanto à

gramática quanto à fonologia, isto é, a pontuação marca não só as unidades

sintáticas quanto as unidades prosódicas. Nina Catach (1980) defende a idéia

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de que as pontuação seja de ordem sintática, embora estejam associados a essa

dimensão da língua, inseparavelmente, a substância, o sentido, a forma com

expressividade melódica e também o aspecto entonativo.

Observamos que as propriedades dos sinais de pontuação são bem

singulares. O emprego os torna signos, e assim passam a ter um significante e

um significado. Porém, esse significante não tem substância sonora,

argumento usado por Numberg para defender a idéia de que a pontuação tem

uma motivação exclusivamente sintática. Ele cita, como exemplo, as aspas, os

parênteses, o travessão. Para o autor, se a pontuação se refere também à

entonação, esses sinais deveriam ter equivalentes prosódicos. Acrescenta ao

seu argumento o caso da vírgula e do ponto-e-vírgula; para ele, se esses sinais

indicam pausa, deveriam ter um valor específico de intervalo de tempo.

Outra característica do sinal de pontuação é a indefinição quanto ao

seu valor, ou seja, ele não representa somente as pausas e a entonação. O sinal

de pontuação delimita as seqüências gráficas: membros das orações, orações

dentro dos períodos, períodos dentro dos parágrafos e estes dentro do texto. O

sistema de sinais de pontuação tem também a particularidade de oferecer ao

escrevente várias possibilidades de escolha de sinais para desempenhar a

mesma função, como o travessão, o parêntese, a vírgula, ao lado daqueles de

valor fixo como o ponto, a exclamação e a interrogação.

Em decorrência do fato de haver certa ambigüidade na função/valor de

alguns sinais de pontuação, nota-se certa imprecisão no seu emprego.

Segundo Rocha (1998), razões históricas também explicam essa flutuação.

Primeiramente, a pontuação era um recurso optativo e adicional, empregado

para facilitar a leitura em voz alta. Em segundo lugar, na época do livro

artesanal, as obras não eram escritas pelo autor, mas pelo escriba, dando

margem a inúmeras versões de um texto, de acordo com as orientações da

sistemática da escrita adotadas nos scriptorum ou oficina onde o manuscrito

era produzido. O surgimento da imprensa trouxe mudanças nesse aspecto,

pois o tipógrafo tinha a liberdade de pontuar o texto. Desse modo, nem

sempre o texto editado coincidia com as reais intenções do autor.

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Se observarmos a pontuação dos textos mais antigos, veremos que

muitas vezes as regras gramaticais não são respeitadas. Isso se deve ao fato de

que, até mesmo em obras do século XIX, era costume pontuar o texto por

unidades de entonação, ocorrendo, assim, a possibilidade de haver a separação

entre sujeito e verbo.

Mattos e Silva (1993) afirma que é impossível conhecer a versão

original de um texto antigo, pois a obra a que temos acesso já passou pelas

mãos do filólogo responsável pela edição.

Atualmente, como a leitura é silenciosa, seu objetivo é a compreensão

e a assimilação. Assim, as passagens onde não aparecem informações novas,

apresentam-se em uma mesma unidade de pontuação. A interpretação

prosódica fica a cargo do leitor.

Embora a pontuação seja mais gramatical, os autores e também os

leitores são sensíveis ao ritmo. Notamos que a pontuação de um autor nunca é

semelhante à do outro; nem mesmo a pontuação de um mesmo texto, feita

pelo mesmo autor, em momentos diferentes, será a mesma.

Segundo Rocha (1998), assim como o escrevente pode fazer a

colocação dos sinais pontuação motivado pela prosódia da língua falada ou

pela gramática da língua, há leitores que segmentam o enunciado em unidades

menores e há aqueles que preferem fazer a leitura dos enunciados com trechos

maiores sem pontuação.

Halliday (in Rocha,1997) lembra, como já sabemos, que, igualmente,

há dois tipos de influência para se pontuar um texto: o critério prosódico e o

critério gramatical. Quando, porém, o autor é influenciado pelos dois critérios,

deve-se considerar essa atitude típica de um estilo individual.

A pontuação é responsável pela definição do estilo de um grande

número de autores. Podemos citar, em língua portuguesa, escritores como

José Saramago, cuja obra Memorial de Convento, resgata em parte a

pontuação antiga, ao indicar o início de um parágrafo por vírgula e Guimarães

Rosa, responsável pelo emprego absolutamente inusitado da pontuação, razão

que nos motivou a realizar esta pesquisa.

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Chafe (in Rocha,1997) põe em discussão as razões pelas quais os

autores são motivados a fazerem uma pontuação tão especial. Esse teórico

questiona se o estilo desses autores muda porque suas intenções prosódicas

são diferentes ou porque varia a proporção com que eles recorrem à própria

pontuação para expressar suas intenções. Para o teórico, ambos os fatores

interferem, mas chama atenção também para o fato de que os estilos da escrita

se distinguem à medida que a pontuação capta a prosódia da voz interior da

escrita.

Danielewitz e Chafe (in Rocha,1997) referem-se ao som da linguagem

escrita, que seria uma prosódia encoberta da escrita, motivo pelo qual muitas

pessoas pontuam um texto numa tentativa de transposição da fala para a

escrita.

2.2. O ritmo da escrita

Para Moraes (1991), o som da modalidade escrita da língua seria o

ritmo intrínseco à linguagem. O elemento a que se refere o autor não seria o

ritmo entendido no seu sentido clássico, vinculado à poesia, aplicado

estritamente à substância fônica da linguagem, com acentos de intensidade,

desvinculado do sentido e, portanto, também da prosa.

As relações entre ritmo e linguagem de que falamos têm alguma

relação com a definição da palavra a que se refere Benveniste (1995) no artigo

A noção do ritmo na sua expressão lingüística (in Problemas de lingüística

geral I, p. 361). Nesse texto, o autor mostra que o sentido da palavra ritmo tal

como era conhecido na Antigüidade Clássica passou por transformações que

limitaram o seu emprego para designar um movimento cadenciado, regular

como as ondas, portanto sujeito à medida de duração daquilo que se

movimenta.

Os autores contemporâneos que se empenham no estudo do ritmo da

linguagem, como Moraes (1991), Meschonnic (1982) e Chacon (1998), entre

outros, rejeitam essa moderna concepção da palavra ritmo, que restringe o seu

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uso. Eles foram buscar o sentido original da palavra ritmo, que designava a

forma, a configuração daquilo que é fluido que se movimenta.

A idéia de configuração de algo que flui está relacionada, assim, ao

conceito de ritmo lingüístico para os autores citados anteriormente. Para

Meschonnic (1982), esse ritmo se encontra tanto no sistema quanto no

discurso, já que sistema e discurso não se excluem. O ritmo é um recurso

organizador da linguagem oral e da linguagem escrita. Para Donegan &

Stampe (apud Moraes,1991), o ritmo pode compreender todos os traços que

compõem a “música” da fala, compreendidos aí o jogo de timbres, o jogo de

pausas, de rupturas e de continuidades.

Já que a entonação é um aspecto prosódico dotado de ritmo, ela

funciona como um suporte indispensável para a compreensão do discurso que

se apresenta pela fala. Acrescentamos também que, se o ritmo não se restringe

à configuração sonora do discurso, mas também à sua compreensão, a

dimensão semântica da língua também está presente no ritmo. Como afirma

David Gil (apud Moraes,1991), as unidades rítmicas se caracterizam por

serem “não apenas de som, mas também de sentido”.

Com base nas pesquisas realizadas por Luria (in Chacon,1998),

observa-se que a partir o momento que a escrita passa a adquirir um valor

simbólico, nos primeiros estágios do letramento, o ritmo torna-se uma de suas

propriedades. Até mesmo na fase em que a criança representa a escrita por

rabiscos, notamos que ela procura convencionalizar de alguma forma, seja

pelo tamanho dos rabiscos para representar uma palavra em sua extensão, seja

numa interrupção das linhas para representar unidades fonológicas. Isso nos

leva a concluir que o elemento compreendido como referência, nos primeiros

estágios da escrita, que é a oralidade, tem um ritmo.

É importante ressaltar que essa tentativa de reproduzir a realidade é

uma possibilidade de transcodificação rítmica de natureza semiótica, portanto

simbólica, diferente daquela fornecida pela oralidade. E é esse fundamento

semiótico da pontuação que nos move por essa matriz teórica.

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As bases da escrita são diferentes das bases da cadeia falada. Enquanto

a primeira se desenvolve no espaço, a outra se apresenta no tempo. Além

disso, a dimensão física, através da qual as palavras e frases são percebidas,

difere entre os dois códigos. A articulação dos órgãos vocais é percebida pelo

ouvido, enquanto a escrita é percebida pela visão.

Não podemos ignorar que o caráter espontâneo definidor do ritmo da

oralidade cede lugar ao caráter não-espontâneo do ritmo da escrita, decorrente

do processo de transcodificação semiótica de que consiste a escrita e de

seu aprendizado em contextos institucionais. Conforme observa Simões

(2005, p.12), ninguém escreve como fala nem fala como escreve, ou seja, a

oralidade e a escrita são modalidades diferentes da língua como veículo de

interação social.

De acordo com Abaurre (in Chacon,1998), há três dimensões da

linguagem que estariam mais diretamente atribuindo um ritmo à escrita: a

fonológica, a sintática e a enunciativa.

A dimensão fonológica se percebe, por exemplo, quando a criança

transpõe para o papel as sentenças sem segmentação, já que a emissão oral é

contínua e a língua escrita “apresenta figuras não-conversíveis em som (letras

‘mudas’, pontuação, diacríticos etc); espaços em branco sem correspondência

com o texto oral” (cf. Simões, 2005, p.12). Os espaços em branco ocorrem na

separação de grupos tonais, pelo fato de eles serem portadores de informação

semântica. Nesse caso, de acordo com Simões (2005, p. 47), tem-se um

enunciado, isto é, “a emissão de uma seqüência acabada de palavras de uma

língua, precedida e seguida por pausa respiratória não passível de pontuação”.

O ritmo tem também função de suporte de material fonológico segmental,

organizando a linguagem. São também estreitamente ligados o ritmo e a

sintaxe. Devido à ausência das relações temporais típicas da linguagem oral, a

sintaxe tenta recuperar esses elementos, representando o tempo real da fala

por meio da representação gráfica.

A outra dimensão lingüística que caracteriza o ritmo na escrita é a

dimensão enunciativa. Os sinais de pontuação revelam-se como marcas do

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processo da escrita, mostrando aspectos rítmicos desse processo e também da

atividade do escrevente de organizar sua produção gráfica e de, ao mesmo

tempo, marcar-se como sujeito da escrita. Como afirma Chacon (1998), os

sinais de pontuação podem ser vistos como marcas tipográficas delimitadoras

no papel impresso dos atos do produtor da linguagem. Além disso, a

pontuação orienta ação lingüística do leitor. Ao mesmo tempo, o indivíduo,

no ato de leitura, tem a possibilidade de se transpor para o tempo e para o

lugar do produtor, por meio da pontuação que lhe foi enviada de outro tempo

e lugar. É possível, ainda, recuperar, por meio da pontuação, o processo que

levou à sinalização do texto e ainda resgatar os propósitos do autor, acordo

com Chacon (1998). A pontuação pode estar relacionada também ao impacto

comunicativo que o escrevente pretende causar no leitor. A ação de pontuar é

ainda uma evidência da presença do interlocutor na produção textual, ou seja,

o escrevente pontua para que seu texto seja lido por alguém e para que essa

leitura se realize efetivamente, sem equívocos..

Teóricos da gramática admitem certa dificuldade em descrever a

pontuação. Para Gladstone Chaves de Melo (1980), a pontuação é um

problema mais ligado ao estilo do que à gramática, Celso Cunha (1985)

observa a imprecisão de distinção dos sinais de pontuação e considera o valor

expressivo de certos sinais. A dificuldade dos pesquisadores em descrever as

condições de emprego da pontuação e a associação da pontuação com as

questões de estilo comprovam a natureza enunciativa da pontuação. Essa

imprecisão que se observa na descrição do emprego dos sinais de pontuação é

um fator indispensável à pragmática. De acordo com Laufer (in Chacon,

1998), as marcas escriturais da enunciação e da oralidade não são passíveis de

uma sistematização, já que tanto a língua falada quanto a língua escrita se

adaptam a todas as situações de comunicação. Vemos, portanto, que a

gramática sistematiza o uso dos sinais de pontuação, mas a prática individual,

muitas vezes, contraria as prescrições da norma, como observamos em obras

literárias e até mesmo em textos publicitários.

Além de Guimarães Rosa, cuja obra pesquisamos nesta tese, podemos

citar o emprego expressivo dos sinais de pontuação em Gonçalves Dias. A

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leitura de I-Juca Pirama causa grande impacto, devido à pontuação

inesperada, conforme observa Simões (2005). Podemos citar, como exemplos

extraídos da pesquisa, o emprego dos dois-pontos, que aparecem como

indicadores de explicação conclusiva, nestes versos: Com que me encontrei:

v.177; Que Deus lhe deixou: v.185. O travessão também desempenha um

importante papel, nessa obra poética, na marcação do ritmo e no destaque de

termos da oração, como podemos observar neste verso, em que o autor põe

em destaque o predicativo por meio da pontuação: Vi fortes — escravos! v.

139. O travessão é empregado, ainda, para pôr em destaque a força da

resposta do eu-lirico, que não vê outra saída senão a morte, no seguinte verso:

Que resta? — Morrer.v.193.

À medida que a aprendizagem da língua se desenvolve, a escrita deixa

de manter uma relação icônica com a oralidade para se tornar um código

semiótico autônomo. De acordo com Abaurre (1996), o ritmo na cadeia falada

tem a função de veicular as emoções e atitudes do sujeito. Nesse aspecto, o

ritmo tem um caráter icônico, pois a relação analógica que mantém com os

significados é não-arbitrária. Em outras palavras, a cadência dos atos verbais é

explicada em função dos diferentes estados emocionais e atitudes do sujeito

em relação àquilo que fala. Com o desenvolvimento do letramento, a criança

descobre que a linguagem tem um caráter convencional. Com isso, o ritmo da

escrita deixa de ser icônico, adquirindo um caráter simbólico. Isso será

percebido a partir das marcas da transcodificação.

Na observação do ritmo na escrita temos os sinais de pontuação. Como

vimos anteriormente, os sinais de pontuação pertencem ao escrito e não ao

oral, pois, além de não serem pronunciados, são signos gráficos, empregados

unicamente na escrita. Não podemos dizer também que a pontuação

representa graficamente a fala, pois a sua função delimitativa abrange não só a

dimensão fônica das estruturas delimitadas por ela, mas também a dimensão

semântica dessas estruturas.

Os sinais de pontuação são, de acordo com Chacon (1998), sinais

gráficos de marcação de ritmo da escrita e, por isso, ocorrem exclusivamente

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nas práticas de linguagem que envolvem a escrita. Podemos dizer, também,

que os sinais de pontuação são marcas lingüísticas, pelo fato de delimitarem

unidades estruturais na modalidade escrita da língua.

É importante ressaltar a diferença de enfoque que esse autor faz dos

sinais de pontuação. A pontuação consiste em um sistema gráfico cuja

finalidade é marcar o ritmo da escrita. Esse ritmo será responsável pela

organização da produção escrita.

Uma constatação de que a pontuação não se restringe à marcação do

aspecto fônico da língua é o fato de nem sempre as pausas realizadas na

cadeia falada corresponderem à colocação de um sinal de pontuação na

escrita, como é o caso da pausa que se faz, geralmente, entre o sujeito e o

verbo. Isso mostra também que a pontuação dos textos antigos obedecia

basicamente ao caráter fônico da língua, pois se observam vírgulas entre e

dois elementos da oração nesses textos.

Como vimos, a colocação dos sinais de pontuação obedece às

características fônicas, sintáticas e semânticas da língua. Chacon (1998)

lembra que outras dimensões da língua podem motivar o emprego da

pontuação, como o aspecto enunciativo e o aspecto pragmático.

Na colocação dos sinais de pontuação, o aspecto enunciativo da língua

se revela no momento que o escrevente constrói o texto com vistas a atingir o

seu leitor. Além de obedecer aos critérios gramaticais e fônicos, a pontuação

deve ser feita de maneira que o texto seja descodificado pelo indivíduo que

fará a leitura silenciosa desse texto. Guimarães Rosa, ao afirmar a intenção de

fazer com que o seu leitor se sentisse desafiado ao fazer a leitura de sua obra,

desejava, antes de tudo, prender sua atenção.

Outro elemento que concorre com os fatores citados anteriormente, na

pontuação do texto, é a pragmática. Notamos que o modo de pontuar um texto

é motivado pelas intenções do escrevente. A possibilidade que temos de

pontuar um texto de várias maneiras revela o caráter pragmático da

pontuação.

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É possível identificar, ainda, o caráter argumentativo e o caráter

textual da pontuação. A característica argumentativa, na pontuação, se revela

à medida que a disposição dos sinais de pontuação pode conduzir o leitor a ter

uma conclusão de acordo com as expectativas do autor. O outro fator, o

textual, pode ser revelado pela pontuação, no emprego de sinais como o

travessão, os parênteses e as aspas. As expressões delimitadas por esses sinais

não só se voltam sobre as estruturas anteriores como também promovem a

interrupção do discurso, para que sejam feitas as reflexões acerca do que foi

escrito anteriormente. As vírgulas, ao delimitarem os apostos e as orações

explicativas, também apresentam um comentário a respeito daquilo que já

apareceu no enunciado. Esses elementos, obviamente, ao fazerem a

interrupção do enunciado, são indicados, na fala, por uma mudança no

contorno entonacional.

Podemos dizer que a pontuação é uma recodificação da oralidade no

texto escrito, pelo fato de marcar, nessa modalidade da língua, os aspectos da

oralidade. O leitor, por meio desses sinais, é capaz de recuperar esses

aspectos.

Como já comentamos, as marcas próprias da pontuação que se

destinam à atividade gráfica revelam o caráter semiótico da escrita e, segundo

Chacon (1998), a transcodificação semiótica da oralidade para a escrita se

revela sobre uma dupla dialogia: uma entre o escrevente e o leitor e outra

entre a cadeia falada e o sistema gráfico.

2.3. Conclusão

Apesar de o sistema gráfico guardar estreitas relações com a cadeia

falada, já que se referem à mesma língua, ele é um outro sistema semiótico,

dotado de regras próprias, sendo capaz, portanto, de ser desvinculado da

língua em vários aspectos. Um desses aspectos é o ritmo que pode ser

observado na escrita. A pontuação é um fator responsável pela organização

rítmica do enunciado, pelo fato de ser um sistema de sinais gráficos, destinado

à modalidade escrita da língua.

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Essas observações serão de grande importância para este trabalho, na

medida que nosso objetivo é analisar uma pontuação especial. Como observa

Muñoz (1998), o sistema gráfico da pontuação cumpre um importante papel

nas etapas do itinerário da estruturação o texto e da sua compreensão.

Na próximo capítulo, veremos a fundamentação teórica de nossa

pesquisa

33.. FFUUNNDDAAMMEENNTTAAÇÇÃÃOO TTEEÓÓRRIICCAA

O assunto que nos propusemos pesquisar, a pontuação não-gramatical

na obra de Guimarães Rosa, levou-nos a buscar um suporte teórico sobre o

assunto em diversas obras.

Devido ao fato de a obra do escritor manter muitos pontos de contato

com as antigas narrativas orais, pesquisamos o assunto em algumas obras

dedicadas ao assunto.

De acordo com Cagliari (1995: 178), o sistema de pontuação foi

introduzido na língua grega por Aristófanes de Bizâncio por volta de II a.C.,

quando a escrita era ainda contínua. Segundo esse autor, é possível

reconhecer, nos sinais criados, as funções desempenhadas pelo ponto-final,

pelos dois-pontos e pela vírgula. No século VII a. C., no lugar do ponto,

apareceu o espaço em branco e também o uso de letras maiúsculas e

minúsculas. Os sinais de pontuação foram criados para a indicação das pausas

respiratórias na leitura dos textos em voz alta.em voz alta. Segundo Costa

(1994), os escribas, ao fazerem a cópia dos textos, acrescentavam notas

explicativas, como a perfeita pronúncia das palavras, a exata duração das

vogais etc. Essas notas, chamadas pontos, tinham o objetivo de garantir ao

leitor/orador uma perfeita interpretação do texto. Vem daí a origem da palavra

pontuação, designando todos os sinais auxiliares da leitura e da compreensão

de textos que deveriam envolver uma audiência, com o intuito de persuadi-la.

As informações obtidas nessas duas obras aproximam a obra de

Guimarães Rosa os textos antigos, pois se vê, em muitas passagens das

narrativas, que a pontuação tem a intenção de indicar as pausas impostas pela

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respiração. De acordo com Mendes (1998), as reticências que aparecem ao

longo do texto rosiano se aproximam de uma marcação teatral necessária à

emoção que deverá ser impressa na leitura. O autor ainda observa a

capacidade ornamental dos sinais de pontuação. Para Rocha (1988), os sinais

de interrogação e de exclamação, introduzidos na Idade Média, tinham uma

orientação mais prosódica do que gramatical. É importante lembrar que,

diferentemente da fase contemporânea, em que a unidade de pensamento é a

oração, nos textos manuscritos, a unidade de pensamento é o texto em sua

totalidade. Por esse fato, o objetivo principal da pontuação nos textos antigos,

sobretudo nos manuscritos, era marcação de pausas para a respiração do

orador, que deveria fazer uma leitura de modo compreensível, persuasivo e de

fácil memorização.

As repetições de frases em Grande Sertão: Veredas como “O diabo na

rua, no meio do redemoinho” (pp. 11, 77, 123, 187-188, 237, 319, 450, 451),

“Viver é muito perigoso” (pp.11, 18, 22, 30, 40, 67, 74, 205, 234 e 443)

e“Mire e veja” (pp.13, 20, 48, 52, 67, 78, 86, 112, 136, 206, 237, 255, 276,

304, 413, 425 e 425) lembram as narrativas da época que não existia a escrita

e a comunicação se fazia exclusivamente por meio da oralidade. Para que as

obras não se perdessem, as composições obedeciam a um rígido sistema

rítmico e, com o objetivo de evitar a interrupção do fluxo narrativo pelo

eventual lapso de memória, os narradores lançavam mão de epítetos e de

outras fórmulas que garantissem a continuidade da apresentação, como as

expressões encontradas na epopéia de Guimarães Rosa.

Rosa (1994), que fez um estudo sobre a pontuação em textos

impressos do Renascimento, defende a idéia de que os sinais de pontuação

nos textos analisados eram direcionados à sintaxe do texto escrito. A

pesquisadora discorda de teóricos como Cagliari, que relaciona o surgimento

da pontuação à leitura oral. Para ela, a pontuação tinha o objetivo de sinalizar

a língua escrita para o orador ou leitor do texto. Para Chafe (apud Rocha,

1988), até o século XIX, a pontuação se identificava mais com as unidades de

entonação da fala. Vemos, em textos mais antigos, uma pontuação que

contraria as normas gramaticais contemporâneas, numa orientação mais

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prosódica, como a separação, pela vírgula, entre sujeito e verbo. O mesmo

procedimento vê-se na obra de Guimarães Rosa. O autor, na tentativa de

recriar o ritmo da oralidade na escrita, orienta-se constantemente pelas pausas

feitas na cadeia falada.

De acordo com Cafezeiro (1993), o sistema de pontuação em língua

portuguesa proposto por Duarte Nunes de Leão, em gramática publicada em

1595, com uma fundamentação lógico-gramatical e prosódica, é o que vigora

entre nós.

Pesquisamos gramáticas do português contemporâneo, de autores

como Cunha (1985), Lima (1982), Kury (1999), Melo (1980), Said Ali (1966)

e Bechara (1999). Pesquisamos também sobre o assunto pontuação em obras

de Mattoso Câmara (1999) e de Houaiss (1967).

Nas obras consultadas, em geral, o sistema de pontuação está

relacionado com a realização oral da língua. No item que se refere ao uso da

vírgula, Said Ali (1966: 228) faz a seguinte recomendação: “para mostrar que

é preciso descansar a voz, põe-se a vírgula antes da conjunção e”. Essas

palavras lembram as orientações de pontuação em textos antigos, destinados à

leitura em voz alta, como podemos ver: “ (...) usamos de ũas distinções de

pausas e silêncio, assim para o que ouve entender e conceber o que se diz

como o que fala tomar espírito e vigor para pronunciar (...)” (Leão, 1983:

178). Said Ali ainda faz recomendação sobre a duração de sinais como a

vírgula e o ponto-e-vírgula, em sua obra (p.231). Rocha Lima (1982) faz a

distinção entre a oralidade e a escrita, referindo-se ao ritmo da escrita e à sua

marcação por meio de sinais gráficos, como podemos ver na introdução do

capítulo de pontuação: “As pausas rítmicas, — assinaladas na pronúncia por

entonações características e na escrita por sinais especiais — (...)” (p.422). O

autor divide em três grupos os sinais de pontuação, considerando os fatores

fonológicos, os sintáticos e os enunciativos da língua.

A definição de Cunha (1985), está próxima do conceito de Mattoso

Câmara (1999).

Vejamos:

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A língua escrita não dispõe dos inumeráveis recursos rítmicos e melódicos da língua falada. Para suprir essa carência, ou melhor, para reconstruir aproximadamente o movimento vivo da elocução oral, serve-se da pontuação. (Cunha, 1985: 625)

... na exposição escrita, o jogo de pausas e cadências tem de ser criado pelo leitor. Este trabalho é auxiliado pelos sinais de pontuação, mas nunca de maneira absoluta no que se refere à correspondência entre pausas de suspensão rápida de voz e as vírgulas, porque por uma convenção tradicional as razões de ordem lógica interferem aí com as de natureza meramente rítmica. (Mattoso Câmara, p.57)

Tanto o gramático quanto o lingüista deixam claro que a pontuação é

um sistema convencional de signos, portanto, com marcas características da

constituição semiótica da língua escrita, que não corresponde de maneira total

à modalidade oral da língua.

Bechara, seguindo as orientações de Catach (1980), considera os sinais

de pontuação, em sua essência, um tipo especial de grafemas. De acordo com

o autor, o emprego da pontuação se deve a questões de ordem sintática,

semântica e fonológica. O autor faz de sua conceituação as palavras de

Catach:

“sistema de reforço da escrita, constituído de sinais sintáticos, destinados a organizar as relações e a proporção das partes do discurso e das pausas orais e escritas. Estes sinais também participam de todas as funções da sintaxe, gramaticais, entonacionais e semânticas.” (p. 604)

Bechara observa ainda que os sinais de pontuação estão ligados à

expressividade, ao ritmo e à entonação dos enunciados, além de também

estarem relacionados à clareza do texto. Como vemos, o autor relaciona os

sinais de pontuação não só à escrita como também à oralidade.

Kury (1999) deixa claro que a pontuação é um sistema de sinais

gráficos ligado à escrita. O autor define a pontuação da seguinte maneira: “Na

tentativa de reproduzir s pausas, as cadências, o ritmo, a entonação da

linguagem falada, utiliza a escrita certos sinais de pontuação.” (p.65).

O autor estabelece a diferença entre os sinais de ordem objetiva, como

o ponto, a vírgula, o ponto-e-vírgula, os dois-pontos e o ponto-de-

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interrogação; e os sinais de pontuação próprios da expressividade da língua,

como o ponto-de-exclamação e as reticências.

Vemos, na definição desse autor, a sugestão de uma relação entre

pontuação e ritmo da escrita, à medida que esse sistema de sinais faz uma

reprodução das pausas, da entonação, da cadência e do ritmo da oralidade.

Gladstone Chaves de Melo (1972), além de afirmar que a pontuação é

um sistema exclusivo da modalidade escrita da língua, considera o emprego

dos sinais de pontuação um problema mais ligado à estilística do que à

gramática.

Vejamos sua definição:

“Servem para marcar as pausas do discurso, algumas entonações, certas mudanças de ritmo ou de altura e para deixar claros os relacionamentos sintáticos. (p. 380)

Podemos observar que o gramático não só relaciona a pontuação à

realização oral da língua como também à lógica do texto escrito.

Os autores estudados, ao passarem ao emprego dos sinais de

pontuação, de um modo geral, indicam o emprego dos sinais de pontuação a

partir de uma fundamentação sintática.

A pesquisa das gramáticas mostrou que os seus autores têm alguma

dificuldade em fazer uma sistematização do emprego dos sinais de pontuação,

já que, embora a dimensão prosódica da língua seja citada na maioria das

definições, as orientações de emprego dos sinais têm uma fundamentação

essencialmente sintática.

Laufer (in Chacon, 1998) acredita que essa dificuldade deva-se ao fato

de o emprego da pontuação estar centrado no enunciado e não na enunciação.

Essas leituras foram importantes para que tivéssemos um parâmetro

para a identificação, no corpus selecionado, do emprego não-convencional

dos sinais de pontuação.

Já que optamos por estudar os usos dos sinais de pontuação que

contrariam as regras vigentes na gramática da língua, foi necessária a busca de

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um suporte teórico mais abrangente, que considerasse não só os signos

verbais, mas também os signos não-verbais como componentes textuais

capazes de fornecer instrumentos para a decifração dos sentidos inscritos no

texto.

Acreditamos que a teoria semiótica de pensador norte-americano

Charles Sanders Peirce (1995) fornece subsídios necessários para a

interpretação das estratégias utilizadas pelo autor.

A semiótica, disciplina que faz parte da vasta obra filosófica de Peirce,

investiga o modo como apreendemos qualquer coisa que aparece em nossa

mente. Seus conceitos são gerais, mas nos permitem analisar os processos

existentes nos signos verbais, nos signos não-verbais e naturais, como a fala, a

escrita, os gestos, os sons, as imagens fixas ou em movimento, entre outras.

Todo esse universo simbólico é dotado de significado, e a teoria da

iconicidade de Peirce se presta a investigar as formas de expressão da

linguagem nas modalidades escrita e falada, uma vez que suas teorias

projetavam-se sobre toda a sorte de formas de representação e expressão, pois,

para a semiótica peirceana, tudo aquilo que faz parte da vida do homem se

apresenta como um elemento sígnico provido de significado. Para Simões

(2004: 2), “é a Semiótica que dá subsídios para que o homem se veja como

um signo no/do mundo e disponha-se a interagir com os demais signos,

partilhando com eles um espaço solidário (pois nem só o homem é signo).”

Segundo Simões & Castro (2000, p. 140-149), “(...) a semiótica

combinada com o plano de análise da língua que, a nosso ver, pode apontar,

com maior precisão, os requintes de expressividade e da impressividade que

se manifestam nas estruturações lingüísticas: o plano estilístico. Ao lado da

semiótica, a estilística se nos mostra o meio mais eficiente de compreensão de

um texto, pelo simples fato de entender-se a gramática do texto como algo

além da gramática normativa.”

Com base na fundamentação semiótica e com o suporte da estilística,

tivemos condições de penetrar no movimento interno das mensagens, no

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modo como elas são engendradas, nos procedimentos e recursos nelas

utilizados, de acordo com Santaella (2002).

A análise baseada na teoria semiótica pode dar conta dos problemas

que dizem respeito aos diversos tipos de mensagens e também como reagimos

a elas.

Assim sendo, o signo foi considerado uma corporificação do

pensamento. Há três elementos indecomponíveis e universais em todos os

fenômenos, de acordo com Peirce: primeiridade (a qualidade); secundidade (a

relação) e terceiridade (a representação). O estabelecimento dessas três

categorias é a grande contribuição da teoria peirceana ao pensamento

filosófico.

