a política externa após a redemocratização tomo i – 1985-2002

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A POLÍTICA EXTERNA APÓS A REDEMOCRATIZAÇÃO TOMO I – 1985-2002

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  • A POLTICA EXTERNA APS A REDEMOCRATIZAO

    TOMO I 1985-2002

  • Ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar Patriota Secretrio-Geral Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira

    Fundao alexandre de GusMo

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.br

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais

    Centro de Histria eDocumentao Diplomtica

    Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

  • Braslia, 2012

    A Poltica Externa aps a Redemocratizao

    Tomo I 1985-2002

    Fernando de Mello Barreto

  • Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria Talita Daemon James CRB-7/6078

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

    Equipe Tcnica:Maria Marta Cezar LopesFernanda Antunes SiqueiraFernanda Leal WanderleyGabriela Del Rio de RezendeJess Nbrega CardosoRafael Ramos da Luz

    Reviso:Jlia Lima Thomaz de Godoy

    Programao Visual e Diagramao:Grfica e Editora Ideal

    Impresso no Brasil 2012B273 BARRETO, Fernando de Mello. A poltica externa aps a redemocratizao / Fernando de Mello Barreto.

    Braslia : FUNAG, 2012. 2 t.; 23 cm.

    Contedo: t. 1. Poltica externa (1985-2002). t. 2. Poltica externa (2003-2010).Inclui bibliografia e ndice onomstico.

    ISBN: 978-85-7631-363-2

    1. Poltica Externa. 2. Olavo Setbal. 3. Roberto de Abreu Sodr. 4. Francisco Rezek. 5. Celso Lafer. 6. Fernando Henrique Cardoso. 7. Celso Amorim. 8. Luiz Felipe Lampreia.

    I. Fundao Alexandre de Gusmo.

    CDU: 3271985/2002

  • As opinies expressas pelo autor neste livro no refletem, necessariamente, as do Ministrio das Relaes Exteriores.

  • Apresentao

    Este livro, meu terceiro sobre a poltica externa brasileira, tem suas origens remotas em 1992, quando fui convidado pelo Embaixador Synesio Sampaio Goes a dar aulas de histria diplomtica brasileira no Instituto Rio Branco. Coube-me, naquele ano letivo, lecionar sobre o perodo subsequente morte do Baro do Rio Branco, ocorrida oitenta anos antes. Terminada aquela experincia didtica, resolvi transformar minhas anotaes para aulas em material de leitura e referncia factual para alunos. Meu objetivo sempre foi relatar os atos e fatos das relaes exteriores brasileiras, da maneira a mais imparcial possvel, embora deva admitir que a prpria escolha desses compreenda alguma subjetividade.

    A presente obra compreende a poltica externa desenvolvida durante vinte e cinco anos, isto , do fim do regime militar, em 1985, at 2010, no final do governo do Presidente Lus Incio Lula da Silva. Trata-se de perodo de relaes internacionais complexo para a diplomacia brasileira, pois a redemocratizao brasileira teve incio quando se acentuou a globalizao e os fatos externos passaram a ter crescente impacto na vida poltica, econmica e cultural do pas.

    No quarto de sculo examinado, cinco presidentes exerceram a Presidncia da Repblica. No governo de Jos Sarney tiveram o cargo de Ministro do Exterior Olavo Setbal (1985-1986) e Roberto de Abreu Sodr (1986-1990). Na presidncia de Fernando Collor de Mello foram titulares do Itamaraty Francisco Rezek (1990-1992) e Celso Lafer (1992). Na administrao de Itamar Franco, chefiaram a diplomacia Fernando

  • Henrique Cardoso (1992-1993) e Celso Amorim (1993-1994). Durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, exerceram o cargo Lus Felipe Lampreia (1995-2000) e Celso Lafer (2001-2002). Nos seus dois mandatos, Lus Incio Lula da Silva manteve Celso Amorim (2003-2010) como seu Chanceler.

    Chefiaram o Itamaraty, portanto, sete Ministros em nove gestes diferentes, uma vez que Lafer e Amorim retornaram cadeira de Rio Branco. A maioria dos chanceleres no proveio da carreira diplomtica, mas da poltica, mundo acadmico ou empresarial, numa reverso da situao vigente durante o regime militar, em que a maioria dos Ministros do Exterior provinha dos quadros do Itamaraty. Essa mudana foi contrabalanada pela durao mais longa das gestes dos dois diplomatas provenientes da carreira diplomtica, Lampreia (seis anos) e Amorim (cerca de nove anos e meio, se somados os dois mandatos). Em outras palavras, dos quase 25 anos cobertos por este volume, a chefia do Itamaraty foi exercida por diplomatas de carreira por mais de 15 anos.

    Na redao deste livro, dada a complexidade histrica dos eventos, vi-me obrigado a uma exposio seletiva, embora sempre guiada pela preocupao de objetividade. Para obter perspectiva mais abrangente, apesar da curta distncia temporal, busquei contextualizao dos eventos internacionais e das reaes brasileiras.

    Nos captulos iniciais, as fontes bibliogrficas, indicadas ao final, so basicamente livros de histria mundial e brasileira e documentos publicados pelo Itamaraty. Com a proximidade dos eventos, sobretudo nos captulos finais, recorri com frequncia a fontes disponveis na rede internacional eletrnica para situar datas e fatos. Em outras palavras, no foram utilizadas fontes que no fossem pblicas; isto , no foram pesquisados diretamente documentos constantes de arquivos do Itamaraty, confidenciais ou no.

    Boston, maio de 2012.

  • Sumrio

    TOMO I 1985-2002

    Siglas ................................................................................................................. 13

    Introduo......................................................................................................... 19

    Captulo I - Olavo Setbal ............................................................................. 231.1. Linhas gerais da poltica externa ............................................................ 241.2. Amricas ..................................................................................................... 251.3. Europa......................................................................................................... 331.4. frica ........................................................................................................... 341.5. Oriente Mdio ............................................................................................ 381.6. sia .............................................................................................................. 401.7. Atuao poltica multilateral ................................................................... 431.8. Atuao econmica externa ..................................................................... 471.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................... 501.10. Sntese da gesto de Olavo Setbal ..................................................... 51

    Captulo II - Roberto de Abreu Sodr ......................................................... 552.1. Linhas da poltica externa ........................................................................ 562.2. Amricas ..................................................................................................... 582.3. Europa......................................................................................................... 792.4. frica ........................................................................................................... 832.5. Oriente Mdio ............................................................................................ 90

  • 2.6. sia e Pacfico ............................................................................................ 972.7. Atuao poltica multilateral e plurilateral ......................................... 1012.8. Atuao econmica externa ................................................................... 1122.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 1202.10. Sntese da gesto de Abreu Sodr ....................................................... 121

    Captulo III - Francisco Rezek .................................................................... 1293.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 1303.2. Amricas ................................................................................................... 1323.3. Europa....................................................................................................... 1473.4. frica ......................................................................................................... 1553.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 1603.6. sia e Pacfico .......................................................................................... 1743.7. Atuao poltica plurilateral e multilateral ......................................... 1763.8. Atuao econmica externa ................................................................... 1833.9. Sntese da gesto de Rezek .................................................................... 189

    Captulo IV - Celso Lafer (Primeira Gesto) ............................................ 1954.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 1974.2. Amricas ................................................................................................... 1984.3. Europa....................................................................................................... 2054.4. frica ......................................................................................................... 2074.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 2104.6. sia ............................................................................................................ 2114.7. Atuao poltica plurilateral e multilateral ......................................... 2134.8. Atuao econmica externa ................................................................... 2244.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 2304.10. Atuao consular ................................................................................... 2314.11. Sntese da primeira gesto de Celso Lafer ......................................... 232

    Captulo V - Fernando Henrique Cardoso ............................................... 2375.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 2385.2. Amricas ................................................................................................... 2395.3. Europa....................................................................................................... 2515.4. frica ......................................................................................................... 2545.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 2595.6. sia e Pacfico .......................................................................................... 2615.7. Atuao poltica plurilateral e multilateral ......................................... 2635.8. Atuao econmica externa ................................................................... 2725.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 2805.10. Sntese da gesto de Fernando Henrique Cardoso .......................... 281

  • Captulo VI - Celso Amorim (Primeira Gesto) ...................................... 2876.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 2896.2. Amricas ................................................................................................... 2906.3. Europa....................................................................................................... 3066.4. frica ......................................................................................................... 3106.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 3186.6. sia ............................................................................................................ 3216.7. Atuao poltica plurilateral e multilateral ......................................... 3256.8. Atuao econmica externa ................................................................... 3386.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 3486.10. Sntese da primeira gesto de Celso Amorim ................................... 348

    Captulo VII - Luiz Felipe Lampreia ......................................................... 3557.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 3587.2. Amricas ................................................................................................... 3667.3. Europa....................................................................................................... 4087.4. frica ......................................................................................................... 4297.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 4517.6. sia e Pacfico .......................................................................................... 4687.7. Atuao poltica multilateral e plurilateral ......................................... 4887.8. Atuao econmica externa ................................................................... 5167.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 5417.10. O Servio Consular Brasileiro ............................................................. 5427.11. Sntese da gesto de Lampreia ............................................................ 546

    Captulo VIII - Celso Lafer (Segunda Gesto) ........................................ 5598.1. Linhas gerais da poltica externa .......................................................... 5618.2. Amricas ................................................................................................... 5628.3. Europa....................................................................................................... 6198.4. frica ......................................................................................................... 6308.5. Oriente Mdio .......................................................................................... 6338.6. sia e Pacfico .......................................................................................... 6478.7. Atuao poltica multilateral ................................................................. 6638.8. Atuao econmica externa ................................................................... 6768.9. O Servio Exterior Brasileiro ................................................................. 7078.10. Atuao consular ................................................................................... 7118.11. Sntese da gesto de Celso Lafer ......................................................... 712

    ndice Onomstico Remissivo .................................................................... 719

  • 13

    Siglas

    AGNU - Assembleia Geral da ONUALCA - rea de Livre-Comrcio das AmricasALCSA - rea de Livre-Comrcio da Amrica do SulANC - African National CongressAPEC - Asia-Pacific Economic CooperationASEAN - Association of Southeast Asian NationsASPA - Cpula Amrica do Sul pases rabes BID - Banco Interamericano de DesenvolvimentoBIRD - Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento (Banco Mundial)CARICOM - Caribbean CommunityCDH - Comisso dos Direitos HumanosCEE - Comunidade Econmica EuropeiaCEI - Comunidade de Estados IndependentesCEPAL - Comisso Econmica para a Amrica Latina CIA - Central Intelligence Agency CIJ - Corte Internacional de Justia CLA - Centro de Lanamento de AlcntaraCOMECON - Council for Mutual Economic AssistanceCNA - Congresso Nacional AfricanoCSCE - Conferncia sobre Segurana e Cooperao na EuropaCSNU - Conselho de Segurana das Naes UnidasCTBT - Comprehensive Nuclear Test Ban Treaty

