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1 Introdução Vários artistas e intelectuais apontam a necessidade de conhecer, pesquisar e entender as culturas pouco difundidas. Este trabalho coloca em evidência o fandango paranaense, uma festa popular não muito conhecida por aqueles não pertencentes a região. O fandango faz parte da cultura popular por obedecer a regras, costumes, crenças pertencentes a um certo grupo de indivíduos de uma determinada região, nas palavras de Alfredo Bosi, “microinstituição, dispersas no espaço.” 1 A definição de cultura popular, assim como de cultura erudita e cultura de massa, será colocada mais a frente nesta pesquisa. As diferenças e inter-relações também serão abordadas. Segundo o estudo de José Loureiro Fernandes 2 já em 1944 era apontada a negligência com que a cultura popular paranaense era tratada. Diz o pesquisador que “do modo que caminham as preocupações entre certos eruditos, esses vão acabar ensinando folclore ao povo.” 3 Essa afirmação é reflexo do declínio de algumas manifestações. O fandango foi quase extinto, os jovens não se interessavam em aprender e aqueles que sabiam bater um bom tamanco e tocar bem eram poucos. Assim, os bailes já não aconteciam e o fandango se restringiu a eventuais encontros em bares. “Os jovens não se interessam pelo fandango. Hoje está tudo moderno, nem meus netos querem saber de fandango, eles preferem discoteca.” 4 Felizmente essa situação vem sendo revertida e o fandango ascende novamente graças ao esforço de pesquisadores e da própria comunidade caiçara. Este trabalho consiste em um diálogo entre literatura e canção, uma análise das letras musicais de um grupo contemporâneo que ainda preserva as tradições e costumes da cultura caiçara, a Família Pereira. Seria demasiadamente simplificado afirmar que objetivo geral desta pesquisa é o registro da tradição fandangueira. Num 1 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 2 FERNANDES, Jose Loureiro. Estudos de Folclore no Paraná. In: LIMA, Rossini Tavares de. Folclore. São Paulo: Polítipo, 1953. nº 1. v. 2. 3 FERNANDES, Jose Loureiro. Estudos de Folclore no Paraná. In: LIMA, Rossini Tavares de. Folclore. São Paulo: Polítipo, 1953. nº 1. v. 2. 4 Mestre Eugênio dos Santos um dos maiores fandangueiros do Paraná em entrevista ao Estado do Paraná, dia 30/01/2001.

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Introdução

Vários artistas e intelectuais apontam a necessidade de conhecer, pesquisar

e entender as culturas pouco difundidas. Este trabalho coloca em evidência o

fandango paranaense, uma festa popular não muito conhecida por aqueles não

pertencentes a região.

O fandango faz parte da cultura popular por obedecer a regras, costumes,

crenças pertencentes a um certo grupo de indivíduos de uma determinada região,

nas palavras de Alfredo Bosi, “microinstituição, dispersas no espaço.”1 A definição

de cultura popular, assim como de cultura erudita e cultura de massa, será colocada

mais a frente nesta pesquisa. As diferenças e inter-relações também serão

abordadas.

Segundo o estudo de José Loureiro Fernandes2 já em 1944 era apontada a

negligência com que a cultura popular paranaense era tratada. Diz o pesquisador

que “do modo que caminham as preocupações entre certos eruditos, esses vão

acabar ensinando folclore ao povo.”3 Essa afirmação é reflexo do declínio de

algumas manifestações. O fandango foi quase extinto, os jovens não se

interessavam em aprender e aqueles que sabiam bater um bom tamanco e tocar

bem eram poucos. Assim, os bailes já não aconteciam e o fandango se restringiu a

eventuais encontros em bares. “Os jovens não se interessam pelo fandango. Hoje

está tudo moderno, nem meus netos querem saber de fandango, eles preferem

discoteca.”4 Felizmente essa situação vem sendo revertida e o fandango ascende

novamente graças ao esforço de pesquisadores e da própria comunidade caiçara.

Este trabalho consiste em um diálogo entre literatura e canção, uma análise

das letras musicais de um grupo contemporâneo que ainda preserva as tradições e

costumes da cultura caiçara, a Família Pereira. Seria demasiadamente simplificado

afirmar que objetivo geral desta pesquisa é o registro da tradição fandangueira. Num

1 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 2 FERNANDES, Jose Loureiro. Estudos de Folclore no Paraná. In: LIMA, Rossini Tavares de. Folclore. São Paulo: Polítipo, 1953. nº 1. v. 2. 3 FERNANDES, Jose Loureiro. Estudos de Folclore no Paraná. In: LIMA, Rossini Tavares de. Folclore. São Paulo: Polítipo, 1953. nº 1. v. 2. 4 Mestre Eugênio dos Santos um dos maiores fandangueiros do Paraná em entrevista ao Estado do Paraná, dia 30/01/2001.

2

discurso extremamente sentimentalista poderia dizer que o objetivo geral desta

pesquisa é a busca de uma valorização, onde, preservar ou conservar seriam os

termos utilizados para uma melhor compreensão. Pensando que a cultura popular

não é estática, é viva e transforma-se por si só e está em constante transformação e

evolução, o registro torna-se algo temporal e de importância para futuras pesquisas

relacionadas com o processo de evolução da tradição fandangueira. É conseqüência

inevitável desse trabalho desenhar uma peculiaridade do nosso Estado, ajudando

assim para um eventual entendimento dos processos de construção de identidade

cultural.

3

Um pouco de fandango

Origens

É uma incógnita a verdadeira origem do fandango dançado no litoral

paranaense, são muitas as hipóteses colocadas por pesquisadores, e todas se

aproximam um pouco. O fandango vindo de fora do Brasil não permaneceu intacto.

É impossível que uma cultura que vem se transformando a tantos anos e recebendo

influências de diversas culturas permaneça inalterada.

O povoamento no litoral paranaense começou em 1646, “castelhanos e

portugueses, degredados ou egressos da civilização, foram se homiziando entre os

índios de toda costa Sul, vivendo a vida dos nativos e se asselvajando quanto eles.

A tal gente não se pode atribuir outra atividade a não ser a do próprio silvícola a

cujos costumes esteve de tal maneira afeita, que alhures chegou a perder a

lembrança da própria língua e de sua origem.”5

Segundo os estudos de Romário Martins não foram os colonizadores oriundos

diretamente da Europa que efetivamente povoaram o litoral, em específico

Paranaguá, e sim os caçadores de ouro que a partir do século XVII desembocaram

nas águas sulinas, vindos das primitivas vilas paulistas. Assim, foi essa pequena

migração paulista que se miscigenou com os nativos e índios carijós, formando esse

grupo a que agora chamamos caiçara.

Esse ponto de vista também é adotado por Roselys Roderjan que acredita

que o fandango, com as influências lusitanas, foi propriamente trazido pelos

paulistas. E ainda afirma que “é comum encontrarmos, na genealogia das famílias

mais antigas, casamentos com pessoas vindas de Iguape, Cananéia, São Vicente,

Santos e São Paulo.”6 Essa é a explicação para os fandangos paulista e paranaense

terem tantas semelhanças. Neste livro Roderjan divide a formação histórica do

Paraná em duas: tradicional e moderna, sendo 1930 a data de separação dessas

fases. Roderjan foca seus estudos no Paraná tradicional, fala sobre a influência do

português, do índio, do negro, do espanhol, do alemão, do italiano e do polonês na

5 MARTINS, Romário História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. 6 RODERJAN, Roselys Vellozo. (Org.). Boletim da Comissão Paranaense de Folclore. Curitiba:

FUNARTE.

4

cultura paranaense. Comenta a linguagem popular dando exemplos de xingamentos,

formas de tratamento, vocabulário, expressões, frases feitas e remete à lendas que

atestariam a presença e a interação dessas matrizes culturais na região. Faz ainda

um apanhado sobre o fandango e a dança de São Gonçalo. José Augusto Guemba

Rando, em seu artigo Fandango: Contextualização Histórica7 acompanha Roderjan

na mesma opinião.

Mário de Andrade, em suas pesquisas, se perguntou de onde vinha a

denominação de fandango. Descrevendo a dança espanhola disse que esta tem um

“compasso ternário, que se caracteriza pelo movimento rápido, ‘uma das mais

selvagens, mais excitantes e impetuosas dentre as da Espanha’”. E ainda designa

uma série de danças parecidas entre si, malaguenhas, rodenhas, granadinas e

murcianas. Saindo da Espanha o fandango também se fixou em Portugal perdendo

algumas características e ganhando outras, mas nunca perdendo a peculiaridade da

agitação.8

Câmara Cascudo aponta em sua pesquisa o mesmo caminho do fandango

que Mário de Andrade descreve. De berço espanhol e infância portuguesa, o que o

brasileiro chama de fandango, veio a madurar nesta terra. E, ainda, subdividiu-se em

dois: o fandango sulino, sinônimo de baile, e o fandango do nordeste, sinônimo de

auto, marujada.9

Inami Custódio Pinto, folclorista paranaense, simplifica:

O fandango, que chegou ao nosso litoral com os primeiros casais de colonos

açorianos por volta de 1750, passou a ser “batido” principalmente durante o “entrudo”, precursor do carnaval. Durante 4 dias a população do litoral paranaense não fazia outra coisa se não “bater” fandango e comer “barreado” (prato típico à base de carne e toicinho). Meses antes, fazia-se a “cinta”, isto é, angariavam-se fundos para a grande festa.110

Os motivos para festa vão além de um aniversário, um casamento, uma

promessa, um batizado, etc. Existe também o fandango de mutirão, momento em

que os moradores se reúnem para trabalhar na terra de outro, finalizando um

trabalho que duraria a semana em apenas um dia, e no final deste a recompensa:

7 RANDO, José Augusto Guemba Fandango: Contextualização Histórica. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 8 ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. São Paulo: MARTINS, 1959. 1º TOMO. 9 CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. 10 PINTO, Inami. Fandango do Paraná. Curitiba: UFPR, 1992.

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comida e fandangueio. O carnaval também é motivo para quatro dias de tamanqueio

ininterruptos.

E aqueles mutirão, pagamento era fandango, chegava o cara à noite pegava a viola,

a rabeca, e ia até o amanhecer o dia. Era fandango mesmo, não tinha outro. (...) Carnaval mesmo era quatro noite, quatro dia e quatro noite, lavava a roupa, enxugava... lá no Rio dos Patos era em casa do pai que nós fazia, em casa dos meus tios. Cada noite era uma casa que nós fazia o fandango.11

Dança

As danças, ou marcas, da festa fandangueira podem ser bailadas ou batidas.

As danças bailadas são valsadas12 por pares que em sincronia com a música

percorrem o salão em sentido anti-horário. Danças batidas são aquelas em que os

homens calçados de tamancos – sapatos com sola de madeira – se apresentam no

meio do salão tamanqueando ao ritmo da música. A participação das mulheres fica

restrita a sua integração na roda sem tamanqueio apenas guiando os homens.