A primeiridade está relacionada ao sentimento, à impressão, à

espontaneidade; a secundidade está relacionada às idéias de ação, reação e

conflito, e a terceiridade, às idéias de generalidade, aprendizagem e evolução.

Segundo Simões (2004), a primeiridade, nível das qualidades, toca a

sensibilidade e desperta as funções cerebrais; a secundidade, nível das

relações, provoca reações sensitivas deflagradoras de associações entre

experiências vividas e estratégias a desenvolver, e a terceiridade, nível das

generalizações, possibilita a construção de leis gerais aplicáveis em situações

análogas futuras.

O signo, para Peirce, é qualquer coisa de qualquer espécie, como uma

palavra, um sinal, livro que representa outra coisa, chamada de objeto do

signo e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial,

chamado de efeito interpretante do signo. Por esse fato, a definição peirceana

do signo inclui a teoria da significação, a teoria da objetivação e a da

interpretação.

Analisamos, neste trabalho, o signo não-verbal, o sinal de pontuação

presente na obra de Guimarães Rosa. Foi observada a maneira como se

operou a conjugação do sinal de pontuação com o signo verbal, para que

fossem exploradas as relações entre as categorias de primeiridade, de

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secundidade e de terceiridade que resultam na semiose ou produção de sentido

do texto.

Entretanto, como observa Simões (2006), por ser a semiótica de

extração peirceana uma teoria de base filosófica e não lingüística, é necessário

buscar construção de esquemas aplicativos que acomodem a teoria ao objeto

de estudo, para que efetivamente se processe a investigação pretendida, no

caso, os efeitos produzidos pelo emprego da pontuação fora dos esquemas da

gramática tradicional.

A teoria da iconicidade de Peirce (1995) chamado de efeito

interpretativo do signo opera por tricotomias ou relações triádicas. As mais

importantes para nós, neste trabalho, são: signo, objeto e interpretante (diz

respeito ao signo em si mesmo) e ícone, índice e símbolo (diz respeito à

relação entre signo e o objeto). Embora o filósofo norte-americano não tenha

tratado diretamente de questões ligadas à linguagem, como já observamos

anteriormente, há possibilidades de se estabelecerem, dentro de sua teoria,

relações com a sintaxe, com a semântica e com a pragmática.

De acordo com Simões (2005:208), “quanto ao signo lingüístico, o

modelo peirceano apresenta uma perspectiva triádica, diferente da visão dual

de Ferdinand de Saussure. Para Peirce, todo signo deve ser lido em três níveis:

sintático, semântico e pragmático:

• a leitura sintática é puramente formal, de inter-relação de elementos,

de estruturas. • a apreciação semântica é um exame das relações signo-objeto com seu

significado básico, denotativo (função). • a análise pragmática é a leitura no nível das relações do signo com o

usuário-consumidor, ou seja, com o intérprete do signo.”

3.1. Sintaxe, semântica e pragmática

Dentro da concepção triádica do signo, é possível considerarem-se as

dimensões sintática, semântica e pragmática de um texto.

A primeira tricotomia dos signos (qualissigno, sinsigno, legissigno)

diz respeito ao signo considerado em si mesmo. Nessa tricotomia são criadas

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as relações sintáticas.

Um texto verbal ou não-verbal, não é formado de uma seqüência

aleatória de signos, mas a partir das associações por similaridade, que

constituem os paradigmas (eixos paradigmáticos) de seleção de qualquer

sistema de signos. São também responsáveis pela textualidade as associações

por contigüidade, que formam os sintagmas, eixos sintagmáticos ou

combinatórios.

Em relação à dimensão semântica, uma das descobertas fundamentais

de Peirce é a de que o significado de um signo é sempre outro signo; logo, o

significado é um processo significante que se desenvolve por relações

triádicas, e o interpretante representa o resultado provisório do processo

contínuo da busca do significado. Conforme observa Pignatari (1987), a

função metalingüística, com sua conseqüente operação de saturação do

código, é uma função do interpretante. Assim como a primeira tricotomia, do

signo, se refere ao nível sintático de um signo, a segunda tricotomia, da

relação do signo com o objeto, se refere ao nível semântico.

Se, como vimos, o nível sintático é um primeiro, o nível semântico é

um segundo, conseqüentemente, o nível pragmático da língua se refere à

relação do signo com o interpretante, um terceiro.

A dimensão pragmática da língua estuda a relação entre signo e seu

intérprete mais do que outras dimensões. A pragmática diz respeito ao efeito

que o signo tem sobre os intérpretes em situações de comunicação. Para

Peirce, depois de receber uma seqüência de signos, a maneira como agimos é

alterada de modo permanente ou transitório. Conforme lembra Eco (1979),

essa nova atitude é o interpretante final. Nesse momento, a semiose ilimitada

se detém, na medida que o intercâmbio dos signos produziu modificações da

experiência.

São privilegiadas, no nível pragmático, as circunstâncias de

enunciação, as relações com o co-texto, as pressuposições postas em ação

pelo intérprete e as inferências postas para que se realize a interpretação de

um texto.

As tríades vistas são aquelas capazes de dar uma visão geral da teoria

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peirceana, porém, a semiótica de Peirce não se esgota aqui; há outras tríades

(dez ao todo) elaboradas pelo teórico, que levam em consideração outros

elementos do signo.

É importante lembrar que essas distinções não são excludentes, isto é, elas

não se excluem umas às outras, mas mostram a pluralidade de dimensões do

signo. Um mesmo signo pode exibir múltiplas faces ao mesmo tempo. Uma

categoria pressupõe a outra, ou seja, a secundidade inclui a primeiridade, do

mesmo modo que a terceiridade pressupõe a secundidade e a primeiridade. De

acordo com Peirce, algo não necessita deixar de ser coisa para passar a outra

categoria, ou um signo não precisa deixar de ser índice ou ícone; ao contrário,

não pode deixar de apresentar essas três facetas ao mesmo tempo.

Como vimos, a teoria peirceana oferece meios eficazes de interpretação

de um texto de qualquer natureza: literário ou não literário; até mesmo em

qualquer linguagem, seja ela de natureza visual, sonora ou verbal. De acordo

com Pignatari (1987) a noção de interpretante rompe com a clássica dicotomia

significante/significado, tornando mais claro o processo de significação.

O texto de Guimarães Rosa, com seu estilo peculiar que rompe com

todos os esquemas convencionais de escritura, pede um suporte teórico que

ofereça múltiplas possibilidades de análise, desvinculado de esquemas

desgastados, capazes de tornar o sentido do texto sujeito ao encaminhamento

dado pelo pesquisador. Numa pesquisa que examinou figuras que dividem o

espaço textual com signos verbais, não houve outro caminho, senão o da

semiótica. A análise dos sinais de pontuação feita a partir da teoria semiótica

de extração peirceana possibilita uma investigação objetiva, cuja

comprovação se dá no próprio texto.

44.. AA OORRAALLIIDDAADDEE EE OO DDIISSCCUURRSSOO RROOSSIIAANNOO

Embora vivamos numa época em que temos à disposição uma infinita

quantidade de recursos visuais, não podemos ignorar que a origem de toda

essa tecnologia está na linguagem oral.

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Como sabemos, os textos antigos se destinavam à leitura em voz alta;

a escrita tinha importância pelo fato de fixar o texto. Vale lembrar que o

copista recebia a obra do autor por meio da fala, que, por sua vez, era

transcrita para que fosse apresentada a uma platéia formada de analfabetos em

sua maioria, razão pela qual deveria trazer a marcação da leitura por meio da

pontuação.

No texto de Guimarães Rosa identificamos nitidamente a presença da

cadeia sonora, produzindo o efeito de audição das falas que compõem as

histórias.

A oralidade na obra do escritor mineiro é aquela a que se refere

Zumthor (1997), que, com base na escritura, leva o leitor a recompor os

valores da voz, no uso e no imaginário.

Vemos, no texto rosiano, construções que se referem à voz com os

recursos de que dispõe a escrita, que são os sinais de pontuação.

Vejamos passagens que justificam essas afirmações:

—“P’r’aqui mais p’r’aqui, por mais este cotovelo!...” (Grande Sertão: Veredas, p.201)

“Eu cá, ché, eu estou p’lo qu’o che pro fim expedir...” (idem, p.206)

...É coragem, é qué’pe-te! que o morto morrido e matado não agride mais... (idem, p.261)

Tchou!...Tchou!...Eh, boooi!…(“O burrinho pedrês”, p.24)

Ê-ê-ê-ê-ê, boi!... (idem, p.25)

Oé, vô’: só se espera o demo, uai! (“Dão-lalalão”, p.106)

Cruz’-que! (“Umas formas”, p.201)

—Ô velho! — ele veio, rente, perante, onto em tudo. Pá! P’r’achato seu cavalão a se espinotear, z’t- zás... (“—Tarantão, meu patrão”,p. 141)

Observamos, nesses excertos o emprego ornamental da pontuação,

cuja função é resgatar a fala de maneira mais fiel à situação real. Como

observa Mendes (1998), o texto rosiano é repleto de ornamentos que

procuram resgatar a melodia da fala.

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O autor explora todas as possibilidades dos recursos de que dispõe,

como tamanho e variação dos tipos gráficos e exploração do espaço do papel,

com o aproveitamento de todas as potencialidades plásticas e imagéticas do

código alfabético, como os primeiros livros. Atualmente,se observa essa

mesma tendência na imprensa e na publicidade.

Podemos citar como exemplo de resgate do livro antigo e de

concordância com a tecnologia atual as expressões em negrito, representando

marcas da voz humana.

Ilustramos essa afirmação com o seguinte exemplo:

O velho nosso sozinho, alto, nos silêncios, bramou — ergueu os grandes braços:

—Eu pido a palavra. . . (“—Tarantão, meu patrão”, p.146)

Aparecem também muitas expressões em itálico, como mostra esta

passagem:

Porque, diante do gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amorrmeuzinho é justo;... (“ São Marcos”, p. 229)

— Eu cá não estou bêb’do nenhuns-nada! Estou é com raiva. (“Corpo fechado”, p. 267)

Em relação às palavras em itálico que aparecem na obra, Mendes

acredita que podem representar uma “voz cultural”, (quem sabe isso

representa o material recolhido em suas conversas com o povo?). Esse

recurso, para o pesquisador, indicaria, ainda, uma orientação da linha

melódica da palavra que sofreria uma alteração.

Para Ward (1984, p.110), o texto de Guimarães Rosa é “um discurso

escrito codificado para ser lido como se tivesse sido falado”. A autora, que

pesquisou a presença da oralidade em Grande Sertão: Veredas, chama

atenção para a ilusão de oralidade que se apresenta na obra, sendo a

pontuação um dos elementos que contribuem para dar essa feição à obra. Esse

efeito, para ela, é obtido também, no léxico com o aproveitamento de

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expressões populares, de criações lexicais com o emprego intenso das

interjeições; na sintaxe, a preferência pelas construções coordenadas

sindéticas ou assindéticas e as subordinadas adverbiais temporais, causais e

comparativas. Vêem-se também locuções fragmentadas, encontradas também

na língua oral.

De acordo com Santaella (2001), os três tipos de linguagem — verbal,

visual e sonora — representam as três grandes matrizes lógicas da linguagem

e do pensamento, a partir dos quais se originam todos os tipos de linguagens e

processos sígnicos que os seres humanos, ao longo de sua história, foram

capazes de produzir. Segundo a autora, a grande variedade e a multiplicidade

de formas de linguagem, como a literatura, a música, o teatro, o desenho, a

pintura, a gravura e a escultura estão alicerçadas nessas três matrizes.

A linguagem sonora, segundo Santaella, estando no domínio da

primeiridade, é a mais primordial e, por esse fato, alicerça a linguagem de

caráter visual, que pertence à secundidade, do mesmo modo que esta alicerça

a matriz do discurso verbal, pertencente ao nível da terceiridade, devido à sua

natureza simbólica, convencional.

Devido ao fato de estar no nível da primeiridade, a sonoridade é o

elemento a partir do qual se estrutura a sintaxe, pois é o princípio estruturador

primordial para o funcionamento de qualquer linguagem. Desse modo, a

sintaxe alicerça a forma (matriz visual), assim como as duas, sintaxe e forma,

alicerçam o discurso verbal.

Na obra de Guimarães Rosa, é possível encontrar a interseção dessas

três matrizes da linguagem de que fala Santaella. A sonoridade e a

visualidade, em suas materialidades, estão contidas no discurso verbal do

autor. A oralidade presente na obra pode ser associada à matriz sonora, devido

ao contorno melódico, ao ritmo, e ainda à rima que se podem depreender pela

leitura. Ao mesmo tempo, temos o elemento visual na diagramação do texto,

em que a pontuação se aproxima de um desenho ou mesmo uma partitura

musical, como já comentamos, além da presença de outros recursos como

símbolos e formas de letras.

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A produção literária de Guimarães Rosa, relativamente pequena, é

fonte inesgotável de pesquisas. Para a crítica, a escrita rosiana inaugurou um

novo período na literatura do Brasil. Sua escrita provoca inúmeras discussões

em relação às inovações que apresenta.

Rocha (1998), com base nos conceitos de sistema, norma e fala

presentes na obra de Coseriu (1979), concorda com a opinião da maioria dos

analistas da obra rosiana ao afirmar que o autor escreveu de acordo com a

norma e de acordo com o sistema, ao criar termos, cuja formação segue a

norma da língua ou utiliza as possibilidades do sistema lingüístico do

português. Esse pesquisador, entretanto, vai mais além ao defender a idéia de

que Guimarães Rosa também teria ultrapassado o sistema do português na

criação de vocábulos. Ele argumenta que, em muitas criações lexicais, o autor

deixa de respeitar a norma e também o sistema do português, como, por

exemplo, na palavra homência, (in Sagarana, p. 345) houve o acréscimo do

sufixo -ncia a um substantivo e não a um verbo, como recomenda a norma da

língua.

Proença (1973) acredita que os vocábulos de som e forma inusitados

funcionam como guizos, levando o leitor, primeiramente, a certa dificuldade

de compreensão. Essas palavras também poderiam acrescentar informações

adicionais ausentes da palavra formada de acordo com as regras da língua. O

mesmo autor acrescenta que o estranhamento inicial, por parte do leitor,

provoca depois certa admiração pela criatividade do escritor.

As idéias vistas anteriormente vêm ao encontro do objetivo principal

de nossa pesquisa. Assim como esse autor afirma que Guimarães Rosa criou,

em sua obra, co-sistemas da língua no plano morfológico, poderíamos afirmar

que o autor poderia também ter criado um sistema paralelo da pontuação?

Neste trabalho investigamos a possibilidade de o autor ter criado um

sistema paralelo de pontuação. Como já afirmamos , anteriormente, há

passagens na obra rosiana que mostram a transgressão do autor à norma

padrão, no que se refere à pontuação.

Vejamos alguns exemplos:

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a) Eu, posso. (“Meu Tio o Iauaretê”,.p.163 )

b) Matei, montão . (id. p.163)

c) Zé Boné, sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Boné! (“Irmãos Dagobé”, p.41)

d) Não o viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? (“As margens da Alegria”, p. 5)

Vemos, no exemplo (a), a vírgula entre o sujeito e o verbo; no

exemplo (b), a vírgula entre o verbo e seu complemento; na terceira passagem

(c), temos frases formadas primeiramente por uma interjeição, seguida de

outra, formada por uma conjunção e, por último, o adjetivo forte funcionando

como predicativo separado do verbo por uma vírgula. Na última passagem

(d), temos, no primeiro período, o advérbio introduzido por dois-pontos; e, na

última frase, um travessão substituindo um verbo.

Segundo os estudos já realizados sobre e obra rosiana, é possível

concluir que o escritor promove uma verdadeira revolução na linguagem ao

desestruturar as formas feitas da língua em todos os níveis: semântico,

sintático e morfológico. No interior dessa transformação lingüística está a

pontuação, pois, como observamos, nesses poucos exemplos destacados,

Guimarães Rosa faz uma ruptura com o sistema de pontuação do português.

Nossa tarefa nesta pesquisa foi a observação dessa forma inusitada de

pontuar, que parte da norma e explora todas as virtualidades da língua, com

objetivos estilístico-semióticos. Verificaremos também se a pontuação rosiana

mostra o estilo personalíssimo do autor, que teve coragem suficiente de

desestruturar a linguagem para criar uma obra singular. Para isso, partiremos

da gramática normativa, e nos basearemos principalmente na teoria semiótica

de extração peirceana, para elucidarmos a questão da pontuação em

Guimarães Rosa.

55.. PPOONNTTUUAAÇÇÃÃOO NNAA OOBBRRAA DDEE GGUUIIMMAARRÃÃEESS RROOSSAA

Este capítulo, conforme informamos na introdução de nosso trabalho,

é voltado para a análise do corpus que selecionamos para discutir a pontuação

na obra do escritor mineiro.

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Na sua prática da escrita, Guimarães Rosa procura transpor os limites

impostos pela norma da língua. Na transgressão ao que deve ser obedecido,

acrescenta outras formas que, minimamente, causam o impacto do

rompimento com a tradição gramatical.

É muito redutora, porém, uma leitura que ofereça apenas a constatação

de que o texto apresenta somente uma série de inovações. O interessante jogo

que se observa entre o verbal e o não-verbal, na obra rosiana, tem uma função

de grande importância nos textos. Os signos não-verbais, que são o objeto de

nosso estudo, oferecem uma leitura que vai além da constatação de que o

autor organiza seu texto a partir de uma pontuação que foge dos parâmetros

da língua.

A reorganização dos sinais de pontuação por Guimarães Rosa vai

acrescentar outras significações que ultrapassam aquelas previstas pela

gramática da língua. Os elementos não-verbais que compõem a tessitura do

texto do autor, como a pontuação, as capitulares, as palavras ou enunciados

em itálico ou em negrito, além de outros símbolos, são dados relevantes para a

compreensão e interpretação da obra do escritor.

O suporte da teoria da iconicidade de extração peirciana torna possível

acompanhar e compreender a evolução de um simples sinal ao estatuto de

signo e também compreender seu papel na organização textual das histórias

rosianas. A pontuação não só determina o ritmo da escrita, como também

representa as relações de sentido, desenhando as pausas, as ligações e também

as funções gramaticais e discursivas.

Como observa Muñoz (1998), no texto literário, além do uso

normativo, a pontuação passa a adquirir um valor artístico. Do ponto de vista

semiótico, os sinais de pontuação adquirem um duplo valor: o lingüístico e o

visual.

Segundo Orlandi (2001), a pontuação pode colocar em funcionamento

mecanismos de ajuste imaginário entre o discurso e o texto, pondo em jogo a

dimensão simbólica do sujeito. Para a autora, o trabalho do sujeito de colocar

em símbolos verbais suas formulações mentais converte o discurso em texto.

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Os padrões sintáticos da linguagem verbal e visual são formados de

ícones diagramáticos. No caso da linguagem verbal, o sentimento ou imagem

desses diagramas torna-se nítido no processo de compreensão de um

enunciado. O entendimento de um texto não se dá a partir de palavra após

palavra isoladamente, mas na captação da forma sintática, isto é, do diagrama

sintético dos elementos frásicos. Esse fenômeno ocorre porque os diagramas e

os ícones estão presentes em qualquer tipo de pensamento. A pontuação

empregada por Guimarães Rosa, a princípio causa certa dificuldade ao leitor

pelo fato de já termos em nossa mente diagramas icônicos da estrutura

sintática da língua. Nosso estudo vem mostrar que os sinais de pontuação se

apresentam como marcas gerenciadoras de leitura, que conduzem o leitor ao

entendimento da obra.

Na materialização do discurso em texto, há um espaço não preenchido

responsável pela marcação de uma relação que não é perfeitamente ajustada

em relação à discursividade. Essa falta resulta na multiplicidade de possíveis

sentidos, ou na geração de significado e de sentido, que seria a semiose, numa

ótica da teoria da iconicidade.

Na obra rosiana, observam-se dois modos de emprego da pontuação.

Há passagens em que o autor pontua o texto de acordo com as regras da

língua e há outras em que demonstra grande ousadia, organizando, de outra

forma, o seu dizer.

Procuramos analisar o emprego dos sinais na seguinte ordem: a

vírgula, o ponto-e-vírgula, o ponto, os dois-pontos, o travessão, o ponto-de-

exclamação, as reticências e os parênteses.

5.1. O emprego da vírgula

A vírgula, sinal mais comum na pontuação de textos em geral, é

também largamente utilizada pelo autor. A abundância de vírgulas, nas

narrativas pesquisadas, se torna tão comum que o leitor passa a considerar

natural esse emprego. Nos excertos seguintes temos o emprego da vírgula

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feito de acordo com a norma da língua. O nosso propósito, entretanto, é

mostrar o uso excessivo desse sinal.

Vejamos:

O camarada, vindo com ele, era um serviçal dos Dioclécios: que, hoje, sozinho, nesta data, um patrão vinha me visitar, de passagem. (“Luas-de- mel”, p. 97)

Mas, em verdade, filho, também, abranda. (Grande Sertão:Veredas, p.12)

Secara, e, de agora, desde os três anos, toda manhã, cada por dia, o Chico Carreiro atrelava suas quatro juntas de bois, e desciam até às Pedras , o carro cheio de latas, para buscar a água do usável. (“Uma estória de amor”, p.550)

Daí por mais em diante, nas viagens, pra lá do mais pra lá, passaria numa fazenda, com seus homens, e era a fazenda de um tal, ou filho dum tal, na quebrada dum morro, e o dono saindo na boca da estrada, para convidar: — “Viva, entra, chega p’ra dentro. Manuelzão! Semos amigos velhos. Eu estive lá na sua Festa...” (idem p.556)

Vi quando ele se despediu e tocou — com o bom respeito de todos —; e fiquei me alembrando, daquela vez, de quando ele tinha seguido sozinho para Goiás, expulso, por julgamento, deste sertão. (Grande Sertão: Veredas, p.332)

Vimos apostos e predicativos separados por vírgulas e também um

grande número de adjuntos adverbiais, cuja demarcação por vírgula, como

sabemos, é facultativa.

As inúmeras vírgulas imprimem um colorido todo especial ao texto e

convidam o leitor a reproduzir mentalmente as pausas e os contornos

entonacionais, acentuando o caráter musical da linguagem sertaneja. As

pausas tornam a narração mais lenta e detalhada, obrigando o leitor a se deter

em cada evento ou descrição. Os sinais de pontuação possibilitam a formação

de quadros imagéticos das cenas e remetem o leitor às situações de produção

desse tipo de enunciado.

Em certas passagens, entretanto, a profusão de vírgulas é um elemento

complicador, obrigando o leitor a fazer a leitura em voz alta, para que o texto

se torne compreensível.

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A pontuação conduz à formação de esquemas mentais que fazem com

que nós, por meio da leitura, resgatemos o dinamismo das cenas. Essa

profusão de vírgulas causa um efeito de realidade à narração e esse desenho

textual dá um realce singular à palavra.

Observemos o primeiro grupo de exemplos em que a vírgula tem um

emprego especial:

a) Mecê não pode falar que eu matei onça, pode não. Eu, posso. (“Meu tio o Iauaretê”, p.827)

b) Sêo Tomé se soberbava, lavava com sabão o corpo, pedia roupas de esmola. Eu, bebia. (“Antiperipléia”, p. 13)

c) Que vem vindo rondando aí, rodando feito pé-d’água, de temporal e raios: os querubins já estão com as brasas bentas, amontoadas em seus trapes cavalos! Tu, treme... (“ O recado do morro”,p.39)

d) Oi, mecê ouviu? Essa, é miado. Pode escutar. (“Meu tio o Iauaretê”, p.843)

e) Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim, a garrixa-do-brejo, frangos d’água, gaivotas. O manuelzinho-da-croa! Diadorim, comigo. (Grande Sertão:Veredas, p.218)

É interessante observar certa semelhança da pontuação dessas

passagens com a pontuação dos manuscritos medievais, em que o sujeito é

segmentado do pelo sinal de pontuação. Marchello-Nizia (apud Matos e Silva

1993) depreendeu, em documentos analisados, além do emprego da

pontuação, que tinha o propósito de reagrupar e hierarquizar as unidades

mínimas da oração, também o emprego dos sinais, de acordo com o critério de

considerar o texto uma seqüência de unidades de sentido e de respiração, não-

organizadas e não-hierarquizadas.

Nos exemplos anteriores, a pontuação do texto remete o leitor à

entonação da oralidade. Vemos que a colocação da vírgula corresponde

fielmente ao ritmo que se observa na cadeia falada, com pausas entre o sujeito

e o verbo. Em sua leitura (silenciosa ou em voz alta) o leitor recria os aspectos

prosódicos do texto, a partir das impressões visuais

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As unidades rítmicas mostram a delimitação das unidades de sentido.

Além de, no plano fonológico, as passagens reproduzirem a cadeia falada,

elas estão estreitamente relacionadas com as frases anteriores. A vírgula, se

por um lado, recria as pausas da oralidade no texto escrito, por outro lado, é

um índice que acumula todas as informações presentes nas frases anteriores

de cada passagem. A vírgula dos enunciados “Eu, posso.” , “Eu, bebia.”, “Tu,

treme.” remete o leitor ao contexto e essas frases trazem uma conclusão de

tudo que foi dito anteriormente. Em outras palavras, os personagens estariam

dizendo: quanto a mim, bebia; você não pode matar onças, mas eu posso;

diante dos acontecimentos tu treme; esse barulho de onça é miado; Diadorim

admirava comigo aquela beleza. A vírgula, nos enunciados, seria um modo de

o autor acenar para o leitor, numa volta à enunciação, onde estão registradas

todas as informações necessárias à compreensão das passagens.

Esses exemplos mostram a cumplicidade do narrador com o leitor/

ouvinte da obra. A vírgula tem muito mais do que a função de substituir

informações já transmitidas. Esse tipo de frase deposita em si grande dose de

emotividade que faz o outro (o leitor ou o ouvinte) penetrar realmente na

história que está sendo narrada, a ponto de não ser mais necessária uma frase

elaborada. Os dois últimos exemplos: “Essa, é miado.”e “Diadorim, comigo.”

são perfeitamente adequados ao contexto. A frase sintetizada do último

trecho, por exemplo, não impede que o leitor tenha a perfeita noção do lirismo

da cena, em que o narrador começava, graças a Diadorim, a enxergar a beleza

das coisas da natureza.

Essas construções delegam ao leitor a tarefa de estabelecer as relações

semânticas e sintáticas, para que frases como essas sejam compreendidas e,

desse modo, a pontuação se justifique.

Vejamos estas outras passagens:

a) Procedi — “Esta é bonita, a mais” — a ele afirmei, meus créditos. (“Antiperipléia”, p. 18)

b) Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. (Grande Sertão: Veredas, p.27)

c) Às vezes não aceito nem a explicação do compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo,

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tenho; mediano. (Grande Sertão: Veredas, p.237)

d) Nem nenhum deles ria, a que à menor menção de troça o Gorgulho subia no siso, homem de topete. Doido, seria? (“O recado do morro”, p. 17)

e) Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice.Boa, foi. (Grande Sertão: Veredas, p.35)

f) E convidava-nos a almoçar, ao Zé Centeralfe, principalmente.

Meditava, o Meu Amigo. Disse: — “Esta nossa terra é inabitada. prova-se, isto...”— pontuante. (“Fatalidade”, p. 55)

É comum o deslocamento de termos da oração na obra de Guimarães

Rosa. Nesse caso, a vírgula assume o papel de signo indicial, apontando para

o leitor a ordem dos constituintes frasais, de modo a tornar a passagem

compreensível.

No primeiro trecho, o advérbio, parte da expressão adjetiva no grau

superlativo, é deslocado da sua posição natural (Esta é a mais bonita). A

vírgula, com função de signo indicial, orienta o leitor para essa inversão e,

conseqüentemente, põe em destaque o termo deslocado. No próximo exemplo

(b), o complemento do verbo é deslocado também de sua ordem natural (ainda

encontra alguma coisa) e a pontuação é o elemento orientador dessa inversão.

No exemplo (c), além da orientação da leitura na ordem direta, a vírgula

relativiza a extensão do medo experimentado pelo sujeito do enunciado. Nos

dois exemplos seguintes, (d) e (e), temos a anteposição do predicativo A

leitura em voz alta da passagem vai tornar mais proeminentes esses termos,

com uma emissão mais lenta e acentuada. No último exemplo, (f), temos a

anteposição do verbo, que é indicada pela vírgula.

Podemos observar, nessas passagens, um jogo sutil do autor,

principalmente, com a ordem dos elementos dos enunciados. Esses

deslocamentos e inversões que se percebem pela leitura nada mais são do que

estratégias do autor com o propósito de levar o leitor a reconstruir as cadeias

anafóricas para fazer o encadeamento lógico dos elementos dos enunciados.

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Cada língua tem seu modelo de colocação dos constituintes frasais, ou

seja, a ordem dos termos obedece a um esquema. Esse esquema corresponde a

um ícone diagramático, como vimos anteriormente, que é requisitado pelo

raciocínio. A alteração desse ícone vai provocar certa dificuldade na mente

interpretadora. Na obra de Guimarães Rosa, a pontuação será o elemento

gerenciador do percurso a ser seguido pelo leitor para o entendimento do

texto. Essa mudança na ordem dos constituintes exigirá a participação do

leitor para que a leitura se realize efetivamente.

Vejamos estes outros exemplos de emprego de vírgula:

a) Nicão morreu sem demora. O Sertório durou, uns dias. (“Esses Lopes”, p. 47)

b) É feio — que eu matei. Onça meu parente. Matei, montão. (“Meu tio o Iauaretê”, p. 827)

c) Nhem? Onça preta? Aqui tem muita, pixuna, muita. Eu matava, a mesma coisa. (idem, p. 828)

d) Tio Quim leal para mim, e a tia, quieta, maninha. E rareei. Esqueci, de tudo, muito; conforme o encargo da natureza. (“Rebimba, o bom”, p. 127)

A vírgula, nesses excertos, segmenta o verbo de seu complemento. Na

observação desses empregos é necessário considerar todo o contexto e mais o

caráter enunciativo das passagens. O emprego indicial do sinal de pontuação

auxilia o leitor a seguir as pistas presentes no texto que o levarão a dar um

sentido aos enunciados.

Nos quatro primeiros exemplos, a vírgula aparece entre o verbo e seu

complemento. Em (a), a vírgula tem duas funções. Poderíamos até interpretá-

la como um signo desorientador, pois, inicialmente, a simetria não se desfaz,

isto é, a oposição morreu X não morreu — morreu X durou — é mantida. A

vírgula, além de garantir essa iconicidade inicial entre os enunciados, aponta a

possibilidade de quebra do modelo.A adição da informação anunciada pela

vírgula muda abruptamente o sentido do enunciado.

Nos excertos (b e c), a vírgula tem um valor indicial. O sinal de

pontuação é o elemento que estabelece a ligação com as frases anteriores para

completar seu sentido. Na passagem (d), a segmentação de todos os elementos

do enunciado pela pontuação, é um sinal de que a ordem original pode ser

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refeita. A vírgula inicial delimitando um marcador conversacional inaugura

uma série que indica a possibilidade da oração ser lida da seguinte maneira:

Mas, tenho medo mediano. A separação do termo caracterizador do

substantivo medo indica a intenção do autor em dar proeminência à palavra

(mediano).