  • FERNANDO DE MELLO BARRETO

    14

    DOMREP - Mission of the Representative of the Secretary-General in the Dominican RepublicEAU - Emirados rabes UnidosECOMOG - Economic Community of West African States Monitoring GroupECOSOC - Economic and Social Council ECOWAS - Economic Community of Western African States EFTA - European Free Trade Association EUA - Estados Unidos da AmricaFAO - Food and Agriculture OrganizationFARC - Foras Armadas Revolucionrias ColombianasFMI - Fundo Monetrio InternacionalFMLN - Frente Farabundo Marti de Liberacin NacionalFOCEM - Fondo para la Convergencia Estructural del MERCOSURFPLP - Frente Popular para a Libertao da PalestinaFRELIMO - Frente para a Liberao de MoambiqueFRETILIN - Frente Revolucionria de Timor Leste-IndependenteFSLN - Frente Sandinista de Libertao NacionalG-7 - Grupo dos Sete pases mais DesenvolvidosGRULAC - Grupo Latino-Americano e do CaribeGATT - General Agreement on Trade and TariffICTY - International Tribunal for YugoslaviaIFOR - Fora de Implementao Multinacional KFOR - Kosovo Force (OTAN)KGB - Komityet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (Comit de Segurana do Estado) LEA - Liga dos Estados rabesMercosul - Mercado Comum do Sul MICAH - Misso Internacional de Apoio Civil no HaitiMICIVIH - Mission Civile Internationale en Haiti MINUGUA - Misso de Verificao dos Direitos Humanos da ONU na Guatemala MINURCA - United Nations Mission in the Central African RepublicMINURCAT - United Nations Mission in the Central African Republic and ChadMINURSO - United Nations Mission for the Referendum in Western SaharaMINUSTAH - United Nations Stabilization Mission in Haiti MINUHA - Mission des Nations Unies en HaitiMIPONUH - Mission de police civile des Nations Unies en Hati

  • SIGLAS

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    MNA - Movimento No AlinhadoMONUA - Misso da ONU para Observao em AngolaMONUC - Mission in the Democratic Republic of the CongoMOMEP - Misso de Observadores Militares Equador Peru MPLA - Movimento para a Libertao de AngolaMTCR - Missile Technology Control RegimeNAFTA - North American Free Trade AssociationNSG - Nuclear Suppliers GroupOCDE - Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento EconmicoOCI - Organizao da Conferncia IslmicaOEA - Organizao dos Estados AmericanosOLP - Organizao para Libertao da PalestinaOMC - Organizao Mundial do ComrcioONG - Organizao No GovernamentalONU - Organizao das Naes UnidasONUB - United Nations Operation in BurundiONUCA - Grupo de Observadores de las Naciones Unidas en CentroamricaONUMOZ - Operao da ONU em MoambiqueONUSAL - Observadores da ONU na Amrica CentralOPANAL - Organismo para la Proscripcin de las Armas Nucleares en la Amrica Latina y el CaribeOPEP - Organizao dos pases Exportadores de PetrleoOTAN - Organizao do Tratado do Atlntico NorteOTCA - Organizao do Tratado de Cooperao AmaznicaOUA - Organizao da Unidade AfricanaPAC - Poltica Agrcola ComumPAIGC - Partido Africano para a Independncia de Guin e Cabo VerdePED - pas em DesenvolvimentoPIB - Produto Interno Bruto RAU - Repblica rabe UnidaRDA - Repblica Democrtica AlemRENAMO - Resistncia Nacional MoambicanaRFA - Repblica Federal AlemRPC - Repblica Popular da ChinaRU - Reino Unido SADC - Comunidade de Desenvolvimento da frica AustralSALT - Strategic Arms Limitation Talks

  • FERNANDO DE MELLO BARRETO

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    SDI - Strategic Defense Initiative SEATO - South East Asia Treaty OrganizationSELA - Sistema Econmico Latino-AmericanoSGNU - Secretrio-Geral das Naes UnidasSICA - Sistema de Integrao Centro-AmericanaSTART - Strategic Arms Reduction Treaty SWAPO - South West Africa Peoples OrganizationTBT - Test Ban TreatyTIAR - Tratado Interamericano de Assistncia RecprocaTNP - Tratado de No Proliferao de Armas NuclearesTPI - Tribunal Penal InternacionalUDC - Unio Democrata Crist UE - Unio EuropeiaURSS - Unio das Repblicas Socialistas SoviticasUME - Unio Monetria EuropeiaUNAMET - United Nations Mission in East TimorUNAMIC - United Nations Mission in CambodiaUNAMID - United Nations/African Union Mission in DarfurUNAMIR - United Nations Assistance Mission for RwandaUNAMSIL - United Nations Mission in Sierra LeoneUNASOG - United Nations Aouzou Strip Observer GroupUNAVEM - United Nations Angola Verification MissionUNMIBH - United Nations Mission in Bosnia HerzegovinaUNCED - United Nations Conference on Environment and DevelopmentUNCRO - United Nations Confidence Restoration Operation UNDOF - United Nations Disengagement Observer Force (Colinas do Golan)UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural OrganizationUNFICYP - United Nations Peacekeeping Force in CyprusUNGOMAP - United Nations Good Offices Mission in Afghanistan and PakistanUNIFIL - United Nations Interim Force in LebanonUNIIMOG - United Nations Iran-Iraq Military Observer GroupUNIKOM - United Nations Iraq-Coveite Observation Mission UNIPOM - United Nations India-Pakistan Observation MissionUNMEE - United Nations Mission in Ethiopia and EritreaUNMIBH - United Nations Mission in Bosnia and Herzegovina UNMIH - United Nations Mission in Haiti

  • SIGLAS

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    UNMIK - United Nations Mission in KosovoUNMIK - United Nations Interim Administration Mission in KosovoUNMIL - United Mission in LiberiaUNMIS - United Nations Mission in the SudanUNMISET - United Nations Mission of Support in East TimorUNMIT - United Nations Integrated Mission in Timor Leste UNMOGIP - United Nations Military Observer Group in India and PakistanUNMOP - United Nations Mission of Observers in Prevlaka (Crocia e ex-Iugoslvia)UNMOT - United Nations Mission of Observers in TajikistanUNMOVIC - United Nations Monitoring, Verification and Inspection CommissionUNOCI - United Nations Operation in Cte dIvoireUNOMIG - United Nations Observer Mission in GeorgiaUNOMIL - United Nations Observer Mission in LiberiaUNOMSIL - United Nations Observer Mission in Sierra LeoneUNOMUR - United Nations Observer Mission Uganda-RwandaUNOSOM - United Nations Operation in SomaliaUNPREDEP - United Nations Preventive Deployment Force (Macednia) UNPROFOR - United Nations Protection Force (ex-Iugoslvia)UNPSG - United Nations Civilian Police Support Group UNSCOM - United Nations Special Commission UNSF - United Nations Security Force in West New GuineaUNSMA - Misso Especial da ONU no AfeganistoUNSMIH - United Nations Support Mission in HaitiUNTAC - United Nations Transitional Authority in CambodiaUNTAES - United Nations Transition Administration for Eastern SlavoniaUNTAET - United Nations Transitional Administration in East TimorUNTAG - United Nations Transition Assistance Group (Nambia)UNTMIH - United Nations Transition Mission in Haiti UNTSO - United Nations Truce Supervision Organization

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    Introduo

    Esta obra trata de um perodo complexo das relaes internacionais para a diplomacia brasileira, pois a redemocratizao brasileira teve incio quando comeava a desaparecer o conflito Leste-Oeste e terminou com a asceno da relevncia do G-20 aps a crise financeira mundial.

    No incio do perodo sob exame, o contexto internacional foi marcado pelo desmoronamento do bloco sovitico. Quando da eleio de Tancredo Neves em janeiro de 1985, pouco faltaria para as mudanas na URSS. Com a vinda de Gorbatchov ao poder naquele ano, a glasnost e a perestroika e diversos outros fatores (entre os quais os acontecimentos na Polnia, a atuao do Papa e a agressiva poltica de Reagan) levariam queda do muro de Berlim em 1989, seguida das enormes mudanas na Europa oriental. Na Amrica do Sul, havia cado, pouco antes, a maioria dos regimes militares.

    Na dcada de 1990, afirmando-se os EUA como a nica superpotncia mundial, a bipolaridade desapareceu juntamente com a URSS1. Mantiveram-se como regime comunista apenas a China, Cuba, Laos e a Coreia do Norte, embora, na prtica, os trs primeiros tenham adotado mecanismos de capitalismo tpicos de economias de mercado, abrindo-se a investimentos estrangeiros. O fim do conflito ideolgico Leste-Oeste no eliminou, porm, os conflitos armados, locais ou regionais, tais como os ocorrido nos Blcs, na dcada de 1990, aps o colapso da URSS. Multiplicavam-se as foras de paz da ONU. Outro fenmeno de relevncia foi o fortalecimento de entidades regionais de integrao, no

  • FERNANDO DE MELLO BARRETO

    20

    apenas na Europa, mas tambm nas Amricas, com a criao do Mercosul, em 1991, e da rea de Livre-Comrcio da Amrica do Norte (NAFTA), em 1992, bem como tiveram incio (e depois fracassaram) negociaes para a constituio de uma rea de Livre-Comrcio para toda a Amrica, a ALCA. A Amrica do Sul manteve-se no perodo como uma regio relativamente livre de conflitos, sobretudo se comparada com reas, tais como o Oriente Mdio, Blcs e partes da frica e da sia Central.

    No incio do sculo XXI, os atentados da Al-Qaeda contra os EUA e a ao do governo de George W. Bush (filho) no Afeganisto e no Iraque mudariam o clima de cooperao multilateral que havia prevalecido na dcada anterior. Entre 2003 e 2010, os principais temas internacionais seriam a continuada ocupao do Iraque, o aumento do conflito no Afeganisto, o agravamento das tenses entre Israel e os palestinos e a questo nuclear do Ir, assim como as preocupaes com as mudanas climticas. A crise financeira internacional de 2008 e o elevado crescimento econmico da China (assim como da ndia), entre outros fatores, denotavam atenuao da hegemonia dos EUA no plano internacional.