É, as mulheres tá meio difícil bate o batido e os homem também tá meio difícil de

aprender. Agora as mulher pra dança elas dançam, a mulher é mais fácil [o bailado]. Nunca teve mulher que batesse batido. É meio esquisito. [O tamanco é coisa] só de homem, até se quiser aprende até pode. Porque não tem problema nenhum.13

A Chamarrita de Louvação é a moda que inicia o baile. Geralmente não é

dançada, pois neste momento todos voltam a atenção aos violeiros, que agradecem

ao anfitrião, os convidados especiais, aniversariantes, enfim, aquele que estiver em

destaque no baile. A chamarrita quando tocada no decorrer do baile é chamada de

‘limpa banco’ pois ninguém deixa de dançar. Existem duas modalidades dessa

dança: a simples, onde os pares sincronizados com o ritmo musical obedecem a

regra de valsar em sentido anti-horário por todo salão, sem qualquer coreografia

predestinada; e a ‘de oito’ (bailada e batida com 4 a 16 pares), onde formam-se duas

rodas e intercalando batidas, palmas e o passo principal que é o oito, as rodas vão

11 Depoimento de Pedro Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002. 12 Valsada ou valseada é o termo utilizado pela comunidade caiçara para designar a moda dançada a dois, não havendo relação direta com a valsa, dança austríaca surgida no final do século XVIII. 13 Depoimento de Nilo Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

6

girando e “ os homens e mulheres que ocupam lugares opostos na roda, trocam os

lugares entre si, depois de, com mãos dadas e braços estendidos, formarem cruzes

de braço no meio da roda.”14

Na seqüência tamanqueia-se o Anu para que a festa prospere sem problemas

espantando o azar. Numa grande roda, homens e mulheres intercalados, batem o

tamanco e batem palmas e dançando o passo do oito.

Os homens descrevem simultaneamente um oito, tendo por centro dos dois círculos

de mulheres que os ladeiam. Isso durante o batido em sem interrompê-lo. Antes de cada oito, as mulheres se voltam para trás e dão sua mão direita à esquerda do homem, com os braços levantados, formando um arco, por baixo do qual passam, indo portanto ocupar o lugar da dama anterior.15

O Dondom é uma dança valsada do começo ao fim; os pares dançam por

todo salão em sentido anti-horário.

A Tonta é dançada por três ou quatro pares; dispõe de duas seqüências

complicadas de ‘oitos’ intercaladas com os batidos. “Na primeira cada folgador16 da

roda, em separado, faz os seus oitos. Na segunda, os três cavalheiros fazem os

oitos simultaneamente. Convém observar que o caminho seguido nos oitos

individuais é diferente do seguido nos oitos coletivos.”17

Queromana é uma dança valsada e batida, sendo seu passo principal “o

arco”: as mulheres viram-se de frente para os homens, e com o braço direito erguido

seguram a mão do braço esquerdo do homem, formando um arco sob o qual

passam, indo ocupar o lugar da dama anterior, aí dançam a valsa. Após o passo do

arco, a mulher diante ao homem de braços dados, caminham seguindo a roda. Esse

passo é permutado com as palmas e batidas, sendo estas de uma dificuldade maior,

e ainda, com os passos dançados na Tonta, citados acima.18

No trabalho de Fernando Azevedo Corrêa são encontradas as descrições das

coreografias citadas acima. Além de descritas as danças são esquematizadas

através de desenhos facilitando a compreensão. Ainda há o registro de outras

modalidades das danças fandangueiras entre elas o pica-pau e sereia, rufado,

sinsará, tiraninha, vilão, faxineira, graciosa, etc. 14 AZEVEDO, Fernando Corrêa. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. 15 AZEVEDO, Fernando Corrêa. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. 16 Folgador é a maneira de chamar o homem que está dançando. 17 AZEVEDO, Fernando Corrêa. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. 18 AZEVEDO, Fernando Corrêa. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

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As marcas do fandango são quatro: batido simples, batido repicado,

bailadinhos e rodas passadas. A primeira pode ser valsada ou batida, e os desenhos

coreográficos são o oito e o arco, já citados anteriormente. A segunda marca é onde

aparecem as complexas coreografias de oitos coletivos. A terceira é sem uma

coreografia predestinada, apenas a valsa pelo salão em sentido anti-horário. E, por

fim, a quarta marca tem como objetivo o descanso. “As rodas passadas dispensam o

‘tamanqueado’, são alegres, buliçosas e de bonito efeito coreográfico.”19

Instrumentos

São usados três instrumentos no festejo (viola, rabeca e adufo), geralmente

construídos pelos próprios tocadores e feitos de uma madeira muito comum no

litoral, a caxeta. Essa madeira é apropria da por não ser tão densa, facilitando o

corte e também a escavação. Entre os outros tipos de madeira utilizada para a

construção dos instrumentos está o ipê, araribá, cambará-branco, caroba, cedro,

guapiruru e canela.

As violas possuem geralmente cinco cordas duplas e mais meia corda, a que

chamam turina,20 compasso e divisão. A rabeca tem três cordas às vezes quatro. O adufo é coberto com couro de cotia ou mangueiro (cachorro do mangue) sendo de salientar a superioridade do couro da cotia.21

O arco da rabeca é feito de um cipó chamado Timbopeva, antigamente era

usado crina e rabo de cavalo. Hoje em dia encontram-se arcos feitos de nylon. A

viola tem três variações: manchetão, três quartos e viola.22 Segundo “Seu” Julio

Pereira a afinação dos instrumentos é “entaivada”, ou seja, os violeiros

19 PINTO, Inami Custódio O fandango de Valadares. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 20 A turina é chamada de “cantadeira” pelos membros da Família Pereira, pois dá o tom de voz do violeiro. Referência de: GULIN, Rogério O fandango da Família Pereira. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 21 MICHELE, Sheyla Grupo de Fandango no Paraná. Acesso em 8 de agosto de 2005. Disponível em: <http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/5ritmos/p-fandan.htm#topo> 22 Depoimento de Julio Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

8

desconhecem os métodos de convencionais de afinação, apenas “temperam” a viola

e a rabeca.23

No belíssimo trabalho de Daniella Gramani24 encontra-se um registro não só

acadêmico sobre as rabecas; trata-se de uma pesquisa iniciada por seu pai já

falecido, José Eduardo Gramani, e finalizada por ela. No livro são registrados os

modos de construção de 4 rabequeiros: Martinho dos Santos de Morretes, Paraná;

Julio Pereira de Paranaguá, Paraná; Arão Barbosa de Iguape, São Paulo; e Nelson

dos Santos (Nelson da Rabeca) de Marechal Deodoro, Alagoas.

Tendo como objetivo “esclarecer aspectos gerais e específicos da construção

das rabecas”25, José Eduardo mergulha no universo de cada construtor, passando

com cada um não menos que 15 dias; tempo necessário para registrar a construção

dos instrumentos e o que a envolve. A pesquisa registra um histórico do construtor,

uma descrição detalhada da rabeca, do arco, dos instrumentos utilizados e da

técnica (cocho ou em arco). Este registro se dá através de depoimentos, entrevistas

e conversas gravadas em K7, fotos e filmes.

São duas as técnicas utilizadas para confeccionar rabecas e também violas:

cocho (cavocada) e em arco. A técnica de cocho exige que o construtor esculpa o

instrumento em madeira maciça, e na técnica de arco utilizam-se tábuas finas de

madeira que presas com cinta e cola tomam forma em um molde. Geralmente a

madeira fica imersa em água um dia antes de ser trabalhada para que úmida facilite

o manejo.

A técnica da luteria geralmente é passada de pai para filho, mas há suas

exceções, como é o caso de Martinho dos Santos que aprendeu espionando o pai:

Eu fazia nas horas de folga isso aí, ó, aprendi sozinho. Meu pai fazia essas coisas,

viola, cavaquinho, bandolim, mas ele não gostava que ninguém chegasse perto dele pra ver nem pra ensinar. Quando a minha mãe um dia falou pra ele ‘Manoel, por que você não ensina as coisas que você sabe para teus filhos, mais tarde você vai morrer, fica os filhos fazendo.’ Ele respondia pra ela: ‘Filho se quiser que faça como eu fiz. Meu pai não me ensinou nada,

23 Depoimento de Anísio Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002. 24 GRAMANI, Daniella (Org.). Rabeca, o som inesperado. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 2002. 25 GRAMANI, Daniella (Org.). Rabeca, o som inesperado. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 2002.

9

tudo o que sei aprendi sozinho. Por que eles não aprendem? Cada um que se vire como puder.’ Era o que ele respondia para mãe.26

É interessante ressaltar o caráter artesanal da luteria. Os fabricantes

desenvolvem os instrumentos respeitando seu tempo e o tempo que próprio

instrumento necessita para se modelar e secar. O tamanho de cada um sai conforme

o corte da madeira. Assim, cada rabeca ou viola possui características próprias,

“fala” à sua maneira. Alguns construtores envolvem crendices no feitio.Exemplo de

crendice, ou melhor, de cultura ligada ao meio-ambiente, onde o homem se

preocupa e cuida do meio em que vive, é o depoimento de Anísio Pereira: Nós cortamo [a madeira] só na minguante. Tem uns cara que falam que o mês que

num tem R [maio, junho, julho e agosto] diz que pode corta. Pode ser na crescente, pode ser na minguante, pode ser qualquer época. Diz que o mês que num tem R num racha a madera. Agora eu nunca tive experiência com isso aí. Nós cortamo só na minguante a madera. Porque tem uma lua que a água da madera ta pra cima, e tem outra lua que a água está no tronco da madera. Então tem essa simpatia aí, a madera. Quando ela ta com água pra cima, parece que é na crescente, então ela racha a madera. Na minguante a água desce, a madera fica mais enxuta. Desce pra raízes. Fica mais enxuta a madera, e evita de racha a madera. Diz que é assim, na crescente ela sempre racha. Racha mesmo, derrubo, ele já racho, a minha experiência é que racha também.27

O trabalho de Gramani é uma referência importante para quem deseja se

aprofundar e divulgar esta área, já que “tristemente, a ausência de interesse,

principalmente de jovens, em aprender os segredos do ofício tanto da construção

quanto da execução, ameaça com o fim à prática da rabeca no fandango de

Paranaguá.”28

Outro trabalho desenvolvido por Daniella Gramani junto a outros

pesquisadores e idealizadores e “coordenado pela Associação Cultural e

patrocinado pela Petrobrás através do Programa Petrobrás Cultural 2003/2004 e da

lei Federal de Incentivo a Cultura”29, é o Museu Vivo do Fandango. Um projeto que

fortalece a conexão entre fandangueiros e interessados. Esse projeto, melhor seria

chamar de movimento, reúne os grupos de fandango que participam e oferecem

palestras; estão registrados e disponíveis relatos de 282 fandangueiros em áudio, 26 Depoimento de Martinho dos Santos. GRAMANI, Daniella (Org.). Rabeca, o som inesperado. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 2002. 27 Depoimento de Anísio Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002. 28 GRAMANI, Daniella (Org.). Rabeca, o som inesperado. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 2002. 29 Disponível no site: www.museuvivodofandango.com.br.

10

fotografia e vídeo; são mantidos pontos de consulta em parceria com prefeituras,

associações locais, pesquisadores e autores proporcionando acesso livre a materiais

já editados sobre o tema; dá livre acesso a um circuito de visitação às casas dos

fandangueiros e construtores de instrumentos. O Movimento atinge as cidades de

Paranaguá, Morretes, Guaraqueçaba, Iguape e Cananéia, sendo as três primeiras

do litoral do Paraná e as últimas duas do litoral sul de São Paulo. O lançamento do

livro Museu Vivo do Fandango e a edição de um CD duplo foram atrações do

“Encontro de Fandango e Cultura Caiçara”, em Guaraqueçaba, do dia 14 a 16 de

julho de 2006, além de bailes, palestras e oficinas.