Estes outros excertos também mostram um emprego bem original da

vírgula:

a) E, vai, senão, que, surgiu a nova: um recado. (“Luas-de-mel”, p. 97)

b) — “Você entendeu alguma coisa da estória do Gorgulho, ei Pedro?” “— A pois, entendi não senhor, seo Jujuca. Maluqueiras...” Claro que era, poetagem. (“O recado do morro” p.25)

c) Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. (Grande Sertão: Veredas, p. 16)

No exemplo (a) o somatório de todas as pausas, que ocorrem até o

conectivo, contribui para a criação de certa tensão até a emissão do termo que

se segue aos dois-pontos. Discursivamente, a vírgula nesses excertos cria

certa expectativa no leitor.

A palavra poetagem encontrada na última frase do segundo exemplo,

que pertence ao narrador, completa a fala iniciada pelo personagem

(maluqueiras....) e a vírgula é um índice de que essa palavra faz parte da frase

anterior. Temos uma frase para narrador e personagem e, como sabemos, isso

é um fato comum na língua falada. Podemos dizer que os dois têm a mesma

formação discursiva.

No último exemplo, há duas orações em antítese. O autor, porém, na

diagramação da escritura, alterou a simetria do modelo oracional, ao

introduzir uma vírgula entre o predicativo e o verbo, diferentemente do que

fez na oração anterior. Dessa forma, houve uma quebra de expectativa do

leitor, já que as duas orações têm a mesma estrutura. Iconicamente, a estrutura

de cada oração está de acordo com o modelo mental que temos de cada um os

seres. As ações e qualidades de Deus são conhecidas e previsíveis, portanto, a

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estruturação da oração que se refere a esse ser está de acordo com o modelo

tradicional. A quebra da simetria já se evidencia na grafia do substantivo

diabo, com letra minúscula, em oposição a Deus, com a inicial maiúscula. A

vírgula orienta a mente interpretadora para o deslocamento dos termos da

segunda oração, destacando o habitante das trevas e sua característica.

Portanto, a forma da segunda oração, que transgride o modelo estabelecido, é

adequada ao seu sentido.

Consideramos o texto uma imagem e os sinais de pontuação, pistas

capazes de conduzir o leitor à produção de figurações mentais interligadas,

responsáveis pelo processo de tradução semiótica. As vírgulas, empregadas de

forma inusitada, primeiramente, causam o impacto de romper com o hábito

estabelecido pela norma da língua. Vencida a primeira etapa, a mente

interpretadora busca, a partir dos parâmetros estabelecidos, formar novos

esquemas para entendimento do signo que se lhe apresenta. O próximo passo

será a busca, a partir das marcas fornecidas pela pontuação, do sentido dos

enunciados e dos propósitos do autor, ou, ainda, uma forma preferencial de

leitura.

O escritor, em sua atividade gráfica, recodifica a oralidade,

demarcando, por meio da pontuação, alguns de seus aspectos; o leitor, pela

atenção aos sinais, recupera esses aspectos, transformando-os, de marcas

gráficas, em tom e inflexão de voz. Logo, como observa Chacon (1998), o

escritor e o leitor constituem-se como seres atravessados, simultaneamente,

pela escrita e pela oralidade. Poderíamos dizer que a entonação das passagens,

na situação de leitura em voz alta, é perfeitamente adequada ao seu sentido.

As vírgulas que aparecem nos exemplos citados anteriormente,

formam quadros imagéticos das conversas dos contadores de histórias, em

que, por meio das pausas da fala, são recuperadas pelos sinais de pontuação.

As vírgulas podem também, como vimos, ser uma marca da mudança da

ordem dos constituintes frasais. O sinal de pontuação, desse modo, além de

conduzir a leitura, destaca o termo deslocado.

Foi encontrado, ainda, na obra rosiana, o seguinte emprego da vírgula:

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a) A filha, ele só tinha aquela. (“Sorôco, sua mãe, sua filha”, p.13)

b) Diadorim, eu gostava dele? (Grande Sertão: Veredas, p. 352)

c) Eu, eu ia por meu constante palpite. (Grande Sertão:Veredas,.p.386)

d) Café, tem não. Hum, preto bebia café, gostava. (“Meu tio o Iauaretê”, p. 826)

Vemos, nessas passagens, a topicalização de elementos que devem

receber ênfase no enunciado, construção muito comum na linguagem oral.

Podemos observar que o elemento, no primeiro plano, antecedido pela

vírgula, é o núcleo da entonação. Ele recebe tamanho destaque que parece

valer por toda a oração. Nesse caso, a função da vírgula é a de introduzir um

elemento proeminente. No último exemplo temos uma construção com

pronome-cópia, isto é, o pronome pessoal é destacado pela pontuação e

repetido em seguida. Esse quadro de primeiro plano e de pano de fundo se

forma na mente do leitor, causando o efeito de realidade à narração. Esse tipo

de construção faz com que a atenção do leitor se volte sobre o objeto

nomeado primeiramente. Podemos dizer também que o tópico é uma forma de

anunciar ao leitor o termo sobre o qual se fará o comentário.

A vírgula que aparece na última frase do exemplo (d), substitui o

conectivo explicativo porque, dando mais concisão ao enunciado.

Outro exemplo de pontuação pode ser observado nestas passagens:

Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo — homem muito valente — se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo: “— Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!...” Gritava não esbarrava. (Grande Sertão: Veredas, p.18)

O homenzinho sentara na ponta da cadeira, os pés e joelhos juntos, segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre. (“Fatalidade”, p. 51)

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Vemos, nesses fragmentos, que o desenho textual que se configura

pela ausência da pontuação é compatível com o significado dos enunciados.

Essa ausência do sinal de pontuação vai provocar a mudança do ritmo da frase

e, conseqüentemente, alteração de sentido. No primeiro exemplo, a oração

que finaliza o período sintetiza, pela imagem, a forma como o jagunço

proferia as palavras, de forma clara, sem hesitações ou erros. Tomado de

grande emoção, o personagem falava de modo contínuo, sem pausa, num só

fôlego, como mostra a ausência de pontuação.

No segundo exemplo, vemos dois adjetivos dispostos sem a vírgula

entre eles. Essa justaposição de qualificativos produz um efeito de

intensificação, nesse caso, da idéia de pobreza.

Há outros empregos da vírgula carregados de grande expressividade,

como estes excertos:

a) Ordenou-lhe então — trouxesse ao curral um boi, qualquer! (“Presepe”, p.119)

b) A boiada, do norte. (“Zingaresca”, p. 189)

c) Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei. Severgonhei. Estive com o melhor das mulheres. (Grande Sertão: Veredas, p. 231)

d) [...] O sanhaço: desmancha-pesares. O eclodir-melodir do coleiro, artefacto. O cochicho quase — imitante, irônico— da alma-de-gato, solíloqua. Os duos joãos-de-barro, de doméstico entusiasmo. O, que enfraquece o coração, fagote e picirico dos pombos. O operário pica-pau, duro estridente ou o mais mudo.[...] (“A estória do homem do pinguelo”, p.802)

e) Adormecer, pude; mas, com outros minutos, tornei naquele mau susto de acordar. (Grande Sertão: Veredas, p. 167)

f) A fatal perseguição, podia quebrar e quitar-se. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que ele mesmo não sabia — a oculta, súbita saudade. (“Seqüência” p.59)

Nos dois primeiros trechos, vemos os substantivos separados de seus

respectivos adjuntos adnominais pela vírgula — boi qualquer, boiada do

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norte. A separação dos termos especificadores, convencionalmente presos, faz

com que adquiram um grau de importância no enunciado e,

conseqüentemente, uma proeminência entonacional. No primeiro exemplo, a

vírgula recria a pausa que se observa na cadeia falada. Essa passagem aparece

sob forma de discurso indireto livre, ou seja, uma forma híbrida, em que o

discurso citado se associa ao discurso direto. A narrativa, ao reproduzir fala

do personagem, junto com o discurso do narrador, sugere para o leitor a

situação da produção do enunciado, a partir do ponto-de-vista do narrador,

que direciona, de certa forma, o ato de leitura. A vírgula, com valor de índice,

conduz o leitor à formação de imagens da cena e impressões auditivas do

momento de produção do enunciado, em que o personagem se mostra para o

leitor. Dessa forma, podemos dizer que o discurso indireto livre mostra a

subjetividade do personagem.

No terceiro exemplo, o narrador evidencia sua posição de sujeito do

enunciado. Como se percebe, a diagramação textual vai determinar o ritmo

mais lento na leitura oral da passagem. Também, na leitura silenciosa, o leitor

é levado a recriar mentalmente as pausas transmitidas pela escrita.

Poderíamos dizer que a entonação da passagem propicia a formação da

imagem sinuosa da estrada por meio do ritmo presente no trecho. A

segmentação do trecho pelas vírgulas revela certo lirismo que contrasta com a

presença de fatores mundanos revelados no mesmo enunciado.

Na passagem (d) ocorre o emprego da vírgula de forma bem inusitada.

Podemos entender esse procedimento do autor à luz da teoria da iconicidade.

De acordo com Nöth (1992), no texto, temos dois tipos de iconicidade: a

exofórica, ou seja, a representação do mundo feita pela estrutura lingüística e

a endofórica, em que aparecem as recorrências simétricas e assimétricas,

como as repetições de frases, de palavras, referências anafóricas de termos já

citados, além da repetição de morfemas e de fonemas.

No texto, “A estória do homem do pinguelo” (in Estas estórias, 1995),

do qual extraímos o trecho que constitui o exemplo (d), o narrador enumera o

timbre do canto de inúmeros pássaros. Essa citação é feita de forma simétrica,

seguindo um modelo (O simplezinho sim do tico-tico). No trecho em que

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comentamos o emprego da vírgula, houve uma aparente quebra da simetria

(O, que enfraquece o coração, fagote e picirico dos pombos), pois o autor, ao

introduzir uma oração subordinada adjetiva explicativa, transforma esse

significante em pronome, ao mesmo tempo que, se for retirada a oração entre

vírgulas, o significante passa a funcionar como artigo, sendo mantida, dessa

forma, a iconicidade endofórica.

No exemplo (e), temos vírgula separando os verbos de uma locução. A

mudança de posição do verbo principal deixa clara a intenção do autor em dar

destaque ao termo habitualmente dependente, que é o verbo auxiliar. A

vírgula , dessa forma, tem a função indicial, ou seja, esse signo é uma pista de

que houve uma inversão na ordem dos termos da locução. No discurso, a

informação fundamental da locução é transferida para o verbo auxiliar.

No exemplo (f) temos a vírgula entre o verbo e a palavra se. Essa

forma, aparentemente sem função, poderia funcionar como uma conjunção

que introduziria uma oração condicional em elipse, o que seria coerente no

contexto. Esse termo também impede que a simetria icônica se desfaça, já que

se observa a aliteração do fonema consonantal fricativo alveolar surdo no

ambiente. O tipo de emprego da vírgula, entre dois termos que, notadamente,

formam uma unidade de sentido, talvez seja uma das maiores ousadias do

escritor, no que tange à pontuação. Temos visto que o elemento norteador da

pontuação na obra do escritor mineiro é a oralidade. Entretanto, nesses

exemplos, o sinal gráfico se interpenetra na unidade do constituinte frasal,

ocasionando uma quebra na estrutura, o que não ocorre na cadeia falada.

Vemos que o sinal de pontuação é empregado de modo especial,

visando a uma projeção do icônico sobre o verbal. O sinal de pontuação,

nesses exemplos, tende a projetar no espaço gráfico os processos mentais do

narrador.

Como já comentamos anteriormente, as transgressões que aparecem no

texto rosiano não são gratuitas. Qual poderia ser a intenção do autor em

introduzir uma vírgula numa unidade que, mesmo na cadeia falada, é

desprovida de pausa? Nem mesmo em redações de alunos de classes iniciais

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se observa esse tipo de pontuação. Esse fato mostra que, intuitivamente, o

falante tem a noção de unidade. Cremos que a vírgula ocorra nesse tipo de

contexto para tornar mais evidentes os termos. Lembramos que o autor

procurava sempre fugir do lugar-comum. A colocação das vírgulas de forma

não-convencional altera a entonação já cristalizada no ouvido do leitor,

obrigando-o a uma mudança.

A vírgula, na obra rosiana, pode ter também a função de substituir um

conectivo ou um verbo.

Extraímos os seguintes exemplos da obra:

a) Só uns três dias só. Transeunte. Dixe que, eu casar, ele me amaldiçoa...” (“O recado do morro”, p. 31)

b) Destino, quem marca é Deus, seus apóstolos. (“O recado do morro”, p.22)

c) Sempre disse ao senhor, eu atiro bem. (Grande Sertão:Veredas, 124)

d) Jõe Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço; duns meses, disse, andava padecendo da saúde, erisepelava e asmava. (Grande Sertão: Veredas, p.168)

Vemos, no trecho (a), que as vírgulas estão delimitando um enunciado

de sentido condicional, cujo conectivo não está presente. Esse tipo de

construção, muito encontrado na fala, torna os enunciados mais sintéticos e

fornece ao leitor somente os elementos essenciais, ficando a coesão por conta

do sinal de pontuação. Assim como a norma lingüística é icônica, é pela

iconicidade que distinguimos o desvio ao modelo convencionado.

No exemplo (b) a vírgula substitui a conjunção aditiva; em (c) e (d), o

termo substituído pela vírgula é a conjunção integrante que e, no último

exemplo, a vírgula substitui o verbo estar.

Esse tipo de construção procura reproduzir, na escrita, a fala sertaneja,

levando o leitor a experimentar sensações auditivas, responsáveis pela

construção mental das cenas. Essas construções também obrigam o leitor a

dar um acabamento à forma da escritura.

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É comum, à prosa rosiana, aproveitar a tendência da fala popular de

dar pouca ênfase aos elementos de ligação, deixando a coesão por conta da

pausa. A vírgula, portanto, nesses contextos, é um índice de oralidade, que

causa um efeito discursivo de ênfase aos elementos essenciais do texto e de

cumplicidade entre narrador e leitor/ouvinte na tarefa de completar a frase.

Observemos este exemplo:

Um boneco de capim, vestido com um paletó velho e um chapéu roto, e com os braços de pau abertos em cruz, no arrozal, não mamolengo? O passo-preto vê e não vem, os passarinhos se piam de distância. Homem, é. (Grande Sertão: Veredas, p.370)

Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha idéia — por dizer bem: meu coração. Dormi, adeus disso. Como é que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveis que vieram depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto? (idem, p.138)

No primeiro exemplo, a última oração tem o deslocamento do verbo

para o seu final. A vírgula é uma pista para o leitor deslocar o verbo para o

início da oração a fim de tornar a frase mais coerente. O predicativo

antecedido do verbo mostra o que representa para o pássaro a figura do

homem. Essa palavra representaria uma senha, um sinal dentro da própria

história. Vemos, no enunciado, o narrador mostrando para o leitor o ponto-de-

vista do próprio personagem, no caso, o pássaro.

No último exemplo, é necessário que, primeiramente, o leitor disponha

os termos da oração interrogativa na ordem direta (Conforme o senhor vai ver,

que já lhe conto, como é que eu ia poder ter pressentimento das coisas

terríveis que vieram depois?) para tornar a frase mais precisa. A primeira

leitura deixa a impressão de que há um amontoado de várias frases em só

uma. A vírgula nos dá uma pista para resolver o quebra-cabeças. Construções

como essas exigem a participação do leitor na construção de sentido do texto.

Vemos, portanto, que a vírgula, nos dois exemplos, auxilia o leitor a

arrumar o texto, para que se torne mais claro. Vê-se, nitidamente, a intenção

do sujeito da enunciação de valorizar os elementos deslocados para o início

das orações.

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Vejamos mais um exemplo de emprego da vírgula:

Acho o mais terrível da minha vida, nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. (Grande Sertão:Veredas, p. 188)

Nesse exemplo, é evidente o caráter conversacional da conjunção

destacada pela vírgula, do resto do contexto. Na leitura oral, o primeiro

elemento vai receber maior proeminência entonacional, deixando clara a

intenção do sujeito de destacar o marcador que retoma a narração, após a

interrupção provocada pela reflexão do período anterior. A vírgula desloca a

atenção do leitor para esse elemento, tornando-se, assim, um índice de que a

narrativa terá prosseguimento, além de recriar a cadeia falada, levando à

formação mental de sensações auditivas e sonoras.

A vírgula pode ser colocada também no lugar de outro sinal de

pontuação, como mostram os exemplos seguintes:

[...] Mas a chuvaça tomava a gente de respirar, um bebia água, se assoava, se babava, homem tinha o que aguentar, as roupas iam pesando endurecidas, pé de cavalo trampeava em barro, voz ouvida não cabia. [...] (“A estória de Lélio e Lina”, p.106)

Nesse trecho, há várias orações justapostas ligadas pela vírgula.

Depois da primeira oração esse sinal de pontuação estaria no lugar dos dois-

pontos. Depois da quarta oração,o ponto poderia substituir a vírgula. A

abundância de vírgulas no desenho do texto, causa o efeito de uma

sobreposição de imagens que traduz a simultaneidade de ações. Essas imagens

impõem ao texto uma grande carga de expressividade, refletindo o clima de

tensão experimentado pelos personagens.

5.1.1. Conclusão

Como vimos, a função da vírgula e predominantemente indexical, pois

orienta a leitura, no sentido de fornecer pistas da inversão dos constituintes

frasais e também transcodifica a cadeia falada tanto no ritmo da escrita como

na leitura oral do texto.

O estudo da vírgula mostrou, ainda, que o ritmo semelhante ao da

oralidade que se observa no texto rosiano é resultado da inversão dos

elementos da frase e não a simples recriação da oralidade.

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Esse sinal de pontuação também possibilita ao autor utilizá-lo para

substituir outros sinais de pontuação, causando interessantes efeitos no texto

escrito.

Vejamos o quadro resumitivo do emprego da vírgula:

VALOR SEMIÓTICO VALOR FUNCIO NAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GINA TIPO

SÍGNICO INTERPRETAÇÃO

FUNÇÃO DISCURSIVA

delimitação dos constituintes frasais

O camarada, vindo com ele, era um serviçal dos Dioclécios: que, hoje, sozinho, nesta data, um patrão vinha me visitar, de passagem.

Luas-de-mel

97 índice possibilidade de recriação imagética do evento narrado

recuperação do tempo e do espaço da enunciação

Eu, posso. Meu tio o Iauaretê

163 índice responsável pela associações necessárias à compreensão das passagens

conclusão das informações das frases anteriores

segmentação entre o sujeito e o verbo.

Meditava, o meu amigo

Fatalidade 55 índice elemento gerenciador do percurso a ser seguido para reconstrução do enunciado, de acordo com o padrão convencional

maior importância do termo deslocado

O Sertório durou, uns dias.

Esses Lopes

57 índice dupla função de marcar uma aparente simetria e apontar para sua quebra

mudança abrupta do sentido do enunciado

segmentação entre verbo e complemento ou predicativo Mas, medo,

tenho; mediano.

Grande Sertão: Veredas

235 índice orientação do deslocamento dos constituintes

relativização do termo determinado

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Claro que era, poetagem.

O recado do morro

24 índice condensação de todos os fatos citados anteriormente num julgamento

fusão do discurso do narrador e do personagem

Segmentação entre verbo e complemento ou predicativo

E, vai, senão, que, surgiu a nova: um recado.

O recado do morro

97 índice preparação para a emissão dos signos verbais endofóricos

criação de expectativa no interlocutor

Segmentação entre verbo e predicativo

Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.

Grande Sertão: Veredas

16 índice quebra da simetria em concordância com os sujeitos dos enunciados

adequação da forma do enunciado ao sentido

Segmentação entre o termo determinante e o termo determinado

Ordenaram-lhe que trouxesse ao curral um boi, qualquer.

Zingaresca 189 índice associações mentais ao modelo de referência

discurso do narrador interligado ao do personagem

Separar o elemento topicalizado

A filha, ele só tinha aquela.

Sorôco, sua mãe, sua filha

13 índice ícone estrutura da linguagem oral

formação de dois planos de enunciado

Substituto da conjunção

— Só uns três dias só. Dixe que, eu casar, ele me amaldiçoa.

O recado do morro

31 índice reconstrução mental da situação de produção do enunciado

participação do leitor na construção do enunciado

deslocamento dos termos da oração

Como é que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveis que vieram depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto?

Grande Sertão: Veredas

138 índice

pista de deslocamento dos termos

participação do leitor na ordenação dos termos do enunciado

segmentação da conjunção introdutória

Mas, me escute.

Grande Sertão: Veredas

188

índice

formação de sensações auditivas e visuais

início de uma situação comunicativa

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5.2. O emprego dos dois-pontos

O tom retórico representa um traço fundamental na escrita de

Guimarães Rosa. O emprego de artifícios para prender a atenção do

leitor/ouvinte, como a repetição de refrões, os vocativos, o ritmo, as orações

justapostas, período coordenativo, as frases nominais, entre outros,

aproximam a obra do escritor das narrativas populares.

A pontuação é um dos elementos responsáveis pela configuração da

entonação e a formação dos momentos de clímax característicos das

narrativas populares. Os dois-pontos são também bastante empregados na

obra de Guimarães Rosa. É comum encontrarmos a presença desse signo mais

de uma vez em um período. Esse procedimento auxilia na formação do tom

solene da narrativa, tão apreciado pelos contadores de histórias.

Além do uso tradicional dos dois-pontos, nas citações, enumerações e

sínteses, vemos construções bem inusitadas, com os dois-pontos aliados a

outros sinais de pontuação.

Vejamos estes exemplos:

— Não caçoa! Boa mesmo!... Eu cá não largo a minha. Arma de fogo viaja a mão da gente longe, mas cada garrucha tem seu nome com sua moda... Faca já é mais melhor, porque toda faca se chama catarina. Mas, foice?!: é arma de sustância — só faz conta de somar! Para foice não tem nem reza, moço... (“São Marcos”, p. 232)

O João Lualino, pardaz, sempre muito luxo no vestir, botava até água-de cheiro na cabeça; diziam que era sujeito muito mau, e sangrador, faquista. —“A ser, quand’ é que vocês ficam forros de pajear essa gente de ambulante?”— O João Lualino perguntou. Arre, era amanhã, estavam no arraial, de volta — o Ivo explicava. “Eh, Crônh’co — falava Veneriano —: Vocês foram arranjar um carcamano mais estranhável. Hum, que zanza por aí à garimpa, mó de atestar amostra de pedrinhas e folhas d’árvores... Que é que estará percurando, de verdade?” [...] (“O recado do morro”, p.42)

Visualmente, o texto deixa o leitor intrigado. A perplexidade inicial se

desfaz à medida que reconhecemos o papel do sinal de pontuação, que é o de

gerenciar a leitura.

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No primeiro exemplo, temos a presença de outros dois sinais ao lado

dos dois-pontos: o ponto-de-interrogação e o ponto-de-exclamação. Embora a

escrita do autor seja excêntrica, a presença desses sinais não é gratuita. Logo,

é importante que sigamos as instruções contidas nessa diagramação.

Como sabemos, o ponto-de-exclamação ao lado do ponto-de-

interrogação imprime um valor expressivo ao enunciado. Desse modo, vemos

três informações nos sinais de pontuação. O desenho textual mostra uma

indagação retórica, com grande carga de espanto. A seguir, os dois-pontos

encaminham a leitura para a definição do objeto. O personagem, ao fazer uma

conjectura baseada em fatos, imprime, por meio desse ato de fala, um valor ao

objeto, alvo do comentário. Esse tipo de raciocínio se manifesta pela

criatividade. O sujeito da enunciação, diante do fato surpreendente com o qual

deparou, elaborou esse pensamento. Os outros dois sinais de pontuação

contribuem com grande carga de expressividade, para que as associações

emirjam na mente interpretadora.

No segundo exemplo, os dois-pontos estão ligados à fala do

personagem, interrompida pela voz do narrador, que está indicada pelo

travessão duplo. Portanto, esses dois-pontos estão ligados ao elemento

anterior aos travessões. Vemos duas dimensões enunciativas nesse trecho: a

fala do personagem, no primeiro plano, e a fala do narrador, como pano de

fundo. A pontuação, nesse caso, vai delimitar os papéis discursivos. Os sinais

de pontuação auxiliam o leitor a reconstruir mentalmente a cena narrada e,

dessa forma, o sentido emerge dos enunciados. Como podemos ver, nesses

exemplos, os sinais de pontuação têm um papel fundamental, na formação de

sentido do texto, pois oferecem a trilha ser seguida pelo leitor.

De acordo com Damourette (apud Charadeau & Maingueneau, 2004),

os dois-pontos estão associados à melodia do texto. Para o teórico da

linguagem, esse sinal de pontuação tem uma influência no contorno

entonacional do enunciado em que se encontra.

Observe-se o seguinte exemplo:

[...] A madre, meu construído, casa-grande de quantos andares

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agüentando, no se subir, lanço a lanço, à risca feita. Mas: a casa sem janelas nem portas — era o que eu ambicionava. (“Curtamão”, p. 37)

Vemos, na passagem anterior, que o sinal de pontuação se segue à

conjunção adversativa. Os dois-pontos contribuem para acentuar o clima de

tensão criado pelo valor semântico do conector e promovem também uma

mudança no ritmo da narrativa. O caráter inusitado da construção é

perfeitamente adequado ao enunciado; nesse caso, a mudança entonacional na

leitura oral e o ritmo da escrita funcionam como índices do que será citado na

narrativa: a construção de uma casa uma casa sem janelas nem portas.

Podemos dizer também que o sinal de pontuação tem a função de ratificar a

introdução de uma idéia inusitada na narrativa.

Os dois-pontos podem também substituir o conectivo da oração, como

podemos ver nestes exemplos:

a)Tinha inveja de mim: não via que eu era defeituoso feioso. (“Antiperipléia”, p. 14)

b) O dinheiro: água que faltando. (“Curtamão”, p.37)

c) Afinal, ele falou: fosse o Almirante Balão. (idem, p.204)

d) Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitio? (Grande Sertão:Veredas, p. 126)

e) Bicho pequeno elas não guardam: comem inteirinho, ele todo. (“Meu tio, Iauaretê”, p.827)

f) O Chapadão: céu de ferro.(Grande Sertão:Veredas, p. 351)

g) Sertão: estes vazios. (idem, p. 27)

h) Perguntei: respondeu-me que não estava doente. (“Famigerado”, p.13)

Conforme observa Catach (1980), os sinais de pontuação, embora não

tenham correspondência articulatória, funcionam como signos lingüísticos.

Eles podem ter várias funções, como a função semântica, que completa ou

substitui palavras. Os exemplos anteriores trazem um tipo de construção

comum na obra de Guimarães Rosa. Como acontece com outros sinais de

pontuação, os dois-pontos podem substituir termos que não aparecem nos

enunciados, como conectores e verbos, que são substituídos nas passagens

anteriores.

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Nos cinco primeiros trechos, o sinal de pontuação substitui a

conjunção explicativa (a), a conjunção comparativa (b) e (c); a conjunção

integrante (d) e a conjunção adversativa (e). Nos exemplos (f) e (g), os dois-

pontos aparecem no lugar do verbo de ligação, e no último trecho, o sinal de

pontuação está substituindo a parte da oração, subentendida no trecho

referente à resposta do personagem.

Esse tipo de construção, que torna o enunciado sintético, comum na

fala popular, conta, na leitura, com a participação do leitor, para dar-lhe

sentido. Os sinais de pontuação têm o valor de índices dos elementos ausentes

nesses trechos:

No trecho seguinte, temos outro exemplo da escrita sintética do autor:

Ali entraram com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra. (Grande Sertão:Veredas, p. 90)

Temos, nessa passagem, outro exemplo de um tipo de construção

muito encontrada na obra rosiana. O sinal de pontuação presente no segundo

período tem um emprego bem original, pois indica a carga de emotividade

que deveria ser expressa pelo ponto-de-exclamação. A busca da concisão leva

o autor a criar enunciados apenas com a presença dos elementos-chave, como

as orações em que se observam os dois-pontos. O sinal de pontuação introduz

os termos “tantas armas” e “pé de guerra” e é responsável por certo grau de

tensão nos enunciados e torna os elementos que se seguem a eles mais

evidentes. Na última oração, o sinal ainda indica a conclusão do narrador.

De acordo com Moisés (1967: 74-75), “nosso pensamento se constrói

segundo uma ordem lógica, isto é, em que os argumentos se vão

acrescentando até permitir a conclusão que pretendemos considerar”. O autor

ainda observa que, por esse motivo, devemos escrever ou mesmo falar “de

acordo com a preocupação de nos fazer claros e convencer a quem nos lê e

escuta”.

Extraímos algumas passagens em que o emprego do sinal de

pontuação causa efeitos de sentido originais, como estas:

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a) O Hermógenes rompia adiante, não dizia palavra. Nem o Garanço também, nem o Montesclarense. Isso, em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vai morrer e matar, pode ter conversa?[...] Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. (Grande Sertão: Veredas, p.156)

b) Dar o mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. (Grande Sertão: Veredas, p. 283)

c) O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (idem, p.234)

d) Se a Santa puser em mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao senhor, e digo: paz. (idem, p.229)

e) Aí, o mais: poeiras! Ao pino. (“—Tarantão, meu patrão”, p.143)

Os dois-pontos provocam uma alteração no ritmo da escrita,

preparando o leitor para a citação de algo merecedor de atenção. Do ponto-de-

vista semiótico, o sinal de pontuação é um índice orientador de leitura,

responsável pela antecipação da importância do que vai ser citado.

Como já comentamos anteriormente, o narrador na obra rosiana tem

muitos pontos de contato com os contadores de estórias. Desse modo, os dois-

pontos recriam a eloqüência do ritmo da fala no espaço gráfico. Essas

passagens, ao recriarem a cadeia falada da língua, transportam o leitor à

situação de produção desses enunciados. Vemos que os dois-pontos

contribuem para o clima de tensão na narrativa, como o primeiro exemplo, em

que a expressão que se segue à pontuação mostra o estado psicológico do

personagem e também sintetiza o que poderia ser dito em várias frases. Em

outras passagens, os dois-pontos indiciam culminância do suspense; às vezes,

pode se seguir ao sinal de pontuação o inesperado, como mostram os

exemplos seguintes (b), (c), (d), (e) e (f). Esse procedimento garante,

entretanto, a interação do leitor com o texto.

Em Grande Sertão:Veredas, vê-se a interação do narrador/contador de

estórias com o leitor/ouvinte, como esta passagem: “O sertão: o senhor

sabe”(p.295). Essa passagem pode ser explicada pelo fato de o ex-jagunço

Riobaldo, ao longo da narrativa, enunciar frases, entre outras, como: “Sertão é

o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e mão

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quadrada.”(p.86); “Sertão é o sozinho.(...) Sertão: é dentro da gente.” (p. 235).

Portanto, o primeiro exemplo é totalmente coerente; os dois pontos, nesse

caso, conduzem o leitor a todas as definições anteriores.

Os dois-pontos são signos auxiliares na transmissão da gestualidade

dos personagens, como vemos nestes exemplos:

Ói: rabo duro, batendo com força. Cê corre, foge. Tá escutando? (“Meu tio, o Iauaretê”, p.839)

Ói: onça Maria-Maria eu vou trazer ela pra cá, deixo macho nenhum com ela não. (idem, p.839)

Hum, hum. Ói: eu tava lá, matei nunca ninguém. (idem, p.844)

Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... (Grande sertão :Veredas, p.45-46)

Mire veja: Se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem em tudo por tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. [...] (Grande Sertão:Veredas, p.13)

Esticadinha: a cabeça dá de maior, pra riba, quando ela escancara a boca, as pintas ficam mais compridas, os olhos vão pra os lados, reprega a cara. Ói: a boca— ói: a bigodeira salta... Abre os braços, já tá mexendo pra pular; demora nas pernas— ei, ei — nas pernas de trás... (“Meu tio o Iauaretê”, p. 830)

As passagens que representam as interpelações se repetem ao longo

das narrativas de referência. O personagem do conto “Meu tio o Iauaretê” (in

Estas estórias), geralmente, repete a expressão “ói:” ao se dirigir ao seu

interlocutor. A expressão “Mire veja” ou sua variação “Mire e veja” é um

mote que se apresenta ao longo da narrativa Grande Sertão:Veredas. A

expressão “olhe” também é bem utilizada pelo autor, embora a anterior seja

uma marca da epopéia. Os dois-pontos que acompanham essas expressões

retóricas, com a finalidade de assegurar a atenção do ouvinte na apresentação

da estória, sugerem os movimentos corporais e a voz do narrador. No último

exemplo, é bem nítido o mimetismo do personagem ao “desenhar” a onça e

seus movimentos para o interlocutor.