    No plano interno, o perodo comeou, em meados da dcada de 1980, com pesada herana de dvida externa, inflao e continuados problemas sociais. A redemocratizao e as medidas iniciais adotadas tais como a anistia de opositores, a criao de novos partidos polticos e a retomada da liberdade de imprensa trouxeram esperana de melhoras em todos os aspectos da vida do pas para uma gerao que no chegara a conhecer o processo democrtico em sua plenitude. Fatores externos tinham repercusso interna, tais como o fluxo internacional de capitais, o comrcio internacional, as presses para a proteo do meio ambiente e o respeito aos direitos humanos. Um aspecto da diplomacia afetado pelo ento fraco desempenho econmico brasileiro correspondeu necessidade de assistncia ao crescente nmero de brasileiros que passou a emigrar, em particular para os EUA, Japo e alguns pases europeus.

    Entre 1990 e 1991, o Brasil apresentou PIB negativo. A necessidade de obteno de divisas necessrias para o pagamento da dvida externa levou, em alguns momentos, reduo das importaes, tal como ocorreu drasticamente em 1991. A inflao voltou a subir vertiginosamente, sobretudo em 1993. A busca do controle da inflao ter sido uma das razes para a reduo de tarifas, ao forar a competitividade dos produtos nacionais com produtos estrangeiros. Essa procura de balana comercial favorvel atuou tambm como um dos incentivos para a busca de acesso a mercados em negociaes comerciais regionais (Mercosul e ALCA), inter-regionais (Mercosul UE) e

  • INTRODUO

    21

    mundiais (GATT/OMC). A situao econmica passou a mudar a partir do controle da inflao em 1994. As reservas internacionais cresceram entre 1995 e 1997. Mas a dvida externa incrementou-se, sobretudo em 1998 e 1999. Esse aspecto negativo contrabalanou-se em parte quando os montantes de investimento externo direto subiram entre 1998 e 2001, principalmente em razo de processos de privatizao (em especial das telecomunicaes).

    A partir de 2003, a economia deu salto extraordinrio, sobretudo entre 2005 e 2007. A dvida externa passou a se reduzir e, pelo clculo da dvida externa lquida, o Brasil atingiu o status de pas credor. A passagem de uma economia endividada e inflacionria do incio do perodo para uma em que os dados macroeconmicos se mostram positivos alterou a situao externa brasileira com novas consequncias (positivas) para a atuao dos titulares do Itamaraty.

    1. David Reynolds, One World Divisible, p. 645.

  • 23

    Captulo I

    Olavo Setbal

    A adaptao da diplomacia aos novos tempos no levou a uma reviso dos tradicionais princpios que a guiavam nem modificao radical de seus rumos.

    Olavo Setbal

    Aps a eleio de Tancredo Neves Presidncia da Repblica, em 15 de janeiro de 1985, e da grave enfermidade que o acometeu s vsperas da posse, o Vice-Presidente eleito, Jos Sarney, assumiu, em 15 de maro, o cargo de Presidente da Repblica. Seria o primeiro civil a governar o pas, ao trmino de 21 anos de regime militar. Seis dias depois, Tancredo Neves faleceu, deixando o pas abalado. Sarney, como novo mandatrio, ao mesmo tempo em que completava a transio para a plena democracia, via-se na contingncia de enfrentar inflao ascendente e enorme dvida externa. Esse era, pois, o contexto nacional quando Olavo Egdio Setbal, escolhido por Tancredo Neves, u posse como Ministro das Relaes Exteriores. Paulista, engenheiro, industrial e banqueiro, o novo titular do Itamaraty exercera o cargo de Prefeito da capital paulista.

    O contexto internacional de sua gesto, entre 1985 e incio de 1986, seria marcado pelos estertores da Guerra Fria que ainda prevalecia, embora houvesse sinais de arrefecimento, iniciado por encontro em Genebra, pela primeira vez, entre o Presidente dos EUA, Ronald Reagan, e o novo lder sovitico Mikhail Gorbatchov. Na Europa, teria relevncia a aprovao do ingresso de Portugal e Espanha na Comunidade Econmica Europeia. No Oriente Mdio, ocorreram atos ligados ao terrorismo e outros atos violentos, tais como o bombardeio israelense aos escritrios da OLP na Tunsia. No Caribe, cairia a ditadura da famlia

  • FERNANDO DE MELLO BARRETO

    24

    Duvalier, e, na Amrica Latina, o tema mais relevante era o conflito entre os EUA e os sandinistas na Nicargua.

    1.1. Linhas gerais da poltica externa

    O novo governo no anunciaria modificaes relevantes em relao poltica externa do final do governo militar. Na sua posse, Olavo Setbal declarou que encontrara no Itamaraty uma comunho de ideias, o que considerou ser uma condio bsica para que pudesse ser dada continuidade s melhores tradies de solidariedade e universalismo legadas pelo Baro do Rio Branco. Revelou, por outro lado, desejo de alcanar metas objetivas ao afirmar que a poltica externa seria uma diplomacia para resultados. Considerou seu ponto de partida a explicitao dos interesses concretos brasileiros no que se referia retomada do crescimento e reduo da vulnerabilidade externa nos campos financeiro, tecnolgico e comercial. Setbal se referiu ao compromisso do governo com a democracia, que lhe dava legitimidade e autoridade moral, bem como participao brasileira no cenrio internacional com a capacidade de negociar com dignidade e eficincia.

    O tema da democracia seria retomado quando, em maio, o novo Chanceler afirmou que pretendia conduzir o Ministrio das Relaes Exteriores em sintonia com o esprito democrtico da Nova Repblica. Para tanto, concluiu que as iniciativas da poltica externa deveriam ter representatividade poltica e interpretar a vontade geral, motivo pelo qual a instituio estaria permanentemente aberta ao conhecimento da opinio pblica, em particular de seu rgo de controle institucional, isto , o Congresso Nacional. defesa da democracia e ao sentido prtico da diplomacia, juntava-se a viso da globalizao que se iniciava. Assim, em pronunciamento na Comisso de Relaes Exteriores do Senado Federal, em setembro, Olavo Setbal declarou que nunca, em nossa histria de nao independente, fora to decisiva a ligao com o mundo exterior.

    A mudana poltica permeava as declaraes sobre o relacionamento externo. O Secretrio-Geral do Itamaraty, Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, em palestra tambm em setembro, discorreu extensamente a respeito do impacto da democratizao na poltica externa brasileira. Exps ideias sobre o processo interno de consulta para formulao da poltica externa (ao Parlamento, imprensa, sociedade civil, ao mundo acadmico) e sobre os resultados desse processo democrtico para a

  • OLAVO SETBAL

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    atuao externa. Quanto a esse segundo aspecto afirmou que, entre os efeitos da democratizao para a poltica externa, estaria a possibilidade de o Brasil conseguir condies ainda mais francas de dilogo com os parceiros democrticos, especialmente nas relaes com os pases latino--americanos, mas tambm no dilogo com as chamadas democracias ocidentais2.

    O prprio Presidente Sarney sublinhou o tema da democracia no seu primeiro pronunciamento na ONU, em setembro, quando afirmou que a melhor maneira da ONU trabalhar pela paz era faz-lo pela democracia. Citou o Brasil como exemplo de pas que sara do conflito pela democracia e optara no pela violncia, mas pelo dilogo, pela negociao. No ms seguinte, o Presidente afirmou que, no Brasil, respirava-se liberdade em todos os cantos do pas, e procurava-se discutir e encontrar solues para os diversos problemas nas reas institucional, poltica, econmica e social: eleies, partidos polticos, nova Constituio, reforma agrria, inflao, desenvolvimento econmico. Concluiu que o pas vivia uma bendita ebulio: a das ideias, dos caminhos, dos futuros. Como bem sintetizou o Embaixador Luiz Felipe Seixas Corra, que exerceu a assessoria internacional de Sarney no Palcio do Planalto, a redemocratizao brasileira forneceria a linha inicial de atuao externa do governo. A utilizao dos valores da democracia possibilitaram, a seu ver, a superao da desconfiana dos anos de preeminncia militar e, bem assim, desimpedir alguns canais de comunicao com o mundo desenvolvido.3

    1.2. Amricas

    A democracia retornara tambm para a vizinhana brasileira. Na Amrica do Sul, em meados da dcada de 1980, recuaram os regimes militares na Argentina, Equador, Peru, Bolvia e Uruguai. Entre os representantes latino-americanos que compareceram posse do Presidente Jos Sarney nem todos, porm, representavam governos legitimamente eleitos.

    1.2.1. Amrica do Sul

    No clima democrtico que se formava no plano regional, as relaes com a Argentina foram priorizadas pelo novo governo. Em maio, o Ministro Olavo Setbal efetuou visita de trabalho a Buenos Aires. As

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    conversas com o Chanceler Dante Caputo se concentraram em matria econmica, tendo ambos os Ministros tratado da dvida externa e da necessidade de continuar os esforos que se realizavam na linha do Consenso de Cartagena. Expressaram tambm interesse em aumentar o fluxo do comrcio bilateral e promover uma maior complementao industrial e de empreender novos projetos de coordenao econmica e tecnolgica.

    Sarney encontrou-se com Alfonsn, em finais de novembro, para a inaugurao da ponte Tancredo Neves, entre as cidades de Porto Meira, no Brasil, e Puerto Iguaz, na Argentina. Alfonsn visitou a hidreltrica de Itaipu e o Itamaraty considerou que o encontro marcou a nova dimenso poltica bilateral decorrente da redemocratizao de ambos os pases. Sarney ressaltou a criao de uma comisso para a cooperao e integrao econmica composta de representantes governamentais e dos setores empresariais dos dois pases para examinar e propor programas, projetos e modalidades de integrao econmica. Por sua vez, Setbal e Caputo assinaram regulamento para uso da ponte bem como um ajuste complementar para cooperao no campo de biotecnologia.