O projeto dentro da comunidade promove sua dança, sua comida, seu

artesanato, sua cidade, seu turismo; o acesso facilitado para pesquisadores (atuais e

futuros), estudantes e curiosos de culturas distintas, é de uma enorme importância, é

um enriquecimento dos registros culturais brasileiros.

11

Pluralidade cultural

Em um conceito simplório e generalizante educadores transmitem a seus

alunos que o termo cultura se resume a um tipo de expressão artística, ou seja,

cultura é teatro, cinema, música. Com esta designação ignora-se a vasta

abrangência deste tema. Cultura não pode ser encarada apenas como um tipo de

expressão artística. Nas palavras de Bosi cultura é “uma herança de valores e

objetos compartilhados por um grupo humano relativamente coeso.”30 Essa herança

a que se refere Bosi sofre diversas influências com o passar do tempo. A cultura não

permanece singular e provavelmente nunca foi pura. O Brasil sofreu influência

externa desde sua colonização feita por diversos povos. Levando-se em

consideração a influência africada vinda com os escravos, a fronteira com

praticamente toda América do Sul, e ainda “a nova colonização norte-americana”,

como pode uma cultura manter-se intacta, inalterável?

A pluralidade cultural é um dos temas abordado por Bosi no último capítulo de

A Dialética da Colonização31. O autor defende que a cultura brasileira não é uma

unidade aglutinante de “todas as manifestações materiais e espirituais do povo

brasileiro”. A cultura é culturas. Os critérios para a repartição cultural podem ser os

mais variados: cultura negra, indígena, européia, rico, pobre e tantos outros.

Bosi propõe uma divisão cultural brasileira: cultura universitária, cultura

criadora extra-universitária, indústria cultural e cultura popular. Baseado em suas

idéias será brevemente exposto abaixo os conceitos de cultura popular, cultura de

massa e cultura erudita.

Cultura popular

A cultura popular é uma manifestação composta por um grupo, geralmente

pequenas comunidades, que estabelecem suas próprias regras. Nas palavras de

Bosi “microinstituição, dispersa no espaço nacional, e que guarda boa distância da

30 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 31 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

12

cultura oficial.”32 A arte está envolvida com o cotidiano da comunidade. O material

(alimento, trabalho, plantio, roupas...), e o simbólico/imaginário (crenças, rezas,

danças, simpatias...) relacionam-se indivisivelmente, sendo esta relação a “matéria-

prima” da cultura popular.

Bosi cita o materialismo animista – concepção onde só uma alma é o princípio

da vida e do pensamento, que torna possível combinar os ciclos da história e da

natureza. Exemplos desse conceito na cultura caiçara disseminam-se em muitas de

suas práticas cotidianas, onde as refeições são abençoadas, a feitura dos

instrumentos obedece às fases da lua, e as letras de fandango improvisadas que

geralmente relatam fatos desta vida cotidiana, o fandango de mutirão, o serviço em

troca de outro serviço e festa.

Cultura erudita (oficial)

A cultura oficial é aquela destinada à uma parte da sociedade mais

intelectualizada. Em sintonia com as idéias de Luyten, a cultura erudita é aquela

regida pela elite, a classe dominante. O que não impede a interação com outras

classes; este conceito trata-se de uma generalização. Trata-se de um setor

privilegiado da cultura brasileira. A arte é patrocinada por grandes empresas em

troca de impostos menos valorosos e ainda patrocinada pelo próprio governo e seus

inúmeros projetos de incentivo à cultura. O currículo das escolas (o ensino

padronizado) e a maioria das instituições escolares fazem parte da cultura oficial.

Exemplos seriam as produções acadêmicas com temáticas objetivadas,

concentradas e especializadas, e a produção extra-acadêmica, com um caráter mais

difuso “mesclado intimamente com toda a vida psicológica e social do povo.”33

32 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 33 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

13

Cultura de massa

Cultura para as massas. Através dos meio de comunicação de massa –

televisão, internet, rádio, jornais populares – chega à população a música popular

brasileira e mais freqüentemente a música popular norte-americana, o programa de

humor apelativo, a novela fantasiosa, entre tantos outros exemplos. Toda essa

produção cultural é fabricada “em série e montado na base de algumas receitas de

êxito rápido (...) sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo, fetichismo,

curiosidade. Há uma dosagem de realismo e conservadorismo que, ao mesmo

tempo, excita o desejo de ver, mexe com as emoções primárias e as aplaca no

happy end.”34 A principal característica da cultura de massa é o alcance que ela tem,

sendo assim torna-se um meio socializante onde a informação passada é mais

facilmente acessada.

Inter-relações culturais

Como dito anteriormente, nenhuma cultura permanece intacta ao longo dos

anos e das influências recebidas pelos meios, ou seja, nenhuma cultura permanece

no seu status de primitiva.

A cultura de massa, com o poder de alcançar uma porcentagem grandíssima

da população, torna-se um meio para que as idéias, pesquisas, produtos da cultura

erudita (oficial) sejam divulgados. Um exemplo são os eletro-eletrônicos produzidos

por aqueles que pertencem a um meio de certa maneira intelectualizado e

divulgados pelos meios da cultura de massa e consumido por qualquer cidadão que

necessite do aparelho, isso seria a socialização cultural, todos os cidadãos têm

acesso a informações de diversos meios. Pode acontecer de o produto produzido

pelo intelectual e divulgado massificadamente (pelos meios de comunicação mais

restritos também) torne-se moda. Aí tem-se a transformação de uma cultura em

outra, ou o empréstimo do intelectualismo para a cultura de massa.

34 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

14

A relação entre cultura de massa e cultura popular, em certa instância, é

vampiresca e invasora. A televisão e o rádio fazem diversos papéis dentro de uma

comunidade popular; ocupa o tempo antes distribuído entre os afazeres domésticos

e a arte; usa a cultura do povo como atrativo através de “reportagens popularesca e

de turismo”35 para conseguir aquilo que a sustenta: o capital. Mas, num processo

contrário, natural, a cultura massificadora não consegue quebrar ou transformar a

cultura popular que continua em seu ritmo e ainda aproveita situações para divulgar

sua arte. O exemplo citado por Bosi para inter-relação demonstra que trata-se de

uma combinação de culturas.

...o torcedor do Corinthians poderá ter adquirido, à custa de suas prestações, um

televisor último-tipo com controle remoto ou mudança digital, mas nem por isso deixará de acender sua vela para Nossa Senhora Aparecida ou, mesmo, a uma das muitas entidades da macumba, para conseguir a vitória de seu time.36

A relação entre a cultura erudita e a cultura popular se dá de duas maneiras:

simpatia e antipatia. Ou os pertencentes a cultura erudita se fascinam com o popular

ou ignoram as manifestações, por serem distanciadas do cotidiano erudito não-

rústico. A posição do popular com o erudito é de certa forma de contraposição, “e ela

se manifesta com maior vigor em sociedades nas quais a divisão de classe é

acentuada.”37

A tradição, o ritual, os costumes passados de pai para filho na cultura popular,

num intento de dar continuidade à comunidade e ao que ela envolve, não é tão

presente na cultura erudita e na cultura de massa. Em Curitiba, como trata-se de um

grande sítio, há uma diversidade cultural muito abrangente mas, o que predomina

são as artes, plagiando a frase de efeito de Dalton Trevisan, para inglês ver.38 As

artes para inglês, na visão de Trevisan, seriam as mercantilizadas e, geralmente, as

importadas. Artes que não desvendam o real valor artístico curitibano, que não

mostram as qualidades e o cotidiano da capital paranaense. No conto “Em Busca de

35 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 36 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 37 LUYTEN, Joseph. O que é Literatura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1983. 38 Usa-se aqui a frase de Trevisan, mas sem se aprofundar na sua obra em particular, pois comentar sobre as inter-relações culturais na obra de Dalton Trevisan desembocaria em outro trabalho.

15

Curitiba Perdida”, Trevisan elenca uma série de características curitibanas – e de

suas descendências também – que ressaltam suas peculiaridades.

O Festival de Folclore e Etnias do Paraná, apresentado anualmente no teatro

Guaíra e já em sua 45° edição, é um exemplo do grau de importância dado pelos

governantes sobre o folclore paranaense. As etnias39 apresentadas são estrangeiras

e, aparentemente não são manifestações populares e sim grupos folclóricos que se

reúnem a fim de divulgar danças e canções que nem em seus países de origem são

preservados. Falta a percepção desses governantes para notar a natureza mais

complexa das relações entre múltiplas culturas e comunidades no Paraná.

Por muito tempo, a cultura caiçara, assim como as outras minorias populares,

acabaram sendo rejeitadas por supostamente “parar no tempo” e não acompanhar a

“evolução” social e cultural. Contudo faz parte dessa “evolução” manter a tradição.

A partir da década de 1950, com a intensificação e expansão da urbanização e

industrialização e a conseqüente migração interna, houve uma maior hibridação de culturas regionais e um processo de uniformização cultural nas cidades. Em muitos casos os migrantes, bem como outras categorias como caiçaras e caipiras, eram ridicularizados e mesmo discriminados por mostrarem determinados comportamentos próprios de sua cultura.40

A “evolução” musical da produção de massa, acompanhada à modernidade

apresentou-se com letras musicais cada vez com um conteúdo mais vazio. A

exposição excessiva de corpos esculturais, a ambição pelo poder, fama, dinheiro,

são ocorrências cada vez mais frequentes na produção de massa. Em

contraposição, o fandango preserva sua cultura, com um ritmo quase sempre

constante, meio valseado, onde os pares giram todo o salão com “dois pra lá, dois

pra cá”. A repetição presente nas letras é uma maneira de preservar o tempo,

manter a tradição, o folclore, assim todos os que confraternizam no festejo, tem

conhecimento das canções. As improvisações fazem parte do jogo, uma brincadeira

onde um fandangueiro provoca outro, acontece uma paquera, ou descreve o que

sente no momento. 39 Lembrando que etnia é “coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida principalmente na língua, religião e maneiras de agir”.

40 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006

16

Segundo Luyten, que divide a sociedade em dominantes (elite) e dominados

(povo), a elite é um grupo social mais aberto à mudanças, à novidade, ao “moderno”,

enquanto o povo aos poucos incorpora, em seu tempo, a seu cotidiano o que parece

ser necessário. Estes dois grupos sociais não são estanques, e assim como as

diversas culturas se interpenetram, e através dos inúmeros meio de comunicações,

um grupo fica sabendo o que o outro faz, por exemplo: “mesmo que a cultura

popular seja restrita a certos grupos, ou seja, a outras culturas que não tem acesso á

ela, as populares estão expostas à escolas aos meios de comunicação”.41

No ano de 2002 foi lançado o objeto de estudo desta pesquisa, o CD Viola

Fandangueira, em parceria com o grupo musical Viola Quebrada. Esse é outro

exemplo de inter-relação; a convite do grupo Viola Quebrada a Família Pereira se

desloca para um ambiente diferente, distanciado de sua cultura, com o objetivo de

registrar suas modas. A novidade de se estar em um estúdio de gravação, com todo

um equipamento direcionado a registrar da melhor maneira, com uma qualidade

compatível ao momento em que se canta nos bailes, algo que não é comum dessa

cultura, já que esta se prende mais ao efêmero da oralidade e aos versos da

tradição.