Os dois-pontos podem aparecer seguidamente, como mostram estes

excertos:

—Mais cerveja, Manuel?

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—Eu cá nunca enjeito, seu doutor. Mas, lhe conto: o ruim foi depois: ninguém não queria fazer negócio comigo...Perdi a freguesia...E, eles, era ingratidão, porque eu nunca tinha feito velhacaria nenhuma com pessoa nenhuma do arraial. Não carrego rabo de palha...Mas, que-o-quê! (“Corpo fechado”, p. 277)

Advirto: desse Felpudo: tão bom como tão não, na mioleira. (“—Tarantão, meu patrão...”, p.143)

Tomo nota: está soprando do sudoeste; mas, mal vale: daqui a um nadinha, mudará, sem explicar a razão. (“A volta do marido pródigo”, p.251)

Mire veja: aquela moça, meretiz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. (Grande Sertão: Veredas, p.78)

O emprego seguido dos dois-pontos pode ser visto como índices de

momentos de importância seguidos, na narrativa. Essa forma de pontuação

segmenta, no enunciado, chamando a atenção do leitor/ ouvinte para o

elemento sobre o qual se comentará mais adiante.

No último exemplo, além do apóstrofo inicial, temos mais dois

empregos dos dois-pontos, com o objetivo de delimitar a novidade: o

recebimento da carta. Vemos que esse tipo de emprego isola o elemento entre

os dois-pontos.

Esta colocação dupla do sinal de pontuação é distinta da anterior,

como vemos:

Agora, bem: não queria tocar nisso mais — de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? (Grande Sertão:Veredas, p. 22)

Entrou até embaixo de cama, para quebrar a vasilha!... E: olhe aqui: quando ele tinha chegado, caçou uma alavanca para abrir a porta, com cautela de economia, por não estragar...(“São Marcos”, p.236)

A diagramação do texto nos leva a fazer associações desse tipo de

emprego com o travessão duplo, pois as expressões estão destacadas do resto

da oração pela pontuação.

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Nesse caso, o autor tem como seu aliado o leitor, que vai fazer as

operações mentais, relacionando os dois-pontos seguidos com o travessão

duplo.

Vemos que os dois-pontos imprimem grande expressividade ao

enunciado. Os termos destacados pela pontuação adquirem proeminência no

enunciado e o sinal empregado seguidamente deixa a superfície textual menos

densa do que ficaria com o travessão. No primeiro exemplo, o narrador muda

o rumo da declaração, procedimento indicado pelo verbo entre os dois-pontos,

para transferir a dúvida que seria declarada para o interlocutor. Nos excertos

selecionados, percebe-se, ainda, que os termos destacados pela pontuação têm

a função de chamar a atenção do interlocutor.

Os dois-pontos também substituem outros sinais de pontuação, como

estes trechos mostram:

Daí deu em dizer que está sempre esperando...

— Oé, vô: só se espera o demo, uai! (“Buriti”, 106)

[...] Todo lugar é igual a outro lugar; todo tempo é o tempo. Aí: as coisas acontecidas, não começam, não acabam. Nem. Senhores! Assim, num povoado... (“A estória do homem do pinguelo”, p.158)

Onça meu parente. Matei, montão. Cê sabe contar? Conta quatro, dez vezes, tá í: esse monte mecê bota quatro vezes. (“Meu tio o Iauaretê”, p. 827)

Ixe, quando eu mudar embora daqui, toco fogo em rancho: pra ninguém mais poder não morar. Ninguém mora em riba do meu cheiro.(Idem, p.826)

Normalmente a vírgula é o sinal que separa o vocativo do resto da

oração. Os dois-pontos, no primeiro trecho, têm dupla função no contexto,

pois, além de isolarem o vocativo, anunciam uma declaração inusitada,

dando-lhe destaque.

No segundo exemplo, os dois-pontos substituem a pausa que

acompanha o marcador conversacional “aí”. Nesse caso, a função dessa

partícula não é de promover a coesão seqüencial do texto, mas de fazer uma

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interpelação ao interlocutor, anunciando a próxima declaração, dando-lhe

realce.

No penúltimo trecho temos uma construção muito comum na fala

popular. Os dois pontos, na cadeia falada, promovem uma pausa para

introduzir o termo a que se pretende dar destaque, como já vimos em outros

exemplos. Esse procedimento representa uma estratégia retórica do discurso

falado, com a intenção de convidar o ouvinte a participar do evento narrado.

Os dois-pontos, no último trecho, mostram também sua função

argumentativa, em que o narrador parece querer deixar bem marcada a

justificativa de sua atitude. A própria diagramação do texto aliada ao valor

convencional do sinal de pontuação mostra “a marcação de terreno” feita pelo

onceiro. O mesmo acontece na cadeia falada, pois a pausa suspensiva mais

forte que a da vírgula imprime um caráter de importância ao que vai ser dito.

As pausas provocadas pelos dois-pontos, na cadeia falada ou no ritmo

da escrita, imprimem às passagens um quadro sugestivo de construção das

cenas, em que se “ouve” a voz do personagem enfatizando as passagens

marcadas pelo sinal de pontuação.

Vejamos outro tipo de emprego dos dois-pontos encontrado na obra de

Guimarães Rosa:

A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. (‘Famigerado”, p. 13)

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. (“Desenredo”, p.40)

Fez tenção: de trabalhar, sobre só, ativa inertemente; sarado o dó de lembranças, afundando-se os dias, fora já de sobressaltos. (“Arroio-das-antas”, p.18)

Jamais, nuncas, eu invejei ninguém: porque inveja é erro de galho, jogar jogo sem baralho. (“A estória do homem do pinguelo”, p.130)

Se não pediu, só não pediu esmolas, há-de. Sendo, será que, com aquele primeiro dinheiro, viajou e virou, conformemente, no vender bois e passar outras boiadas? Só se soube: que também, logo, com um tempo, pegou a compor o estável. ( “A estória do homem do pinguelo”, p. 157)

Pois, bom é dizer que: nada, com ele saía para fora de nada.

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Devagar também é pressa (“A estória do homem do pinguelo”, p. 157)

. O ritmo que se forma com a colocação dos dois-pontos faz com que o

leitor recupere a intenção comunicativa do autor de dar destaque aos termos

que se seguem ao sinal de pontuação.

Percebemos, nesses últimos exemplos, que os sinais de pontuação

criam relações de sentido que tornam possível captar as diferentes orientações

de leitura pretendidas pelo autor. A pontuação, desse modo, desempenha um

papel semelhante ao de certos operadores lingüísticos, ao dar uma orientação

argumentativa ao enunciado, de acordo com Ducrot (1981). O ritmo que se

imprime à narrativa, nesse caso, vai imprimir outras nuanças de sentido ao

enunciado e, conseqüentemente, ao texto em sua totalidade.

O sinal de pontuação vai ser um índice da alteração pretendida pelo

autor, de acordo com o sinal escolhido. Cabe ao leitor seguir a trilha elaborada

pelo autor, para que a leitura do texto se efetue em sua totalidade.

Nos exemplos vistos anteriormente, os dois-pontos determinam que se

inicie outra unidade de comunicação a partir desse sinal, o que não ocorreria

caso não houvesse a pontuação.

Os diálogos aparecem de várias formas na obra rosiana. Podemos

encontrar desde aqueles bem delimitados, em que se identificam o narrador e

o personagem até aqueles que podem ser identificados somente pelo mapa da

pontuação.

Vejamos exemplos de falas bem demarcadas pelo espaço gráfico:

Targino puxou o revólver. Eu me desdebrucei um pouco da janela. Cruzaram-se os insultos:

—Arreda daí, piolho! Sujeito idiota!...

—Atira, cachorro, carontonho! Filho sem pai! Cedo será, que eu estou rezado e fechado, e a tua hora já chegou!...

E só aí que o Manuel mexeu na cintura. [...] (“Corpo Fechado”, p.285)

Vemos, nessa passagem, a forma tradicional de diálogo, em que o

narrador anuncia a fala dos personagens, com o auxílio dos dois-pontos.

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Aparecem também falas de personagens no mesmo parágrafo da

narração, delimitadas, porém, pela pontuação.

Vejamos:

Olhava mais era para Mãe. Drenalina era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terez: — “Tio Terez, o senhor parece com o Pai...” Todos choravam. [...] (“Campo Geral”, p. 542)

Há passagens em que os dois-pontos encaminham o leitor para a fala

do personagem, porém, a narrativa toma outro rumo.

Então, Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. (“Um moço muito branco”, p. 90)

Disse: que o dia estava muito recitado. (“A partida do audaz navegante”, p. 105)

Me disse: tinha bastante dinheiro. (“Curtamão”, p. 43)

Os dois-pontos, nesse caso, até desorientam o leitor, pois se segue o

discurso reportado. A voz do personagem que se apresentaria em primeiro

plano é apagada pela fala do narrador, nesse trecho. O narrador, nessa forma

de escritura, relata o fato a partir de seu ponto-de-vista, assumindo o controle

da voz do personagem.

Vejamos outro interessante efeito de sentido formado a partir da

conjugação de dois sinais de pontuação:

Mudara de idéia, sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrá-la em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado descuidoso, dos idílios fraudulentos. (“Duelo”, p. 142-143)

Vemos, nessa passagem, uma mostra da orientação de leitura feita pelo

narrador. A interjeição exclamativa antecede o fato anunciado pelos dois-

pontos, com valor indicial. Nesse caso, a intenção de controle não é sobre o

personagem, mas sim sobre o leitor/ouvinte. A parte do enunciado que se

segue aos dois-pontos é uma justificativa do sentimento do narrador expressa

pela interjeição.

Vejamos o último exemplo do emprego dos dois-pontos:

O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos

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limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à Barra do Verde Grande, do rio gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem. (“A hora e vez de Augusto Matraga”, p. 348)

Nesse trecho, vemos a presença dos dois-pontos duas vezes. A

repetição desses sinais, porém, não indica o travessão duplo. Os signos

anunciam uma citação, que caminha numa progressão de qualificativos que se

tornam cada vez mais depreciativos, culminando com o clímax do parágrafo:

a revelação do nome do personagem com tantos predicados. Essa estratégia

retórica tem a finalidade de despertar o interesse do leitor pela figura que será

citada. Esse índice encaminha o leitor para a parte mais importante do trecho.

5.2.1. Conclusão

Percebemos que os dois-pontos, além de separar as formações

discursivas, indicando a posição do sujeito na superfície textual, têm um papel

de grande relevância no texto de Guimarães Rosa, no que diz respeito aos

efeitos imagéticos pretendidos pelo autor. Esses sinais auxiliam na produção

do clima de tensão e de mistério e ainda imprimem um tom dramático à voz

do narrador, característica típica dos contadores de estórias. Não podemos

esquecer ainda que os dois–pontos, ao alterarem o ritmo do enunciado,

imprimem –lhe outros sentidos subjacentes.

O quadro resumitivo a seguir dará uma visão geral do emprego dos

dois-pontos na obra de Guimarães Rosa.

VALOR SEMIÓTICO

VALOR FUNCIONAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GINA TIPO

SÍGNICO

INTERPRETAÇÀO

FUNÇÃO DISCURSIVA

Definição Mas, foice?!: é arma de sustância — só faz conta

São Marcos

232 índice elaboração de uma conjectura baseada em fatos

ponto-de- vista do personagem

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de somar! signo seguido de uma conjunção adversativa

Mas: a casa sem janelas nem portas — era o que eu ambicionava.

Curtamão

37 índice sinal do caráter inusitado do enunciado seguinte

ratificação de inclusão de uma idéia inusitada

O dinheiro: água que faltando.

Curtamão

37 índice aproximação do tipo de frase da linguagem oral

substitutos de termos da oração

Admirei: tantas armas.(...) Ao que farejei: pé de guerra.

Grande Sertão: Veredas

90 índice criação do clima de tensão na narrativa

participação do leitor na formação do enunciado

interpelação Oi: rabo duro, batendo com força. Ce corre, foge.

Meu tio o Iauaretê

839 índice formação de quadros imagéticos de gestualidade

presença da mesma pontuação no enunciado

Advirto:desse felpudo

Tarantão, meu patrão

143 índice formação de suspense na mente interpretadora

prender a atenção do interlocutor

substitutos do travessão duplo

Mas tem um porém : pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade, nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto?

Grande Sertão: Veredas

22 índice transferência da dúvida do narrador para o interlocutor

função fática da linguagem

substitutos da vírgula

— Oé vó: só se espera o demo, uai!

Buriti 106 índice formação de sensações auditivas

apelo à participação do leitor/ouvinte

pausa desnecessária

Pois é bom dizer que: nada, com ele saía para fora de nada.

A estória do homem do pinguelo

157 índice início de outra unidade significativa

orientação argumentativa ao enunciado

pausa da fala do personagem

Disse: que o dia estava muito recitado

A partida do audaz navegante

105 índice orienta o leitor para a fala do personagem

discurso do personagem controlado pela voz do narrador

anúncio de uma

Mudara idéia, sem,

Duelo 142-143

índice justificativa da interjeição anterior

função argumentativ

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explicação sem contra-aviso à esposa: bem feito!:

a

5.3. O emprego do travessão

Guimarães Rosa, ao utilizar em sua escrita a fala do povo interiorano,

não faz uma cópia fiel dessa linguagem, mas imprime marcas próprias a essa

voz, resultando em uma linguagem de grande originalidade e funcionalidade,

sem falar da beleza e lirismo de algumas narrativas. O aproveitamento de

expressões, de estruturas sintáticas, do ritmo e da musicalidade típicos do

sertão chega a criar em nós a impressão de coisa já ouvida.

Cenas teatrais, roteiros cinematográficos, nos quais sensações visuais e

auditivas se impõem, contribuem para compor situações que fazem com que o

leitor, por meio da linguagem, vivencie as cenas apresentadas e participe,

completando os enunciados, quando solicitado.

A pontuação, ao mesmo tempo que marca divisões, separa sentidos e

formações discursivas, representa uma chave para a decifração dos enigmas

que se apresentam na escrita rosiana.

A pontuação também indica modos de subjetivação do escritor, como

já vimos. Observamos que sinais comumente empregados com certa restrição,

como os dois-pontos e o travessão, são utilizados pelo autor com grande

liberdade e sem nenhuma economia. É comum encontrarmos períodos com

mais de um emprego de dois-pontos, de travessão e até mesmo de ponto-de-

interrogação ou de ponto-de-exclamação.

O travessão, além do emprego que segue as orientações da gramática

tradicional, é utilizado pelo autor também de forma não-convencional,

causando interessantes efeitos de sentido no texto.

Iniciamos a observação dos empregos criativos do travessão,

apresentando a introdução de Grande Sertão: Veredas (1978).

Vejamos:

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de

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homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. [...] (p. 9)

O travessão indica que a narrativa tem a forma de diálogo entre o ex-

jagunço Riobaldo e um desconhecido, a quem confessa todo o seu passado e

suas dúvidas existenciais. A pontuação indica que a conversa se inicia no

travessão que principia a estória e se encerra no seu ponto final, como

podemos ver:

Cerro.O senhor vê. Contei tudo. [...] Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (p. 460)

Nessa conversa, o narrador demonstra consciência oratória, ao se

dirigir ao visitante, por exemplo, com o uso de vocativos, de digressões e de

suspensões dramáticas.

O conto “Antiperipléia” (in Tutaméia, 1967) tem um início semelhante

a Grande Sertão: Veredas.

–E o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço destino que me praz. (p.13)

O marcador conversacional E indica, na narrativa, o início de uma

unidade de comunicação já em desenvolvimento.

O travessão, como marca de diálogo, é empregado ainda em outra

narrativa. No conto “— Uai, eu?” (in Tutaméia, 1967), o título já indica o

início da conversa, que prossegue no texto, como podemos ver:

Se o assunto é meu e seu, lhe digo, lhe conto; que vale enterrar minhocas? De como me vi, sutil assim, por tantas cargas d’água. No engano sem desengano: o de aprender prático o desfeitio da vida. (p.177)

Procedimento semelhante o autor tem em “— Tarantão, meu patrão...”

(In: Primeiras estórias), em que o título do texto é marcado pelo signo

indiciador de um diálogo

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Outros contos são escritos sob forma de conversa, no entanto, esse tipo

de apresentação é visto apenas nessas quatro obras.

Há várias outras formas de emprego do travessão, na obra

rosiana.Vejamos esta:

[...] E Benevides, já montado— no Cabiúna manteúdo, animal fino, de frente alçada e pescoço leve, que dispensa rabicho mas reclama o peitoral, e é um de estimação, nutrido a lavagens de cozinha e rapadura, o qual não pára um instante a cabeça, porque é o mais bonito de todos, com direito de ser serrador, e está sôfrego por correr; — Benevides, baiano importante, que tem os dentes limados em ponta, e é o único a usar roupa de couro de três peças, além do chapelão, que todos têm. [...] (“O burrinho pedrês”, p. 12)

Aparece, em meio ao duplo travessão, uma longa e detalhada

descrição física e psicológica do animal do vaqueiro. Vemos que se misturam

as vozes do narrador e do personagem, nessa parte, que representa o foco,

emoldurado pela descrição do cavaleiro. O texto escrito se combina com a

intenção do narrador, que é passar para o leitor o sentimento de orgulho do

personagem na apresentação de seu animal. Fechados os travessões, aparece a

descrição do personagem, que se mantém num plano secundário.

Neste próximo exemplo, a enumeração que aparece entre os travessões

é tão longa que o próprio narrador se perde e demonstra a necessidade de

retornar ao ponto interrompido pela pontuação, como podemos ver:

Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros.

E o contra-senso mais avultava, porque, já então — e excluída quanta coisa-e-sousa de nós todos lá, e outras cismas corriqueiras tais: sal derramado; padre viajando com a gente no trem; não falar em raio: quando muito, e se o tempo está bom, “faísca”; nem dizer lepra; só o “mal”; passo de entrada com o pé esquerdo; ave do pescoço pelado; risada renga de suindara; cachorro; bode e galo, pretos; e, no principal, mulher feiosa, encontro sobre todos fatídico; — porque, já então, como ia dizendo, eu poderia confessar, num recenseio aproximado: doze tabus de não-uso próprio; oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte péssimos presságios; dezesseis casos de batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou seis indicações de ritual mais complicado;

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total: setenta e dois— noves fora, nada. (“São Marcos”, p.224)

Depois de uma enumeração exaustiva, em que demonstra todo o seu

conhecimento a respeito de superstições, o narrador, ironicamente, no final do

parágrafo considera a nulidade de tudo. O travessão duplo delimita as crenças

que fazem parte do conhecimento comum. Poderíamos dizer que há uma

espécie de simetria no trecho, isto é, a enumeração de superstições

consideradas de domínio público no interior dos travessões e a enumeração de

outras mais particulares, fora dos travessões. O último travessão isola a

conclusão. Vemos que o contraste na forma coincide com o contraste no

sentido. O travessão finaliza o trecho de forma surpreendente, pois, em

poucas palavras, faz com que tudo aquilo considerado anteriormente perca o

sentido. A pontuação faz a diagramação do trecho, levando o leitor a fazer as

associações do desenho com aquilo que o texto diz.

Como podemos ver, a exemplo dos outros tipos de sinais de

pontuação, o travessão no trecho tem um importante papel nas relações de

sentido que auxiliarão no processo de semiose.

Vejamos este exemplo dois tipos de sinais de pontuação:

Mas, na hora de sair, Lalino fez um pedido: queria o Estevam, — o Estevão—, para servir-lhe de guarda. (“A volta do marido pródigo”, p.100)

E, no outro dia, Lalino saiu com o Estevam — o Estevão—, um dos mais respeitáveis capangas do major Anacleto, sujeito tão compenetrado dos seus encargos, que jamais ria. (idem)

Nesses excertos, temos duas formações discursivas: a fala do

personagem, e a voz do próprio narrador, que aparece entre os travessões. No

primeiro trecho, vemos que há uma redundância no emprego dos sinais de

pontuação, pois a vírgula acompanha os travessões, desempenhando a mesma

função, que é a de destacar a pronúncia correta do nome. No segundo

exemplo, o emprego da vírgula está de acordo com a tradição gramatical, com

o deslocamento desse sinal para depois do segundo travessão. Acreditamos

que a presença dos dois sinais seja orientação de leitura oral, determinando

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uma pausa mais longa, para evidenciar a pronúncia correta do nome, em

contraste com a do personagem. No segundo exemplo, a escrita segue a

norma, levando o leitor ao desenho psicológico de Lalino. O narrador, a partir

dessas estratégias, transmite ao leitor a simplicidade e as limitações do

personagem, com uma nuança de humor. Podemos dizer que o travessão

mostra dois papéis discursivos e sua característica: a crítica impiedosa, de um

lado e, de outro, a voz ingênua do personagem.

O travessão pode substituir outro sinal de pontuação:

Perdi —isto é— por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios...desordens malinas. (Grande Sertão: Veredas, p.212)

Ói: a oca — ói ..(“Meu tio o Iauaretê”p.830)

A expressão isto é, que geralmente aparece entre vírgulas, recebe

maior destaque por aparecer entre os travessões, além de desautomatizar um

modelo já cristalizado na mente do leitor. O travessão chama a atenção para o

desenvolvimento da idéia expressa pelo verbo. No segundo exemplo, o

travessão estaria substituindo a vírgula. Cremos que houve preferência pelo

travessão, pois, além de indicar a pausa que se instaura nesse tipo de emprego,

o sinal de pontuação sugere os gestos do personagem.

Este exemplo mostra outro valor do travessão.

Vejamos:

Mas o cavalo — esse me entusiasmou: era um animal gateado, grande, com imponência e todo brio, de rabejo vasto; e mais tarde o senhor verá o que ele era; cavalo de cor alta, de beiço mole, cavalo que debruça bem e que em poço bebia remolhando a testa. (Grande Sertão:Veredas, p. 311)

Eu — eu tenho unha grande... (“Meu tio o Iauaretê”, p. 851)

O primeiro exemplo é bem original. O ponto-de-vista do narrador é

delimitado pela pontuação, porém de forma inusitada. Primeiramente, o travessão

introduz o comentário, que é finalizado pelos dois-pontos. Poderíamos dizer que a

conjugação do travessão com os dois-pontos trazem duas informações, isto é, a voz

do narrador que se interpõe na oração é delimitada pelo travessão e pólos dois-

pontos. Esse último sinal acumula a função de finalizar o comentário e sinalizar na

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escrita a importância da descrição que virá a seguir.

O segundo trecho mostra um exemplo de tópico com pronome-cópia,

separado pelo travessão. O sinal de pontuação estaria representando iconicamente a

longa pausa que se segue à emissão do primeiro pronome.Vemos, nessa colocação do

sinal de pontuação, uma estratégia do personagem de prender a atenção de seu

interlocutor e de ter tempo para elaborar a frase, já que seu vocabulário era precário.

Nestes exemplos temos a conjugação de vários sinais:

Mas, os outros, perto de mim, por que era que não me davam louvor, com as palavras: — Gostei de ver Tatarana! Assim é que é assim!—? (Grande Sertão:Veredas, p.211)

—“Dito, que Pai disse: o ano em que chove sucedido é ano formoso...—?” (“Campo Geral”, p. 476)

A pontuação tem um papel de importância fundamental nesses

excertos. Vemos, no primeiro trecho, hipoteticamente, duas falas no

enunciado do narrador: a sua e a dos companheiros. A indicação desse

amontoado de frases está no último travessão, encerrando a outra fala. O

primeiro travessão introduz o discurso dos outros. O ponto-de-interrogação

fecha toda a frase. O sinal de pontuação, dessa forma, roteiriza para o leitor as

vozes presentes no excerto.

No segundo exemplo, observa-se a voz do pai do personagem no

interior de sua fala. Nesses exemplos, o travessão é o elemento responsável

pela identificação da voz do personagem, que tem em seu interior a voz do pai

em um discurso indireto livre. É observar que a interpelação do personagem

ao irmão, mais a voz do pai estão no interior de um enunciado que encerra um

pergunta. Em passagens como essa, a pontuação vai indicando as trilhas a

serem seguidas pelo leitor para entendimento do texto.

Vejamos outro emprego do travessão:

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que — só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair — do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei uma cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí. (“Pirlimpsiquice”, p.41)

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Nesse trecho temos dois empregos do travessão. O primeiro separa o

adjunto adverbial do resto da oração, o que na escrita comum poderia ser feito

pela vírgula. Cremos que a segmentação que ocorre nesse primeiro período se

deva ao propósito de formar um desenho textual simétrico com o período

seguinte, que segmenta os complementos relativos dos verbos. Esse

procedimento faz com que se acentue o jogo sonoro formado pela aliteração

dos fonemas (/�/, /�/), pelas rimas em /��/ e pela rima com o fonema nasal

/�/. Podemos perceber que a segmentação promovida pelo segundo travessão

corresponde ao desligamento pretendido pelo narrador. Na leitura oral do

texto e no ritmo da narrativa, os travessões determinam um contorno

entonacional que compreendem o desenvolvimento do raciocínio que precede

a ação, culminando com um desfecho inusitado. O travessão mostra a

possibilidade de ruptura com uma ideologia supostamente inquestionável.

O trecho seguinte também mostra a iconicidade textual, como estes

trechos mostram:

Tanto que dei ordem. Repartição de gente — se carecia —: determinei assim. Metade—metade. [...] (Grande Sertão:Veredas, p. 426)

Todo o mundo — rio-abaixo, rio-acima — acaba algum dia passando por estes cais. (“Estorinha”, p. 54)

O emprego do primeiro travessão duplo, que destaca o comentário do

narrador, está de acordo com a norma da língua. Destacamos o uso do

segundo travessão, em que se vê a exata correspondência do desenho com o

sentido da frase. O travessão se coloca entre as duas palavras que representam

a divisão do bando de jagunços em duas partes.

No segundo exemplo, os travessões fazem papel de ícones das

margens do rio. Esse tipo de pontuação materializa a projeção do discurso no

texto, com a organização textual condizente com o sentido da passagem.

Vejamos o valor dos travessões nestes excertos:

E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho – “Cai n’água, barbado!”— e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul, estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a

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correia desafivelada — lept!...lept!...lept!...—, com um outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau. (“A hora e vez de Augusto Matraga”, p. 326-7)

Entre chuva e outra, o arco da velha parecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo dele — fu!— menino virava menina, menino virava menino; será que depois desvirava? (“Campo geral”, p.485)

No primeiro trecho, identificamos, com o auxílio das aspas entre os

travessões, uma voz desconhecida que se insere na narrativa. Os outros

travessões duplos inserem onomatopéias no desenvolvimento textual.

Observamos que os travessões abrem um espaço nas narrativas,

introduzindo partes que exigem a participação do leitor. Este, a partir dos

elementos de que dispõe, forma as cenas, com som e movimento, para dar

sentido às histórias. Na espacialização textual, os travessões acrescentam

vozes que buscam o efeito de completude ao discurso.

No conto “Meu tio o Iauaretê” (in Estas estórias, 1995), o travessão tem

um papel fundamental, de substituir partes da narrativa.

Vejamos alguns exemplos:

a) [...]Sou fazendeiro não, sou morador...Eh, também sou morador não. Eu — toda parte. Tou aqui, quando eu quero eu mudo. (p. 825)

b) Jirau é meu não. Eu — rede. Durmo em rede. (p. 825)

c) Atié! Saudade de minha mãe, que morreu, çacyara, Araã... Eu nhum — sozinho... Não tinha emparamento nenhum...(p.831)

d) Aquela mulher Maria Quirinéia, muito boa.

Eu — gostei. (p. 839)

f) Não falei — eu viro onça? (p.851)

Nessa história, não existe um narrador propriamente dito; o

personagem se forma pela linguagem. À medida que a narrativa avança, o

onceiro vai aparecendo como que em pinceladas que traçam um desenho. O

texto se apresenta como um diálogo-monólogo, no qual, pela fala do

personagem, o leitor faz o desenho do caçador de onças. Os travessões, com

valor indicial, além de introduzirem as falas do personagem, suprem os

silêncios produzidos pela sua carência lexical. Os três primeiros exemplos

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mostram os travessões como substitutos de verbos. No exemplo (d), a frase

também é telegráfica, apresentando somente as palavras-chave, no entanto, o

travessão supre a ausência de outros termos, pois o verbo está presente. No

último exemplo (e), o travessão substitui a conjunção integrante.

Os exemplos que se seguem, retirados do mesmo texto, mostram outra

função do travessão.

Vejamos:

Mecê tem aquilo — espelhim, será? (p. 831)

Falou que eu era bonito, mais bonito. Eu — gostei. (p. 851)

Os travessões, nesses contextos, têm a função de indicar a gestualidade

do personagem, a produzir esses enunciados. O potencial sugestivo do sinal

de pontuação resulta em uma gama de conotações.

Por fim, mostramos o emprego inusitado do travessão, nestes

exemplos:

Como sempre amigos, se encontravam. A — e bem — era idéia: o Laudelim podia vir junto, companhia confortada. (“O recado do morro”, p.51)

Dirigiu-se aos três: — “Com Jesus!”— ele, com firmeza. E? – aí. Derval, Dismundo e Doricão— o qual demônio em modo humano. Só falou o quase: – “Hum... Ah! Que coisa. (“Os irmãos Dagobé”, p.25)

Esses exemplos constituem partes enigmáticas dos textos. Arriscamos

fazer uma movimentação dos constituintes das orações, para facilitar a leitura,

formando essas possíveis frases:

E bem — era a idéia—: o Laudelim podia vir junto, companhia confortada.

— E aí? Derval, Dismundo e Doricão — o qual demônio em modo humano: — “Hum... Ah!” Que coisa.

Nos dois textos, são empregados marcadores conversacionais

semelhantes a esses, na voz do narrador. O negrito da frase do personagem

permite que a marca de início da unidade comunicativa do narrador esteja

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presente, no contexto. Portanto, essas seriam possibilidades reorganização

textual, para entendimento das passagens. Os sinais de pontuação têm a

função de auxiliar o leitor a resgatar a frase original.

5.3.1. Conclusão

Consideramos os exemplos vistos os mais representativos, para que

pudéssemos mostrar a importância do travessão na obra de Guimarães Rosa.

Esse sinal tem uma freqüência considerável nos textos, pela forma como a

maioria dos textos se apresenta, que é a de diálogo.

Pelo fato de o travessão delimitar termos, vimos que esse sinal

também pode servir com guia de leitura, pois é comum a inversão de termos

da oração por meio do travessão.

Além emprego indicial, pudemos depreender, na narrativa rosiana, o

emprego desse sinal de pontuação com valor icônico, em que o autor procura

reproduzir no texto escrito, por meio desse sinal, o elemento descrito na

narrativa.

O emprego indexical do travessão, ainda, substitui elementos da

oração ou possibilita ao leitor o resgate do momento de produção dos

enunciados a partir das associações que podem ser feitas no texto com a

gestualidade dos personagens.