    Os contatos entre os dois Presidentes foram to profcuos que assinaram uma Declarao Conjunta sobre Poltica Nuclear. Nos documentos que firmaram, alm do compromisso de desenvolver a energia nuclear para fins exclusivamente pacficos, expressaram a firme vontade poltica de acelerar o processo de integrao bilateral, em harmonia com os esforos de cooperao e desenvolvimento regional. Segundo Seixas Corra, os dois Presidentes eliminaram os fatores de suspiccia recproca que ainda minavam o relacionamento bilateral. Conseguiram esse feito atravs de atos tais como a visita de Alfonsn usina de Itaipu, rompendo a desconfiana que por tantos anos abalava a relao bilateral e a cooperao justamente na rea em que as suspeitas recprocas eram mais fortes: a rea nuclear4.

    O Uruguai logo seria includo no processo de aproximao e integrao que se iniciava na parte oriental da Amrica do Sul. Aps o fim do regime militar uruguaio, Jlio Mara Sanguinetti, do Partido Colorado, fora eleito Presidente para o perodo 1985-1990. Implementaria reformas econmicas e consolidaria a democratizao, aps a concesso de anistia tanto para os tupamaros quanto para militares. Em abril, o Ministro das Relaes Exteriores do Uruguai, Enrique Iglesias, efetuou visita de trabalho ao Brasil. Em junho, os Ministros das Relaes Exteriores do Brasil, Argentina e Uruguai celebraram uma reunio em Punta del Este. No ms seguinte, o Presidente Sarney visitou o Uruguai. Setbal inaugurou, em

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    outubro, uma subcomisso para o desenvolvimento conjunto das zonas fronteirias entre os dois pases.

    O Paraguai, ainda sob o controle de Stroessner, no era objeto do mesmo grau de aproximao mas era tratado com pragmatismo. Assim, o Ministro do Exterior daquele pas, Carlos Saldvar, visitou o Brasil em abril e novamente em agosto. Na segunda visita, foi assinado acordo pelo qual foram isentas de taxas porturias as mercadorias destinadas ao Paraguai ou dele procedentes em trnsito pelo territrio brasileiro. As questes de Itaipu, entretanto, continuariam a ocupar a agenda bilateral. Os Presidentes Sarney e Alfredo Stroessner se encontraram, em outubro, para a inaugurao da terceira turbina da hidreltrica de Itaipu.

    Em janeiro de 1986, por ocasio da assinatura de Acordos sobre a Usina Hidreltrica de Itaipu, Setbal afirmou que a preservao do esprito e da letra do Tratado de Itaipu e dos demais instrumentos bilaterais a eles conexos constitua a principal garantia do pleno xito daquele aproveitamento hdrico no rio Paran. Nas palavras do Chanceler brasileiro, ao conclurem documentos sobre a hidreltrica (modificao do Estatuto de Itaipu Binacional e acordos sobre pagamento de royalties e sobre cronograma de pagamento da energia fornecida), os dois governos reafirmaram mais uma vez, a permanncia e o acerto dos preceitos que regem Itaipu.

    *Com os demais vizinhos sul-americanos, embora em menor

    escala, os contatos tambm aumentaram. Em julho, realizou-se reunio de chefes de Estado e representantes especiais em Lima durante a qual se aprovou uma declarao sobre a importncia do fortalecimento do sistema democrtico.

    O Ministro Olavo Setbal chefiou, em agosto, a delegao brasileira posse do Presidente da Bolvia, Victor Paz Estenssoro. O quase octogenrio poltico iniciava ento seu quarto mandato presidencial. Apresentaria plano econmico, preparado pelo Ministro do Planejamento Gonzalo Snchez de Lozada voltado a controlar a inflao por meio de privatizaes. O governo brasileiro acompanharia a questo ao participar, em novembro, da formao de um Fundo de Emergncia da ONU de apoio ao programa boliviano de estabilizao monetria.

    A caminho da AGNU em Nova York, o Presidente Sarney efetuou escala em Caracas onde expressou ao Presidente da Venezuela, Jaime Lusinchi, interesse na intensificao do relacionamento bilateral. O mercado do petrleo flutuava e afetava negativamente o oramento pblico venezuelano que era altamente dependente da exportao daquele produto.

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    No mesmo ms, o Primeiro-Ministro do Suriname, Wim Udenhout, efetuou visita oficial ao Brasil e acertou linha de crdito de US$ 20 milhes para aquisio de produtos brasileiros. O dirigente de facto do pas era o Coronel Dsi Bouterse que presidia o regime militar vigente. A situao poltica deu sinais positivos em 1985 com a suspenso do banimento de partidos polticos de oposio e o incio da redao de nova constituio.

    1.2.2. Amrica Central e Caribe

    No relacionamento com a Amrica Central e o Caribe, dois temas teriam maior interesse: a questo do reatamento das relaes diplomticas com Cuba e a posio latino-americana com respeito ao conflito entre os EUA e os sandinistas na Nicargua. Ambas questes ainda se inseriam na Guerra Fria.

    *Com a redemocratizao brasileira, criaram-se expectativas de que

    o Brasil reatasse relaes diplomticas com Cuba. Em pronunciamento na Comisso de Relaes Exteriores da Cmara dos Deputados, em maio, Olavo Setbal anunciou que determinara estudos sobre a questo:

    Nao pacfica e voltada para a tarefa prioritria da promoo scio-econmica da sua gente, procura o Brasil manter relaes com todos os pases, sobre a base da no ingerncia e do respeito mtuo. Dentro dessa tica, desejo informar o Poder Legislativo, por intermdio da sua Comisso de Relaes Exteriores, de que determinei a realizao de estudos sobre a questo do reatamento das relaes diplomticas com Cuba. Analisaremos todos os aspectos dessa medida, em particular suas eventuais implicaes sobre a segurana nacional. Nessa providncia, pesou em devida medida a indicao, aprovada por esta Comisso, em favor da aproximao com aquele pas caribenho.

    O primeiro contato oficial entre diplomatas cubanos e brasileiros ocorreu em julho, quando o vice-Ministro cubano das Relaes Exteriores, Alberto Betancourt Roa, encontrou-se com o Secretrio-Geral do Itamaraty, Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, para entregar convite para que o Presidente Sarney visitasse Cuba.5

    *Na Amrica Central, desenvolvia-se naquele momento o conflito

    entre os contra, apoiados pelos EUA, e o governo sandinista na Nicargua, com repercusso junto aos pases vizinhos mais prximos.

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    A diplomacia brasileira atuaria no conflito em apoio a iniciativas latino- -americanas que discrepavam da poltica do governo Reagan.

    O relacionamento entre os EUA e a Nicargua se deteriorara desde o incio da dcada, tendo Washington acusado o governo de Mangua de receber apoio de Cuba e da URSS. Eleito com mais de 60% dos votos, o governo sandinista liderado por Daniel Ortega assumiu a Presidncia em janeiro de 1985. Em 1 de maio, Reagan imps embargo comercial Nicargua6. O Brasil no apoiou a iniciativa e, em comunicado imprensa, cinco dias depois, reafirmou o apoio aos esforos de pacificao que vinham sendo conduzidos pelo Grupo de Contadora. Informou que, nesse sentido, no apoiara a adoo de sanes unilaterais, em discordncia com os princpios do Direito Internacional e acrescentou que a experincia histrica recente, inclusive na Amrica Central, revelava ser [tal medida] contraproducente.

    Elevando um pouco o tom, durante a considerao da crise na Amrica Central pelo CSNU, ainda em maio, o Embaixador Georges Maciel afirmou que o Brasil deplorava a utilizao de medidas econmicas unilaterais que eram incompatveis com as cartas da ONU e da OEA, e levantavam novos obstculos s solues negociadas.

    A posio brasileira seria ainda explicitada por Setbal no pronunciamento que fez na Cmara dos Deputados no mesmo ms. Declarou ento que as transformaes polticas e sociais ocorridas na Amrica Central, como reflexo inevitvel da derrubada de regimes ditatoriais, no deviam ser interpretadas de forma simplista, como mera instncia localizada de conflito entre as superpotncias. Ops-se ao uso da fora e da interveno armada, a qual no poderia ser cogitada como opo vivel para a soluo de problemas cujas razes estavam plantadas na histria de cada pas. Defendeu a ideia de que tais problemas deveriam ser equacionados em seus respectivos contextos nacionais, sem interferncias, e a soluo de suas implicaes internacionais deveria ser encaminhada pela mediao de pases com presena e interesses efetivos na regio. Concluiu que, por essa razo, o Brasil apoiava os esforos de pacificao empreendidos pelo grupo de Contadora.

    Coerente com essa linha, juntamente com Argentina, Peru e Uruguai, o Brasil subscreveu, em julho, uma declarao em Lima, pela qual os quatro pases se colocaram disposio do Grupo de Contadora para consultas e apoio. A partir do ms seguinte, o governo brasileiro passou a participar ativamente da elaborao e adoo dos documentos do Grupo de Apoio. Este reiterava, su conviccin de que la gestin negociadora del Grupo de Contadora constitua el nico camino viable

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    para alcanzar la paz y restablecer la armona y la cooperacin entre los Estados centroamericanos.

    Ao historiar o ingresso brasileiro no Grupo de Apoio a Contadora, o Embaixador Seixas Corra observou que o Brasil, embora lamentasse no plano da retrica o intervencionismo norte-americano, sempre se esquivara de um envolvimento na regio sob a alegao de que no dispunha de elementos de informao e de persuaso adequados. Com a adeso ao Grupo de Apoio, na sua opinio, o pas se credenciara para aes efetivas no plano regional, tendo-se criado, pela primeira vez na Amrica Latina um canal autnomo de ao diplomtica, habilitado a discutir e influenciar polticas sobre as principais questes regionais sem a participao ou a tutela dos EUA. Acrescentou que o envolvimento diplomtico iniciado com a participao no Grupo de Apoio a Contadora foi igualmente importante para a superao da imagem que se havia formado na regio durante o perodo militar de que o Brasil no tinha interesse pela Amrica Latina pois, falsa ou verdadeira, esta imagem existia e tolhia o exerccio pelo Brasil de suas responsabilidades na poltica regional7.

    Setbal reiterou, em pronunciamento Comisso de Relaes Exteriores do Senado Federal, em setembro, a ideia de que a soluo para os problemas da regio deveria ser encaminhada pela via poltica, livre de ingerncias externas e dentro da vigncia plena do princpio da autodeterminao dos povos. Em discurso ao Presidente da Frana, no ms seguinte, Sarney ratificou essa poltica e acrescentou que somente pelo respeito ao direito internacional se criariam condies para o surgimento de sociedades justas e democrticas na regio.