Neste ano de 2006 aconteceu o I Festival da Cultura Popular no Parque São

Lourenço em Curitiba, onde na programação havia um enfoque muito forte sobre a

cultura caiçara; oficina de luteria caiçara, oficina de fandango, almoço com pratos

típicos, etc.42

Nos últimos anos o fandango vem recebendo um maior apoio das prefeituras

litorâneas e associações locais onde pesquisadores divulgam essa cultura por meio

de livros, artigos, cd’s. O trabalho elaborado pelo museu vivo do fandango é um

excelente exemplo, afinal contribui “para reafirmar a auto-estima e identidade

caiçara.”43

41 LUYTEN, Joseph. O que é Literatura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1983. 42 Para conferir a programação: www.ditirambo.com.br. 43 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006

17

Interpretações

Poesia fixa e móvel

No capítulo “As relações entre o aspecto oral e o escrito”, Joseph Luyten

comenta aspectos da prosa e da poesia nas manifestações populares. A princípio o

autor lembra que estas manifestações, como já diz o nome, envolvem o povo e não

a elite. A comunicação popular seria “a troca de informações, experiências e

fantasias de analfabetos ou semiletrados para seus semelhantes.”44 A respeito dessa

informação vale lembrar que o texto de Luyten é de 1983 e a realidade mudou desde

então. A escola é acessível a um maior número de pessoas e as diferenças e

interesses entre a povo e elite já não se colocam nos mesmos termos. Contudo,

algumas das formulações do autor ainda podem ser úteis para a discussão do tema.

A prosa engloba provérbios, lendas, teatro, ditados e contos passados de

geração para geração e com uma circulação restrita a comunidade. Luyten divide a

poesia popular em duas vertentes: fixa e móvel. A poesia fixa é aquela decorada e

repetida igualmente por todos, que se mantém “coesa em torno de um

acontecimento através de inúmeras repetições, ao longo dos anos.”45 Na música da

Família Pereira essa característica é tematizada:

Cantemos, irmãos, cantemos Cantemos nós dois juntinhos Cantemos, irmão, cantemos Cantemos nós dois juntinhos

Os anjos cantam na glória Nós também seremos anjinhos

Os anjos cantam na glória Nós também seremos anjinhos

(Chamarrita, faixa 5)

Primeiro peço licença Que foi assim o meu ensino

Primeiro peço licença Que assim foi o meu ensino

Primeiro peço licença

44 LUYTEN, Joseph. O que é Literatura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1983. 45 LUYTEN, Joseph. O que é Literatura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1983.

18

(Anu, faixa 2)

Vamos dar a despedida Vamos dar a despedida Despedida vamos dar Despedida vamos dar

(Sinsará Caloado, faixa 13)

A poesia popular móvel caracteriza-se pela improvisação dos versos. No

exemplo abaixo nota-se que se trata de uma improvisação levando em conta o

contexto: um grupo de fandangueiros que se reúne para fazer um trabalho fora de

seu meio, com aparelhos e pessoas aos quais não são familiarizados. Pensando na

situação em que se encontram os fandangueiros no momento desta moda, sabe-se

que a quarta estrofe demonstra o embaraço do cantador por estar em um ambiente

distinto, sem baile e festa – o verdadeiro motivo do fandango – e com um objetivo

inédito: a gravação.

Tô cantando com vergonha Com vergonha de uma vez Tô cantando com vergonha Com vergonha de uma vez

Eu não sirvo pra cantar No meio de vós mecês

(Chamarrita, faixa 5)

As palavras de Pedro Pereira confirmam a teoria de Joseph Luyten sobre

poesia popular fixa e móvel. Ainda em seu depoimento é acrescentada a questão da

autoria das músicas, o que nem sempre é identificada, ou por terem sido criadas na

coletividade ou pelo fato de terem se perdido no tempo.

Já aprendi os versos. Dá pra inventa também se quiser. Porque fandango cê faz a

noite inteira, você pode inventa o verso, não faz mal que erre. Agora noutras parte assim que tão gravando você tem que cantá o verso mesmo que cê sabe, que daí o outro [o parceiro que ajuda a cantar] já sabe. No fandango mesmo pode inventá o verso, o outro vai acompanhando, acompanha mal e mal. Num sabe a palavra direito, mas a voz ele põe sempre. Agora tem verso nosso mesmo que já sabemo de cor, cada um sabe, abriu a boca já ele sabe. Quem inventô esses versos que a gente já sabe foi nossos pais. Tem algum verso que a gente mesmo fez. A gente canta muitos versos o outro já canta, a gente pensa que foi a gente que fez, o outro já faz o mesmo verso talvez, um pouquinho diferente, mas é quase a

19

mesma coisa. Os nossos verso quase tudo já veio de nossos avô, de nossos pais. Os versos mais velhos já veio deles.46

Significado

Chamarrita é a música com que se inicia a festa. Segundo “Seu” Anísio

Pereira este nome se dá a uma flor do mato de cor amarela, um ‘capinzinho parecido

com cebola’. “A sua folha é cortante e secreta uma espécie de cola conhecida como

“subarê” usada para a confecção dos instrumentos. Seu Anísio desconhece se é por

causa da flor que inventaram a chamarrita, mas acredita que a moda veio do alto da

serra pois existe um verso que diz: Chamarrita com Dandão / Veio do arto da

Serra”47. Outra possível origem da chamarrita é a semelhança com a dança

espanhola chimarrete. Em conversa informal com Inami Pinto foi colocado a

possibilidade de chamarrita ser ‘chamar a Rita’, esta, uma festeira de plantão que

organizaria o fandango, mas tal explicação parece ser mais um ‘causo’ do que uma

hipótese verificável.

A moda do Anu é uma homenagem a uma espécie de ave do litoral sulino,

crotophaga ani da família Cuculidae. Ela tem o objetivo de espantar as “coisas

ruins”, o azar, o mau-olhado, a inveja, fazendo com que a prosperidade reine

durante o festejo.

Sinsará é uma moda inspirada em um inseto:

Sinsará é um bichinho que dá na teia, dá na roupa, no guarda-roupa, nessas coisas assim, ele borra tudo. Então ele é como uma formiguinha, no tipo de uma formiga, só que ele tem o nome deles, tudo as formigas tem um nome. É sarassará e o toque é sinsará. Sinsará é a moda o tipo de cantá.48

A inspiração levou a poética a outros caminhos, ou seja, nem sempre que

tocada a moda de Sinsará se refere a ela mesma ou ao inseto; tem-se como

exemplo o refrão da faixa 7 onde Sinsará é personificada:

46 Depoimento de Pedro Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

47 ANDRADE; ARANTES O fandango do Rio dos Patos. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 48 Depoimento de Leonildo Pereira e Randolfo Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

20

Encontrei com sinsará Na beira do mar chorando

Por causa de uma conchinha Que amare ia levando Sinsará ficou chorando

Por causa de uma conchinha Que a maré ia levando Sinsará ficou chorando

(Sinsará, faixa 7)

Dondom, segundo Inami Custódio Pinto, é o tempo da viola que rege esta

moda, sendo o som que ela emite, don-don, o nome da música. Na faixa 1,

Chamarrita, é sugerido pelo cantador que o dondom seja algo que muita estima,

muito valor, “incorporando a noção de nobreza – “dondom” aí funcionando como

duplicação da expressão “Dom”, forma de tratamento dos aristocratas da Corte

lusitana49”:

A chamarrita com dondom

Fui eu que mandei buscar, ai, moreninha Fui eu que mandei buscar, ai

Com dondom, ai, fui eu quem mandei buscar Fui eu que mandei buscar, ai, moreninha

A chamarrita do Rio, ai, dondom de Portugal O dondom de Portugal, ai

Ai, ai, do Rio, ai, O dondom de Portugal

(Chamarrita, faixa 1)

As demais modas que constam no Cd, Queromana, Tiraninha e Tonta, não

são homenagens ou fruto de inspirações. Cada qual tem sua peculiaridade na dança

e ainda a moda da Tonta tem o objetivo de fazer o fechamento do baile sendo a

última música a ser tocada.

Estrutura

Neste item será exposta a estrutura das letras musicais. Através da divisão

silábica a irregularidade dos versos é notada, mas, sem esse estudo específico é

49 Dedução do professor Benito Rodriguez orientador desta pesquisa.

21

impossível notar esta não padronização. Assim, contraditoriamente, as letras são

irregulares, do ponto de vista métrico, não obedecendo a regras convencionais, e

também regulares, já que por si só cada canção estabelece seu próprio padrão. Ou

seja, não há uma preocupação dos cantadores em criar versos regularizados

conforme a métrica, mas, mesmo assim, cada canção se organiza em seu próprio

padrão. Nas palavras de Massaud Moisés: “as discrepâncias rítmicas ultrapassam a

uniformidade métrica e ainda, o ritmo do verso, tão somente perceptível no conjunto

da estrofe, não depende da pausa insinuada pelos sinais de pontuação, mas de uma

sucessividade fônico-semântica que ultrapassa a regularidade das sílabas e das

pausas métricas”.50

Na maioria das canções as rimas internas e externas são decorrentes do

artifício da repetição; cada estrofe é composta por um grupo de frases que se

permutam criando cada qual seu esquema de organização.

A faixa 1, Chamarrita (moreninha), estrutura-se em 8 estrofes de 4 versos

cada. A escansão varia entre 5 e 11 sílabas. Não há neste poema/canção uma

estrofe que possa ser identificada como refrão, mas, a repetição de “moreninha” no

final do segundo verso de cada estrofe tem esse caráter. Encontra-se nesta letra

rimas externas e internas. Faz parte dessas duas categorias a repetição de “ai” pois,

sempre no final de cada verso e ainda no meio do segundo e quarto verso. Sendo

assim, a rima segue um outro tipo de organização, são rimas consoantes.

A faixa 2, Anu, conta com 6 estrofes de 5 versos cada. A variação da

escansão está entre 6 e 7 sílabas, sendo sempre estas (6 e 7) as sílabas fortes. As

estrofes ímpares apresentam apenas 2 versos que se intercalam e as pares

introduzem duas novas frases. Dessa maneira as rimas internas e externas estão

sempre se combinando. Uma curiosidade que deve ser apontada é a inexistência da

sílaba forte seguida de sílaba alongada no quarto verso de cada estrofe, já que em

todos os outros versos esta é alongada. E ainda a rima externa que combina as

seguintes estrofes: 1° e 2° (INO), 3° e 4° (ÃO), e 5° e °6 (ORA).

A faixa 3, Dondom (avião do estrangeiro), é a intercalação de dísticas com o

refrão. As dísticas têm uma variação silábica entre 10 e 11 e o refrão entre 3 e 9

sílabas. A primeira dística diferencia-se das demais e pode ser considerada uma

50 MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1978. 2ª ed.

22

introdução, por não ter em sua composição o termo utilizado nas demais “oi lai, meu

bem”. As seis dísticas subseqüentes sempre rimam em par o último verso: I e II,

EMO; III e IV, AO; V e VI, IDO.

A faixa 4, Queromana, é estruturada em 6 quartetos, que variam entre 6 e 7

sílabas, sendo as rimas ABAB, CDDC, EFFE, GHGH, IJJI, LMML.

A faixa 5, Chamarrita, estrutura-se em 5 estrofes de 8 versos cada. A variação

silábica está entre 5 e 8 sílabas. As rimas são intercaladas: ABABCDCD;

EFEFGHGH; IJIJLMLM; NONOPQPQ; RSRSTUTU. Não há presença de refrão.

A faixa 6, Dondom (uma noite de luar) é estruturada por 5 quartetos

intercalados por um refrão com 8 versos. A escansão varia entre 4 e 8 silabas. As

rimas seguem da seguinte maneira: ABCB; DEFEGHIH (refrão); JLML; NOPO;

QRSR; TUVU.