A seguir temos o quadro resumitivo dos exemplos do travessão.

VALOR SEMIÓTICO

VALOR FUNCIONAL

EXEMPLO OBRA PÁ GINA

TIPO SÍGNICO

INTERPRE TAÇÃO

FUNÇÃO DISCUR SIVA

início da narrativa

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.

Grande Sertão: Veredas

9 índice a obra se apresenta como uma conversa entre Riobaldo e um desconhecido

interpelação para estabelecer o início de uma comunicação

travessão duplo

(...) Lalino fez um pedido: queria o Estevam, — o Estevão— para servir-

A volta do marido pródigo

100 índice fala do personagem

evidência da simplicidade do personagem

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lhe de guarda.

substituição da vírgula

Oi: a oca— ói...

Meu tio o Iauaretê

830 índice fala acompanhada de gestualidade

chamar a atenção do interlocutor

segmentação entre o tópico e a cópia

Eu — eu tenho unha grande.

Meu tio o Iauaretê

851 ícone pausa entre o pronome e sua cópia

prender a atenção do interlocutor / tempo para a emissão do resto da frase

travessão duplo

Repartição de gente — se carecia— (...) Metade-metade-

Grande Sertão: Veredas

426 índice/ícone ponto-de-vista do personagem /reprodução do evento

voz do narrador que se interpõe na narrativa/ referência ao evento narrado

substituto de vocábulo

Eu — toda parte

Meu tio o Iauaretê

825 índice formação imagética da cena a partir das palavras-chave

participação do leitor na formação de sentido da narrativa

expressividade Eu — gostei Meu tio o Iauaretê

851 índice gestualidade do personagem

estratégia de prender a atenção do interlocutor

inversão dos constituintes

A — e bem—era a idéia

O recado do morro

51 índice orientação da ordem direta

participação do leitor

5.4. O emprego do ponto-e-vírgula

Guimarães Rosa, com seu propósito de desconstruir o convencional,

trouxe novos paradigmas estéticos para a literatura, sobretudo, nos aspectos

lingüísticos. O escritor explora ao máximo as possibilidades do idioma e, não

satisfeito, investe em formas alternativas, tanto no campo lexical como no

sintático.

A ousadia lhe dá permissão de explorar não só elementos verbais

como também elementos não-verbais. O escritor faz uma exploração dos

recursos visuais aos recursos fônicos.

O escritor é capaz de ser original até mesmo no trabalho com o

convencional. Como vimos, ele não deixa de utilizar a pontuação de acordo

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com a tradição gramatical. Entretanto, executa essa tarefa de forma única

trazendo novos efeitos para o texto.

Vejamos alguns excertos, em que o emprego do ponto-e-vírgula é feito

com obediência à norma da língua:

Em abril, quando passaram as chuvas, o rio — que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar — desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como búfalos, comendo o mururê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão. (“Sarapalha”, p.119)

Aos esses, mesmo, se comediu obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o Jacaré exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e os outros ajudavam; mas Raymundo Lé, que entendia de curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. (Grande Sertão: Veredas, p.73)

Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda pó de linho para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado na roça. (“O recado do morro”, p.5)

O comum, de acordo com o próprio narrador, é surpreendentemente

refinado. A conjugação das palavras com os sinais de pontuação traz o efeito

de plasticidade e de leveza à coreografia dos animais.

O espaço, com suas ressonâncias culturais, é um importante elemento

nas narrativas rosianas. A segmentação determinada pelo ponto-e-vírgula vai

roteirizando para o leitor, a partir das partes e subpartes, a composição de toda

a cena, dirigindo imediatamente a retina mental do leitor para o objeto

descrito, como vemos nos exemplos.

As imagens sucessivas que se formam, em nossa mente, se

assemelham a um roteiro cinematográfico, na composição da narrativa que se

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junta à descrição, no segundo exemplo. O ponto-e-vírgula faz a marcação das

partes do texto, delimitando os elementos de acordo com suas características

comuns.

No último trecho, a descrição vai compondo em nossa mente, à

semelhança de uma câmera, o retrato da pessoa descrita, num movimento de

baixo para cima. O ponto-e-vírgula é responsável, como nos outros exemplos,

pela segmentação das partes; e a vírgula, pelas subpartes.

Segundo a gramática, o ponto-e-vírgula é empregado para indicar as

pausas mais longas do que a vírgula, numa clara associação da língua falada

com a escrita. De acordo com Cunha (1985), o ponto-e-vírgula é empregado

para separar orações mais extensas, da mesma natureza, ou para separar

partes de um período, das quais uma pelo menos esteja subdividida por

vírgula. Emprega-se, ainda, o ponto-e-vírgula para separar itens de

enunciados enumerativos.

No plano discursivo, o emprego do ponto-e-vírgula mostra a clara

intenção de se fazer uma separação mais nítida entre as partes do discurso,

estabelecendo certa hierarquia, segundo a qual os elementos separados pelo

ponto-e-vírgula se situam num plano superior àqueles separados pela vírgula.

Na obra analisada, os períodos que têm mais de um ponto-e-vírgula,

geralmente, são longos, e muitos ocupam um parágrafo.

Em Grande Sertão: Veredas, há um período, cuja extensão é de uma

página e meia, no qual o narrador cita o nome de alguns jagunços de seu

bando (quarenta!); somente aqueles com os quais tinha alguma afinidade.

Vejamos parte desse parágrafo:

Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se aguentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo — que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de carne e osso e de minha melhor estimação; Marcelino

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Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sesfrêdo porfiava, assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; [...] José Félix; o Liberato; o Osmundo. [...] E — que ia me esquecendo – Raymundo Lé, puçanguara, entendido de curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitolô, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, [...] e o Tuscaninho Caramé. (Grande Sertão: Veredas, p.242-243)

Nesse exemplo, observa-se a enumeração dos componentes do bando

de forma hierarquizada, com a citação do nome do chefe, Zé Bebelo, em

primeiro lugar. Nesse ponto do texto, há uma quebra, em que se insere o nome

das duas pessoas mais queridas — Reinaldo e Alaripe, citados numa escala de

ligação afetiva. Após esse corte, a composição do grupo volta a ser feita, de

forma que o texto seja organizado em tópicos separados pelo ponto-e-vírgula

e os subtópicos, pela vírgula, com o nome de cada jagunço e função ou

característica mais marcante. A finalização do período é feita com apenas o

nome dos três últimos companheiros. O parágrafo prossegue com a citação

dos nomes de outros membros do grupo, dos quais o narrador havia

esquecido. Na citação desses últimos elementos, a segmentação é feita pela

vírgula. Esse esquema de pontuação representa um mapa orientador das

diferentes etapas da narrativa, conduzindo a leitura e possibilitando a

interpretação do texto. O ponto-e-vírgula, nesse trecho, é um índice de que a

enumeração dos personagens é feita segundo a ordem de prestígio junto ao

personagem.

A enumeração feita por Riobaldo revela que, acima de tudo, estava o

seu sentimento de jagunço, pois o primeiro nome que aparece na lista é o de

Zé Bebelo, chefe do bando. Diadorim, seu amor, ocupa o segundo lugar na

lista. Logo, a ordem da citação obedece fielmente as prioridades do narrador.

Vejamos outro exemplo de interessante emprego da pontuação:

De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro esgalhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais

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longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (“São Marcos”, p.241)

A pontuação marca, no espaço gráfico, as três dimensões espaciais do

quadro descrito: perto, mais longe e longe-longe. Vemos que o primeiro plano

é marcado pela vírgula; e os outros dois, pelo ponto-e-vírgula. Esse tipo de

pontuação auxilia o desenho da imagem que se forma a partir da presença das

metáforas, dando a exata dimensão espacial da cena descrita. O elemento

descrito, os esgalhos, adquirem feições de acordo com a distância em que são

observados. Esse distanciamento espacial é assinalado pela pontuação.

Notamos que as associações revelam a percepção visual do narrador. A

vegetação vista de uma pequena distância tem uma feição mais icônica (folhas

= estrelas, mãos verdes); à medida que o objeto descrito se torna mais

distante, a imaginação vai se tornando mais livre, subjetiva, portanto, mais

simbólica (folhas = chaminés alvacentas e moças encantadas). A distância

maior leva o narrador a fazer as descrições mais conceituais. Podemos ver,

por meio da descrição presente, nesse trecho, que a organização sintática da

frase atende às necessidades enunciativas.

Observemos outros empregos do ponto-e-vírgula:

a) É a quinta vez que ele indica lugares malassombrados. Já sei: todo pau-d’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por qualquer causa, fizeram estância, depondo esquife no chão; todas as encruzilhadas — mas somente à meia noite; todos os caminhos: na quaresma — com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, e o cramondongue, que é um carro-de-bois que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar. (“Minha gente”, p.184)

b) Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais nas mãos de Deus. (“A hora e vez de Augusto Matraga”, p.360)

c) Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. (Grande Sertão: Veredas, p. 9)

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d) Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho: e via, o reparado — como ele principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, brancamente. (Grande Sertão: Veredas, p. 240)

e) Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegavam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil catação; que a fruta mal madura da cagaiteira, comida com sol quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos a primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, quando um cavalo começa a parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás, com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. (“Minha gente”, p.173)

g) Eu sendo água, me bebeu; eu sendo capim, me pisou; e me ressoprou, eu sendo cinza. Ah, não! Então, eu estava ali, em chão, em a-cú acôo de acuado?! (Grande Sertão: Veredas, p. 253)

Podemos observar nesses excertos que os períodos são mais ou menos

longos, divididos em partes menores pelo ponto-e-vírgula. As partes marcadas

pelo sinal de pontuação têm a mesma estrutura, o que confere simetria ao

texto e, conseqüentemente, um ritmo encadeado. Celso Cunha (1985) lembra

que a divisão pelo ponto-e-vírgula se assemelha à cesura interna de um verso

longo. Como podemos observar, esses trechos têm nítidas semelhanças com o

estilo oratório.

No exemplo (a), as orações e expressões que se seguem ao ponto-e-

vírgula são iniciadas pelo pronome indefinido todas/todos; no exemplo (b), as

orações reduzidas do infinitivo são iniciadas pela preposição para. Em (c), as

orações são marcadas pela repetição do pronome relativo onde; no excerto

(d), temos as orações iniciadas pelo vocábulo como, em função de conjunção

integrante, no exemplo (e), as orações que estão em simetria são iniciadas

pela conjunção integrante que. O sinal de pontuação tem um valor indexical

nessas passagens, pelo fato de estar associado aos vocábulos destacadas que

fazem referência à realidade, cujas marcas estão nos pronomes e nas

conjunções.

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Além do ponto-e-vírgula, observa-se, no primeiro exemplo, a presença

dos dois-pontos e do travessão. Esse exemplo mostra que a ousadia do escritor

não tem limites no que se refere à pontuação. Visualmente, a diagramação do

texto provoca certo desconcerto, já que somos encaminhados para uma

estrutura que se altera. De acordo com a gramática, os elementos colocados

no interior dos travessões mantêm-se isolados do resto na narrativa.

Cremos que o papel do ponto-e-vírgula, sinal que estamos analisando

nesta seção, permanece o mesmo, isto é, introduz parte do período que se

repete. Há o acréscimo de outro elemento na escritura, que é particularização

da informação com marcas temporais contidas no interior do duplo travessão.

O modo como as informações se organizam na textualidade conduzem à

formação de esquemas mentais que sugerem a particularização da informação

que, a princípio, traz uma marca de generalização. Discursivamente, os sinais

de pontuação que se conjugam no enunciado têm a função de quebrar um

ritmo que caminhava para a automatização, com a adição de outras

informações que imprimem particularização do geral.

No exemplo (b), observa-se uma série de orações subordinadas ao

verbo presente na oração principal. Esses enunciados, que têm a mesma

forma, indicam uma seqüência de ações com a mesma circunstância de

finalidade. O ponto-e-vírgula delimita cada quadro, dando seqüência às ações

do personagem. Esse sinal de pontuação tem a função de acrescentar outras

orações, revelando o caráter metódico às ações do personagem. Essas

imagens, do mesmo modo como figuram no texto, emergem em nossa mente

em quadros sucessivos.

No exemplo (c), o narrador, por meio de orações de estrutura idêntica,

vai adicionando elementos definidores do sertão. O ponto-e-vírgula dispõe os

itens que vão evocando imagens que contribuem para que a idéia de amplidão

se forme na mente interpretadora. Discursivamente, a pontuação acrescenta

informações encaminhadoras do conceito que se pretende que o interlocutor

forme a respeito do sertão. No exemplo (d), o ponto-e-vírgula traça um mapa

norteador das cenas que surgem na memória do narrador.

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A presença desses sistemas semióticos no texto, como sensações

sonoras, visuais e táteis são apelos ao raciocínio do leitor, para que ele faça a

composição da cena com toda a sua carga de emoção; e a pontuação é um

elemento de importância fundamental, pois orienta a leitura, produzindo

efeitos que contribuem para que se realize a interpretação.

No excerto (e), temos orações iniciadas pela conjunção integrante com

a função de completar o sentido do verbo. A disposição dessas orações

delimitadas pelo ponto-e-vírgula produz o efeito de acúmulo de informações,

de certa forma, metódicas, sem perspectiva de mudança, infinitas. A

expressão outras coisas interrompe bruscamente a enumeração, sugerindo sua

continuidade. As orações não-presentes são igualmente importantes, pelo fato

de a expressão destacada ser delimitada pelo ponto-e-vírgula. Portanto, o sinal

de pontuação é índice da seqüência que não se esgota no enunciado. O sinal

de pontuação é uma marca dos outros termos não-presentes no espaço gráfico.

A interrupção da enumeração uma crítica irônica à mentalidade sem

perspectiva do personagem que vê a vida como uma seqüência de

acontecimentos previsíveis.

Podemos observar que a repetição das estruturas marcadas pelo ponto-

e-vírgula mantém uma simetria responsável pelo ritmo evocador da cadência

da fala interiorana, que conserva os modelos retóricos da contação de

histórias, dos jograis e das pregações religiosas. A escolha desse modelo de

estrutura que se repete reforça no discurso a idéia sugerida.

O último exemplo (f) mostra um interessante jogo com formas de

enunciados. O ponto-e-vírgula é responsável pela segmentação dentro do

período formado por três orações de estruturas idênticas, que,

semanticamente, caminham numa ordem decrescente. Notamos que, na

penúltima oração, há um acúmulo de elementos coesivos, pois, além da

pontuação, ocorre a presença do conectivo. O equilíbrio determinado pela

ordenação dos eventos, inicialmente se desfaz, pois nessa oração a ordem dos

constituintes se inverte, dando origem a um quiasmo. A presença do segundo

ponto-e-vírgula assegura, indicialmente, a presença de outro grupo oracional

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de igual valor, ainda que com mudança de ordem das orações. A mudança se

deve a questões de ordem enunciativa, pois o narrador teve a intenção de

colocar em primeiro plano a ação sofrida, provocada pelo agente da ação

verbal.

Observemos outro emprego do ponto-e-vírgula:

Mas o cavalo — esse me entusiasmou: era um animal gateado, grande, com imponência e todo brio, de rabejo vasto; e mais tarde o senhor verá o que era; cavalo de cara alta, de beiço mole, cavalo que debruça bem e que em poço bebia remolhando a testa. (Grande Sertão: Veredas, p. 311)

E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede. (Grande Sertão:Veredas, p. 345)

A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei. (Grande Sertão:Veredas, p. 240)

Vemos que o ponto-e-vírgula presente nesses trechos tem a função de

substituir o travessão, isolando elementos na oração. A parte situada entre os

dois sinais é iconicamente endofórica, no primeiro enunciado, pelo fato de se

referir ao que foi dito anteriormente. Discursivamente, o trecho que se insere

entre os dois sinais de pontuação representa o comentário do narrador. No

primeiro exemplo, o ponto-e-vírgula tem a função de convencer o interlocutor

e, no segundo trecho, o narrador mostra sua surpresa diante do evento

expresso pelo verbo. Nos dois primeiros exemplos, a disposição do ponto-e-

vírgula evoca a figura do contador de histórias, que interrompe a narração

para expressar um comentário a respeito do fato narrado.

No último exemplo, ocorre, entre os dois pontos-e-vírgula, a mudança

de tempo verbal, que corresponde a uma mudança de atitude do sujeito do

enunciado. Notamos que o verbo passa do pretérito imperfeito (dormia) para o

pretérito perfeito (sofreei), fazendo com que a narrativa passe do mundo

narrado para o mundo comentado, isto é, o sujeito reage frente à situação que

se lhe apresenta. Isso faz com que ocorra uma mudança de perspectiva, ou

seja, passa-se ao primeiro plano do relato, o plano da ação propriamente dita,

de acordo com Weinrich (in Koch, 1994). Desse modo, temos a oposição

entre primeiro plano, com o verbo no pretérito perfeito, e pano de fundo, com

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o verbo no pretérito imperfeito. A mudança de um tempo verbal para outro

projeta em nossa mente configurações similares às que ocorrem na escrita, um

cenário de ações com dois planos.

A disposição dos dois sinais de pontuação leva o leitor a estabelecer

relações indiciais desse tipo de desenho textual com o travessão duplo, pois a

termos que se inserem entre os dois sinais de pontuação provocam

interrupções na seqüência narrativa com informações paralelas aos

enunciados.

Vejamos outras passagens com emprego do ponto-e-vírgula:

E outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! (Grande Sertão : Veredas, p.21)

Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (Grande Sertão: Veredas, p. 175)

O sinal de pontuação é empregado com a função de marcar a presença

dos contrários, fato recorrente na obra rosiana. Observamos que,

simbolicamente, o ponto-e-vírgula que se encontra, sobretudo no primeiro

trecho, desempenha o papel indicial de preparar o leitor para a presença de um

argumento inesperado e mais forte, que neutraliza a força do primeiro

enunciado.

No segundo excerto, o ponto-e-vírgula tem valor semelhante ao que

tem no exemplo anterior. O signo de pontuação acena a presença de um

argumento que destrói a força ilocucionária do primeiro enunciado. O sinal de

pontuação tem, igualmente, o valor de índice, pois compele nossa atenção

para o que está por vir, que é um enunciado mais polêmico do que o primeiro.

Essa construção também é típica das estórias de caráter oral, pois imprime um

tom eloqüente e ao mesmo tempo prende a atenção do leitor/ouvinte.

Nos exemplos seguintes temos um emprego bem original do ponto-e-

vírgula.

Vejamos:

a) Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom

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atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que mais se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. (Grande Sertão: Veredas, p. 40)

b) É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. (Grande Sertão: Veredas, p. 237)

c) Alembrado de que no hotel e nas casas de família, na Januária, se usa toalha pequena de se enxugar os pés; e se conversa bem. (Grande Sertão: Veredas, p. 256)

d) Ô velho! — ele veio, rente, perante, ponto em tudo, pá! p’r’achatado, seu cavalão a se espinotear, z’t-zás...; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p’rá lá, se esparziam. O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e nós. (“—Tarantão, meu patrão.” p.143)

No primeiro exemplo, temos uma série de orações aditivas precedidas

pelo ponto-e-vírgula. A pausa gerada pelo sinal de pontuação, a cada

introdução de nova informação, vai gerar um ritmo repetitivo, responsável

pela formação, na mente interpretadora, de quadros, de modo contínuo,

interminável, dando a exata dimensão daquilo que é narrado. Observe-se que

essa estrutura entre a primeira e a última declaração é aberta e outros

enunciados, de uma série interminável, de igual sentido e valor, trazidos pela

memória, podem ser acrescentados. Discursivamente, a sucessão de orações

aditivas representa série de argumentos cuja finalidade é o convencimento da

real dimensão da declaração posta na primeira oração.

No segundo exemplo, opera-se, pelo sinal de pontuação, a união de

duas idéias opostas que, na verdade, se tornam difusas pela própria matéria de

que são formadas lingüisticamente, isto é, a aliteração do fonema consonantal

oclusivo alveolar sonoro /d/ coloca lado a lado Deus e o diabo; existir/

divertir/ existência, pela semelhança sonora, além da assonância da vogal

média /i/, que contribui para que todo o enunciado mantenha

correspondências. Todos esses recursos contribuem para que imagens difusas

se formem, num processo que não nos fornece elementos para um sentido

acabado, mas vago. Foi exatamente essa a intenção que se detectou no texto.

No terceiro excerto, há um interessante jogo de oposição, em que o

narrador se revela atraído por elementos, sem qualquer tipo de

correspondência: o material e o espiritual; o refinamento de costumes e o

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prazer de uma conversa. A memória trouxe à tona sensações agradáveis

surgidas sem qualquer tipo de censura. A segmentação feita pela pontuação

prepara o leitor para a adição de mais um enunciado que, no entanto, quebra a

expectativa. Essa oração tem um valor contrastivo em relação à oração

anterior. Com isso, o narrador revela sua atração por apostos.

Os exemplos (b) e (d) mostram uma divisão, em que o ponto-e-vírgula

joga com os extremos de forma ambígua, colocando num mesmo plano

elementos completamente díspares.

O ponto-e-vírgula que precede a conjunção aditiva, no exemplo (d),

mostra a oposição, no nível da espacialidade, entre o narrador, representado

pelo pronome nós, e o velho. A iconicidade da escritura está de acordo com a

narrativa, em que o outro personagem (o velho), que aparece como centro das

atenções, ocupa o maior espaço no plano da escritura, enquanto ao narrador e

a seus companheiros resta um pequeno espaço, tanto na dimensão da escrita

como na dimensão da narrativa. Simbolicamente, o ponto-e-vírgula marca

essa distância entre os dois planos; o do narrador, em um plano, e, no outro, o

personagem.

No plano discursivo o ponto-e-vírgula marca a diferença de planos não

só de ordem moral como também de ordem espacial.

Vejamos este outro exemplo:

Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa! (Grande Sertão:Veredas, p. 373)

Esse excerto mostra a segmentação pelo sinal de pontuação de um

período formado por duas orações. O ponto-e-vírgula marcaria a presença de

outra oração iniciada pelo predicativo, com o verbo em elipse (remarcado

estava seu corpo, sua culpa), funcionado, assim, como índice de outra oração,

que passaria por um processo de condensação, tornando-se mais sintética,

cumprindo o seu papel de apenas mostrar os elementos essenciais. A

pontuação também tem uma função expressiva.

Vejamos estes dois outros empregos do sinal de pontuação em estudo:

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Chegaram, em mês de maio, acharam, na barriga serrã, o sítio apropriado, e assentaram a sede. O que aquilo não lhes tirara, de coragem, de suor! Os currais, primeiro; e a Casa. (“Uma estória de amor” p.547)

E tocamos conosco cinquenta-e-tantas reses, de gado baiano; à-toa. (Grande Sertão:Veredas, p. 396)

Isso, mas totalmente; às vezes. (Grande Sertão:Veredas, p.98)

Conforme observa Kury (1999), o emprego do ponto-e-vírgula

depende essencialmente da intenção; desse modo, vemos, nesses exemplos

que o ponto-e-vírgula é uma marca discursiva. O sinal de pontuação

segmenta, não uma oração, porém, termos do enunciado.

No primeiro exemplo, a pontuação destaca o último elemento da frase.

Além da pausa determinada pelo ponto, destacando o nome, há outras marcas

textuais que indicam a valorização desse substantivo. Vemos que a palavra

ocupa a posição final, sinal de que esse é o elemento para o qual a atenção se

volta, além da maiúscula inicial. O substantivo foi supervalorizado no espaço

gráfico, reflexo do que representava para Manuelzão, personagem do conto

“Uma estória de amor” (in Manuelzão e Miguilim,1995). O diagrama textual

faz com que a mente interpretadora estabeleça relações de semelhança com

aquilo que é narrado.

A descrição que aparece nesse ponto da narrativa se identifica com a

descrição indicial. Esse tipo de signo, de nível de secundidade (por ser gerado

pela contigüidade, inferência), é geralmente introduzido pelo artigo definido,

pois está destinado a se aplicar a apenas um objeto; por isso, é importante que

se realize a conexão com elementos individualizadores. Entretanto, esse

elemento indicial se afasta do tipo de referência direta, enredando-se em uma

malha de sugestões, segundo Santaella (2001). O substantivo casa apresenta

uma riqueza de sugestões subjacentes aos sentidos possíveis. O tipo de

representação do objeto que dirige a retina mental do leitor para o objeto

descrito vai além da percepção do cenário, isto é, a diagramação do texto

sugere muito mais do que o desenho da casa.

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No segundo exemplo, temos dois tipos de segmentação, em que a

vírgula separa o substantivo da locução adjetiva e o ponto-e-vírgula destaca a

outra expressão adjetiva. Esse tipo de pontuação obedece a uma ordem de

valores, em que o qualificador de caráter objetivo (de gado baiano), separado

pela vírgula estaria num nível mais baixo e o qualificador de caráter subjetivo

(à-toa), destacado pelo ponto-e-vírgula pertenceria a um nível superior.

Vemos que o ponto-e-vírgula faz uma separação entre a narração e o

julgamento perceptivo do fato. A forma como se organiza o enunciado

transmite a idéia de que, diante da complexidade do mundo, as conclusões são

inacabadas.

No último exemplo, a pontuação mostra a incompletude do discurso e

a inconstância do homem. A segmentação da contrajunção com o advérbio, a

princípio, finalizaria a declaração; entretanto, o ponto-e-vírgula acrescenta

mais uma expressão adverbial com a função de relativizar a certeza expressa

anteriormente. O ponto-e-vírgula funciona como um índice das inflexões do

raciocínio, desenhando no espaço gráfico o movimento do pensamento, falível

e provisório.

Destacamos, também, este tipo de emprego do ponto-e-vírgula:

Agora eu pateteava.

Todos contavam estórias de raparigas que tinham sido simples somente; essas senvergonhagens. (Grande Sertão:Veredas, p. 178)

Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de finas asas; pássaro esperto. (Grande Sertão:Veredas , p. 25)

A Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças. (Grande Sertão:Veredas, p. 236)

O sinal de pontuação que aparece nos dois primeiros excertos tem a

função de separar o ponto de vista do narrador com sua conclusão ao fato

narrado.

O ponto-e-vírgula, nos dois primeiros exemplos, faz uma separação

entre a narração e o julgamento perceptivo do fato. Esse tipo de construção

provoca a formação perceptiva de dois planos de enunciado: a narração e a

avaliação do narrador.

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No terceiro exemplo, o ponto-e-vírgula vai indicar o alargamento do

que foi dito no segmento anterior, deixando transparecer claramente a carga

emotiva da expressão segmentada pelo sinal de pontuação. O nome

Rosa’uarda fez despertar aos poucos na memória do narrador uma série de

experiências marcantes que o levaram a ser mais preciso na linguagem. Nos

três exemplos o ponto-e-vírgula é um índice da conclusão subjetiva do

narrador.

Como a obra rosiana é calcada na oralidade, vemos construções

típicas do homem que vive nesse espaço, conforme o próximo exemplo

mostra:

Porque as duas minhas-damas eram ricas; dizer: deviam de ter muito dinheiro de prata aforrado. (Grande Sertão: Veredas, p. 398)

Vemos que, a exemplo da linguagem popular, predominantemente

sintética, a locução verbal quer dizer foi reduzida apenas ao verbo principal.

Essa expressão de retomada ao que foi dito anteriormente, com finalidade de

esclarecimento, aparece geralmente entre vírgulas. A pausa gerada pelo

ponto-e-vírgula tem a função de marcar a elipse do verbo auxiliar, que, com a

participação do leitor, na atividade de leitura, será identificado.

Vejamos outro efeito interessante causado pelo uso do ponto-e-

vírgula:

Em segredo pondo eu minha toda concentrada energia passional tão pulsante; de bom guerreiro. (“Se eu seria personagem”, p.138)

Nesse exemplo temos um emprego bem expressivo do ponto-e-vírgula,

pois é o único sinal de pontuação presente na oração. A locução de bom

guerreiro, destacada pelo sinal de pontuação, põe em evidência a qualidade a

que o narrador se atribui. O ponto-e-vírgula nesse trecho é um índice de

acréscimo de uma informação. Depreende-se, pela colocação do sinal de

pontuação, a intenção do narrador em evidenciar sua característica.

O ponto-e-vírgula pode também marcar o tópico:

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Ah, quem o homem era eu já sabia, ele se chamava Treciziano. O bruto; para falar com ele, só a cajado. (Grande Sertão:Veredas, p. 386)

Esse tipo de construção é muito comum na língua coloquial

espontânea, em que o termo topicalizado, sobre o qual vai ser introduzida uma

informação nova, aponta para um elemento já presente na representação

mental do ouvinte. A construção dá proeminência ao tópico, tornando-o um

termo de primeiro plano, e o comentário a seu respeito, o pano de fundo. Essa

estrutura de enunciado faz com que o raciocínio do leitor opere com

associações que o levam a estabelecer nexos da figura do personagem

Treciziano com a figura do diabo.

Vejamos outro emprego do ponto-e-vírgula:

Só de mim era que Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! (Grande Sertão:Veredas, p. 25)

Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por minha salvação, a minha perdição. (Grande Sertão: Veredas, p.351)

No primeiro exemplo, temos a repetição do complemento nominal (de

mim) presente no tópico do período; e no segundo exemplo ocorre a repetição

do verbo (temeu). Esses elementos em primeiro plano são carregados de carga

emotiva. No primeiro exemplo, o narrador expressa toda a sua indignação à

atitude de Diadorim; e no segundo exemplo, aparece expressa na voz do

sujeito da enunciação a aflição de Diadorim perante uma realidade ambígua.

Nos dois casos, como vemos, a pontuação tem caráter expressivo.

Por fim, vejamos o último tipo de emprego do ponto-e-vírgula

selecionado:

Diadorim — em que era ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube, não sei, à minha morte esta pergunta faço... (Grande Sertão:Veredas, p.437)

Diz que lê?; diz-que escreve! (Grande Sertão:Veredas, p. 440)

Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de dor de dente já me indispondo. (Grande Sertão:Veredas, p.159)

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Vemos, nesses trechos, o ponto de interrogação seguido de um ponto-

e-vírgula, combinação absolutamente incompatível, tanto na dimensão

sintática como na dimensão fonológica. O ponto-e-vírgula assinala, de acordo

com a gramática, partes de um período não-concluído, com uma entonação

descendente; e o ponto de interrogação indica finalização da frase,

assinalando um tom de voz ascendente. Desse modo, temos a completude na

incompletude. Devemos acrescentar a isso o fato de o ponto de interrogação

ter uma função discursiva fechada, que é a pergunta direta. Logo, a

interrogação na frase só pode indicar uma pergunta.

Os dois primeiros trechos se assemelham a pares conversacionais, nos

quais, em primeiro lugar, aparece a pergunta e, em seguida, a resposta. O

ponto-e-vírgula, nesses dois casos, seria índice da continuidade do período, a

despeito da presença da interrogação. A mudança de turno não ocorre em

períodos separados, pelo fato de que a resposta antecedida pelo ponto-e-

vírgula se apresenta na voz do próprio narrador. Além disso, o ponto-e-vírgula

que se segue ao ponto-de-interrogação mostra que há sempre a possibilidade

de um acréscimo àquilo que, teoricamente, representa uma completude.

O ponto-e-vírgula da terceira frase não indica uma resposta, pois o

ponto de interrogação que finaliza a frase anterior representa uma pergunta

retórica, em que o sujeito dá mostras de seu estado de ansiedade. O segmento

que se segue à interrogação representa uma justificativa da indagação feita

anteriormente.