    No final de 1985, conforme constou do relatrio do Itamaraty, os pontos principais da posio brasileira a respeito da crise na Amrica Central eram os seguintes: a situao da crise na regio derivava de causas histricas, ligadas manuteno de estruturas econmico- -sociais desequilibradas, e se vinculava crise econmica mundial; no poderia, portanto, ser encarada do ngulo da confrontao ideolgica; a transferncia para o contexto local das tenses Leste/Oeste perturbaria os esforos para a soluo da crise; a base para os entendimentos estava na busca da soluo pacfica de controvrsias e no respeito aos princpios da no interveno e autodeterminao; deveria ser atribuda prioridade aos interesses dos pases diretamente afetados, sem interferncias externas; e os esforos de negociao deveriam caber prioritariamente aos pases latino-americanos, especialmente os do Grupo de Contadora.

    Setbal declarou, em Caracas, no incio de 1986, que a Amrica Latina exigia a continuao de seus esforos no sentido de buscar uma

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    soluo negociada para os problemas centro-americanos, a fim de que o seu contexto eminentemente regional no fosse ampliado de forma a transform-los em mais de um conflito regional inserido no contencioso das superpotncias. Os Chanceleres dos Grupos de Contadora e de Apoio mantiveram encontro em Washington com o Secretrio de Estado George Schultz e propuseram-lhe que cessasse o apoio exterior s foras irregulares em operao na regio.

    1.2.3. Amrica do Norte

    Com o Mxico, as relaes eram bem amistosas e os dois pases compartilhavam preocupaes semelhantes em virtude de seus respectivos endividamentos externos. Eleito Presidente em 1982, aps a moratria da dvida externa, Miguel de la Madrid seria o primeiro de vrios mandatrios mexicanos a introduzir reformas liberais que incluam reduo de tarifas alfandegrias, privatizaes e incentivos a investimentos estrangeiro, tal como aconselhava o Fundo Monetrio Internacional (FMI). Em setembro de 1985, um forte terremoto atingiu a Cidade do Mxico causando dezenas de milhares de mortes. A caminho da AGNU, o Presidente Jos Sarney fez visita de solidariedade quele pas pela tragdia sofrida. A destruio causada pelo movimento ssmico contribuiria para as dificuldades econmicas do pas e para a perda de popularidade de la Madrid que foi acusado de ter inicialmente recusado assistncia internacional.

    *Em relao aos EUA, o novo governo brasileiro deu sinais da

    importncia atribuda s relaes com Washington quando, na qualidade de Presidente eleito, Tancredo Neves visitou os EUA em finais de janeiro de 1985. Ronald Reagan iniciava seu segundo mandato e, em demonstrao de interesse no relacionamento bilateral, o vice-Presidente George H. W. Bush compareceu posse do Presidente Jos Sarney. Meses depois, no entanto, as relaes comerciais bilaterais j denotavam sinais de conflito. Em junho, realizaram-se consultas, nos termos do artigo XXII do Acordo Geral de Tarifas e Comrcio sobre a poltica brasileira de informtica com vistas a determinar o impacto da lei e da poltica sobre o Acordo Geral e seus efeitos comerciais potenciais. Na opinio brasileira, o lado norte--americano no conseguira demonstrar que seus interesses especficos estavam sendo prejudicados.

    O setor de informtica no seria o nico afetado pela poltica comercial norte-americana. Ainda em junho, o Ministro Olavo Setbal

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    recebeu representantes da indstria brasileira de calados para avaliar as recomendaes da International Trade Commission que havia proposto a imposio de quota global s importaes norte-americanas de calados. Segundo comunicado imprensa distribudo na ocasio, o Ministro expressou preocupao com a recomendao pois, na pauta de exportaes para os EUA, os calados ocupavam o primeiro lugar, dentre os manufaturados, somando cerca de 900 milhes de dlares, montante extremamente significativo, sobretudo num momento em que o Brasil se empenhava num esforo de ajustamento de seu Balano de Pagamentos, tendo em vista fazer face aos pesados encargos do servio da dvida externa.

    As preocupaes comerciais destacavam-se na pauta quando, em julho, o Ministro Olavo Setbal realizou visita de trabalho aos EUA tendo mantido contato com diversas autoridades americanas. Algum progresso nas negociaes comerciais bilaterais permitiu que, em agosto, Brasil e EUA assinassem Memorando de Entendimento para a cooperao na rea espacial e Acordo sobre Comrcio de Txteis. Na mesma data, o Presidente Sarney e o Ministro Setbal enviaram ao Presidente Reagan e ao Secretrio de Estado George Schultz mensagens em que expressaram satisfao por ter o governo de Washington recusado medidas protecionistas indstria brasileira de calados.

    Os progressos seriam, porm, de curto prazo. Em setembro, no mesmo ms em que se divulgava o Plano Baker para a dvida da Amrica Latina8, o governo americano anunciou a abertura de investigaes, com base na lei americana de comrcio e tarifas, sobre a lei brasileira de informtica e seus efeitos sobre as exportaes dos EUA e a operao de firmas norte- -americanas no Brasil. Em comunicado de imprensa, o Itamaraty lamentou profundamente a deciso do governo norte-americano sobre a poltica de informtica do Brasil. Afirmou que a aplicao da legislao nacional sobre informtica atendia aos interesses nacionais de desenvolvimento econmico e tecnolgico e no implicava prticas no aceitveis de comrcio, conforme amplamente expusera no mbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT). Expressou confiana de que o teria presente, na evoluo da matria, os interesses mais amplos do relacionamento bilateral, os quais sempre prevaleceram sobre divergncias comerciais ocasionais, e no compreendiam a posio ento adotada, no momento em que o Brasil desenvolve um intenso esforo para ampliar as suas reas de comrcio internacional e estabilizar sua economia interna.

    As relaes com o Canad apresentavam normalidade e, em outubro de 1985, o Ministro Setbal assinou com aquele pas acordo

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    de fornecimento de trigo. Mas, tal como com relao aos EUA, o Brasil se queixava de poltica comercial canadense adversa aos interesses comerciais brasileiros. Assim, o relatrio do Itamaraty registrou as restries impostas pelo Canad s exportaes brasileiras de txteis bem como medidas protecionistas canadenses contra alguns produtos siderrgicos e calados provenientes do Brasil.

    1.3. Europa

    A Europa ocidental incrementava seu processo de integrao econmica. Em dezembro de 1985, o Conselho Europeu reunido em Luxemburgo acordou os princpios da Lei Europeia nica que autorizou revises de tratados, concedeu status jurdico cooperao poltica europeia e estabeleceu como principal prioridade a concluso do mercado interno em sete anos9. Refletiu tambm acordo de princpios para a adoo de uma moeda nica10. Em janeiro de 1986, Espanha e Portugal se tornaram membros do Mercado Comum Europeu11. O Brasil buscou entendimentos com a CEE e, em outubro, assinou um Acordo sobre o Comrcio de Produtos Txteis.

    As principais negociaes brasileiras, entretanto, ainda se faziam no plano bilateral com cada pas membro. O Presidente da Frana, Franois Mitterrand, realizou visita oficial ao Brasil, em outubro de 1985, ocasio em que foi lanado o Projeto Brasil-Frana com o objetivo de expandir a cooperao cultural, cientfica, tcnica e tecnolgica, inclusive a eventual hiptese do Brasil participar do projeto Eureka, um fundo de pesquisa e desenvolvimento por parte de empresas e governos. Na ocasio, Setbal assinou acordo para coproduo cinematogrfica e trocou cartas de inteno com o Ministro do Exterior da Frana, Roland Dumas. Com a Repblica Federal da Alemanha, Setbal assinou, em novembro, nove ajustes complementares para cooperao tcnica. Em dezembro, Brasil e Sucia assinaram acordo que prorrogou por mais dez anos a Conveno para evitar a dupla tributao em matria de impostos sobre a renda.

    *No Leste Europeu, os acontecimentos em Moscou comeariam a

    atrair a ateno mundial. Quando Gorbatchov se tornou Secretrio-Geral do Partido Comunista, em 11 de abril de 1985, parecia que a regio ainda estava sob controle da URSS, tendo sido o Pacto de Varsvia renovado por mais vinte anos12. Com o lanamento das ideias de glasnost (abertura) e perestroika (reestruturao), a URSS comearia a sofrer mudanas

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    incontrolveis. Para justificar suas reformas, Gorbatchov admitiu que a economia sovitica estava estagnada e, num discurso pronunciado em maio, em Leningrado, defendeu reforma ampla. Substituiu Andrei Gromyko no Ministrio do Exterior por Eduard Chevarnadze, que compartilhava sua nova viso para o pas.

    Nesse novo contexto sovitico, o Ministro Olavo Setbal efetuou, em dezembro, a primeira visita de um Ministro das Relaes Exteriores brasileiro URSS. Assinou com o Ministro do Comrcio, Boris Aristow, um acordo sobre fornecimento de mquinas e, com Chevarnadze, um Memorando de Entendimento relativo a consultas sobre assuntos de interesse comum. No discurso a Chevarnadze, no obstante as diferenas de regimes polticos entre os dois pases, Setbal utilizou termos elogiosos da democracia brasileira, representativa e multipartidria, tais como participao popular, foras polticas comprometidas com a democracia, e sociedade pluralista:

    Vive hoje o Brasil, Senhor Ministro, um processo auspicioso de democratizao da sua vida poltica e social. A participao popular se faz intensa em todos os campos, reivindicando instituies representativas e justia social. A Nova Repblica brasileira, fundada sobre uma ampla aliana de foras polticas comprometidas com a democracia e o progresso, prope-se a realizar a transio para o regime de instituies soberanas e encaminhar os graves problemas sociais e econmicos com que se defronta o pas.

    [...] Concebemo-nos como uma sociedade pluralista que, merc da sua formao histrica e de sua composio tnica e cultural, volta-se para o contato com todos os povos.

    1.4. frica

    No relacionamento com os pases africanos subsaarianos teria relevncia a questo do apartheid na frica do Sul e sua atuao nos pases vizinhos, em particular Angola e Moambique que o Brasil acompanhava mais de perto. A diplomacia brasileira centralizaria sua atuao nas crticas ao governo em Pretria.