A faixa 7, Sinsará, está estruturada em 3 estrofes de 6 versos cada,

intercalados por um refrão de 7 versos. A escansão varia entre 6 e 7 sílabas.

Interessante notar que há duas frases “chamado”, sempre os versos 1 e 4, e os

versos subseqüentes se repetem em tonalidades diferentes: ABBCDD; EFGFFGFF;

HIIJLL; MNNOPP.

A faixa 8, Dondom (mulata faceira), estrutura-se em 4 estrofes de 6 versos

cada, intercalados por um refrão de 7 versos. A escansão varia entre 4 e 11 sílabas.

Nas estrofes as rimas sempre situam-se em o 2º e o 5º verso e entre o 3º e o 6º

verso onde é usado o artifício da repetição: ABCDBC; DEFEGHC (refrão); IJCLJC;

MNCONC; PQCRQC.

A faixa 9, Dondom (pó-de-arroz), estrutura-se com 6 dísticos intercalados por

um refrão de 12 versos. Nos dísticos a escansão varia entre 5 e 7 sílabas e no refrão

entre 2 e 7 sílabas. As rimas não são fixas.

A faixa 10, Tiraninha, estrutura-se em 3 estrofes de 6 versos cada,

intercaladas por um refrão de 7 versos. A escansão varia entre 5 e 7 sílabas. As

rimas seguem da seguinte forma: AABCCB; DEFEGGE (refrão): HHIJJI; LLMNNM.

A faixa 12, Dondom (minha moreninha), é composta por 8 quintetos

irregulares que variam entre 6 e 13 sílabas. A rima é sempre AABBB decorrente do

artifício da repetição. O início do primeiro e segundo verso de cada estrofe é uma

23

frase nova, logo em seguida tem-se a repetição de “minha moreninha” e os 3 versos

subseqüentes são sempre os mesmos, um refrão.

A faixa 13, Sinsará Caloado, compõe-se de 3 oitavas irregulares que variam

suas sílabas em 6 e 7. As rimas seguem da seguinte maneira: AABBCDCD;

EEFFGHGH; IIJJLJLJ.

A faixa 14, Chamarrita (adeus morena) estrutura-se em 7 quartetos e um

último quinteto, sendo a escansão variada entre 4 e 15 versos. O último verso tem

caráter de refrão por ser a repetição de “adeus morena”. As rimas seguem da

seguinte forma (ignorando o último verso, agora considerado refrão): ABB; CCB;

DEE; FFE; GHH; IIH; JLL; MMMN.

A faixa 15, Dondom (duas moças na janela), organiza-se em 3 sextetos

intercalados por um refrão de 12 versos. A escansão está entre 5 e 12 sílabas. As

rimas, de cada estrofe, advém do artifício da repetição: ABABCB, DEDEFGHGHGIH

(refrão); JLJLML; NONOPO.

A faixa 16, Tonta, é composta por 3 estrofes com 4 versos cada. Após cada

estrofe tem-se o refrão, um sexteto. A variação silábica está entre 5 e 9. As rimas

são livres, não obedecendo aos padrões métricos.

Apego à viola

Em Dondom, faixa 3, o fandangueiro expressa seu apego à viola dizendo que

quando a tem em mãos não pode ficar sem tocar, já que isso é o que lhe

proporciona prazer. A viola é a companheira de “vadiação”, divertimento, deste

homem.

Quando eu pego na viola Eu não posso sem cantar

(...)

Oi Lai, Meu Bem, eu quero bem a viola

Oi Lai, Meu Bem, dentro do meu coração

(Dondom, faixa 3)

24

Como instrumento, companhia e confidente é na viola que o cantador coloca

suas esperanças e frustrações relacionadas ao amor: O cantador diviniza a viola,

atribuindo a ela o poder de solucionar problemas como a solidão e a falta de sorte

no amor:

Ai, a viola é uma das coisas

Que se deve querer bem A viola também dá

Amores pra quem não tem

(Dondom (uma noite de luar), faixa 6)

Ajudai o cantador, ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe

Ensinai a quem não sabe no mundo tratar de amor Adeus morena

(Chamarrita, (adeus morena), faixa 14)

Na primeira estrofe da faixa 7, Sinsará, o cantador pede para a viola falar com

ele; esse é um termo usado para designar o som que emitido pela viola ou pela

rabeca. Cada instrumento “fala” a sua maneira e a maneira que seu construtor o faz.

É, eu faço, eu mesmo bato nela e faço ela grita do jeito que eu quero.51

A diferença entre a construção de um instrumento industrializado e um

artesanal é a peculiaridade de cada produto; o instrumento industrializado é

padronizado e as diferenças de um para outro são mínimas, já no instrumento

artesanal (mais especificamente as rabecas e violas) as diferenças são visíveis.

Cada construtor tem uma maneira diferente de utilizar a técnica da arte de fazer

instrumentos. Como não são feitas por máquinas e não tem o objetivo de serem

perfeitas, acabam com algumas falhas. É sobre falhas, ou faltas, a que o cantador se

refere na primeira estrofe da faixa 7, Sinsará, demonstrando sua cumplicidade com a

viola: Viola, falai comigo

Que convosco falarei Que convosco falarei

51 Depoimento de Leonildo Pereira e Randolfo Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA,

Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

25

Encobrir as minhas faltas Que eu a vossa encobrirei Que eu a vossa encobrirei

(Sinsará, faixa7)

Falai viola falai, falai viola falai Ajudai o cantador

Falai, viola, falai ajudai o cantador Adeus morena

(Chamarrita, (adeus morena), faixa 14)

Companheirismo

Faz parte da literatura oral (poesia e canção) sempre recitar o que já foi

composto como uma forma de preservar o costume. A preservação não é o único

motivo para a repetição – a repetição é uma forma de facilitar o aprendizado da letra,

sendo a participação de todos o real divertimento para o caiçara. O trecho abaixo é

exemplo; no meio da música os tocadores se olham e sem precisar dizer nada,

mesmo porque não podem, sabem qual é o próximo passo da canção.

Oi Lai, Meu Bem, eu aqui c’o camarada Oi Lai, Meu Bem, parece que já sabemo

Refrão

Oi Lai, Meu Bem, fazemo aceno com o olho Oi Lai, Meu bem, já que falar não podemo

(Dondom faixa 3) Morte e religiosidade

Na letra de Chamarrita, faixa 5, a morte é tematizada sem demonstração de

medo, apenas com a presença dos anjinhos, esse símbolo de pureza e

transcendência da igreja católica. A presença da morte continua na terceira estrofe

onde o cantador recita sobre seu momento:

26

Eu vou m’embora, vou m’embora Vou m’embora, vou morrer

Eu vou m’embora, vou m’embora Vou m’embora, vou morrer

Não tenho quem por mim chore Lágrimas não quero ouvir

Não tenho quem por mim chore Lágrimas não quero ouvir

(Chamarrita, faixa 5)

O tema da religiosidade nas letras será abordado no próximo capítulo “O

Sagrado e o Profano”.

Amor

A temática do amor está presente em diversas músicas e em diversas

facetas, especialmente nas modas de dondom e chamarrita.

A separação dos amados, possivelmente por necessidade de trabalho,

sobrevivência, e a contra gosto, impossibilitando a continuidade do relacionamento:

Vou m’embora, vou m’embora

Para o meio do sertão, ai, moreninha Para o meio do sertão, ai

Eu vou m’embora para o meio do sertão Para o meio do sertão

Preso cativo me leva, ai, moreninha Não é por meu gosto não

Preso me leva não é por meu gosto não

(Chamarrita, faixa1)

Eu d’antes cantava bem, ai, moreninha Agora não canto mais, minha moreninha

Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar

Com pesar vou te deixar

(Dondom (minha moreninha), faixa 12)

A idéia da tristeza e saudade causada pela separação também é

representada. Conjecturando mais, essa tristeza pode ser a vontade do cantador de

não terminar o baile e a diversão:

27

Amanhã já vou m’embora Como não irei chorando Como não irei chorando Por este caminho afora Queromana tudo bem

Muito padece quem ama Muito padece quem ama

Quem no mundo amores tem

(Queromana, faixa 4)

Vou dizer para o meu olho Que não chore mais saudade

(Dondom (mulata faceira), faixa 8)

O excesso de cuidado com a relação amorosa é representado pela fidelidade

e o medo de que a mesma se acabe é representada pela traição.

No baile que ela não vai

Eu também não vou

(Dondom (uma noite ao luar), faixa 6)

Minha menina bonita Não me trata de enganar

Mulata faceira do cabelo ondado

(Dondom (mulata faceira), faixa 8)

A falta de saber lidar com as relações amorosas traz novamente à cena a

viola, companheira e confidente que neste momento é evocada para ensinar lições

amorosas: Ajudai o cantador, ensinai a quem não sabe

Ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe no mundo tratar de amor

Adeus morena

(Chamarrita (adeus morena), faixa14)

Nem sempre a viola é eficiente nos tratos com o amor sendo o rompimento e

a desilusão inevitáveis: Menina, te quero bem

Mas vou te deixar O nosso amor não tem jeito

28

É melhor largar Eu era pra te falar Mas não te falei

Era pra dar pó-de-arroz Mas não dei

Nunca vi quem tem amor Que não tem saudade

Mas não chora Por seu bem que vai embora

(Dondom (pó-de-arroz), faixa 9)

Peculiaridades

Na faixa 7, Sinsará, o cantador chama a saída da dança, o fim da moda,

dando a despedida e alertando para que a música seja curta assim nenhum batedor

de tamanco corre o risco de pagar a “murta”. A “murta”, ou multa é a conseqüência

de balaio, um erro no tamanqueio. Quando o fandangueiro erra tem que pagar para

as mulheres quentão de vinho ou “mãe com fia” (cachaça com melado) e para os

homens quentão de pinga.52

Vamos dar a despedida Pra fazer a moda curta Pra fazer a moda curta

Quem faz a moda comprida Tá arriscado a pagar a murta Tá arriscado a pagar a murta

(Sinsará, faixa 7)

Período sem fandango

Quando a urbanização começou a intensificar-se na década de 30, iniciou-se

uma série de mudanças. Segundo Antônio Carlos Diegues53, foram criadas estradas

para facilitar o acesso ao litoral, fato esse que prejudicou a navegação marítima. 52 PINTO, Inami Custódio. O fandango na Ilha de Valadares. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 53 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006

29

Imobiliários, grileiros e grandes empresas criadoras de búfalos tomavam cada vez

mais o espaço do povo caiçara, forçando este a vender suas propriedades,

desequilibrando, assim, as comunidades. Outra conseqüência foi o inchaço

populacional decorrente de veranistas e trabalhadores da construção civil.54

O turismo tem importância desde a década de 50 e é intensificada a partir da

década de 70 com a melhoria das estradas antes construídas. Mas, ao mesmo

tempo que o turismo incentiva e faz crescer o comércio caiçara, valores de outras

culturas que podem não condizer com os valores da comunidade, são incorporados.