Como sabemos, o desenho mental das seqüências é similar àquilo que

é contado, logo, acreditamos que a pontuação desenhou, nesses contextos, a

sobreposição de imagens que emergem na memória do personagem ao narrar

fatos que ainda o atormentavam.

5.4.1. Conclusão

Os exemplos do emprego do ponto-e-vírgula que aparecem nesta seção

de nosso estudo representam uma visão panorâmica do universo de usos desse

sinal de pontuação.

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É bem significativa a presença do ponto-e-vírgula na obra de

Guimarães Rosa. Esse sinal de pontuação representa um valioso instrumento

de organização textual, nas extensas citações e enumerações, divididas em

tópicos e subtópicos separados por ponto-e-vírgula e por vírgula, mostrando

certa hierarquia de sinais de pontuação.

O sinal de pontuação é ainda muito empregado pelo autor para a

substituição de termos em elipse e para indicação do deslocamento de

constituintes. Na análise do emprego do ponto-e-vírgula, na obra do escritor

mineiro, percebeu-se que esse sinal é também de grande proveito para a

formação de efeitos característicos da retórica utilizada pelos contadores de

estórias.

Temos, a seguir o quadro resumitivo dos usos do ponto-e-vírgula, na

obra rosiana.

VALOR SEMIÓTICO VALOR

FUNCIO-NAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GINA TIPO

SÍGNI- CO

INTERPRE-TAÇÃO

VALOR DISCURSI-VO

divisão de partes e subpartes da narração

(...) Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo — que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro de ouro, e de carne e osso e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa (...)

Grande Sertão: Veredas

242-243

índice a ordem na enumeração feita de acordo com o prestígio do personagem junto ao narrador

revelação das prioridades existenciais do narrador

delimita-ção espacial na narrativa

De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro esgalhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato.

São Marcos

241 índice dimensões espaciais da descrição

subjetivida-de da descrição proporcio-nal à distância física o objeto de descrição

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110

separação de partes em um período já marcado pela vírgula

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde morador vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho da autoridade.

Grande Sertão: Veredas

240 índice evocação de imagens formadoras da idéia de amplidão do sertão

informa-ções encaminhadoras do conceito de sertão

substituto do travessão duplo

E ela avermelhou as faces; mas veio;reparei que tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede.

Grande Sertão: Veredas

345 índice interrupção da narrativa para a expressão do narrador

surpresa diante da cena narrada

delimita-ção de orações de mesma estrutura

Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegavam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil catação; que a fruta mal madura da cagaiteira, comida com sol quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos à primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, (...)

Minha gente

173 índice referência à realidade marcada pelos conectivos

reforço da idéia presente na estrutura que se repete

introdução da oração adversati-va

E outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro.

Grande Sertão : Veredas

211 índice marca do contraste presente em toda a obra rosiana

estratégia de prender a atenção do leitor

marcação da introdução de uma oração aditiva

Alembrado de que no hotel e nas casas de família, na Januária, se usa toalha pequena de se enxugar os pés; e se conversa bem.

Grande Sertão: Veredas

256 índice evocação sem censura de sensações

revelação do caráter contraditório do ser humano

segmenta-ção das orações do período composto

Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa.

Grande Sertão: Veredas

373 índice presença dos elementos- chave do enunciado

participação do leitor no acabamento do enunciado

destaque ao qualifica-dor do nome

E tocamos conosco cinqüenta-e-tantas reses, de gado baiano; à-toa.

Grande Sertão: Veredas

396 índice marca de um qualificador subjetivo

destaque ao ponto-de-vista do narrador

acréscimo de informa-ções

A Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças.

Grande Sertão: Veredas

236 índice alargamento da informação anterior

ênfase no ponto-de- vista do narrador

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introdução de uma retificação

Porque as duas minhas-damas eram ricas; dizer: deviam de ter muito dinheiro de prata aforrado.

Grande Sertão: Veredas

398 índice índice de acréscimo de informação

estratégia de convenci-mento do interlocutor

segmenta-ção de estruturas condensadas

Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa!

Grande Sertão: Veredas

373 índice índice da condensação de uma oração

expressivi-dade da pontuação

comple-mento verbal em tópico

Ah, quem o homem era eu já sabia, ele se chamava Treciziano. O bruto; para falar com ele, só a cajado.

Grande Sertão: Veredas

386 índice desenho do personagem

ênfase no tópico

marcação de um termo repetido

Só de mim era que Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! (Grande Sertão:Veredas, p. 25)

Grande Sertão: Veredas

25 índice diagramação correspondente com o estado emocional do personagem

expressão do sentimento de indignação

incompati-bilidade entre tipos de sinais de pontuação

Diadorim — em que era ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube, não sei, à minha morte esta pergunta faço...

Grande Sertão: Veredas

437 índice presença de dois tipos de frases

acréscimo de argumentos a uma estrutura fechada

5.5. O emprego do ponto

Em seu projeto de retratar a sociedade sertaneja, Guimarães Rosa

decidiu fazer um verdadeiro mergulho na sua dimensão lingüística, conforme

observa Bolle (2002).

De modo geral, a narrativa rosiana se apresenta como um relato oral de

um narrador, numa linguagem criativa e poética, que se dirige a um

interlocutor, cuja fala, invariavelmente, não se conhece.

Depreende-se que a intenção do autor é fazer sobressair a fala desse

homem interiorano, com toda a sua musicalidade. Como sabemos, embora a

modalidade oral e a modalidade escrita da língua sejam sistemas semióticos

autônomos, eles são complementares. De acordo com Catach(1980), a

pontuação age sobre dois eixos: ela reúne e completa as informações da

língua oral e também dispõe de uma ordem gráfica interna que pode ser

considerada autônoma. Pelo fato de a pontuação ter alguma relação com a

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modalidade oral da língua, ela é um elemento de grande importância para a

realização do projeto de Guimarães Rosa.

De acordo com depoimento de vários estudiosos e até mesmo de

leitores comuns, a obra rosiana é própria para ser lida em voz alta, pois,

assim, todo o potencial sonoro do texto é realçado, e seu entendimento

facilitado. A pontuação, na obra do escritor mineiro, pode ser considerada um

guia de leitura, a exemplo dos manuscritos medievais.

Aparecem, nesta seção, as passagens que dão mostras do emprego do

ponto na obra analisada.

Vejamos este excerto:

Sem que bem se saiba, conseguiu-se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte, extraordinariamente comum, que se armou com o enxadeiro Pedro Orósio (também acudindo por Pedrão Chãmbergo ou Pê-Boi, de alcunha), e teve aparente princípio e fim, num julho-agosto, nos fundos do município onde ele residia; em sua raia noroesteã, para dizer com rigor. (“O recado do morro”, p.5)

Esse trecho que abre o conto “Recado do morro” (in No Urubuquaquá,

no Pinhém, 1976), como vemos, é formado de um período e compreende o

primeiro parágrafo do texto. Formado de orações subordinadas e coordenadas,

o período faz a introdução do caso a ser relatado, com referência ao

protagonista, ao espaço onde se desenvolve e à sua duração temporal. Essa

parte do texto tem a função de apresentar para o leitor um roteiro das partes

do conto, que obedecem à seqüência apresentada no parágrafo introdutório do

“caso [...] extraordinariamente comum”.

Na diagramação total da narrativa, essa parte introdutória posiciona-se

num plano distinto do resto do texto. A introdução forma um quadro

imagético, em que a figura do narrador se mantém distante da seqüência de

cenas que será mostrada. O ponto faz cessar a voz desse indivíduo que se

afasta para dar vez à descrição dos personagens e do cenário, dando início à

narrativa propriamente dita. É interessante observar que a estória segue

exatamente o mapa traçado inicialmente pelo narrador. O ponto tem o valor

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indicial de reunir em uma mesma unidade elementos que compõem o quadro

panorâmico do caso a ser relatado. Discursivamente, esse ponto delimita um

parágrafo que pode ser considerado um tópico de toda a narrativa.

Vejamos esta outra organização de parágrafo, encontrada na obra de

Guimarães Rosa:

[...] Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

Mas.

[...] Deu-se a entrada dos demônios.

[...] Era o seu amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

[...] Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. (“Desenredo p. 39)

A conjunção adversativa e o advérbio, embora não estejam seguidos

no desenvolvimento textual, são dotados de marcas discursivas próprias de

parágrafos, com implicações semânticas e pragmáticas. Essas frases adquirem

um realce particular com a adição do ponto. O sinal de pontuação corta o

desenvolvimento do enunciado na escrita, deixando que o leitor desenvolva

mentalmente a idéia sugerida pela contrajunção e pelo advérbio.

No nível prosódico, o ponto indica uma queda na linha entonacional,

marcando o sentido completo e o término do enunciado. A completude

indicada pelo ponto na diagramação é um elemento que causa surpresa e

chama a atenção do leitor, contribuindo para deixar bem marcado o fato que

vai causar o desequilíbrio na história.

O parágrafo formado pelo advérbio mais, finalizado pelo ponto,

adiciona mais um fator para a expectativa que se instaurou no texto a partir do

parágrafo formado pela conjunção. O ponto pode ser visto também como uma

estratégia retórica do narrador para chamar atenção do seu leitor/ouvinte,

fazendo com que a retina mental deste “presencie” a fala do narrador, com

todas as suas inflexões vocais, imprimindo um clima de suspense no texto.

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Vejamos outro exemplo de ponto parágrafo:

[...] Com pouco ia desastrar-se com os cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda, aventando-lhes o assomar.

Eram horas episódicas.

[...] Mascava-se o bruto rastro; aos quatro e três dedos, dos cascos, calcados no sulco fundo do carreiro, largo, no barro bem amarelo, cor que abençoa.

Havia urgência.

Podia-se uma idéia.

[...] A pingo de palavras, com inculcações, em ordem a atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.

Ponteiro menor, a anta; ponteiro grande, os cães.

E dependi daquilo.

[...] Vi o capinzal, baixas ervas, o meigo amarelo do lameiro, uma lama aprofundada. Ele era um retrato.

Tomei uns momentos.

[...] Ele era maquinalmente meu. Obra de uns dez minuros.

No súbito.

[...] Embaixo, lá a anta soltara o estridente longo grito — de ao se atirarem à água, o filhote e ela — de em salvo.

Refez-se a tranqüilidade. (“Tapiiraiauara”, p. 171-173)

Segundo a gramática da língua, o parágrafo compreende uma

seqüência finita de frases relacionadas semanticamente entre si, formando

uma unidade dentro da estrutura textual. Como podemos ver, na obra de

Guimarães Rosa, essa unidade pode ser formada de várias formas, de acordo

os tipos de parágrafos encontrados nos excertos.

Nesse último trecho, retirado de um conto de Tutaméia (1967), vemos

que o parágrafo pode compor-se de uma oração ou até mesmo de uma

expressão.

As frases delimitadas pelo ponto parágrafo no discurso têm a função

de mostrar o ponto de vista narrador em relação ao fato narrado. O contador

da estória, homem da cidade, obrigado a participar de uma caçada a uma anta

e seu filhote, mostra-se horrorizado com o “assassinato”, de acordo com suas

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115

palavras, do qual participaria. Sentindo a esperteza do animal, intimamente,

torce para que a empreitada de seu grupo não tenha sucesso.

A leitura do texto orienta nosso raciocínio para a figura do narrador,

que interrompe o relato do episódio para confessar ao leitor/ouvinte seu temor

em relação ao perigo pelo qual o animal passava. Esses parágrafos, embora

finalizados pelo ponto, expressam grande emotividade , levando o interlocutor

da estória a se juntar ao narrador, torcendo para que os dois animais consigam

driblar seus algozes; o que, felizmente, acontece. Desse modo podemos dizer

que os parágrafos finalizados pelo ponto exercem a função de índice na

narrativa.

Vejamos mais um exemplo de ponto parágrafo:

Todos foram à vila, para missa-de-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques de velhice, com o terreireiro Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco; nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma idéia.

Não primeira e súbita invenção. (“Presepe”, p. 119)

Como vemos, o ponto finaliza uma frase com valor concessivo que

poderia estar ligada à última oração. Assim como o exemplo anterior, o trecho

em forma de parágrafo expressa a fala do narrador destacada do resto da

narrativa. Cremos que a colocação dessa frase no interior do último período

não produziria o mesmo efeito no texto.

Ao processar as operações de interpretação dessa passagem, a mente

do leitor não finaliza suas considerações com o ponto-parágrafo. Ao contrário,

o sinal de pontuação sugere uma série de justificativas sintetizadas na oração

que inicia o período. Desse modo, podemos dizer que o ponto- parágrafo,

presente no exemplo, além de encaminhar o leitor para a opinião do narrador,

sugere uma série de inferências não-verbalizadas por parte de quem conta a

história.

Embora não tenha sido incluído o estudo do parágrafo em nossa

proposta de trabalho, vimos necessidade de abordar esse item da língua escrita

ao tratar do emprego dos sinais de pontuação.

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Vejamos outro tipo de parágrafo finalizado pelo ponto:

Construção alguma vige porém por si triste, nem a do túmulo, nem a da choupana, nem a do cárcere. Importe lá que a mulher divise-se parada ou caminhando. De seu caixilho de pedra e ferro o olhar do homem a detém, para equilíbrio e repouso, encentrada, em moldura. Seja tudo pelo amor de viver.

A vida, como não a temos. (“Quadrinho de estória”, p. 122)

Nesse trecho vemos outra variação de frase finalizada pelo ponto

parágrafo. O último enunciado do exemplo se refere à frase situada no

parágrafo anterior e funciona como uma síntese conceitual da parte da

narrativa encontrada no parágrafo anterior. Percebe-se que o enunciado que

forma um parágrafo remete nossa memória às frases proverbiais, reveladoras

de uma incontestável sabedoria. O ponto, que aparece no final do enunciado,

finaliza formalmente a proposição, entretanto, abre espaço para reflexões que

talvez a própria mente ainda não tenha sido capaz de verbalizar. Vê-se aí a

figura do narrador que se distancia da narrativa para expressar seu ponto-de-

vista.

Essa estrutura se repete no fechamento do parágrafo seguinte: “A vida,

sem escapatória, de parte contra parte”. Vê-se que a figura do narrador se

confunde com a própria narrativa; e a função do ponto não é mais destacar a

fala de quem conta a história. O sinal de pontuação oferece uma pista para que

essa voz seja identificada na tessitura do texto.

No mesmo conto, “Quadrinho de estória”, vemos outros parágrafos

finalizados pelo ponto, que despertam interesse, como estes:

[...] Ninguém quer nascer, ninguém quer morrer. Sejam quais o sol e céu, a palavra horizonte é escura.

Ou então.

Quer ver — como bicho saído dos tampos da tristeza — ele quer; seus olhos perseguem. [...]

[...] Escuta os passos do soldado sentinela, são passadas mandadamente, sob a janela mesma, embora não se veja, não.

Se bem.

Ele não pode arrepender-se. [...] (p.122-125)

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Como podemos ver, as expressões destacadas em parágrafos fazem um

elo de ligação entre os parágrafos circundantes.

A relação entre a frase iniciada pela conjunção alternativa e a oração

anterior indica uma segunda possibilidade de atitude. A outra expressão “Se

bem.” formando o parágrafo, com característica concessiva, anuncia

possibilidade antagônica àquela posta anteriormente.

O ponto que fecha esses parágrafos indica uma ação contrária que se

impõe, sem a possibilidade de contestação. Com isso, as verdades e certezas

postas nos parágrafos anteriores são relativizadas por essas “frases-

parágrafos”.

Vejamos estas passagens do conto “Soroco, sua mãe, sua filha” (in

Primeiras estórias, 1978), em que o ponto desempenha um importante papel

para a formação de sentido do texto.

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

[...] Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que evocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Soroco.

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre. (p. 13-15)

Exceto as falas, o ponto-de-interrogação e as reticências têm apenas

uma ocorrência na narrativa. A segmentação das orações absolutas, frases e

períodos é feita, basicamente, por meio do ponto. Isso faz com que a narração,

entrecortada pela descrição, tenha um ritmo lento, arrastado, traduzindo

discursivamente a emoção de um indivíduo pacato, cuja única reação é o

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estado de tristeza pela difícil tarefa de conduzir mãe e filha até a locomotiva

que as levará definitivamente para o hospício.

A leitura desse conto induz o leitor a fazer correspondências entre a

pontuação e uma câmera que se movimenta lentamente, com pequenas

paradas provocadas pelo ponto, para que as imagens mentais se formem,

produzindo o efeito pretendido pela configuração textual.

No primeiro trecho destacado, que corresponde ao primeiro parágrafo

do conto, a indicação do horário do trem faz um corte súbito no caminhar da

“câmera” responsável pela progressão da narrativa. Nesse ponto, o foco se

desloca para a voz que banaliza o drama do personagem.

O parágrafo seguinte, formado por um período, que se diferencia do

resto do texto, tem a função de expressar, em primeira pessoa do plural,

representada pela expressão a gente, a emoção do povo da cidade que observa

o drama do personagem. Essa parte da narrativa evoca a voz do narrador que

se distancia da narrativa. Sem qualquer advertência, a imagem do personagem

se sobrepõe à fala do narrador, no parágrafo seguinte, lembrando que sua dor

é incomparavelmente maior do que a dor dos espectadores.

A pontuação, ao demarcar o jogo através do qual as diferentes

unidades lingüísticas promovem a continuidade do texto escrito, dirige o

raciocínio do leitor para a cena retratada.

De acordo com a tradição gramatical, o ponto-parágrafo, na escrita, é

empregado para se passar de um grupo a outro grupo de idéias,

correspondendo a um maior repouso de voz, na cadeia falada. Vemos, na obra

rosiana, além desse tipo de emprego do ponto- parágrafo, outras formas de

aproveitamento desse sinal.

Segundo Chacon (1998),

No que se refere à sua natureza espacial, na reconfiguração que a escrita faz da oralidade, uma das maneiras pelas quais, tradicionalmente, ela espacializa o que, na oralidade, corresponderia a tópicos conversacionais é delimitando, por meio de marcas gráficas, o conjunto de unidades rítmicas que comporiam a reconfiguração desses tópicos Essas marcas gráficas correspondem aos espaços em branco que delimitam o

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produto rítmico de tal reconfiguração: o parágrafo. (p.242)

Desse modo, a mudança de parágrafo é um índice orientador de

leitura. Isso significa que as partes do texto segmentadas em parágrafos são

consideradas unidades enunciativas.

Vejamos estes exemplos:

a) [...] “— Siô Baldo, já tomei os altos de tudo! Mas carece de você não ir s’embora, não, mas antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto que vamos por esse Norte, por grandes fatos, que você não se arrependerá...”— me disse — “...Norte, más bandas.” Soprou, só; enche que ventava.

Porque ele tinha me estatutado os todos projetos. Como estava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado acima, em comando de grande guerra.[...] (Grande Sertão: Veredas, p. 101)

b) [...] Mas não era toda vez: tinha dia de se ter medo, ocasião, assim como tinha dia de mão de tristeza, dia de sair tudo errado mesmo — que esses e aqueles a gente tinha de atravessar, varar da outra banda. Cuidava de outros medos.

Das almas. Do lobisomem revirando a noite, correndo sete-portelos, as sete partidas. Do Lobo-Afonso, pior de tudo. [...] (“Campo Geral”, p. 505)

c) [...] Mas, da outrora ocasião, sem destaque de acontecer, senão que aprazível tão quieta, reperfeita, em beira de um campo, quando a informação do Boi tinha sobrevindo, de nada, na mais rasa conversa, de felicidade. Daí, mencionavam mais nunca o referido urdido — como não se remexe em restos.

De certo modo. Mais para adiante, o Jelázio morreu, com efeito, inchado dos rins, o espírito vertido. (“Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, p. 113)

d) [...] Quando viu que o surdo-mudo se fora, chegou-se. Vinha só para poder receber o que lhe dessem. Mas mandaram-lhe que viesse definido e ficasse.

Ao que ficou. Deu o nome, que experimentou escrever, mas não soube, não se alembrou mais, experimentou à toa, com a ponta de um tição preto numa régua de curral. (“Uma estória de amor”, p. 552)

[...] Acho que me escabreei. De sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre de estupor. Foi assim.

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Vou reduzir o contar: o vão que os outros dias para mim foram, enquanto. Desde que da rede levantei, com aquele peso anoitecido, amanhecido nos olhos. Tempo de minha vazante. A ver como veja: tem sofrimento legal padecido, e mordido e remordido de sofrimento; assim mesmo que ter roubo sucedido e roubo roubado. (Grande Sertão:Veredas, p. 175)

Observa-se, nesses excertos, que o ponto-parágrafo segmenta um

período que se estende até o início do parágrafo seguinte. No exemplo (a), a

oração subordinada causal se prende à oração do período anterior, estando o

ponto-parágrafo, portanto, no lugar da vírgula. O ponto-parágrafo separou a

última oração, pois, semanticamente, ela vai ser explicitada nos próximos

períodos. No exemplo (b), o ponto-parágrafo aparece no lugar dos dois-

pontos, pelo fato de os elementos que iniciam o parágrafo seguinte

representarem o aposto enumerativo do vocábulo medos. Podemos observar

que a enumeração dos elementos que compreendem o medo do personagem

recebe um destaque especial, desse modo, essa pontuação tem uma função

expressiva, em que os elementos destacados representam todas as

preocupações do menino. Em (c), o ponto-parágrafo substitui a vírgula, pois o

parágrafo seguinte é iniciado por uma expressão, cuja função é acrescentar

uma circunstância modal à oração do parágrafo anterior. A modalização da

oração anterior vai relativizar a verdade posta na comparação. No excerto (d),

o ponto também está no lugar da vírgula, seguindo-se a ela a oração que inicia

o parágrafo seguinte, com a função de evento posterior.

No nível prosódico, o ponto-parágrafo indica uma pausa mais longa

depois de um grupo fônico descendente; portanto, essas orações e expressões

que se seguem ao ponto-parágrafo estão precedidas de uma pausa mais

demorada.

Vemos que, na organização do texto escrito há um espaço separando

dois elementos presos sintática e semanticamente. Isso quer dizer que cada

frase corresponde a uma unidade de sentido distinta, acarretando novos

sentidos subjacentes a essa alteração.

Vejamos este tipo de parágrafo muito encontrado em Grande Sertão:

Veredas:

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[...] Acho que me escabreei. De sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre de estupor. Foi assim.

Vou reduzir o contar: o vão que os outros dias para mim foram, enquanto. Desde que da rede levantei, com aquele peso anoitecido, amanhecido nos olhos. Tempo de minha vazante. A ver como veja: tem sofrimento legal padecido, e mordido e remordido de sofrimento; assim mesmo que ter roubo sucedido e roubo roubado. [...] (p. 175)

O personagem se refere à própria ação de narrar, preparando o

interlocutor para o episódio que vai ser relatado. Na verdade, o ponto

parágrafo substitui os dois pontos, nesse contexto. Vemos o ponto,

representando, nesse tipo de construção, uma grande pausa no ritmo da

narrativa, para representar, a partir das impressões visuais, a distância

temporal e física, narrador e narrativa.

Há outra construção interessante no mesmo exemplo Na primeira parte

do exemplo, a oração consecutiva (Que dormi.) aparece destacada pela

pontuação, como um recurso para transcodificar, no espaço gráfico, a grande

pausa, na fala, da culminância de um processo iniciado no período anterior.

Nessa passagem o ponto tem um valor icônico, pois procura “desenhar”, no

espaço gráfico, o momento de produção do enunciado

Os exemplos seguintes mostram emprego do ponto-final.

Vejamos algumas passagens da obra rosiana:

Mas, no vir de cimas desse morro, do Tebá — quero dizer: Morro dos ofícios — redescendo, demos com o velho, na porta da choupã dele mesmo. Homem no sistema de quase-doido, que falava no tempo do Bom Imperador. Baiano, barba de piassaba; goiano baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho em seu paiol. Meio sarará. A barba, de capinzal sujo; e os cabelos dele eram uma ventania. perguntei uma coisa, que ele não caprichou de entender, e o catrumano Teofrásio bramou — abocou a garruchona em seus peitos dele. Mas, que não deu tujo. Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito valor. Comigo conversou. Com tudo que, em tão dilatado viver, ele tinha aprendido. Seus pai, como aquele

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homem sabia todas as coisas práticas da labuta, da lavoura e do mato, de tanto tudo. Mas, agora, que tanto aforrava de saber, o derrengue da velhice tirava dele toda possança de trabalhar; e mesmo o que tinha aprendido ficava fora dos costumes de usos. Velhinho que apertava muito os olhos. (Grande Sertão: Veredas, p. 393)

O arraial era o mais monótono possível. Logo na chegada, ansioso por conversas à beira do fogo, desafios com viola, batuques e cavalhadas, procurei, procurei, e quebrei a foice. As noites, principalmente, me impressionavam. Casas no escuro, rua deserta. Raro, o pataleio de um cavalo no cascalho. O responso pluralíssimo dos sapos. Um só latido, mágico, feito por muitos cachorros remotos. Grilos finfininhos e bezerros fonfonando. E pronto. (“Corpo Fechado”, p. 261)

Parágrafos como esses são comuns na obra de Guimarães Rosa:

extensos e com a incidência de um sinal de pontuação. Conforme observamos,

todos os períodos são ligados pelo ponto, nos dois excertos.

No primeiro trecho, o ponto faz a segmentação de um misto de

narração com descrição do ambiente e do personagem, resultando na

formação de um quadro imagético definidor do indivíduo, tanto físico como

psicológico.

No segundo excerto, a definição do espaço abre o parágrafo e se

reitera no terceiro período. A partir do quarto período, vemos o desenho do

lugarejo em quadros, emoldurados pelos pontos. Esses últimos períodos têm a

função de ratificar o ponto-de-vista do narrador posto nos três primeiros

períodos. O ponto-parágrafo que encerra a descrição sugere a sensação de

tédio a que o narrador se viu condenado por estar naquele lugar.

Estes dois próximos exemplos, na forma, têm um fechamento

semelhante ao último trecho apresentado.

Vejamos:

Mas o pai de Manuelzão concordava de ser pobre, instruído nas resignações; ele trabalhava e se divertia olhando só para o chão, em noitinha sentava para fumar um cigarro, na ponta da choupana, e cuspia muito. Tinha medo até do Céu. Morreu. (“Uma estória de amor”, p. 557)

Manuel Fulô fez festa um mês inteiro, e até adiou, por via disso, o casamento, porque o padre teimou que não matrimoniava gente bêbada. Eu fui o padrinho. (“Corpo fechado”, p. 286)

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No primeiro exemplo o ponto segmenta partes de um parágrafo numa

progressão descendente no que diz respeito à sua extensão. Primeiramente, o

ponto finaliza um período formado por várias orações, em que o narrador

descreve psicologicamente o personagem; a outra parte segmentada pelo

ponto é formada de uma oração. Por fim, a última oração é formada apenas

pelo verbo. Vemos que essa progressão tem a função de encaminhar a leitura

para outro final, pois o personagem tinha humildade de espírito; porém, o

ponto cessa a construção mental do indivíduo de forma ironicamente

surpreendente. Podemos identificar a presença de dois planos, nesse trecho.

Os tempos verbais, segundo Weinrich (cf. Koch, 1994), apontam para o plano

da narração, com os verbos no pretérito imperfeito, em que o ouvinte tem a

mera atitude de passividade e o tempo do comentário, com o verbo no

pretérito perfeito, que obriga o ouvinte a uma atitude tensa. O tempo do

comentário se sobrepõe ao tempo narrado, que permanece em segundo plano.

Vemos que o verbo no pretérito perfeito interrompe a narração, de maneira

súbita e inesperada, apresentando um desfecho inusitado para o personagem.

A narração é feita de forma segmentada, levando o leitor a compor

mentalmente a figura do homem. Inesperadamente, com um misto de humor e

ironia, o narrador encerra a descrição, dando um fim aparentemente injusto

para o personagem descrito.

No segundo exemplo, a oração que encerra o parágrafo aparece

segmentada da oração anterior pelo ponto. Isso promove no texto a formação

de dois planos discursivos: o da narrativa e o plano do narrador. A

configuração textual leva o leitor a visualizar a figura do narrador de fora da

narrativa, com a função de atestar a veracidade do evento relatado. Portanto, o

ponto que finaliza cada um dos blocos oracionais é índice de dois planos

distintos na narrativa.

Os próximos exemplos mostram o início e o final da obra considerada

a mais importante do escritor, Grande Sertão: Veredas( 1978)

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal,

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no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu—; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão:determinaram — era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. [...] ( p. 9)

[..] Existe é homem humano. Travessia. (p.460)

Vemos que o ponto segmenta a primeira palavra do texto. Esse sinal

de pontuação abre a mente leitora para uma série de pensamento difusos,

sugeridos, também, pela ressonância nasal da palavra. Seria esta o resultado

de uma aglutinação de non (não) + nada (coisa alguma) = tudo ([-]+[-] = +)?

Ou seria simplesmente a justaposição de no+nada?

Na continuação do parágrafo, aparecem orações entrecortadas por

frases que procuram dar forma à imprecisão do pensamento, aliada à

incapacidade de elaboração de uma frase bem formada. O ponto tem a função

de indicar a passagem de uma unidade de pensamento à outra. Vemos, nessa

parte da narração, palavras que traduzem a visão crítica do narrador e outras

que dão desenvolvimento à narrativa (cf. Povo prascóvio. Mataram.).

A última palavra da narrativa (“Travessia”), finalizada pelo ponto,

conduz o leitor à sensação de uma obra inacabada, à espera de sentidos que

lhe dêem uma finalização. Essa idéia, sugerida pelo texto e pelos sinais de

pontuação, é reforçada pela presença da lemniscata no encerramento do

romance (∞),simbolizando o infinito.

Observemos este outro emprego do ponto:

No Urubuquaquá. Os campos do Urubuquaquá – urucuias montes, fundões e brejos. No Urubuquaquá, fazenda-de-gado: a maior — no meio — um estado de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura, que é do valor do chão. Tal agora se fizera pastagens, a vacaria. o gadame. Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim a fora, iam-se os Gerais, os Gerais do ô e do ão: mesas quebradas e mesas planas, das chapadas, onde há areia; para o verde sujo de más

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árvores, o grameal e o egreste – um capim rude, que boca de burro ou de boi não quer; e água e alegre relva arrozã, só nos transvales das veredas, cada qual, que refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os buritizais, os buritis bebentes. [...]

No Urubuquaquá, não. Ali havia riqueza, dada e feita. A casa — avarandada, assobradada, clara de cal, com barras de madeira dura nos janelões — se marcava. Era seu acento num pendor de bacia. tudo o que de lá se avistava, assim nos morros assim a vaz, seria gozo forte, o verdejante. Somente em longe ponto o cravancão dum barranco se rasgava, de rechã, vermelho de grês. Mas, por cima, azulal, ao norte, fechava o horizonte o albardão de uma serra. No Urubuquaquá. A Casa, batentes de pereiro e sucupira, portas de vinhático. O fazendeiro seu dono se chamava “Cara-de-Bronze”. (“Cara-de-Bronze”, p.73)

Nesses dois trechos, aparece a expressão No Urubuquaquá,

segmentada pelo ponto, repetida durante a longa descrição da fazenda. Nota-

se que há dois planos espaciais de descrição: a fazenda Urubuquaquá, onde a

natureza é generosa e onde reina a prosperidade, e o resto das Gerais, com sua

vegetação cruel, que traz sofrimentos ao homem. Essa oposição é bem

marcada no segundo excerto (No Urubuquaquá, não.) Essa expressão

adverbial funciona como um tópico que se repete durante a descrição, para

reforçar a idéia de superioridade da terra.