    Sob o regime vigente com o governo de Pretria, centenas de pessoas seriam detidas e mortas aps boicotes escolares e forte violncia. A liberdade de imprensa era restrita e o Presidente P. W. Botha prometia reformas lentas13. O governo brasileiro aumentou seu tom de condenao

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    ao regime segregacionista sul-africano. No pronunciamento que fez na Cmara de Deputados, em maio, o Ministro Setbal declarou que o Brasil no hesitaria nem transigiria em condenar enfaticamente a frica do Sul pela prtica do apartheid, poltica que fere nossas mais ntimas convices de pas formado base de um amlgama de raas e culturas, e que constitui permanente foro de tenso regional. Afirmou que o pas considerava igualmente ilegal a presena da frica do Sul na Nambia, e se colocava a favor da independncia daquele territrio, com base nas resolues pertinentes da ONU. Informou ter o governo brasileiro, com base em resoluo do CSNU sobre a matria, proibido a exportao de armamentos e de derivados de petrleo para a frica do Sul, e deixado s empresas privadas, sem qualquer interferncia oficial, o intercmbio comercial com aquele pas, completando que tal poltica em nada fora, nem seria alterada.

    Relacionada questo sul-africana, desenvolvia-se a da emancipao do territrio namibiano, sob controle do governo de Pretria desde mandato da Liga das Naes. Os EUA apoiavam a posio da frica do Sul de no se retirar do territrio at que tropas cubanas deixassem Angola. A posio brasileira era diferente e, quando o governo sul-africano instalou um novo governo de transio naquele territrio, o Itamaraty divulgou comunicado em que condenou aquela iniciativa:

    O governo brasileiro recebeu com preocupao a notcia de que ontem, 17 de junho, o governo da frica do Sul proclamou o autogoverno da Nambia e efetivou a instalao de um governo de transio naquele territrio.

    O Brasil defende a plena implementao da Resoluo 435 (1978), do CSNU, que estabeleceu o procedimento para o acesso da Nambia independncia, atravs de eleies livres supervisionadas pela ONU. O governo brasileiro considera que quaisquer medidas unilaterais para a criao de organismos constitucionais ou para a transferncia de poder na Nambia fora do quadro da resoluo 435 so inaceitveis, nulas e sem efeito, apenas contribuindo para agravar a situao na frica Austral.

    Tal como prometido por Setbal, as aes da frica do Sul eram sistematicamente condenadas pelo governo brasileiro. Em telegramas aos Ministros do exterior de Angola e de Botsuana, no dia 21, o Ministro manifestou a condenao do governo brasileiro incurso de tropas sul-africanas nos respectivos territrios. Cinco dias depois, o governo emitiu comunicado de repdio s crescentes violaes dos direitos

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    humanos na frica do Sul (diversas medidas de represso policial aos movimentos de populao sul-africana que lutavam pelo fim do apartheid, culminando com a decretao de medidas de emergncia em diversas reas do pas). Na mesma data, por comunicado imprensa, o Itamaraty lamentou que o governo da frica do Sul no tivesse autorizado a viagem pastoral do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns a Pretria, a convite da Conferncia dos Bispos da frica do Sul.

    O Congresso brasileiro e grupos de presso deram, nas palavras de Seixas Corra, novo impulso poltica antiapartesta do Brasil14. Setbal enviou mensagem do Presidente da Repblica ao Conselho da ONU para a Nambia reiterando posio favorvel independncia imediata daquele territrio ilegalmente ocupado pela frica do Sul. O decreto no 91.524, em atendimento a recomendaes da ONU e acompanhando a tendncia internacional, proibiu quaisquer atividades de intercmbio cultural, artstico e desportivo com a frica do Sul; a exportao de petrleo e combustveis derivados para aquele pas ou para o territrio da Nambia ilegalmente ocupado; e o fornecimento e o trnsito em territrio nacional de armas e material correlato destinados frica do Sul.

    Em carta ao Presidente Jos Sarney, o Secretrio-Geral do Conselho Superior de Esporte da frica expressou, gratido pela deciso brasileira de encerrar todos os contatos esportivos com o regime de Pretria. Em sua resposta, no dia 27, o Ministro Setbal aproveitou para expressar comunidade internacional o repdio da sociedade brasileira ao abominvel regime do apartheid.

    Na persistente crtica poltica sul-africana, por ocasio do Dia da Nambia, em agosto, Sarney enviou mensagem ao Presidente do Conselho da ONU responsvel por aquele territrio na qual reiterou veemente apoio ao povo herico da Nambia e ao seu representante legtimo, o SWAPO (South West frica Peoples Organization), na sua luta pela independncia. Em setembro, Setbal enviou mensagem ao Ministro do exterior de Angola, Afonso Van-Dnem, em que se referiu ao agressivo regime do apartheid que invadira o sul angolano, a partir do territrio ilegalmente ocupado da Nambia. Ao condenar o que chamou de flagrante e inaceitvel violao da soberania de Angola e dos princpios fundamentais que regem as relaes entre os Estados civilizados, expressou-lhe a solidariedade do governo e do povo brasileiro. Setbal enviou cartas tambm ao Presidente da Confederao Brasileira de Aubilismo, Joaquim Cardoso de Melo, e ao Presidente da FISA (Fdration Internationale du Sport Autive), Jean Marie Ballestr, nas quais props fosse transferida prova aubilstica da frica do Sul para outro pas, tendo em conta a presente situao na

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    frica do Sul, de conflitos raciais, insegurana coletiva e macia violao dos direitos humanos.

    Na AGNU, o Presidente Sarney destacou a problemtica da frica Austral e do apartheid. Ao abrir a Assembleia Geral, reiterou solenemente a total condenao daquele regime racial e o apoio sem reservas emancipao imediata da Nambia, sob a gide da ONU15. No CSNU, o Embaixador George Maciel utilizou linguagem firme a respeito de invaso do sul angolano, efetuada a partir de bases na Nambia:

    Nenhuma justificativa pode ser aceitvel para o presente ato de agresso. A exemplo da tentativa de sabotagem de instalaes petrolferas em Cabinda por parte da Repblica da frica do Sul, nem mesmo a proximidade fsica de uma ameaa concreta quele pas pode agora ser alegada. Qualquer ao de Pretria com vistas defesa de suas posies na Nambia constitui crime, na medida que perpetua a ilegalidade. Nenhuma desculpa de ataques preventivos contra a SWAPO pode ser ocultada sob o disfarce da noo de autoproteo.

    A presena da frica do Sul no territrio da Nambia , por si s ilegal. [...] o total desprezo da frica do Sul pelo forte posicionamento tomado pela comunidade internacional a respeito da crise na frica meridional justificaria ao concreta por parte do CSNU. [...] caber, agora, ir mais longe, em nossa ao concertada, para a erradicao das polticas racistas e agressivas da frica do Sul. [...] Determinao e ao conjunta foraro Pretria a seguir as regras de coexistncia civilizada entre Estados.

    O Itamaraty continuaria a no tolerar qualquer violao sul- -africana e a apresentar seus protestos. Em outubro, o governo expressou sua mais veemente condenao da deciso de Pretria de execuo do poeta sul-africano Benjamin Moloise, e declarou que sua morte representou mais um ato de brutalidade contra a maioria negra da populao da frica do Sul e uma manifestao de indiferena diante dos apelos da opinio pblica mundial. Referindo-se a invaso do sul do territrio angolano por foras militares sul-africanas, a partir de bases existentes na Nambia, ilegalmente ocupadas, o governo brasileiro reiterou sua solidariedade com o governo de Luanda e seu apoio luta da SWAPO pela independncia da Nambia. Condenou tambm, de forma veemente, a poltica colonialista que Pretria implementava no territrio namibiano e as tentativas de desestabilizao militar e econmica levadas a efeito contra a Repblica angolana.

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    *No Magrebe, um tema do momento dizia respeito ao Saara

    Ocidental. Aquele territrio, localizado no noroeste do continente africano, era objeto de enfrentamentos entre o movimento poltico-revolucionrio denominado Frente Polisrio e o Reino do Marrocos do qual buscava independncia. No pronunciamento que fez na Cmara dos Deputados, em maio, Setbal fez as seguintes declaraes sobre aquela questo:

    No Noroeste da frica, o processo de emancipao da antiga colnia espanhola do Saara Ocidental persiste, aps dez anos de luta entre a Frente Polisrio e o Reino do Marrocos. Consideramos a questo como parte integrante de um processo de descolonizao no concludo. Reconhecemos a Frente Polisrio como representante do povo Saaraui, e temos nos manifestado a favor do princpio da autodeterminao e independncia, a ser implementado de forma pacfica e negociada. As posies assumidas pelo Brasil no debate internacional sobre o Saara Ocidental inscrevem-se numa linha consensual de respeito s normas do Direito Internacional, e de preservao das boas e tradicionais relaes com todos os pases envolvidos no conflito.

    Na AGNU, o Brasil votou a favor de resoluo que reafirmou o direito do povo saariano autodeterminao e independncia, instando as partes envolvidas a negociar diretamente um cessar-fogo, com vistas realizao de referendo sob os auspcios da OUA e da ONU e solicitando o acompanhamento da situao com vistas ao cumprimento da deciso.

    1.5. Oriente Mdio

    No Oriente Mdio, aumentavam os contatos brasileiros comerciais com o Iraque e, em maro de 1985, o Ministro iraquiano do Comrcio, Hassan Ali, visitou o Brasil. Com frequentes apoios a teses palestinas, o Brasil manteve relaes cordiais com todos os pases do Levante. Um Ministro israelense chefiou misso posse presidencial e, durante o ano, dois governadores e um Ministro visitaram Tel Aviv.

    *A situao da regio continuaria a apresentar instabilidade e a gerar

    ataques terroristas em outras partes do globo. O grupo Jihad Islmico lanou ataques a bomba em Madri e Riade no comeo de 1985. Em maro, um carro bomba explodiu em Beirute, quando mercenrios contratados pela CIA americana tentaram matar o lder islmico Sayed Maom Hussein Fadlal. O

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    aeroporto de Frankfurt foi bombardeado em junho. No ms seguinte, Israel retirou a maior parte de suas tropas do Lbano, mas formou uma zona de seguranano sul16. No mesmo ms, libaneses do Jihad sequestraram voo da TWA de Roma a Atenas e exigiram a libertao de 766 militantes muulmanos presos em Israel. Aps 17 dias, e graas a uma interveno sria, os passageiros foram libertados. O Itamaraty emitiu comunicado, em que expressou satisfao com o fato e reiterou sua apreenso diante dos repetidos atos de violncia que tm ocorrido no Lbano e que s servem para agravar a difcil crise por que passa aquele pas amigo.