Os meses de verão dedicados às férias no meio urbano têm constituído uma nova

“safra” no calendário de atividades locais, transformando as embarcações de pesca em pousadas. O trabalho na construção civil também tem desviado os caiçaras de suas atividades tradicionais de roça, pesca e coleta.55

Outro fato ocorrido que desestabilizou o fandangueio foi a nova política

ambiental que transformou grande parte dos municípios de Guaraqueçaba e Iguape

em unidades de conservação. As regras dos parques e reservas ambientais não

permitem que haja plantio, desmatamento, caça, etc., impossibilitando uma vida

auto-sustentável. Assim algumas das comunidades se viram obrigadas a abandonar

seus sítios já que não podiam exercer seu modo de vida. Foi o caso da Família

Pereira que a partir de 1990 começou um processo de migração para regiões

próximas, “em função das restrições ambientais, das dificuldades de acesso e do

fechamento local”.56

O festejo deixou de ser freqüente, os mutirões já eram raros:

Teve bastante tempo parado. Teve. Agora que começo um pouco mais. Mas teve

bastante tempo parado. O fandango começo agora, agora acho que faz três ano que nós tamo aí nesse fandango aí, né? Mas ele levou uns quinze ano parado, acho. Já parou lá, no Rio dos Patos. Porque a turma saiu tudo do sítio, né? Virou um parque, uma reserva aqui. Então o que tinha no sítio saiu tudo pra cidade, não ficou mais ninguém no sítio. Tudo foram embora, abandonaram tudo, né? Abandonaram a viola, abandonaram as coisa que tinham, abandonaram tudo. Então por isso que acabou o fandango no sítio, porque não tinha como

54 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006 55 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006 56 DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006

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trabalha, né? Aí o pessoal não tocava [mais viola em casa]. É ficou triste um pouco, né? Porque era como a gente se divertia. Parou assim um pouco.57

Os primeiros versos representam esse fato. Antigamente, quando o festeio

era freqüente, cantava-se bem, agora, tanto tempo depois, pouco treino, já não se

canta tão bem.

Primeiro cantava bem Agora não canto mais, ai, moreninha

Agora não canto mais, ai Cantava bem, ai, agora não canto mais

Agora não canto mais Quem me viu mais há de ver, ai moreninha

A vossa saudade é que faz, ai Mais há de ver, ai, a vossa saudade é o que faz.

(Chamarrita, faixa 1)

57 Depoimento de Nilo Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002.

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O Sagrado e o Profano

As festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo. Na sua base, encontra-se constantemente uma concepção determinada e concreta do tempo natural (cósmico), biológico e histórico. Além disso, as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos importantes da festa.58

Temos como exemplo desse “período de crise” um momento da história

fandangueira, onde ficaram escassas as festas por diversos motivos: falta de

interesse da nova geração, descrença religiosa, mudança de comunidades inteiras

por motivos ambientais59, entre outros.

Num momento pós-crise, digo, nessa atual valorização das culturas não

oficiais onde essas manifestações que estavam esquecidas voltam a ser praticadas

com mais freqüência, alguns dos valores/costumes foram negligenciados. Atitude

essa que demonstra uma troca/evolução dos costumes fandangueiros, como é o

caso da relação entre fandango e religião na qual a religiosidade passou a ter uma

importância não menor, mas menos enfática.

Em comunhão com outras manifestações culturais louvava-se a bandeira do

Divino Espírito Santo uma vez por ano assim como o baile ocorrido por ocasião do

padroeiro (a) da comunidade. “O fandango está também relacionado com outras

manifestações culturais, de caráter religioso, como o terço cantado, as reiadas ou

folias de reis e as bandeiras, que saem em romaria pelos municípios.”60

De um lado a devoção dos festejantes para com seus santos, padroeiros, de

outro, a igreja que via essas manifestações com caráter pouco religioso e mais

desrespeitoso.

Antes de desembarcar no Brasil já havia divergências entre o fandango e a

igreja. No século XVIII em Portugal era considerada “uma dança que mulheres de

família e homens de fino trato jamais poderiam ousar aprender”.61 Em decorrência

de sua má fama também foi proibida na Espanha.

58 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed. Universidade de Brasília e Hucitec, 1996. 59 Como já foi descrito no item “Período de Crise” do Capítulo anterior. 60 Apresentação do Catálogo do Projeto Museu Vivo do Fandango. 61 BITTAR, Nazir A Pluralidade do Fandango: Dança, Teatro e Baile. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003.

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No século XIX, pela Sé Romana e Congregações religiosas do exterior, foram

definidos novos padrões para a religiosidade.62 Eram desprezíveis as manifestações

que não estivessem de acordo com o novo padrão, afinal eram “coisas de pessoa

sem instrução, atividade perigosa, merecedoras de ações condenatórias e medidas

repressivas.”63 Conseqüência desses novos padrões é a divisão da religiosidade em

oficial e não oficial.

A religiosidade oficial é sinônimo de catolicidade e “foi imposta juridicamente a

todos e durante quatro séculos foi mais utilizada para legitimar as ações políticas e

para definir a cidadania.”64 A religiosidade não oficial “desenvolveu-se de forma livre

e espontânea constituindo-se como componente fundamental da tradição e da

cultura da população brasileira.”65

A religiosidade da comunidade caiçara, assim como a maioria das

comunidades populares, pende para um cristianismo não oficial; sem o compromisso

de estar sempre presente na igreja. Desenvolvem a fé através da tradição, das

crendices, “causos” e imaginário. Os “causos”, contos e lendas passados através da

oralidade de pais para filho, fazem com que Deus seja temido, valendo mais que o

sermão de um padre ou uma missa.

É um conceito que não se aprende na escola pois é um saber religioso que não

depende de padres ou de especialistas para ser entendido e socializado. É uma religiosidade que se expressa por um conjunto de crenças, ritos e formas de organização que refletem o sentimento do povo e que dá um sentido próprio à vida, no sofrimento e à morte.66

62 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 63 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 64MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 65 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 66 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002

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Um dos “causos” contados pela comunidade é a praga do padre em que “ao

meio dia, os foliões – fantasiados com roupas e parâmetros religiosos e carregando

a sua frente uma cruz, na qual tinha pendurado garrafas de cachaça – foram vistos

pelo padre local que, chocado com a falta de respeito para com a igreja, amaldiçoou

toda região.”67 Outro “causo” que está mais para lenda seria sobre a origem do

fandango: um homem chegou com sua viola numa comunidade e quis se entrosar, o

que fez sem muito esforço, pois, como tocava maravilhosamente bem a viola, foi

logo encantando todas as mulheres, coisa que nada agradou aos homens. Enquanto

estes trabalhavam, o intruso apenas tocava a viola e apaixonava as mulheres. Um

tocador o desafiou na moda de viola, para sua tristeza o intruso tocava melhor.

Depois de humilhar quase todos tocadores um apresentou-se com versos louvando

a Deus, logo se fez um grande buraco de três metros onde o intruso evaporou. Os

homens, para garantir que ele não voltasse, tamparam o buraco com madeira e

quando viam as mulheres espiando na esperança de que o intruso aparecesse

zombavam delas batendo os sapatos e as palmas no tablado de madeira. Diz-se

que era o demo.68 Outros “causos” assim são relatados na pesquisa Tocadores:

homem, terra, música e corda.69

Os movimentos dos quadris que remetiam explicitamente a provocação

sexual é o principal motivo das proibições do festejo fandangueiro, já que “ofendia os

pudores das classes dominantes recém adeptas do puritanismo.”70

Até 1860 foram inúmeras as conjecturas, leis, proibições e multas sobre

aqueles que participavam dos bailes. A partir desta data, as leis, multas e taxas

começaram a diminuir, e a festa que antes era estritamente proibida passa a ser

liberada para festejo de “casamentos ou outras solenidades.”71

67 RANDO, José Augusto Gemba. Fandango: Contextualização Histórica. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 68 BRITO, Maria de Lourdes da Silva Oficina ministrada no Festival de Inverno da UFPR. “O sagrado e o profano – a festa fandangueira”. Antonina, julho de 2005. 69 MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002. 70 MAGNUS, Roberto de Mello Pereira Semeando Iras Rumo ao Progresso (ordenamento jurídico e econômico da Sociedade Paranaense 1829-1889). Curitiba: Ed. Da UFPR, 1996. 71 MAGNUS, Roberto de Mello Pereira Semeando Iras Rumo ao Progresso (ordenamento jurídico e econômico da Sociedade Paranaense 1829-1889). Curitiba: Ed. Da UFPR, 1996.

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No Paraná, as primeiras manifestações de censura ocorreram em 1792 na comarca de Paranaguá, onde os fandangos realizados por ocasião dos festejos do Sacramento foram proibidos para resguardar o caráter religioso da devoção aos santos. Até então uma festa simultaneamente religiosa e profana, o fandango foi, com essa proibição, alijado de suas características sacras, passando a ser visto apenas como bailado com o propósito de entretenimento.72

Para ter acesso a todas as leis criadas sobre o fandango de 1829 a 1889 é

importante conferir o capítulo quatro do trabalho do professor Magnus.73

A popularidade e a expansão das novas vertentes evangélicas em meio a

população foi mais um motivo para a religiosidade ser afastada do fandango

paranaense.74 É apontado por Diegues que essas vertentes “proíbem o ‘culto a

imagem’, os bailes e as bebidas alcoólicas”; um intento de que as pessoas sejam

disciplinas às necessidades capitalistas, criando uma sociedade dedicada ao lar e a

prática religiosa.75

Agora não fazem [mutirão] pois aqui na minha gente onde ta são crente, aqui tem só,

na vila Fátima tem muito. Crente não gosta de fandango, algum aparecia ainda, mas não querem que a gente cante mais isso aí, é que elas só se lembra de Deus, de Deus.76

Mas, por mais que, atualmente, os motivos sociais77 sejam mais freqüentes

para um baile ainda existe um respeito muito grande dos participantes com relação

ao caráter do sagrado. Confirma essa idéia o fato de o fandango não ser batido

durante um luto ou durante a quaresma. O luto pode ser considerado uma revolta

contra Deus pelo fato dele ter levado uma vida, sendo assim não recebe a

celebração da festa fandangueira.

72 RANDO, José Augusto Gemba. Fandango: Contextualização Histórica. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003. 73 MAGNUS, Roberto de Mello Pereira Semeando Iras Rumo ao Progresso (ordenamento jurídico e econômico da Sociedade Paranaense 1829-1889). Curitiba: Ed. Da UFPR, 1996. 74 RANDO, José Augusto Gemba. Fandango: Contextualização Histórica. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva. (Org.). Fandango de Mutirão. Curitiba, 2003.

75 Citação de Kilza Setti. “Essas novas seitas pregam a dedicação ao trabalho, ao lar e a igreja, e estes pressupostos criam um clima favorável para o surgimento do bom trabalhador, responsável, conformado, disciplinado, o que vem a atender as necessidades da sociedade capitalista, no sentido de garantir uma classe social dedicada ao trabalho e disciplinada através da prática religiosa.” In: DIEGUES, Antonio Carlos. Cultura e Meio-Ambiente na Região de Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. In: GRAMANI, Daniella (Org.). Museu Vivo do Fandango. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2006 76 Depoimento de Julino Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 77 Um aniversário, um mutirão, um casamento, ou qualquer outro evento social importante para a comunidade

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Na seqüência de músicas do CD da Família Pereira não são abundantes as

“ocorrências religiosas”, mas, nota-se que antes de tocarem há um agradecimento,

um pedido de benção, uma proteção, a Deus.