Frases, muitas vezes, formadas de uma palavra, finalizadas pelo ponto

são comuns na obra de Guimarães Rosa. É interessante observar que essas

construções não são formas acabadas; elas contêm uma palavra-chave. O

ponto que se segue a elas promove o início de uma série de conjecturas. Cabe

ao leitor, a partir dos signos indiciais presentes no texto, estabelecer as

possíveis relações e associações que auxiliarão a decifração do texto.

Foram selecionados, também os seguintes exemplos do emprego do

ponto:

Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte com as astúcias. (Grande Sertão:Veredas, p.17-18)

E o que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do vento que vinha, rodopiado. (idem, p. 187)

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O ponto também, nesses exemplos, põe em destaque as expressões

segmentadas por ele. Formam-se, dessa maneira, dois planos na narrativa: o

tópico, que se coloca no primeiro plano e se repete no enunciado; e o

comentário, que permanece no pano de fundo. Assim como ocorre no outro

exemplo, o ponto-final, nesses dois exemplos, tem o papel de evidenciar o

termo topicalizado ou indicar o deslocamento de um termo da oração como

mostra o segundo exemplo, em que a locução Do vento se transforma em uma

frase ligada ao período anterior e em tópico para a frase seguinte.

Observe-se este trecho em que ocorre um interessante efeito causado

pelo deslocamento de termos da oração:

Ia haver festa. Naquele lugar — nem fazenda, só um reposto, um-currais –de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra. (“Uma estória de amor”, p. 543)

Como vemos, nesse trecho, fez-se o caminho inverso. O ponto

segmenta uma oração à qual poderia juntar-se o adjunto adverbial que aparece

no final do parágrafo. No interior dessa oração que se desmembra, há outras

duas orações delimitadas pelo ponto, nas quais há uma descrição do local,

cujo nome se revela somente no final do parágrafo, que é o elemento sobre o

qual deve recair o foco de atenção do leitor. Podemos observar que essa

expressão se encontra em último lugar, finalizada pelo ponto-parágrafo. Por

esse motivo, o núcleo entonacional da passagem estará na expressão que

constitui o foco, o adjunto adverbial, considerado o ponto de maior

relevância. A diagramação do texto causa um efeito bem interessante, além

das nuanças de sentido que surgem. O foco desse parágrafo é precedido e

seguido de pausa, na leitura oral. Essa diagramação roteiriza para o leitor o

termo de importância fundamental no parágrafo. Toda a descrição que se

coloca no interior da oração cria um clima de expectativa que culmina na

última expressão.

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Vejamos estes excertos, com outros empregos do ponto:

Matar, matar, sangue manda sangue. Assim nós dois esperávamos ali, nas cabeceiras da noite, junto em junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco de sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego. [...] E eu tinha medo. Medo. Medo em alma. (Grande Sertão: Veredas, p. 26)

Seja, o que se diz: a carta errada, do ano passado, desta vez era um trunfo! Donde bem, e sei; ah. (“A estória do homem do pinguelo” p. 823)

Eh, bicho burro! Mas mecê pode falar que ela é burra não, eh. Eu posso. (“Meu tio o Iauaretê” p. 839)

Vejamos, primeiramente, o emprego da interjeição ah. Como sabemos,

essa palavra expressa a emoção do sujeito da enunciação. Por esse motivo, via

de regra, a palavra vem acompanhada pelo ponto de exclamação e, na cadeia

falada, ocorre maior inflexão de voz. Nesses exemplos, à interjeição se segue

o ponto final ou ponto parágrafo. O autor, ao empregar esse tipo de

pontuação, rompe com o uso automatizado dos sinais de pontuação, causando

certo estranhamento no leitor. Vemos, nos exemplos, uma queda na curva

entonacional depois da interjeição. Na primeira passagem, a colocação do

ponto está adequada ao contexto, com uma pausa que dá margem a uma série

de outras evocações. Alguns fatos que surgem na lembrança são verbalizados,

outros são silenciados pela pausa do ponto. As reticências poderiam,

perfeitamente, aparecer no lugar do ponto, nesse contexto.

No segundo exemplo, toda a carga de emoção acompanha a oração

anterior, em que o personagem faz sua descoberta. A oração onde se encontra

a interjeição finalizada pelo ponto dá condições à mente para que surjam

outras figuras associadas ao contexto.

O ponto que acompanha a interjeição mostra também certa carga de

emoção, pois uma ofensa ao animal traria tristeza ao sujeito do enunciado. Por

isso, ocorre uma queda na curva entonacional da fala.

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Vemos, portanto, que o ponto tem a função de expressar a emotividade

do personagem, nesses trechos. O ponto teria, em potencial, tudo o mais que

poderia ser dito para completar a indignação de quem emite a frase.

Nessas passagens, ocorrem outros empregos do ponto que merecem

comentário. No primeiro exemplo, há uma seqüência de palavras soltas,

delimitadas pelo ponto. O adjetivo calados aparece destacado pela intenção

do narrador em dar ênfase a esse detalhe importante para compor o cenário

tomado pelo coaxar dos sapos, em que a expressão os sapos é destacada em

tópico, assim como a palavra medo, também delimitada pelo ponto. O ponto

nessa passagem tem o valor de um índice que interrompe os enunciados,

auxiliando a mente a fazer as associações formadoras de sentido do trecho. Há

um grande contraste na passagem, onde se percebe o silêncio dos jagunços em

oposição ao barulho produzido pelos sapos. Outra oposição é a alegria dos

animais incompatível com o sentimento de medo experimentado pelo

narrador, possivelmente, por todo o bando.

Vejamos o próximo emprego do ponto:

Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir com eles se judiar... (Grande Sertão: Veredas, p. 208)

Nesse exemplo vemos o marcador discursivo aí segmentado pelo

ponto, cuja função é reforçar a posição enfática do narrador. Essa palavra

promove uma quebra no ritmo acelerado da narrativa, onde se encontra

inclusive rima, causando certo atropelo na leitura oral da passagem, pela

mudança brusca na entonação. Iconicamente há um grande contraste, pois

essa expressão se insere entre dois períodos longos. O ponto sugere idéias

inexprimíveis, captáveis pelo raciocínio do leitor. Poderíamos também pensar

na possibilidade de o marcador conversacional estar deslocado da oração

anterior.

Temos nestes exemplos, mais um tipo de emprego do ponto. Vejamos:

Isso, para ele era fritada de meio ovo. O que porém bem. (—“Uai, eu?”, p.177)

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Pois, por exemplo: o dia deu-se. Foi sendo que. (idem, p.178)

E eu mesmo entender não queria. Acho que. (Grande Sertão: Veredas, p. 114)

Depois, enxeriu que eu falasse discurso também. Tive de. (Grande Sertão:Veredas, p. 104)

Esses trechos mostram que o ponto finaliza frases truncadas, refletindo

a própria fala do homem típico do sertão, com uma linguagem tosca do

sertanejo, muitas vezes, incapaz de verbalizar uma sentença coerente com as

regras da sintaxe. Discursivamente, essas formas segmentadas pelo ponto têm

a função de mostrar a fala típica do homem interiorano, cuja função se

concretiza, que é a de comunicar algo. O resto da oração é completado, quem

sabe, pelas inferências do interlocutor. Semioticamente, o leitor reconstrói em,

na tela mental, a figura do personagem.

Como vimos, Guimarães Rosa, no emprego do ponto, redimensiona o

uso desse sinal, atribuindo-lhe novos valores. Como resultado, vemos

interessantes efeitos não só na escrita como também na significação do texto.

De acordo com os exemplos vistos, o ponto pode dar um realce

particular a um enunciado e pode também substituir os dois-pontos, as

reticências e, até mesmo, sinais que denotam maior expressividade como o

ponto de exclamação.

Vejamos outros exemplos deste capítulo:

Uma porteira. mais porteiras. os currais. Vultos de vacas debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear. (“Minha gente”, p.185)

— E, é. Quiser dar o recado, dá. Não quiser, faz de conta. Apitou. O trem. (“A volta do marido pródigo” p.86)

Silêncio. Passopretos. Silêncio. Ciscado das galinhas. Passopretos. Silêncio. Primo Ribeiro:

— Primo Argemiro! (“Sarapalha”, p.124)

O emprego de frases justapostas é um processo de grande freqüência

na obra de Guimarães Rosa. Esse procedimento dá progressão à narrativa,

causando um efeito intensivo no contexto. É muito comum essa técnica nas

narrativas tradicionais dos contadores de histórias, com frases nominais e

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orações incompletas. Esse processo é responsável pela formação de quadros

que recriam as cenas em nossa mente. Em termos discursivos, esse tipo de

escrita atinge mais diretamente o leitor, tornando o enunciado mais sintético.

O leitor é responsável pela formação dos enunciados.

Podemos observar, ainda, nesses exemplos, que a pontuação forma

uma cena teatral, fazendo a marcação dos elementos que vão sendo dispostos

sucessivamente como objetos.

Este exemplo mostra um emprego bem sugestivo do ponto:

Mecê é homem bonito, tão rico. Nhem? Nhor não. Às vez. Aperceio. Quage nunca. Sei fazer, eu faço: faço de caju, de fruta do mato, do milho. Mas não é bom, não. Tem esse fogo bom bonito, não. Dá muito trabalho. Tenho dela hoje não. Tenho nenhum. Mecê não gosta. É cachaça suja, de pobre...(“Meu tio o Iauaretê”, p. 825)

Vemos, no excerto, a predominância do ponto. Esse signo transporta o

leitor/ouvinte para a situação de enunciação. O ponto é empregado

estrategicamente para indicar as pausas, com curva descendente, na língua

oral. O sinal de pontuação indica também que o personagem, na incapacidade

de formular uma frase mais elaborada, apela para enunciados curtos,

sintéticos. Os silêncios provocados pelo ponto podem sugerir, ainda, a

intenção do onceiro de ganhar tempo para conquistar a confiança de seu

interlocutor.

Observe-se a última passagem selecionada para análise:

De antemão: — Não. De nenhuma ambicionice ou mesquinhez se nos acuse, a nós, gente de casta, neste mundo bom que Deus governa; nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães, anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam. (“Os chapéus transeuntes”, p. 745)

O advérbio destacado pelos dois-pontos, no excerto seguinte poderia

ser visto como um tópico, embora separado por ponto da frase seguinte. Essa

palavra, que recebe um ponto está relacionada ao período seguinte. Essa

construção antecipa para o leitor parte do sentido daquilo que vai ser dito.

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5.5.1.Conclusão

O ponto é um sinal, com valor indexical, de grande produtividade na

obra de Guimarães Rosa, sobretudo, para segmentar as frases nominais, que

aparecem em abundância na obra. Essas frases se aproximam da escrita

telegráfica.

Por meio da pontuação é possível ao leitor dar um acabamento a essas

palavras para que se estabeleçam nexos com a narrativa. Essa escrita

telegráfica possibilita ao leitor, ainda, que estabeleça associações da narração

ou descrição de cenas com uma câmera que se movimenta e se detém no foco

da narrativa.

O quadro que se segue faz um resumo dos valores que o ponto pode

adquirir nos enunciados

VALOR SEMIÓTICO VALOR

FUNCIONAL

EXEMPLO OBRA PÁ

GINA TIPO

SÍGNICO

INTERPRETAÇÃO

FUNÇÃO

DISCURSIVA

demarcação de parágrafos

Mas. Deu-se a entrada dos demônios. Dedicou-se a endireitar-se. Mais.

Desenredo 39 índice

criação de expectativa

visão crítica do narrador

demarcação de parágrafos

A vida, como não a temos

Quadrinho de estória

122 índice síntese conceitual do episódio anterior

ponto-de-vista do narrador

Segmentação de orações

(...)A gente reparando, notava as diferenças.

Soroco

Soroco, sua mãe, sua filha

13 índice correspondência entre a pontuação e uma câmera

emoção do personagem

Substitição dos dois-pontos

Cuidava dos outros medos.

Das almas. Do lobisomem

Campo Geral

505 índice enumeração os medos do menino

emoção do personagem

ponto-final Baiano, barba piassaba; goiano baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho em seu paiol.

Grande Sertão: Veredas

393 índice descrição do personagem segmentada em pontos

narração/

descrição sob a ótica do narrador

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Ponto-final Tinha medo até do céu. Morreu

Uma estória de amor

557 índice quebra da expectativa na construção do personagem

dois planos textuais

ponto-final — Nonada.

Travessia.

Grande Sertão: Veredas

9/460 índice sugestão de pensamento difusos

e incompletos

participação do leitor na composição da obra

ponto-final No Urubuququá.

No Urubuquaquá, não.

Cra-de-Bronze

73 índice oposição Fazenda Urubuquaquá e Gerais

delimitação de dois planos espaciais

ponto- final Ia haver festa.

(...)Na Samarra.

Uma estória de amor

543 índice roteiro do foco da narrativa

descrição espacial

ponto- final E eu tinha medo. Medo. medo em alma.

Grande sertão: Veredas

26 índice Frases nominais que induzem o leitor a identificar os contrastes.

participação do leitor na construção do sentido

ponto-final O que porém bem.

Foi sendo que.

- Uai, eu? 177 índice frases truncadas mostrar a fala típica sertaneja

ponto-final A varanda grande. Chegamos. Apear

Minha

gente

185 índice frases telegráficas participação

do leitor

5.6. O emprego do ponto-de-interrogação

Como sabemos, é nítida a influência dos trovadores e jograis da Idade

Média na obra de Guimarães Rosa. Talvez, deva-se a esse fato a figura

constante do narrador-personagem, típico contador de “causos” ou de um

narrador porta-voz de outro narrador, contador da história oralmente

imaginada. Vê-se, nas histórias rosianas, a utilização de uma série de recursos

expressivos por meio da fala e de outros meios de expressão do próprio corpo

desse contador de casos.

A utilização de vários recursos no processo de recriação e montagem

dos casos exige a total participação do leitor, tanto na construção mental das

cenas como na “imaginação auditiva” (cf. Paulo Rónai:1978), para a

construção de seus vários e possíveis sentidos.

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Nas narrativas rosianas, as interpelações do narrador a seu ouvinte são

feitas de forma tão contundente que realidade e ficção se confundem,

sobretudo nas passagens reveladoras do eterno conflito do personagem

rosiano, que não tem certeza de coisa alguma, mas busca incessantemente

uma resposta.

Devido à presença desse narrador que está sempre diante de um outro,

a quem interpela e com quem dialoga, o ponto-de-interrogação, tem grande

freqüência no texto rosiano, funcionando como guia de leitura.

Em Grande Sertão: Veredas, o narrador está sempre à espera de uma

possível definição.

Vejamos algumas passagens da obra:

A fantasia, minha agora, nesta conversa — o senhor me atalhe. Se não, o senhor me diga: preto é preto? branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade. (p. 188)

O diabo existe e não existe? (p.11)

Viver nem não é muito perigoso? (p.30)

Esse outro, na narrativa rosiana, vem a ser também o seu leitor. Este

tem acesso às narrativas na forma de texto escrito e precisa recuperar a força

da voz nessa matéria escrita, caso contrário, terá dificuldade de compreensão.

De acordo com Machado e Pereira (2001, p.77), “essa espécie de tradução da

vocalidade para a letra, da fala do contador para o texto escrito, denota o

trabalho que o autor empreendeu artesanalmente, com o cuidado de não

perder o calor da voz na frieza do papel”. É necessária também a tradução no

sentido inverso, que recupera o sentido sonoro, na pronúncia, mesmo que seja

mental, dessa voz presente no texto.

As construções das situações são feitas com tamanha habilidade que

imagens riquíssimas se fixam em nosso pensamento, reconstruindo o que a

voz presente na escrita nos sugere.

No conto “Meu tio, o Iauaretê” (in Estas estórias,1995) o autor faz o

uso contínuo da interrogação. A conversa de um onceiro com um

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desconhecido, que nunca se manifesta, promove o desenvolvimento da

narrativa.

Ã-hã, preto vem mais não. Preto morreu. Eu cá sei? Morreu, por aí, morreu de doença. [...] (p. 825)

Mecê acha que eu pareço onça? Mas tem horas em que eu pareço mais. Mecê não viu. (p. 833)

No conto “Nenhum, nenhuma” (in Primeiras estórias,1978), o

personagem transfere para ouvinte/leitor sua indagação:

Porque eu desconheci meus Pais — eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu? (p.50)

Essa passagem encerra a história, em que o narrador chega ao final do

conto sem uma resposta para sua pergunta. A interação do narrador com o

leitor provoca o surgimento de sugestões de conclusões inacabadas, na mente

interpretadora, pois também não há certeza de nada.

Em certas passagens é mais nítida a figura do interlocutor na narrativa:

O senhor mais queria saber? Não. Eu sabia que não. (Grande Sertão:Veredas, p. 176)

Nessa passagem, o narrador repete a possível resposta do outro e dá

prosseguimento à conversa.

Em outras passagens, o próprio narrador responde às suas perguntas:

Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. (“A terceira margem do rio”, p. 31)

Pelas interpelações do narrador ao interlocutor e pela grande

quantidade de diálogos, o ponto de interrogação tem grande freqüência na

obra de Guimarães Rosa. As perguntas, geralmente, retóricas, aparecem até

mesmo em título: “— Uai, eu?” (in Tutaméia, 1967). Em “Desenredo”(p. 38-

40), conto que faz parte da mesma obra, esse tipo de indagação é responsável

pela progressão do texto.

Vejamos estes exemplos:

Com elas quem pode, porém?

Todo fim é impossível?

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Sempre vem imprevisível o abominoso?

Crível?

Incrível?

Mais certa? (p.38-40)

As perguntas de caráter irônico, com função de chamar a atenção do

leitor/ouvinte para um novo evento, são calculadas pelo narrador com o

objetivo de encaminhar a opinião desse interlocutor a respeito dos

acontecimentos. Essas perguntas também representam índices de que a

narrativa vai tomar um novo rumo.

Podemos observar que os empregos do ponto-de-interrogação vistos

nos exemplos anteriores estão de acordo com a norma da língua. Sentimos,

entretanto, necessidade de fazer um rápido comentário sobre a importância

desse sinal no conjunto da obra rosiana.

As frases interrogativas, muitas vezes truncadas e entrecortadas,

definem um discurso que se dá como linguagem falada.

Observem-se estes exemplos:

a) [...] Só o que me consolava era ter havido aquele julgamento, com a vida e a fama de Zé Bebelo autorizadas. O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. (Grande Sertão:Veredas,p.216)

b) [...] De como me vi, sutil assim, por tantas cargas d’água. No engano sem desengano: o de aprender prático no desfeitio da vida.

Sorte? A gente vai — nos passos da história que vem. (“—Uai, eu?”, p.177)

e) Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo — para pecados e artes, as pessoas— como por que foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. (Grande Sertão:Veredas, p. 14)

Nos exemplos (a) e (b), o autor utiliza a tendência da fala popular de

dar pouca importância aos elementos introdutórios das orações, tornando a

palavra-chave o foco da informação.

No exemplo (a), a frase interrogativa é um recurso retórico empregado

pelo narrador, cuja função é chamar a atenção do ouvinte para o assunto sobre

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o qual vai discorrer. O ponto-de-interrogação tem um valor de índice, pois dá

pistas ao interlocutor para o que se segue.

No segundo exemplo, o ponto-de-interrogação é empregado com a

intenção de levar o interlocutor à reflexão. Esse sinal representa um índice

sugestivo que transforma os fatos em idéias, criando no ouvinte um tecido de

pensamentos em torno do fato em questão.

O fluxo da fala que impõe, geralmente, um ritmo próprio à seqüência

frasal, na obra rosiana, cria dificuldades para fazermos uma citação, sendo

necessário retirar o que imaginamos ser o início de uma nova seqüência de

fala.

Os trechos selecionados compreendem, muitas vezes, mais de um

parágrafo, pelo fato de sentirmos que o exemplo ficaria incompreensível caso

focalizássemos somente a parte do comentário.

No exemplo (c), a forma do enunciado retrata seu sentido, em que a

interrogação fecha uma oração que emenda mais de uma pergunta, mostrando

a própria confusão mental do narrador na elaboração do(s) enunciado(s). Esse

sinal de pontuação funciona como um sinalizador das inflexões do raciocínio

do narrador, que, por meio de sua verbalização, espera o auxílio do ouvinte

nessa organização.

Para o autor, a ditadura idioma era capaz de cercear o processo de

criação. Em carta (3/12/1964), justificava sua escrita como uma reação ao

lugar-comum e como uma forma de falar ao inconsciente e até atingir o

supraconsciente do leitor. Este, ao ser atingido, participaria do processo de

construção de sentido do texto.

Este trecho mostra outro tipo de emprego do ponto-de-interrogação:

[...] Mau não sou. Cobra? — ele disse? Nem cobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito cauteloso. (Grande Sertão:Veredas, p. 138)

Nesse excerto, o autor procedeu de forma inversa, ao desmembrar a

oração interrogativa em duas frases finalizadas pelo sinal de pontuação.

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137

Podemos notar que foram suprimidos o verbo e a conjunção, restando apenas

as palavras indispensáveis para a compreensão do enunciado.

A leitura oral do enunciado obriga o leitor a fazer uma entonação

ascendente duas vezes, sem contar com as pausas mais demoradas. Por ser a

pontuação um código semiótico, os fatos da oralidade são evocados na leitura

silenciosa. Desse modo, esses elementos acompanhados pelo ponto-de-

interrogação têm valor de índice do sentimento de surpresa, levando o sujeito

da enunciação a segmentar o enunciado. Discursivamente, esses sinais

promoveram um desequilíbrio na narrativa e expressam a surpresa do

narrador ao tomar conhecimento do julgamento recebido. A linguagem, nesse

excerto, é responsável pela formação de quadros imagéticos, em que o leitor

procura formar um nexo para os enunciados, muitas vezes, considerados

desconexos pelo leitor.

Observemos outro exemplo de emprego do ponto-de-interrogação:

[...]E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo — posso? — então não desmancha na rás tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? [...] (Grande Sertão:Veredas, p. 237)

Esse trecho, parte de um parágrafo que ocupa três páginas, mostra um

excesso de pontos-de-interrogação. Sentimos necessidade de fazer um

comentário sobre apenas um emprego, pois os outros estão previstos pela

gramática normativa. O terceiro emprego do ponto-de-interrogação: “Digo ao

senhor: remorso?” é bem peculiar à escrita rosiana, em que se vê apenas a

presença da palavra-chave, com a elipse do verbo. O sinal de pontuação, com

função argumentativa, guarda relação com o que foi dito anteriormente. O

narrador tenta justificar-se pelo que já foi dito. Esse raciocínio do narrador se

assemelha à abdução de que fala Peirce, ou seja, o narrador levanta uma

hipótese explicativa para o fato de querer fazer um pacto também com Deus.

A leitura do texto rosiano deve ser feita em voz alta para que as

inflexões da fala sejam recuperadas, e sua compreensão seja facilitada, como

vemos neste exemplo:

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Pediu: se podia vir à garupa, em vez de ir no arção? (“Nenhum, nenhuma”, p. 50)

Temos nesse trecho um exemplo do discurso indireto livre, em que a

voz do narrador se mistura com a voz do personagem. O ponto-de-interrogação

é um índice da voz do personagem. Com isso, simbolicamente, a narração torna

o evento relatado mais próximo do leitor, dirigindo a retina mental para o fato

em si.

Temos nestes trechos outros exemplo do emprego do ponto-de-

interrogação:

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. (Grande Sertão:Veredas, p.135)

Fomos. Fui. Para o recanto duma janela, nesse comenos. A pra efetuar fogo. A ordem não era-de? (Grande Sertão:Veredas,p. 277)

No primeiro exemplo, a pontuação indica que temos duas frases dentro

de uma. A leitura oral desse trecho exige um certo malabarismo vocal, pois,

além de uma entonação ascendente, é necessário deixar a voz em suspensão

devido aos dois-pontos. Discursivamente, houve a intenção do narrador de

deixar bem marcada a interpelação ao interlocutor. Esse ponto de interrogação

sugere o som da voz do narrador, reforçando o caráter oral da narrativa.

No segundo exemplo, o ponto de interrogação auxilia o leitor a

completar a oração, além marcar a posição do sujeito de se eximir da

responsabilidade da ação, deixando suspenso um certo julgamento. A

diagramação textual apresenta analogia com o raciocínio do personagem.

A dupla interrogação é também um recurso empregado pelo autor,

como vemos neste trecho:

...Bom, eles trancaram o Tião. De certo que eles bateram também no Tião. Mas, e depois? seu moço?!... (“São Marcos”, p.235)

Temos, no excerto anterior um interessante efeito de sentido causado

pela repetição do ponto-de-interrogação. Como índice de leitura, o sinal de

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pontuação expressa a grande carga de emotividade do personagem diante do

problema relatado. Vemos que o último ponto-de-interrogação é

acompanhado também do ponto-de-exclamação, que acrescenta mais uma

informação ao enunciado. No desenho do texto vemos que os dois sinais de

pontuação isolam a expressão que representa a autoridade. Esse índice remete

o leitor à figura do personagem pressionando seu interlocutor a dar uma

solução para o caso que tanto o preocupava.

O sinal de pontuação na frase se assemelha a uma notação musical de

transcrição da melodia que se observa na fala, pois, na verdade, nesse tipo de

construção, fazemos uma curva ascendente.

Vejamos o último exemplo:

[...] Acabar com o Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate.[...] Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu —?— eu carecendo de derrubar a dobradura dele; para remedir minha grandeza façanha! (Grande Sertão:Veredas, p.409)

Segundo Catach (1980), um sinal de pontuação pode ter o valor de um

morfema. Esse tipo de sinal, que vale como uma palavra, está ligado à língua

e à tipografia. Esse trecho mostra a eloqüência de Riobaldo ao relatar o

episódio, em que teve a oportunidade de matar o jagunço mais temido das

Gerais.

O ponto-de-interrogação entre os travessões indica não só uma

indagação retórica, mas uma série de indagações, cabendo ao ouvinte/leitor,

que tem conhecimento de todos os fatos que envolvem a figura desse homem

tão temido, dar continuidade ao discurso do narrador. Portanto, esse sinal de

pontuação, com valor de índice, cria um tecido de pensamentos relacionados

ao episódio.

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5.6.1. Conclusão

O narrador das histórias de Guimarães Rosa se assemelha ao contador

de histórias, que com grande conhecimento das técnicas da retórica, torna

vivos os personagens e dá grande dinamismo aos episódios.

Por isso, o ponto-de-interrogação tem um papel de grande importância

em seu projeto de escrita. Há interessantes efeitos presentes nos texto, a partir

do emprego da pontuação. No entanto, o emprego desse sinal na escritura

rosiana está mais ligado à norma da língua.

Observemos a seguir o quadro resumitivo do ponto-de-interrogação,

para que tenhamos uma visão geral de seu emprego.

VALOR SEMIÓTICO VALOR FUNCIO-NAL

EXEMPLO OBRA PÁGI NA TIPO

SÍGNICO INTER-PRETA-ÇÃO

FUNÇÃO DISCURSIVA

O diabo existe e não existe?

Grande Sertão: Veredas

11 índice sugestão da voz do narrador

chamar atenção do interlocutor

Porque eu desconheci meus Pais — eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?

Nenhum, nenhuma

50 índice conclusões inacabadas

participação do leitor

Com elas quem pode, porém? Todo fim é impossível? Sempre vem imprevisível o abominoso? Crível? Incrível? Mais certa?

Desenre-do

38-40 índice índices de aconteci-mentos que mudarão o rumo da história

encaminhamento da opinião do leitor

pergunta retórica

Sorte? A gente vai — nos passos da história que vem.

—Uai, eu? 177 índice presença da palavra-chave para despertar uma cadeia de sugestões

levar o interlocutor à reflexão

desmem-bramento de uma oração em duas

Cobra? — ele disse?

Grande Sertão: Veredas

138 índice formação de quadros imagéticos que dão nexo `a frase

desequilíbrio da narrativa

elipse do verbo

Digo ao senhor: remorso?

Grande Sertão: Veredas

237 índice raciocínio difuso

tentativa de justificativa

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dupla interroga-ção

Mas, e depois? seu moço?!

São Marcos

235 índice quadro mental da situação de indagação

estado de tensão do personagem

pergunta retórica

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto,[...]

Grande Sertão: Veredas

135 índice sugestão da voz do narrador

destaque à interpelação ao interlocutor

discurso indireto livre

Pediu:se podia vir à garupa, em vez de ir no arção?

Nenhum, nenhuma

50 índice tornar viva mais próxima a cena narrada

fala do personagem

substitui-ção de uma palavra

E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu— ? — eu carecendo de derrubar a dobradura dele

Grande Sertão: Veredas

409 índice formação da indagação pelo contexto

indagação

5.7. O emprego do ponto-de-exclamação

Na obra de Guimarães Rosa, o narrador, freqüentemente, não escreve,

porém conta oralmente suas histórias. Por esse motivo, as narrativas são,

geralmente, em primeira pessoa. Esse narrador se expande em outro que ouve,

seu interlocutor que recebe a narrativa, que vem a ser também o leitor.

Devido às centenas de falas, conversas, fragmentos de discursos, o

ponto-de-exclamação é de grande proveito para o autor. Esse sinal de

pontuação estabelece um nexo entre o dito através da escrita e as situações

que envolveriam a emissão da frase na oralidade.

Na obra rosiana observam-se centenas de falas em que o ponto-de-

exclamação promove interessantes efeitos no texto.

Vejamos algumas passagens que ilustram nosso ponto-de-vista:

Mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! (“Meu tio o Iauaretê”, p.852)

O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui! — porque não sou, não quero ser. Deus esteja! (Grande Sertão: Veredas, p. 166)

Esses trechos, pontuados de acordo com a tradição gramatical,

mostram que o autor obtém interessantes efeitos de sentido com o auxílio dos

signos. O ponto-de-exclamação remete o leitor ao envolvimento com o qual o

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narrador constrói o objeto de sua fala. Isso faz com que o leitor recupere o

contexto em que se desenvolve a fala do personagem.

No primeiro exemplo, vemos o emprego do ponto-de-exclamação

conjugado ao ponto-de-interrogação, revelando uma pergunta retórica

carregada de grande indignação do personagem. Os vários pontos-de-

exclamação dão um efeito cumulativo do tom enérgico da ordem expressa

pelo matador de onças.

No segundo exemplo, vemos também o tom enérgico do narrador,

numa tentativa de encobrir, no discurso, sua confusão mental. A segunda frase

exclamativa revela uma estratégia de encerrar um assunto delicado para esse

indivíduo. A entonação que surge com grande vigor, até mesmo mentalmente,

traz a cena narrada ao leitor.

Na reconstrução da cena, o ponto-de-exclamação, com valor indicial,

resgata na narrativa os movimentos corporais, como mostram os exemplos a

seguir:

Depois o calundu sungou a cabeça, e o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura: ...!... (“O burrinho pedrês”, p.43)

Nesse trecho, a exclamação, auxiliada pelas reticências, reconstrói, na

superfície do texto, o quadro em que se desenvolve esse acontecimento, com

toda a gestualidade do narrador. Vemos que o dinamismo da cena, transmitido

pela pontuação, procura convencer o leitor sobre a singularidade do evento.

Vejamos outro exemplo do valor expressivo do ponto-de-exclamação:

Pai soubesse que ele tinha conversado com Tio Terez? Aí, mortes! —? Rezava. (“Campo geral”, p.505)

Nessa parte da narração, temos um exemplo de discurso indireto livre,

em que vemos, pela voz do narrador, também a fala do personagem,

amedrontado pelas prováveis conseqüências de seu ato. A sintaxe telegráfica

da frase reflete a fusão da forma e do conteúdo. A impossibilidade do

personagem de elaborar uma frase completa é suprida pelo ponto-de-

exclamação, que leva o leitor a dar completude à situação sugerida pela

palavra-chave.