    O Ministro do Exterior egpcio, Boutros-Boutros Ghali, realizou, em setembro, visita oficial ao Brasil. Examinou com Setbal a situao no Oriente Mdio, tendo ambos concordado na necessidade de que fossem empreendidos esforos adicionais para conseguir uma soluo global e pacfica para o conflito, baseada no reconhecimento dos direitos legtimos do povo palestino, inclusive seu direito autodeterminao, por meio de negociaes entre as Partes interessadas.

    Naquele ms, em represlia a ataque da OLP a civis israelense no Chipre, a Fora Area de Israel atacou a sede da OLP na Tunsia, tendo Yasser Arafat escapado ileso. O ataque foi objeto de condenao generalizada inclusive por parte dos EUA. Pela Resoluo 573, o CSNU condenou a ao e determinou que fosse paga indenizao Tunsia. Em 1 de outubro de 1985, o Itamaraty comunicou imprensa ter recebido, com profunda consternao, as notcias do ataque israelense contra as instalaes da OLP em Tnis.

    Durante o ano, Arafat e o Rei Hussein, da Jordnia, alcanariam acordo sobre tratamento comum das negociaes, mas a ocorrncia de diversos sequestros e ataques frustraria o processo de paz17. Em outubro, o navio de cruzeiro Achille Lauro foi sequestrado, na costa do Egito, por terroristas que exigiram a libertao de prisioneiros em Israel. Como no foram atendidas suas demandas, aps executar, em sua cadeira de rodas, cidado norte-americano de origem judaica, atiraram seu corpo no mar, causando choque internacional. Aps negociaes, os sequestradores abandonaram o navio sob o entendimento de que seriam conduzidos em segurana para a Tunsia. O voo, em avio civil do Egito que os levava, foi, entretanto, interceptado por avies de combate dos EUA que obrigaram sua aterrissagem em base area da OTAN na Siclia, onde os sequestradores foram presos pelo governo italiano. Depois de desacordo entre o governo de Bettino Craxi e o dos EUA, os demais passageiros puderam seguir seu destino, apesar dos protestos norte-americanos. O Egito exigiu desculpa dos EUA por ter forado seu avio a mudar seu curso. O caso foi objeto de manifestao do governo brasileiro que, por nota de 25 de novembro,

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    condenou, de forma veemente, o sequestro de aeronave de companhia civil egpcia e manifestou seu profundo pesar pela morte de civis inocentes que ocorreu em consequncia daquele ato de terrorismo .

    Do Relatrio do Itamaraty relativo a 1985, constaram como eventos mais marcantes no Oriente Mdio: a continuao do processo de retirada das foras israelenses que se encontravam no Lbano; o plano de paz formulado pelo Rei Hussein da Jordnia e pelo lder da OLP, Yasser Arafat; a realizao, em agosto, da cpula dos pases rabes em Casablanca; e o ataque israelense sede da OLP, no final do ano. Para os diplomatas brasileiros, este ltimo fato mostrava quo remotas pareciam as possibilidades de uma soluo para a crise na regio. Os seguintes pontos resumiam a posio brasileira quanto regio: a necessidade da retirada das foras israelenses de todos os territrios rabes ocupados desde 1967; a defesa do retorno do povo palestino Palestina, e o reconhecimento do seu direito autodeterminao, independncia e soberania, inclusive criao de um Estado soberano; participao dos palestinos nas negociaes de paz, atravs de sua representante, a OLP; e o reconhecimento do direito de todos os Estados da regio, inclusive Israel, a existirem dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas.

    1.6. sia

    No pronunciamento que fez na Cmara dos Deputados, em maio, o Ministro Setbal manifestou-se claramente favorvel a maior aproximao com a sia, em especial com o Japo, China e ndia, prevendo que a regio se tornaria foco de desenvolvimento nos decnios seguintes:

    O adensamento e diversificao da cooperao com o Japo, e o reconhecimento da China em 1975, somados nossa disposio de estreitar os laos de amizade e comrcio com a ndia, os membros da Associao de Naes do Sudeste Asitico (ASEAN) e outros pases da rea, conferem Asia posio ascendente no horizonte externo brasileiro. A tendncia aproximao com esses distantes parceiros, decorrncia da universalizao natural da presena brasileira, acentuada pela convico de que a sia e a Oceania constituiro um foco de desenvolvimento material no planeta durante os prximos decnios. Ser necessrio dar ateno especial aos esforos de aperfeioamento das relaes com o Japo e a China e identificar oportunidades concretas de colaborao com os demais pases da sia e Oceania. Emprestaremos, ademais, nosso apoio s iniciativas internacionais de pacificao de conflitos localizados no continente

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    asitico. No Afeganisto e no Campucheia o princpio da autodeterminao, ferido de maneira frontal, deve ser restaurado de forma inequvoca.

    *As relaes brasileiras com a China receberam ateno. Ao despedir

    seu Embaixador no Brasil, Xu Zhongfu, o Ministro Setbal observou que o comrcio bilateral dobrara entre 1982 e 1984, tendo passado de US$ 404 para US$ 818 milhes. Notou tambm que, nos trs anos anteriores, haviam sido firmados ou entrado em vigor instrumentos importantes, tais como o acordo de cooperao cientfica e tecnolgica, o acordo nuclear e o acordo para o estabelecimento de consulado chins em So Paulo e brasileiro em Xangai.

    Mudanas na direo chinesa teriam consequncias relevantes nas dcadas seguintes. Em conferncia nacional do partido comunista, em setembro, metade do Politburo e um quinto do Comit Central se aposentou. Deng Xiaoping, Hu Yaobang e Zhao Ziyang passaram a controlar aqueles rgos18. Este ltimo visitou o Brasil no final de outubro. Na ocasio, assinou com Sarney um Protocolo de Entendimentos pelo qual os dois governos se comprometeram a intensificar as relaes nos campos poltico, econmico, comercial, cientfico e tecnolgico, consular e cultural. Os dois lderes trataram da possibilidade de importao de petrleo chins e a exportao pelo Brasil de minrio de ferro, produtos siderrgicos e manufaturados.

    Em discurso a Zhao Ziyang, o Presidente brasileiro, depois de ressaltar que aquela era a primeira visita de um chefe de governo da China ao Brasil, afirmou que ambos os pases compartilhavam objetivos de construo de uma ordem internacional mais justa e entendiam que as relaes internacionais no podiam ser reduzidas a um conflito ideolgico entre as superpotncias. Notou tambm ter a China passado de dcimo quinto a dcimo parceiro comercial brasileiro. Durante o ano, mais de 30 misses comerciais chinesas visitaram o Brasil, alm de cerca de 20 misses conectadas cincia e a tecnologia. Foi criado, conforme acordado, o Consulado Geral da China em So Paulo e foi prevista a instalao de consulado brasileiro em Xangai. Os contatos prosseguiram e, em novembro, o Brasil assinou com a China um Acordo de Cooperao Cultural e Educacional.

    *Com o Japo, ento a segunda economia mundial, o Brasil

    manteve entendimentos sobretudo econmico-comerciais. O Presidente da Companhia (ento estatal) Vale do Rio Doce, Eliezer Batista, visitou aquele pas, em julho, quando entregou convite do Presidente Sarney ao Primeiro-Ministro nipnico, Yasuhiro Nakasone, para que visitasse o Brasil. Em fins de setembro, o Ministro do Exterior, Shintaro Abe, esteve no pas em visita a Setbal. Durante jantar que ofereceu ao visitante, o

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    Ministro brasileiro, em linguagem muito franca, expressou interesse em alterar o tipo de comrcio existente entre os dois pases:

    [....] as exportaes brasileiras para o seu pas apresentam baixo ndice de diversificao, e, refletem, em contraposio nossa pauta de importaes do Japo, uma concepo de complementaridade que no mais corresponde s realidades do estgio brasileiro de desenvolvimento. Contamos, pois, que possam ocorrer evolues positivas nesse setor, de molde a concorrermos, solidariamente e em condies de mtuo benefcio, para o encaminhamento das presentes dificuldades.

    *No tocante ndia, Setbal aproveitou reunio ministerial do

    Grupo dos 77 no mbito do Sistema Geral de Preferncias Comerciais, em junho, para encontros bilaterais em Nova Dlhi. Entrevistou-se com o Primeiro-Ministro Rajiv Gandhi e tratou, entre outros assuntos, da participao brasileira em projetos de infraestrutura da ndia. Em discurso ao Ministro dos Negcios Estrangeiros, Kurshid Alam Khan, Setbal props que as duas maiores democracias do Terceiro Mundo estreitassem mais ainda os seus vnculos de cooperao. Ao relatar a viagem ndia para a Comisso de Relaes Exteriores do Senado, em 4 de setembro de 1985, Setbal afirmou:

    Os objetivos polticos de minha viagem ndia, durante a qual mantive proveitosa entrevista com o Primeiro-Ministro Rajiv Gandhi, parecem ter sido alcanados. Encontrei receptividade para a proposta de estabelecer com aquele pas uma relao especial e no excludente, baseada em semelhanas objetivas de extenso territorial, populao, nvel comparvel de desenvolvimento e industrializao, em semelhanas institucionais, uma vez que os dois pases so as maiores democracias do Terceiro Mundo, e polticas, pois o Brasil e a ndia tm sustentado posies anlogas em temas como o desarmamento, a condenao do apartheid, e dilogo Norte-Sul. Acredito que minha viagem ter contribudo tambm para fortalecer a cooperao econmica bilateral. Assegurei que envidaramos esforos para reduzir o crescente supervit com a ndia (atualmente exportamos 400 vezes mais do que importamos daquele pas) e sugeri que medidas concretas fossem examinadas visando ao aumento das importao brasileiras. [] Foi importante registrar a coincidncia de opinies entre os dois pases, sobretudo no que diz respeito coordenao de posies nos prximos encontros do GATT.

    *

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    A situao do Afeganisto em 1985 seria objeto de deciso na ONU. A URSS ocupava aquele pas havia seis anos e suas tropas enfrentavam muhajedins (termo que significa lutadores, pessoas envolvidas numa luta, ou jihad) que, por se contraporem ao regime sovitico, recebiam recursos dos EUA, Paquisto e Arbia Saudita. Em junho, EUA e URSS concordaram em apoiar processo de paz no Afeganisto, muito embora as negociaes estivessem nas mos dos afegos e dos paquistaneses19. Em outubro, Gorbatchov afirmou, no Politburo, que seu pas deveria adotar firmemente um curso que levasse retirada de tropas soviticas do Afeganisto no prazo mais breve possvel devido aos custos polticos e econmicos daquela guerra20. O Brasil votou, naquele ano, a favor de resoluo que pediu uma soluo negociada do conflito com base na preservao da soberania, integridade territorial, independncia poltica e carter no alinhado do Afeganisto, no direito do povo afego de determinar sua forma de governo e escolher seu sistema econmico, poltico e social; na retirada imediata, incondicional e total das tropas estrangeiras; e na criao das condies necessrias ao retorno dos refugiados. Votou ainda a favor da resoluo 40/137 que condenou as violaes de direitos humanos praticadas no Afeganisto, denunciadas por Relator Especial nomeado para investigar a situao naquele pas.