Posso falá?... Isso é de modes que...todo nosso trabaio, no trabaio de todos, que

amanhece, a gente sempre tem as palavra citada o que tem que dizer, ah, perante o pai criador e a nossa mãe celeste e a todos os santos, e santos do céu...para que nóis, o nosso trabaio, nóis seje digno, cheio de coraje de força, pidimos e Ele que dê pra nóis, para nóis poder ganhar pão de cada dia, cada um de nóis e aquele que mais precisar, para que ele abençoe nosso sitio que tão ficando longe e nóis que tamo aqui com essa equipe fraca, mais, tuda, tuda verdade de ser que é cultura então muito obrigada você, não tenho mais palavras citar pra agradecer e muito obrigado e vamo continuá pra frente porque o Brasil qué í pra frente de amor e paiz.78

Esse discurso pessoal e não intelectualizado mostra a cumplicidade do

fandangueiro com Deus. Através do discurso confirma-se a importância do cotidiano

na vida da população popular, já que o fandangueiro pede proteção a seu sítio, seu

meio de trabalho e sustentabilidade. Percebe-se também o papel de Deus na

religiosidade popular onde ele é “onipresente e se converte na razão última do

existir”79, e dos Santos que adentram na vida desempenhando “uma função

terapêutica na adaptação social e na solução de problemas de ordem espiritual e

material, enquanto os infortúnios da vida são resolvidos com rezas e promessas.”80

O trecho “os anjos cantam na glória/ nós também seremo anjinho” que aparece

nas faixas 5 e 10, respectivamente, Chamarrita e Tiraninha, representa a vida e a

morte. Temos o anjo como símbolo de proteção, o anjo da guarda, e romantizando

mais, o temos como guia. O anjo – da literatura/lenda infantil – é aquele ser

assexuado, com asas e auréola, que mora nas nuvens e nos conduz ao paraíso

depois da morte. Na música, os anjos seriam a personificação desta passagem da

vida para morte.

78 Discurso apresentado como introdução a seqüência de músicas do CD da Família Pereira. FAMÍLIA PEREIRA. Viola Fandangueira. Curitiba: Independente, 2002. 1 CD (70 mim): digital, estéreo. s. nº. 79 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002 80 MARCHI, Euclides Imaginário e Crendices: os lugares do sagrado nas manifestações de fé. In: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores. Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002

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Alguns Canto por devoção, sabe o que é devoção? Eu tenho minha reza eu sou chegado a Deus. É eu sou. [Só pode rezar] depois que a pessoa morre. É excelência, eles pode reza em cima do corpo, perante o corpo.

Alzira: É bonito, mas é muito sentido demais pra cantá. Julino: é sentido, é quinze verso. Quinze excelência. Divino levai esta alma, levai esta alma, levai para glória, é assim. É uma música, é pra leva a alma. Acompanhe essa alma que vai para a glória, é uns quinze verso assim e o resto é a gente que canta.81

O depoimento de Julino Pereira é a prova de que a devoção e a fé têm o

sentido de explicar a complexidade vida e de dar conforto perante a morte.

Nas faixas em que são mencionados precede-as um chamado aos participantes da festa:

cantemo, irmão, cantemo cantemo nós dois juntinho

(Chamarrita faixa 5).

cantemo meu camarada cantemo nós dois juntinho

(Dondom (mulata faceira) faixa 8).

cantemo meu camarada cantemo meu camarada

cantemo nós dois juntinho

(Tiraninha faixa 10).

Esse chamado é um estímulo á continuação da alegria da festa, afinal antes da

“indesejada da gente chegar”82 e todos virarmos anjinhos, como canta a música, a

diversão não pode parar.

Na faixa 12, Dondom (minha moreninha), a religiosidade demonstrada está

intrinsecamente relacionada com o cotidiano e os anseios dos habitantes da

comunidade: o mar pediu a Deus peixe (...)

o peixe pediu fundura (...) o homem pediu riqueza (...)

a mulher formosura (...)

(Dondom (minha moreninha) faixa 12) 81 Depoimento de Julino Pereira. MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto.Tocadores.

Curitiba: Olaria Projetos de Arte e Educação, 2002. 82 Manuel Bandeira em seu poema “Consoada” referindo-se à morte.

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Na faixa 13, Sinsará Caloado, e 16, Tonta, está presente o poder decisório de

Deus sobre a vida do caiçara e o estado de conformismo do mesmo:

Foi sina que Deus nos deu

Isso queremos cumprir

Foi sina que Deus nos deu Isso queremos cumprir

(Sinsará Caloado faixa 13)

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Conclusão

Lembrando e resumindo o conceito de cultura popular na visão de Alfredo

Bosi, “cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação

homem-mulher(...)”83, ou seja o todo. Prova ou representação deste conceito

encontra-se nas obras de arte. No caso desta pesquisa é notável através das letras

da Família Pereira que o povo caiçara ligado ao fandango coloca no canto todos

seus anseios.

As letras são reflexos do todo caiçara – o cotidiano: a lida na roça, o semear,

cuidar e colher, o erguer-se todas as manhãs e ter que sobreviver, o zelar e construir

do instrumento, a pesca, a transmissão cultural (a tradição), a diversão das crianças,

o contato com a fauna e flora do local, o cozinhar, entre tantas outras atividades.

Conseqüência do cotidiano são as relações e os sentimentos que se criam; os laços

de amizade, a prosa com o compadre e a comadre, os “causos”, os amores, as

disputas, etc. E ainda, o imaginário e as crendices84 da vida caiçara expressas nas

letras e em parte do cotidiano, de certa forma ajudam a entender e aceitar a

complexidade da vida, e a justificar a morte. Mesmo que, sendo representações do

cotidiano, a função das letras não se restringe a isso, vai além e quase que em

direção contrária. A magia e o encantamento envoltos nas canções fazem com que o

povo venha a se desligar da rudeza cotidiana e das regras da comunidade criando

uma atmosfera alegre, descontraída. Mas, sem fugir por completo da vida segura em

comunidade.

Esta pesquisa foi realizada com um intuito de preservar, conservar e

amadurecer estudos nesta área que por tempo ficou defasada por falta de interesse.

Uma vontade interior de descobrir uma parte da identidade cultural paranaense

movida por uma citação de Sebastião Rocha:

Os povos que ainda não se conhecem a si mesmos, porque não se estudam, não se

pesquisam, ou não se descobrem, por ignorância, por desinteresse, por vergonha de suas origens ou por excesso de valorização de valores culturais importados, nunca terão sua

83 BOSI, Alfredo. Cultura e Culturas Brasileiras. In: _____. Dialética da Colonização. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992. 84 Imaginário e crendices são entendidos como integrantes da religiosidade não-oficial, onde é presente uma liberdade para a exteriorização da fé.

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identidade e auto-estima formado, nunca terão definida e conhecida sua personalidade e, portanto, jamais serão coerentes, autênticos e harmônicos.85

Num outro horizonte, a coerência, a autenticidade e a harmonia não são

características dependentes totalmente da identidade de um povo. Ou seja, a

qualidade da produção artística, criadora da identidade cultural, nem sempre é plena

destas características, enquanto outras manifestações podem ser.

Não é um trabalho simples a começar pelo conceito de fandango, significante

de duas modalidades de dança. A variedade de hipóteses colocadas sobre a origem,

sempre incertas e remetendo a um passado mais longínquo. A dúvida sobre a

influência dos índios nativos e de tantas outras etnias. As dúvidas e dificuldades

acerca dos aspectos culturais; distinção e separação das culturas e ao mesmo

tempo suas inter-relações; um assunto inesgotável. Até mesmo entrar no mundo

caiçara, entender seu modo de vida, onde a festa funciona como estratégia

simbólica de transcendência dos limites impostos pela dureza da vida material, em

que o cotidiano do trabalho e da luta pela sobrevivência determina regras e

sacrifícios muito severos, tanto no que se refere à produção quanto no que se liga às

condutas.86

No livro Tocadores é colocado em questão o aspecto da continuidade da

tradição; muitos dos fandangueiros demonstram tristeza ao falar do assunto já que

existe uma falta de interesse dos jovens da comunidade em aprender o ofício da

luteria e de participar do festejo fandangueiro. Assim, este estudo alcança seu

objetivo sendo mais que um mero registro da história fandangueira, sendo um

aplauso as pesquisas anteriores (muitas delas obras de arte) e um incentivo a

estudos futuros.

85 Citação de Sebastião Rocha. In: CORREIA, Marly Garcia. O Fandango que acompanha o barreado. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2002. 86 Uma das conclusões de Benito Rodriguez, orientador desta pesquisa.

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Anexos

Gravado, mixado e masterizado no Solo Studio (solostudio.com.br) entre agosto e novembro de 2001. Técnicos de gravação: Alessandro Laroca, Afonso Celso e Victor França; Mixado por Victor França (Viola Quebrada) e Alessandro Laroca (Família Pereira); Masterizado por Victor França Direção Musical: Rogério Gulin Produção: Oswaldo Rios e Rogério Gulin Produção executiva: Oswaldo Rios e Jane Pagliosa Design Gráfico: I.a. Salgado Fotos: Pela Pagliosa, I.a Salgado Assessoria de Imprensa: Mariângela Guimarães

Nota técnica: o CD2, da Família Pereira, foi inteiramente gravado ao vivo no estúdio sem que tenha sido utilizado qualquer processo de compressão ou reverberação digital. A Ambiência é natural e o sapateado foi executado junto com os músicos e os cantores.

Grupo Família Pereira: Anísio Pereira, Jersi Pereira, José Pereira, Heraldo Pereira, Agnardo Pereira, Leonildo Pereira, Nilo Pereira, Arnaldo Pereira, Vicente França.

“Vem de longe a vontade de gravar um CD de fandango. Tanto pela importância de registrar essa manifestação popular tão rica, quanto pelo prazer de estar em contato com as pessoas que, apesar de tudo, ainda mantém viva esta atividade.

O que o Viola Quebrada mostra aqui é um grupo de música popular tocando e batendo o fandango a seu modo. E homenageando os mestres que nos possibilitaram beber em suas fontes: Manequinho da Viola, Brasílio dos Santos, Eugênio dos Santos e Leonildo Pereira.” Rogério Gulin.

As letras registradas neste anexo foram transcritas do encarte do Cd:

FAMÍLIA PEREIRA. Viola Fandangueira. Curitiba: Independente, 2002. 1 CD (70 mim): digital, estéreo. s. nº

A faixa 11, Ponteado da Chamarrita, é instrumental.