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O emprego do ponto-de-exclamação deste trecho é bem original:

Notei que os companheiros reparavam a estranheza daquilo, dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam, formados no costume de jagunços, que é de frouxas essas leviandades. —“Barzabu!”— ô gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas. E eu parava, rente, no meio de todos, que de volta aceitavam minha presença, esses cavalos. (Grande Sertão:Veredas, p.325)

Nesse trecho, vemos a segunda exclamação acompanhada pela vírgula.

O ponto-de-exclamação tem a função de expressar a crítica do narrador ao

comportamento dos companheiros. Acreditamos que a presença da vírgula se

deva ao fato de marcar a continuidade do período que teve início no primeiro

travessão. A exclamação, desse modo, funciona como índice de um

comentário com muita expressividade, que não se inclui na narrativa.

Vejamos outro exemplo do emprego especial do ponto-de-exclamação:

E estrondeou aí foi então do pacato do aro: — Ô de casa! — varandando-a até à cozinha onde sobreditamente se fitavam Joãoquerque e Mira, que tremeram tomando rebate.

Ô! Renovou-se abrupto o brado, esmurrada a porta, ouvida também correria na rua, após estampido de arma, provável à boca. (“Estória nº 3”, p.49)

O chamamento que aparece no segundo parágrafo é parte da mesma

voz que figura em itálico e entre travessões. Vemos, no entanto, que a

interpelação se mistura à fala do narrador. O caráter indexical do ponto-de-

exclamação conduz o leitor a identificar a origem dessa voz.

Temos, neste exemplo, uma mostra da concisão do autor:

[...] E eu peguei puxei o corpo apenas para não ficar em cima dum vestígio de lama – porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o chapéu-de-couro, com o qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse companheiro, Marcelino Papa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pá-pá! falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava. (Grande Sertão: Veredas, p.441)

Geralmente, a interjeição é acompanhada da exclamação, mas o autor

inovou, ao pontuar somente a onomatopéia que se segue. O efeito causado na

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leitura oral é de aceleração da narrativa, o que acontece também no início da

citação, onde se nota a ausência de conectivo ou pontuação. O exemplo

mostra que a forma se ajusta ao conteúdo, já que não havia tempo de se fazer

uma pausa nem ao menos para expressar a dor pela perda do companheiro. A

urgência era de atirar e não de lastimar. O ponto-de-exclamação é um índice

que sugere ao leitor as relações internas do evento narrado.

Vejamos a expressividade deste exemplo:

Tempo me mediu. Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar — tem uma coisa! — : eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... (Grande Sertão:Veredas, p.445)

Nesse trecho, temos a conjugação de três sinais de o pontuação: o

travessão duplo, os dois-pontos e o ponto-de-exclamação. Dessa forma, nossa

tarefa de leitores é detectar as três informações presentes na passagem.

Primeiramente, o travessão duplo sinaliza a mudança brusca do rumo do

enunciado, como se o narrador visse urgência , por isso, a presença do ponto-

de exclamação. Com isso, a frase inicial não é concluída e sobrepõe-se a ela a

frase exclamativa, entre parênteses. Finalmente, os dois-pontos anunciam a

outra frase em tom reflexivo. Podemos reconstruir a situação de produção dos

enunciados pela pontuação: o narrador inicia um comentário e lhe surge à

mente outra idéia, considerada mais clara, que é evidenciada por meio dos

parênteses. O ponto-de-exclamação indica a excitação do personagem no

momento do surgimento do pensamento.

Selecionamos outra passagem onde se vê a presença do ponto-de-

exclamação. Vejamos:

—Diz-se que, lá na cadeia do arraial, os soldados fizeram graça... Diz-se quê, não! me arrependo: eles fazem mesmo., eu sei, porque também já estive lá (...) (“São Marcos”, p.235)

Nesse trecho, vemos o emprego expressivo da exclamação. O sinal de

pontuação indica a interrupção brusca da fala do personagem. Este inicia uma

declaração e repentinamente, tomado de emoção, decide substituir por outra mais

verdadeira.

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Observemos o último exemplo do emprego do ponto-de-exclamação:

A gente disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das casa. E guardávamos o emboque da rua. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina.(Grande Sertão:Veredas, p. 440

Vemos que no mesmo período aparecem dois tipos de frases separadas

pela vírgula. Esse tipo de construção pode ser visto como um recurso retórico,

em que o narrador faz uma pausa na narrativa para se dirigir ao ouvinte, com

o objetivo de encaminhar sua reação e sua avaliação ao fato que está sendo

relatado. Vemos que a exclamação determina ao ouvinte uma ação de

registrar o que ouve. Acreditamos também que o narrador interrompe a

narrativa com a intenção de reforçar a importância de seu papel, pois, graças a

ele, a história se desenvolve. Podemos dizer, portanto, que a exclamação,

unida à interrogação, recupera a figura do narrador como sujeito da

enunciação.

5.7.1. Conclusão

Embora haja, na prosa rosiana, uma infinidade de empregos de ponto-

de-exclamação, em construções bem originais, reconhecemos que o autor

emprega esse sinal sem grande liberdade. Muitas vezes nos sentíamos

tentados a fazer uma citação de alguma passagem interessante, porém éramos

forçados a não aproveitar o exemplo, pelo fato de o emprego da pontuação

fugir ao propósito da pesquisa, que é analisar a pontuação que foge da norma.

O quadro seguinte mostra uma síntese do que vimos de uso não-

gramatical do ponto-de-exclamação nas obras selecionadas do escritor.

VALOR SEMIÓTICO VALOR FUNCIONAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GINA TIPO

SÍGNICO INTERPRE-TAÇÃO

FUNÇÃO DISCURSIVA

expressividade Mecê ta doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora!

Meu tio o Iauaretê

852 índice

reconstrução do evento na mente do leitor

expressão de indignação

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O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui! — porque não sou, não quero ser. Deus esteja! (Grande Sertão:Veredas, p. 166)

Grande Sertão: Veredas

166 índice formação do quadro imagético que sugere a dificuldade de raciocínio

tentativa de encobrir uma dificuldade

Depois o calundu sungou a cabeça, e o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura: ...!...

O burrinho pedrês

43 índice reconstrução da mímica na retina mental

convencimento do interlocutor

Pai soubesse que ele tinha conversado com Tio Terez? Aí, mortes! —? Rezava.

Campo geral

505 índice pensamento inconcluso

presença de duas vozes discursivas

. —“Barzabu!”— ô gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas.

Grande Sertão: Veredas

325 índice formação imagética da situação de produção do enunciado

crítica

— Ô de casa! [...] Ô! Renovou-se abrupto o brado. [...]

Estória n.3

49 índice identificação das vozes pela pontuação

presença de vários planos discursivos

Ah pá-pá! falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.

Grande Sertão: Veredas

441 índice marca do vigor da situação

convencimento sobre a gravidade da situação

. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina.

Grande Sertão: Veredas

440 índice presença do narrador

estratégia de convencimento

5.8. O emprego das reticências

Assim como encontramos um número pequeno de usos especiais do

ponto-de-exclamação, também detectamos poucos empregos não-gramaticais

das reticências na obra rosiana.

Pelo fato de a o autor recriar a fala do sertanejo em sua obra, é intenso

o uso das reticências. Há construções bastante criativas; porém, como nosso

propósito é a observação dos usos especiais desse sinal, identificamos puçás

ocorrências especiais das reticências.

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Há páginas inteiras repletas de reticências, indicando pausas de

respiração, silêncios para elaboração do discurso, pausas argumentativas,

entre outras ocorrências.

O conto “Meu tio o Iauaretê” se constrói por meio do ponto-de-

interrogação, ponto-de-exclamação e das reticências.

Vejamos um excerto desse texto:

[...] Nhã-nhem? Hã-hã. [...]Tinham dúvida em mim não, farejam que eu sou parente delas... Eh, onça é meu tio o jaguaretê, todas. Fugiam de mim não, então eu matava... Despois, só na hora é que ficavam sabendo, com muita raiva... (p. 834)

[...] Mas eu sou onça, Jaguaretê tio meu, irmão de minha mãe, tutira... Meus parentes! Meus parentes!... Oi, me dá sua mão aqui... Dá sua mão, deixa eu pegar...Só um tiquinho... (p. 841)

Observamos a fala do onceiro é marcada por suspensões de voz para

iniciar outra frase ou por carência lingüística. As reticências podem funcionar

também, no texto, como uma estratégia do matador de onças para o se

aproximar do visitante, como mostra o segundo exemplo. Esse tipo de

desenho textual leva o leitor a recompor a cena com som e movimento, dando

sentido ao texto.

A Viver é muito perigoso... (Grande Sertão: Veredas, p.22

A frase “Viver é muito perigoso...” (Grande Sertão: Veredas, p.22) é

uma variação de um mote que se repete ao longo do discurso de Riobaldo ao

seu ouvinte, deixando para o seu leitor/ouvinte dar completude ao enunciado.

No conto “Conversa de bois” (in Sagarana, 1974), as reticências têm

um valor icônico, representando a respiração dos animais enquanto

conversam.

Vejamos um excerto do conto:

— Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo grande...e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho.... É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens... as coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor — tudo, pensado, é pior... (p.294)

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Na história, esse sinal de pontuação causa um efeito muito

interessante, ficando bem delimitadas a voz do narrador e a fala dos animais.

Vemos que os silêncios deixam para o leitor a tarefa de completar os

enunciados repletos de crítica.

Vejamos alguns empregos interessantes das reticências:

Esticado nos pés, parecia querer tentar repor o clã numa ainda até então nem nunca atingida compostura. Ao que, do grupo das mulheres, principalmente, ouviram-se vozeios resmelengos, e protestos, atribulados,trépidos, se bem que pouco inteligíveis, por simultâneos. De tia, tia e tia:

“... ... ...então...”

“... ... ...não...”

“... ... ...razão!...”

O debate não teria fim, discussão de nascer trevas. [...] (“Os chapéus transeuntes” p.754)

Eu queria mais que sua leve mãozinha na minha mão; queria-a, pelo menos, trêmula. Puro pouco engano. Aí, ela parava. E a luta, a mover-se entre nós dois, independia de nossas frases:

—“... ... ...”— golpeou o ar com o queixo e encolheu ombros por ênfase, sua cabecinha pendulou um pouco.

“... ... ...”— e pôs as mãos na cintura, contranitente, amei-lhe o ativo cerrar-se da boca. demais, empurrei os ombros para frente, tido que eu outrossim precisava de expandir os diâmetros do corpo. Perto de nós, ali, pio, pio, pio, também com volumoso coração, um passarinho por si cantava.

“... ... ...”— avançou o lábio inferior, e recusava-se a encarar-me; trazendo-se a seu rosto um rubor grosso, vindo com vigor de sobrancelhas e de olhos. O pássaro bateu as asinhas, flipe e flope. Sério, como na elevação da hóstia, eu queria só desfingir-me. (idem p.764)

Vemos, nesses excertos, que as reticências valem por frases inteiras,

como afirma Catach (1980). A partir do texto e das palavras presentes nos

diálogos, o leitor vai dar sentido à narração, recompondo esses enunciados

com outras vozes presentes no texto.

Vejamos o último exemplo do emprego das reticências:

Os praças? O tiroteio deles pegando os Hermógenes de supetão, surpresa bruta, de retaguarda. Os tiros eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... a bala: bá!... — desfechavam com metralhadora. Aí

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arrejarrajava, feito um capitão de vento. (...) (Grande Sertão:Veredas p.270)

Esse trecho aproxima a escrita fala, em que os espaços do texto se lembre

uma partitura musical. A disposição diagramática da palavra bala aliada à pontuação

mostra a seqüência rítmica do tiroteio. As reticências indican as pausas, isto é, os

momentos entre uma seqüência de tiros e outra. O cessar dos tiros, de modo brusco, é

indicado pela presença da sílaba tônica a palavra bala, com o ponto de exclamação

(ba!) A cessação das balas é seguida de silêncio, representado pelas reticências.

Vemos que o signo indicial representado pelas reticências tem duplo valor

semiótico. Ao mesmo tempo em que remete leitor ao quadro imagético do silêncio

ritmado, leva o leitor a experimentar a grande tensão presente no episódio.

5.8.1.Conclusão

As reticências são largamente empregadas na obra de Guimarães Rosa.

Há interessantes efeitos de sentido com o emprego desse sinal de pontuação

na obra estudada.

Por ser um texto que se propõe a recriar a oralidade, as reticências são

empregadas para indicar as suspensões de fala e a respiração dos personagens.

Vimos ainda, em algumas passagens, a substituição de falas por meio das

reticências.

Como já observamos, embora esse sinal de pontuação seja muito

empregado na obra de Guimarães Rosa, há poucos empregos especiais desse

signo.

Vejamos o quadro resumitivo do emprego das reticências.

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VALOR SEMIÓTICOe VALOR FUNCIO-NAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GINA TIPO

SÍGNICO

INTERPRETAÇÀO

FUNÇÃO DISCURSIVA

Tinham dúvida em mim não, farejam que eu sou parente delas... Eh, onça é meu tio o jaguaretê, todas. Fugiam de mim não, então eu matava...

Meu tio o Iauaretê

834 índice resgate sonoro que leva à reconstrução da cena

carência vocabular

suspensão da melodia frasal

Pior, pior... Começamos olhar o medo... o medo grande...e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho...[...]

Conver-sa de bois

294 índice marca da respiração

interação entre leitor e texto

reprodução dos silêncios

Os tiros eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... a bala: bá!... — desfechavam com metralhadora.

Grande Sertão:Veredas

270 índice ritmo do tiroteio remete à situação

expressão da tensão do episódio

substituição de palavras

—“... ... ... então...” —“... ... ... não ...” —“... ... ... razão!...”

Cha-péus transeuntes

754 índice recomposição das falas

5.9. O emprego dos parênteses

Os parênteses, na obra de Guimarães Rosa, são talvez os sinais de

pontuação menos empregados. Poucos são os contos que têm esse tipo de

sinal.

Vejamos alguns exemplos:

Qual, isso é bondade sua, seu Marrinha... São seus olhos melhores...

Não. Eu sou muito franco... Quando falo que é, é porque é mesmo... (Pausa)... Quem sabe, a gente podia representar esse drama, hem seu Laio? ...Como é que chama mesmo?...” O Visconde Sedutor”...Foi o que você disse, não foi? (“A volta do marido pródigo”,p.80)

[...] se benzia, bramando: — Em nome do Padre, do Filho e

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do Espírito Santo!...— (ele mesmo estava escutando a voz, aquela voz — ele se despedindo de si— aquela voz, demais: todo choro na voz, a força; e uma coragem de fim, varando tudo, feito relâmpagos...) Dês-de-repente— ele parecia que tinha alto voado [...] (“Campo Geral”, p.476)

E seu Marra saca o lápis e a caderneta, molha a ponta do dedo na língua, molha a ponta do lápis também, e toma nota, com a seriedade de quem assinasse uma sentença.

(Lá além, Generoso cotuca Tercino:

—Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, e, quando chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!...) (“A volta do marido pródigo”, p.71)

Como vemos, o autor emprega esse sinal de várias maneiras, da forma

mais ortodoxa à mais complexa.

Sabemos que esse sinal de pontuação é empregado para intercalar uma

informação acessória. O autor, porém, estende o uso do sinal e inclui partes

mais longas entre parênteses, chegando mesmo a ultrapassar um parágrafo,

como vemos no último exemplo. O texto onde mais encontramos parênteses é

no conto Cara-de-Bronze (in No Urubuquaquá, no Pinhém, 1976).

É interessante o emprego dos parênteses no conto “Cara-de-Bronze”.

Nesse texto, há passagens tão extensas que podem ser consideradas outro

texto dentro dos parênteses. O conto tem características bem peculiares, pois,

além do emprego especial do sinal de pontuação, as notas indicadas pelos

asteriscos remetem o leitor a um texto paralelo ao principal.

5.9.1. Conclusão

Depreendemos várias funções para os parênteses: indicação de

entonação, disposição dos personagens nas cenas, informação suplementar,

Embora os parênteses se destinem mais especificamente à leitura

silenciosa, esse sinal de pontuação em textos como “A volta do marido

pródigo” e “Cara-de-Bronze” se aproximam de indicações de representação.

Cremos que esse seja o sinal menos empregado pelo autor, pelo fato de

ele se referir mais especificamente à leitura silenciosa.

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Há empregos interessantes dos parênteses, porém são usos previsíveis

desses sinais e fogem, portanto de nossa proposta de pesquisa. O sinal de

pontuação tem um emprego indicial, causando um efeito de fala paralela do

narrador ao leitor ou ouvinte.

Temos, seguir , o quadro resumitivo dos sinais de pontuação.

VALOR SEMIÓTICO VALOR FUNCIONAL

EXEMPLO OBRA PÁ- GI-NA TIPO

SÍGNI-CO

INTERPRE TAÇÃO

FUNÇÃO DISCURSIVA

Não. Eu sou muito franco... Quando falo que é, é porque é mesmo... (Pausa)...

A volta do marido pródigo

80 índice orientação de leitura oral

intercalação de informação acessória

[...] se benzia, bramando: — Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo!...— (ele mesmo estava escutando a voz, aquela voz — ele se despedindo de si— aquela voz, demais: todo choro na voz, a força; e uma coragem de fim, varando tudo, feito relâmpagos...) Dês-de-repente— ele parecia que tinha alto voado [...]

Campo geral

476 índice

voz do narrador

66.. UUMMAA PPRRIIMMEEIIRRAA CCOONNCCLLUUSSÃÃOO..

Com base no estudo feito sobre o emprego não-gramatical dos sinais

de pontuação na prosa de Guimarães Rosa, observamos que a vírgula é o sinal

de maior freqüência. Esse sinal de pontuação pode substitui qualquer outro,

até mesmo o ponto. Poderíamos dizer que a vírgula seria uma espécie de sinal

universal para o autor. Além de substituir outros sinais, ela também aparece

no lugar de conectivos, sobretudo coordenativos, ligando orações justapostas.

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Ao assinalar as pausas da língua falada, a vírgula pode aparecer entre

os termos essenciais e integrantes da oração.

Os dois-pontos também encontrados com muita freqüência na obra

rosiana. Eles segmentam termos considerados mais importantes nos

contextos, provavelmente, devido à duração da pausa na leitura oral. É

comum os dois-pontos aparecerem mais de uma vez num mesmo contexto,

podendo substituir travessões.

O ponto-e-vírgula também é bastante encontrado na obra. Esse sinal de

pontuação, muitas vezes, também desempenha o papel da vírgula, do

travessão e até substitui conectivos. A seguir temos o travessão, que pode

desempenhar o papel dos dois-pontos. Porém, havendo o emprego dos dois

sinais num período, o travessão pertence a um nível superior ao dos dois-

pontos.

Devido à especial predileção do autor pelas frases nominais ou orações

com estilo quase telegráfico, nas quais se observam somente as palavras-

chave, o ponto propicia ao escritor a formação interessantíssimas passagens

construídas, basicamente, com a presença desse tipo de frase, causando o

efeito de seqüência cinematográfica, ou o criando uma tensão no texto, num

resgate às técnicas das narrativas orais. O autor, para dar equilíbrio rítmico ao

período, pode segmentar orações por meio do ponto, ou, ao contrário,

condensar várias unidades oracionais em uma só estrutura, cabendo ao leitor

resolver o quebra-cabeças por meio da pontuação.

O ponto-de-interrogação também é utilizado pelo autor no seu projeto

de fazer uma pontuação não-convencional, permitindo-lhe a elaboração de

construções interessantes, porém o emprego não-gramatical é pouco

observado.

O ponto-de-exclamação, as reticências e os parênteses são sinais

empregados de forma mais convencional.

A pontuação observada na obra rosiana, que foge às orientações da

gramática, tem a função de marcar a entonação da língua falada na escrita. Ela

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funciona, para o autor, como guia de leitura, num resgate à época do

surgimento dos sinais de pontuação.

Ao lado dos sinais de pontuação há outros recursos empregados pelo

autor que servem de guias orientadores, como as orações em negrito e hífens,

que podem conduzir a leitura em voz alta, como estas passagens:

[...] E, longe, piava outro passarinho — um sem nome que se saiba a a toda essa hora do dia, nas árvores do ribeirão: — “Toma-a-benção-ao seu-tí-o, João!..”

[...] E o outro, o passarinho anônimo, lá em baixo, no morro de árvores pretas do ribeirão: — Toma-a-benção-ao-seu-ti-ío, Jo-ão! (“Recado do morro” p. 22-23)

Cremos que o detalhe em negrito indique o volume da voz e os hífens

sugerem a segmentação da melodia do pássaro. Observamos que a primeira

frase aparece entre aspas ao contrário da segunda que não recebe aspas. Esse

detalhe poderia indicar a autoria do primeiro canto e a cópia no canto do

segundo pássaro. O acento gráfico da palavra tío marcaria a acentuação da

voz no fonema /i/. Vemos também que essa cópia varia no final, com o

alongamento das duas últimas palavras.

Em outros textos vemos os diálogos em negrito e com aspas e em

outros os diálogos aparecem em itálico. Em “Hora e vez de Augusto Matraga”

(in Sagarana, 1984) as cantigas que aparecem no texto são escritas em itálico,

como se fosse a voz do povo da região.

O autor não utilizou somente a lemniscata como símbolo para compor

a sua narrativa. No conto “Se eu seria personagem” (in Tutaméia, p.140),

vemos a seguinte passagem:

A hora se fazia pelo deve & haver dos astros, não a aliás e talvez.

O símbolo que aparece no trecho, chamado ampersand é bastante

encontrado em textos da Idade Média, com valor da conjunção e, que se

conserva até hoje.

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A pontuação do autor também guarda muitas semelhanças com os

textos medievais, onde se vê a pontuação predominantemente fonológica, que

se destina à leitura em voz alta, fazendo sobressair a voz do homem sertanejo

com todo o seu contorno entonacional. Talvez o autor, na sua busca pela

palavra original tenha feito o mesmo com a pontuação.

77.. CCOONNCCLLUUSSÕÕEESS

O estudo da pontuação na obra de Guimarães Rosa vem mostrar a

importância desse item na obra do autor. Na realidade, a pontuação é parte da

significação de seu texto.

Os sinais de pontuação, na obra rosiana, adquirem papel semiótico,

não só no aspecto visual como também no aspecto lingüístico. Eles são dados

importantes para a organização textual, já que muitas vezes preenchem vazios

deixados pela ausência de conectivos ou mesmo de termos essenciais da

oração. A pontuação, desse modo, pode conduzir o leitor a identificar um

possível sentido do texto, ou auxiliá-lo a desenredar a trama textual repleta de

armadilhas. O emprego dos sinais de pontuação possibilita também despertar

no leitor múltiplas associações de idéias, que, a princípio, podem não passar

de sugestões, situação prevista pelo autor, pois, para ele, “O livro pode valer

pelo muito que nele não deveu caber.” (“Aletria e hermenêutica” p. 12)

A análise dos sinais de pontuação na obra de Guimarães Rosa nos

conduz à idéia de que seus textos são próprios para serem lidos em voz alta,

pois há passagens que exigem a leitura oral para serem entendidos, ou mesmo

para serem mais bem percebidas as astúcias da escrita do autor. Além do

mais, há, na obra uma série de orientações de leitura oral, como segmentação

por hífen, detalhes em negrito e indicações de leitura no interior de

parênteses, o que nos leva a supor que o autor via a possibilidade de

encenação de seus textos.

A pontuação empregada pelo escritor segue dois critérios: 1) segue a

tradição gramatical; 2) obedece razões principalmente de natureza estilística,

expressiva e com fundamentos semióticos.

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Essa pontuação não-gramatical presente na obra do escritor se deve às

próprias exigências do seu projeto de escrita, que visava a recriar a fala

sertaneja, com toda a sua musicalidade e ritmo peculiares.

Temos consciência de que parece meio estranho fazer uma pesquisa, à

primeira vista de pouca aplicabilidade do ponto de vista didático, em especial,

de uma pontuação que não se presta a uma sistematização nos moldes

previstos pela cultura letrada. Entretanto, é necessário salientar que esse tipo

de emprego cumpre projetos de expressividade que também devem ser objeto

de estudo quando se trata da comunicabilidade dos textos, de sua

potencialidade expressional.

Logo, a importância dessa pesquisa se mostra também em relação à

necessidade de mudança da mentalidade didática quanto à exploração de

textos quase exclusivamente canônicos, deixando de fora a observação de

marcas de astúcias enunciativas que, a despeito de transgredirem a

normatividade, atingem maior grau de expressividade e comunicabilidade.

Além do mais, a conjugação dos subsídios semióticos à leitura e

compreensão de textos propõe novas formas de leitura, importantes para a

compreensão não só do texto rosiano, mas também da compreensão da

maneira como os signos se formam e como as linguagens e os meios se

combinam e se misturam, prestando serviços indispensáveis à comunicação

humana..

É urgente a reformulação na metodologia de ensino da língua

portuguesa e, para isso vemos necessidade de implantação de um ensino que

dê oportunidade ao aluno de ampliar se conhecimento enciclopédico,

conhecer e respeitar as variedades lingüísticas. A leitura de um texto literário

como o de Guimarães Rosa documenta esse falar característico da população

interiorana que se reflete no ritmo da fala, que, por sua vez, se reflete no ritmo

da escrita.

A fundamentação teórica escolhida (a princípio tão exótica quanto a

tese proposta) se deve à própria natureza do texto, que se apresenta com uma

grande riqueza de signos verbais e não-verbais. A teoria semiótica de Peirce é

capaz de dar conta de um texto como o de Guimarães Rosa em sua

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abrangência, ainda que nossa análise tenha ficado aquém do que

pretendêssemos em função do prazo estipulado pelos órgãos reguladores.

Ainda assim, parece-nos ter deixado marcas em nosso estudo do que

pode ser discutido quando da escritura de um texto, em que uma rede

semiótica é construída e que signos de natureza distinta (verbais e não-

verbais, pois sinais de pontuação não são signos verbais). Nossa escritura é, a

princípio, regida pela gramática normativa, contudo, quando se tem domínio

do sistema de linguagem eleito (verbal ou não-verbal), é possível partir-se

para a transgressão deliberada, calculada, premeditada. E assim vemos o

projeto de escrita de Guimarães Rosa. O seu desejo de não facilitar a

passagem do leitor pelo texto, promover-lhe a reflexão, dar-lhe matéria para

pensar, fez com que seus textos se nos apresentassem como quase transcrições

de falas. Assim sendo, a gramática normativa (embora tacada para a escrita)

passava a não cobrir as exigências do texto rosiano. Como falarescrever nos

moldes da só escrita? E foi assim que se procurou analisar a distribuição de

sinais de pontuação nos textos do autor. Não apenas como indicadores de

pausas ou de funções sintáticas, mas de situações comunicativas específicas

em que os interlocutores se defrontavam, enfrentavam, ameaçavam,

intimidavam-se, arremedavam, debochavam e assim por diante.

Cada uma encenação dramática era então marcada por um sinal de

pontuação em emprego inusitado. Entre a rigidez da gramática normativa e a

sutileza da estilística, entra em cena a semiótica peirceana, com fundamentos

lógicos, e busca discutir a semiose pretendida pelo autor, no mínimo como

hipótese de mensagem, então recriada pelo analista.

Retomando o valor didático-pedagógico desta tese, é possível

constatar que o ensino convencional de pontuação não atinge os objetivos da

proficiência lingüística. Muito disso se deve pelo não-atrativo da tarefa. Por

que não partir para uma nova abordagem, em que os sinais de pontuação

fossem observados não apenas como “sinais de trânsito” dos textos escritos,

mas como ingredientes significativos na semiose geral do texto. Podem até

não atingir o estatuto de signos simbólicos como as palavras, mas não se pode

negar a função icônica e a função indicial que desempenham em boa parte da

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marcação dos textos. Mesmo quando a abordagem for eminentemente

gramatical, a presença/ausência dos sinais de pontuação é definidora de

funções sintáticas, de funções de linguagem, etc. Logo, creio estar patente o

valor semiótico dos sinais de pontuação em geral e destes na obra de

Guimarães Rosa que acaba por usá-los como traços de um magnífico desenho.

Além do mais, a conjugação dos subsídios semióticos à leitura e

compreensão de textos propõe novas formas de leitura, importantes para a

compreensão não só do texto rosiano, mas também a compreensão da maneira

como os signos se formam e como as linguagens e os meios se combinam e se

misturam.

É urgente a reformulação na metodologia de ensino da língua

portuguesa e, para isso vemos necessidade de implantação de um ensino que

dê oportunidade ao aluno de ampliar seu conhecimento enciclopédico, de

conhecer e também respeitar as variedades lingüísticas. A leitura de um texto

literário como o de Guimarães Rosa documenta esse falar característico da

população interiorana que se reflete no ritmo da fala, que, por sua vez, se

reflete no ritmo da escrita.

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.-.-.-.-.-.-.No Urubuquaquá, no Pinhém (1984). Rio de Janeiro: Livraria José

Olympio. --.-.-.-.-.-.Grande Sertão:Veredas (1978). Rio de Janeiro: Livraria José

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MARTINS, Aira Suzana Ribeiro Martins. A Pontuação Não-Gramatical de

Guimarães Rosa: Um Estudo Semiótico. Tese de Doutoramento em Letras.

Subárea: Língua Portuguesa. Orientada pela Profª Drª Darcilia Simões, UERJ,

Edição Acadêmica, 2006.

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise semiótica da pontuação na obra de

Guimarães Rosa. O estudo verifica as estratégias de pontuação utilizadas pelo

autor, as quais buscam recuperar, na escrita, as características da língua

falada.Trata-se de uma pesquisa semiótica, calcada, principalmente, nas

contribuições da teoria semiótica de Peirce. Esse procedimento visa a

observar os usos especiais dos sinais de pontuação presentes no texto, com. O

estudo tem como corpus as seguintes obras: Sagarana, Manuelzão e

Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém, Noites do Sertão, Grande Sertão:

Veredas, Primeiras Estórias, Tutaméia e Estas Estórias.

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ABSTRACT This work presents a semiotic analysis of the punctuation in the production of Guimarães Rosa. The present study verifies the punctuation strategies applied by the author, in the search to recuperate, in writing, the spoken language characteristics. This is a semiotic research, established, mainly, in the Peirce’s semiotic theory contributions.”. The corpus of this research is compound by the following production: Sagarana, Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém, Noites do Sertão, Grande Sertão: Veredas, Primeiras Estórias, Tutaméia and Estas Estórias. Finally, will be introduced suggestions for a didactic improvement of the analysed contents and the formulated conclusions.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS BANCA EXAMINADORA: PROFª. DRª. DARCILIA SIMÕES Orientadora UERJ Profa. Drª Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu

Titular UERJ

Prof. Dr. Flavio García de Almeida Titular UERJ Prof. Dr. Edwaldo Machado Cafezeiro Titular UFRJ Prof. Dr. Manoel de Carvalho Almeida Titular Colégio Pedro II-

UFF Prof. Dr. Cláudio Cezar Henriques Suplente UERJ

Profª Drª Vanise Gomes de Medeiros Suplente UERJ

Profª Drª Maria Suzett Biembengut Santade

Suplente FMFM_SP

Prof. Dr. Manuel Ferreira da Costa Suplente Colégio Pedro II

Data: 29 DE MARÇO DE 2006 Horário: 15 HORAS Local: Instituto de Letras Nota obtida: Situação final:

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