    1.7. Atuao poltica multilateral

    Sarney resumiria, em setembro na ONU, a poltica multilateral brasileira ao declarar que o Brasil era um paladino do princpio da autodeterminao dos povos e do dever de no interveno, da soluo pacfica de controvrsias, da distenso nas relaes Leste-Oeste, refratrio ao antagonismo agudo da poltica de blocos, defensor do primado da negociao sobre as perigosas demonstraes de fora. Dos principais temas da agenda multilateral, teria maior relevncia a adeso brasileira aos diversos instrumentos relativos a direitos humanos.

    1.7.1. Direitos Humanos

    O Brasil redemocratizado aderiria a diversos instrumentos internacionais sobre direitos humanos. Em 1985, o Presidente da Repblica encaminhou aprovao do Congresso Nacional, para posterior adeso do Brasil, os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, elaborados sob a

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    gide da ONU, e a Conveno Americana de Direitos Humanos. Em seu discurso AGNU, ressalvou serem manifestaes significativas do novo conceito democrtico do Brasil a assinatura da Conveno contra a Tortura e o envio ao Congresso dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos:

    Com orgulho e confiana, trago a esta Assembleia a deciso de aderir aos Pactos Internacionais da ONU sobre Direitos Civis e Polticos, Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes, e sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Com essas decises, o povo brasileiro d um passo na afirmao democrtica do seu Estado e reitera, perante si mesmo e perante toda a Comunidade internacional, o compromisso solene com os princpios da Carta da ONU e com a promoo da dignidade humana.

    Durante sua permanncia em Nova York, o Presidente Sarney assinou a Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes. No final do ano, o Presidente encaminhou ao Congresso Nacional, para aprovao e posterior ratificao, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos. Ao descrever esses atos no seu relatrio anual, o Itamaraty reconheceu a competncia internacional no campo dos direitos humanos e a legitimidade das atribuies dos rgos multilaterais entendidas, porm, dentro dos limites dos mandatos que lhes foram atribudos em decorrncia de instrumentos de carter jurdico ou por decises das instncias polticas superiores da ONU.

    O Ministro Setbal ressaltou, em AG Extraordinria da OEA realizada na Colmbia, em dezembro, que, ao submeter ao Congresso Nacional a proposta de adeso Conveno Americana de Direitos Humanos, o Presidente Jos Sarney dera mostra inequvoca da ateno que o tema dos direitos humanos vinha merecendo no pas e o especial destaque que concedia atuao do Sistema Interamericano nessa rea. Em janeiro de 1986, o Itamaraty informou ter o Embaixador Drio Moreira de Castro Alves, Chefe da Misso do Brasil junto OEA, assinado, em Washington, a Conveno Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura.

    Para Seixas Corra, a rea de direitos humanos foi a que primeiro assinalou um curso novo para a diplomacia brasileira, tendo o Brasil deixado de encarar os textos internacionais sobre a matria como pretextos para interveno indevida em assuntos de soberania absoluta do

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    Estado para consider-los como correta complementao dos esforos que passaram a ser cobrados do governo civil para melhorar o desempenho do pas na proteo e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do cidado21.

    1.7.2. Desarmamento e no proliferao de armas nucleares

    Em meados da dcada de 1980, as duas superpotncias possuam capacidade para destruir uma outra e a maior parte da populao mundial22. Por diversas razes, das quais a principal era o esgotamento econmico-financeiro, a nova liderana sovitica dava sinais de desejo de mudar essa situao. Em abril de 1985, Gorbatchov anunciou o congelamento temporrio de deslocamentos de foras nucleares intermedirias na Europa e ofereceu tornar a deciso permanente se os EUA congelassem seus deslocamentos. Sugeriu tambm um congelamento dos sistemas estratgicos com base no espao areo23.

    A realizao de testes nucleares sofria presses mundiais tambm por parte de organizaes no governamentais. Em julho, agentes secretos franceses afundaram o navio Rainbow Warrior da Greenpeace em porto da Nova Zelndia, quando se preparava para zarpar para local de teste nuclear francs. Um tripulante morreu e dois agentes franceses foram capturados. Mais tarde, a Nova Zelndia no autorizou a visita de um navio nuclear de guerra americano. Em reao, o governo em Washington declarou no mais estar obrigado por acordos a defender a Nova Zelndia24. Aproveitando esse clima internacional, em agosto, Gorbatchov deu incio moratria de testes nucleares25. No ms seguinte, o Ministro do Exterior Eduard Chevarnadze, em visita aos EUA, props cortar pela metade os arsenais nucleares das superpotncias, ideia repetida por Gorbatchov na semana seguinte26.

    O Brasil juntava-se a vozes contra a corrida armamentista. Em setembro, o Presidente Sarney prometeu os esforos brasileiros para preservar o Atlntico Sul como rea de paz, afastada da corrida armamentista, da presena de armas nucleares e de qualquer forma de confronto oriunda de outras regies27. Por sua vez, Setbal, durante as comemoraes do 40 aniversrio da ONU, criticou as potncias nucleares:

    particularmente importante [...] que juntemos nossos esforos para persuadir as potncias nucleares da necessidade de por termo escalada armamentista nuclear, que mantm a humanidade inteira sob o espectro da aniquilao.

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    As limitaes parciais de armamentos, embora constituam etapa auspiciosa e necessria do processo de desarmamento, no constituem garantia suficiente. necessrio prosseguir pacientemente na negociao de instrumentos internacionais eficazes e no discriminatrios que ponham termo corrida armamentista, e permitam liberar os vultosos recursos desperdiados na construo de arsenais para a superao da misria, do atraso e para a promoo do desenvolvimento econmico e progresso social dos povos.

    Quando da primeira reunio de cpula entre Gorbatchov e Reagan em novembro, em Genebra28, o Presidente Jos Sarney dirigiu-lhes mensagens nas quais manifestou a esperana de que os entendimentos conduzissem a progressos reais no desarmamento nuclear. O encontro entre os lderes das duas superpotncias, entretanto, seria decepcionante. Reagan e Gorbatchov acordaram sobre novas reunies, mas no resolveram diferenas a respeito da chamada Guerra nas Estrelas29.

    De sua parte, em matria de desarmamento, o Brasil atuou de acordo com os seguintes princpios: valorizao do papel central da ONU e seus foros especficos de desarmamento, como a Comisso de Desarmamento e a Conferncia do Desarmamento; prioridade mxima a medidas concretas de desarmamento nuclear; responsabilidade especial das potncias nucleares no processo de desarmamento; prevalecimento dos interesses da maioria das naes sobre os interesses unilaterais dos blocos militares; inadmissibilidade de restries livre explorao de tecnologias para fins pacficos; e necessidade de estrita observncia de compromissos internacionais formalmente assumidos, especialmente os contrados pelas potncias nucleares relativamente segurana dos pases no nucleares.

    1.7.3. Meio Ambiente

    A questo da proteo do meio ambiente ainda no constava da agenda internacional com a mesma presena e intensidade de anos posteriores. Algumas iniciativas j indicavam, porm, o interesse que comeava a crescer pelo tema. Assim, em 1985, teve relevncia para o Brasil uma reunio regional sobre meio ambiente na Amrica Latina realizada em abril, em Cancn, no Mxico. No mbito do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), foi decidida a criao de um comit encarregado de estudar os efeitos de gases sobre a camada de oznio. Em outubro, Setbal dirigiu mensagem Comisso Mundial sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente por ocasio de

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    sua IV Reunio realizada em Braslia. Em dezembro, retornaram ao Brasil oito casais de mico-leo entregues pelo governo da Blgica em atendimento a pedido feito pelo governo brasileiro. A partir de janeiro de 1986, foi proibida a caa a baleia no Brasil pelo perodo de cinco anos, em decorrncia de determinao da Comisso Internacional daquele mamfero.

    1.8. Atuao econmica externa

    Setbal se interessaria em particular pelas questes econmicas, tendo atuado tanto nas questes comerciais (negociaes no GATT para lanar a Rodada Uruguai) quanto, ainda que de forma limitada, nas financeiras (a questo da dvida externa).

    1.8.1. Comrcio

    No seu discurso de posse, Olavo Setbal referiu-se crtica norte--americana s atuais normas do GATT, sob o pretexto de que elas no contemplam sua vantagem competitiva nas reas de servios de mltipla natureza e alta tecnologia. No discurso que proferiu na Cmara de Deputados, em maio, o Ministro reiterou que o Brasil manteria firme oposio a que se incluam novos temas, tais como servios e investimentos, no mbito do GATT. Antes, porm, declarou que o Brasil considerava que, para que os pases em desenvolvimento pudessem considerar a hiptese de participao em uma nova rodada comercial, os pases ricos deveriam preencher certas condies: cumprir o compromisso de no adotar novas barreiras e de desmantelar as inconsistentes com os princpios do GATT. Deveriam, por outro lado, reconhecer a necessidade de tratamento diferenciado e mais favorvel para os pases em desenvolvimento em matria comercial.

    Apesar dessa anunciada poltica com relao aos servios, durante reunio de que participou em Estocolmo, em junho, Setbal admitiu implicitamente o tratamento de servios no GATT ao propor que o comrcio de bens e de servios fossem tratados separadamente. Em pronunciamento na Comisso de Relaes Exteriores do Senado Federal, em setembro, Setbal, assim relatou o ocorrido na reunio ministerial sobre comrcio:

    A reunio ministerial informal sobre a situao do comrcio internacional, realizada em Estocolmo por iniciativa do Ministro para o Comrcio Exterior

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    do pas, Matts Hellstrom, contou com a participao de vinte e um Ministros de pases de todas as regies do globo.

    O encontro ensejou ampla troca de ideias sobre os problemas do comrcio e tambm sobre o inter-relacionamento entres estes e as questes financeiras e monetrias. Ficou evidente, durante a reunio, o propsito dos EUA, com o apoio dos demais pases desenvolvidos,