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1. Chamarrita (moreninha)

Primeiro cantava bem Agora não canto mais, ai, moreninha Agora não canto mais, ai Cantava bem, ai, agora não canto mais Agora não canto mais Quem me viu mais há de ver, ai moreninha A vossa saudade é que faz, ai Mais há de ver, ai, a vossa saudade é o que faz Vou m’embora, vou m’embora Para o meio do sertão, ai, moreninha Para o meio do sertão, ai Eu vou m’embora para o meio do sertão Para o meio do sertão Preso cativo me leva, ai, moreninha Não é por meu gosto não Preso me leva não é por meu gosto não A chamarrita com dondom Fui eu que mandei buscar, ai, moreninha Fui eu que mandei buscar, ai Com dondom, ai, fui eu quem mandei buscar Fui eu que mandei buscar, ai, moreninha

A chamarrita do Rio, ai, dondom de Portugal O dondom de Portugal, ai Ai, ai, do Rio, ai, O dondom de Portugal

Vamos dar a despedida Meu camarada irmão, ai, moreninha Meu camarada irmão, ai A despedida, meu camarada irmão, ai Meu camarada irmão Eu por vós dou minha vida, moreninha Por outro não darei ou não, ai

Dou minha vida, por outro darei ou não

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2. Anu Primeiro peço licença

Que foi assim o meu ensino Primeiro peço licença Que assim foi o meu ensino Primeiro peço licença

Que assim foi o meu ensino Depois da licença dada Depois da licença dada Eu mesmo me determino Depois da licença dada O anu é pássaro preto Passarinho do verão

O anu é pássaro preto Passarinho do verão

O anu é pássaro preto Passarinho do verão, ai Quando canta à meia-noite Quando canta à meia-noite Faz chorar meu coração Quando canta à meia-noite Vamos dar a despedida

Que o anu já vai embora Vamos dar a despedida Que o anu já vai embora Vamos dar a despedida

Que o anu já vai embora Não sei o que tem o anu, ai Não sei o que tem o anu, aí Que não dura meia hora Não sei o que tem o anu, ai

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3. Dondom (avião estrangeiro)

Quando eu pego na viola Eu não posso sem cantar Estava na minha roça, meu bem Eu estava trabalhando, meu bem Escutei uma zoada, meu bem Que pro ar vai voando É o avião do estrangeiro Oi lai, meu bem Que ia pro Rio de Janeiro Oi lai, meu bem, Eu aqui c’o camarada Oi lai, meu bem, Parece que já sabemos Estava na minha roça... Oi lai, meu bem, Fazemos aceno com o olho Oi lai, meu bem, Já que falar não podemos Estava na minha roça... Oi lai, meu bem, Eu quero bem a viola Oi lai, meu bem, Dentro do meu coração Estava na minha roça... Oi lai, meu bem, Porque ela me acompanha Oi lai, meu bem, Na minha vadiação Estava na minha roça... Oi lai, meu bem, Vamos dar a despedida Oi lai, meu bem, Que eu já tinha me esquecido Estava na minha roça... Oi lai, meu bem, Não sei do que me alembrei Oi lai, meu bem, Variou no meu sentido Estava na minha roça

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4. Queromana

Hoje estou cantando aqui Amanhã já vou m’embora Hoje estou cantando aqui Amanhã já vou m’embora Amanhã já vou m’embora Como não irei chorando Como não irei chorando Por este caminho afora Queromana tudo bem Muito padece quem ama Muito padece quem ama Quem no mundo amores tem Meus senhores com licença Despedida ‘imo dar Meus senhores com licença Despedida ‘imo dar Despedida ‘imo dar Nossa licença são poucas Nossa licença são poucas Nessa, sim, vai acabar Queromana vou e voto Quero saber de quem amo Quero saber de quem amo Que dos outros não me importo

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5. Chamarrita

Atirei mais não matei Sabia que não matava Atirei mais não matei Sabia que não matava Atirei pra adiantar A quem adiante andava Atirei pra adiantar A quem adiante andava Cantemos, irmãos, cantemos Cantemos nós dois juntinhos Cantemos, irmão, catemos Cantemos nós dois juntinhos Os anjos cantam na glória Nós também seremos anjinhos Os anjos cantam na glória Nós também seremos anjinhos Eu vou m’embora, vou m’embora Vou m’embora, vou morrer Eu vou m’embora, vou m’embora Vou m’embora, vou morrer Não tenho quem por mim chore Lágrimas não quero ouvir Não tenho quem por mim chore Lágrimas não quero ouvir Tô cantando com vergonha Com vergonha de uma vez Tô cantando com vergonha Com vergonha de uma vez Eu não sirvo pra cantar No meio de vós mecês Eu não sirvo pra cantar No meio de vós mecês Vamos dar a despedida Meu camarada irmão Vamos dar a despedida Meu camarada irmão Eu por vós dou minha vida Por outro darei ou não Eu por vós dou minha vida Por outro darei ou não

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6. Dondom (uma noite ao luar)

Fui no mar colher laranja Fruta que no mar não tem Vim de lá todo orvalhado Da onda que vai e vem Eu estava conversando Lá no terreiro Numa noite de luar No mês de janeiro A respeito d’um fandanguinho Com o meu amor No baile que ela não vai Eu também não vou Peguei a contar estrelas Só do norte não contei Ai, aquela mais bonitinha Só com meu bem acompanhei Eu estava conversando... Ai, a viola é uma das coisas Que se deve querer bem A viola também dá Amores pra quem não tem Eu estava conversando... Bananeira de dois cachos Não sei o qual de cortar Vou cortar a verdolenga Para logo amadurar Eu estava conversando... Vamos dar a despedida Despedida vamos dar Vamos acabar esta moda Pra n’outra continuar Eu estava conversando...

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7. Sinsará

Viola, falai comigo Que convosco falarei Que convosco falarei Encobrir as minhas faltas Que eu a vossa encobrirei Que eu a vossa encobrirei Encontrei com sinsará Na beira do mar chorando Por causa de uma conchinha Que a maré ia levando Sinsará ficou chorando Por causa de uma conchinha Que a maré ia levando Sinsará ficou chorando Agora quero cantar Que ainda hoje não cantei Que ainda hoje não cantei Quero ver se este meu peito Se ainda está como eu deixei Se ainda está como eu deixei Encontrei com a sinsará... Vamos dar a despedida Pra fazer a moda curta Pra fazer a moda curta Quem faz a moda comprida Tá arriscado a pagar a murta Tá arriscado a pagar a murta Encontrei com a sinsará...

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8. Dondom (mulata faceira)

Cantemo meu camarada Cantemo nós dois juntinhos Mulata faceira do cabelo ondado Os anjos cantam na glória Nós também seremos anjinhos Mulata faceira do cabelo ondado Já te namorei Já fui teu namorado Já moramos juntos Eu já fui teu criado Minha menina bonita Não me trata de enganar Mulata faceira do cabelo ondado O meu cantar não é alto O meu cantar é baixão Mulata faceira do cabelo ondado Cante bem ou cante mal Faço minha obrigação Mulata faceira do cabelo ondado Já te namorei... O meu olho de chorar Já perdeu a claridade Mulata faceira do cabelo ondado Vou dizer para o meu olho Que não chore mais saudade Mulata faceira do cabelo ondado Já te namorei... Vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Mulata faceira do cabelo ondado Que para dois cantador Despedida não é nada Mulata faceira do cabelo ondado Já te namorei...

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9. Dondom (pó-de-arroz)

Vem de lá, minha viola Corda não arrebentei Menina, te quero bem Mas vou te deixar O nosso amor não tem jeito É melhor largar Eu era pra te falar Mas não te falei Era pra dar pó-de-arroz Mas não dei Nunca vi quem tem amor Que não tem saudade Mas não chora Por seu bem que vai embora Cante bem ou cante mal Faço minha obrigação Menina, te quero bem... Menina, me daí um beijo Me daí um beijinho só Menina, te quero bem... Que eu vou morrer que desgosto Você vai chorar de dó Menina, te quero bem... Vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Menina, te quero bem... Não comemos e não bebemos Também não ganhamo nada Menina, te quero bem...

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10. Tiraninha

Primeiro peço licença Primeiro peço licença Que assim foi o meu ensino Depois da licença dada Depois da licença dada Eu mesmo me determino Dona Mariquinha Vem descendo a serra Vem matando gente Vem fazendo guerra Vem um batalhão por fora Vem um batalhão por fora Mariquinha vem por terra Cantemo meu camarada Cantemo meu camarada Cantemo nós dois juntinho Que os anjos cantam na glória Os anjos cantam na glória Nós também seremo anjinho Dona Mariquinha... Vamos dar a despedida Vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Que para dois cantador Que para dois cantador Despedida não é nada Dona Mariquinha...

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12. Dondom (minha moreninha)

Eu d’antes cantava bem, ai, minha moreninha Agora não canto mais, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

O mar pediu a Deus peixe, minha moreninha O peixe pediu fundura, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

O homem pediu riqueza, minha moreninha A mulher formosura, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

Quando eu saí lá de casa, minha moreninha Meu filho me avisou, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

Papai trate bem c’os homens, minha moreninha Meu filho tratando estou, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

Vamos cantar mais um verso, minha moreninha Pra n’outra nós despedir, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

Vamos dar a despedida, minha moreninha Agora, sim, é verdade, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

Vou partir meu coração, minha moreninha Para te dar a metade, minha moreninha Minha moreninha com prazer vou te amar Eu vou embora pra nunca mais voltar Com pesar vou te deixar

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13. Sinsará Caloado

Sinsará é muito meu Sinsará é muito meu Meu dinheiro me custou Meu dinheiro me custou Quem quiser dançar a ele Tem que me pedir favor, ai Quem quiser dançar a ele Tem que me pedir favor, ai Vamos cantar mais um verso Vamos cantar mais um verso Pra depois nós despedir, ai Pra depois nós despedir Foi sina que Deus nos deu Isso queremos cumprir Foi sina que Deus nos deu Isso queremos cumprir Vamos dar a despedida Vamos dar a despedida Despedida vamos dar Despedida vamos dar Vamos fazer bem curtinho Pra n’outra continuar Vamos fazer bem curtinho Pra n’outra continuar

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14. Chamarrita (adeus morena)

Falai viola falai, falai viola falai Ajudai o cantador Falai, viola, falai ajudai o cantador Adeus morena Ajudai o cantador, ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe Ensinai a quem não sabe no mundo tratar de amor Adeus morena Eu quero bem a viola, eu quero bem a viola Dentro do meu coração Eu quero bem a viola dentro do meu coração Adeus morena Dentro do meu coração porque ela me acompanha Porque ela me acompanha Porque ela me acompanha na minha vadiação Adeus morena Vamos dar a despedida, vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Vamos dar a despedida meu amigo e camarada Adeus morena Meu amigo e camarada, que para dois cantador Que para dois cantador Que para dois cantador despedida não é nada Adeus morena Vamos dar a despedida, vamos dar a despedida Vamos dar mais uma vez Vamos dar a despedida, vamos dar mais uma vez Adeus morena Vamos dar mais uma vez, já foi uma, já foi duas Já foi uma, já foi duas Já foi uma, já foi duas Não há de chegar a três Adeus morena

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15. Dondom (duas moças na janela)

Aqui venho de tão longe Rompendo marés e vento Aqui venho de tão longe Rompendo marés e vento Somente para não faltar No vosso divertimento Fui andando pela rua Encontrei com dois soldados Fui andando pela rua Encontrei com dois soldados Me deram vozes de preso Com ordem do delegado Duas moças na janela Disseram elas: não prenda meu namorado Duas moças na janela Disseram elas: não prenda meu namorado Com polícia não se brinca Merece ser castigado Vou m’embora, vou m’embora Para o meio do sertão Vou m’embora, vou m’embora Para o meio do sertão Preso cativo me leva Não é por meu gosto, não Fui andando pela rua... Vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Vamos dar a despedida Meu amigo e camarada Não comemo e não bebemo Também não ganhamo nada Fui andando pela rua...

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16. Tonta

Este é o primeiro verso Que eu canto neste salão Salvando todas as senhoras E os senhores cidadãos Menina passai a tonta Passai ligeiro que eu tenho pressa Menina passai a tonta Passai ligeiro que eu tenho pressa Onde tem moça bonita Moça feia não conversa Vamos cantar mais um verso Pra depois a despedida Sina que Deus nos deu Isso queremos cumprir Menina passai a tonta Passai ligeiro que tenho presa Menina passai a tonta Passai ligeiro que tenho presa Onde tem moça bonita Moça feia não conversa Meus senhores com licença Despedida ‘imo dar Nossas licenças são poucas Nesta se vai acabar Menina passai a tonta Passai ligeiro que tenho presa Menina passai a tonta Passai ligeiro que tenho presa Onde tem moça bonita Moça feia não conversa

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