a poetica da confluencia

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  • 7/24/2019 A poetica da confluencia

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    REELRevista Eletrnica de Estudos Literrios, Vitria, s. 2, ano 8, n. 11, 2012. 1

    HAROLDO DE CAMPOS E A POTICA DA CONFLUNCIA

    Clarisse Lyra SimesMestranda em Literatura Hispano-AmericanaUniversidade de So Paulo

    Resumo: Haroldo de Campos conhecia mltiplas lnguas, o que lhe permitiu a leitura de diversastradies literrias em um estrato profundo, o que sem dvida influenciou sua formao como poeta.Traduziu autores de pelo uma dezena de lnguas, sempre com uma forte conscincia de trans -criao.

    Naquela que se considera sua obra-prima, Galxias, encontram-se lnguas variadas introduzidas em meioao portugus materno, constituindo-se assim um livro onde idiomas, tradies literrias e procedimentosestticos se interpem como em um universo de linguagem. O presente trabalho se dedica a detalhar

    como a lngua portuguesa aparece na obra de Haroldo de Campos matizada pelo influxo de lnguasestrangeiras, especialmente no poema-livro Galxias (1984) e na antologia de poesia chinesa Escrito

    sobrejade(1996).

    Palavras-chave: Haroldo de Campos Galxias. Haroldo de Campos Escrito sobre jade. Haroldo deCamposTraduo.

    Resumen: Haroldo de Campos conoca mltiples lenguas, lo que le permiti la lectura de diversastradiciones literarias en un estrato profundo, lo que sin duda influy en su formacin como poeta. Tradujoautores de por lo menos una decena de lenguas, siempre con una conciencia muy fuerte de trans-criao. En aquella que se considera su obra maestra, Galxias, se encuentran lenguas variadasintroducidas en medio al portugus materno, constituyndose as un libro donde idiomas, tradicionesliterarias y procedimientos estticos se interponen como en un universo da linguagem. El presentetrabajo se dedica a detallar como la lengua portuguesa aparece en la obra de Haroldo de Campos matizada

    por el influjo de lenguas extranjeras, especialmente en el poema-libro Galxias(1984) y en la antologade poesa chinaEscritosobrejade(1996).

    Palabras-clave: Haroldo de Campos Galxias. Haroldo de Campos Escrito sobre jade. Haroldo deCamposTraduccin.

    um simples contgio de significantes

    essa toro de significados no instante

    Haroldo de Campos

    largamente reconhecida a destreza demonstrada por Haroldo de Campos na leitura e

    traduo de diversas lnguas. Poeta, crtico e tradutor, tal faculdade transpassa sua

    produo nos trs gneros. Uma rpida olhada em sua bibliografia demonstra o que

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    estamos falando: Haroldo traduziu, do original, James Joyce, Maiakvski, Mallarm,

    Dante, Octavio Paz, Homero, teatro clssico japons, poesia provenal e chinesa, a

    Bblia, etc., fazendo sempre acompanhar as tradues ensaios e estudos crticos. Sabe-se

    ainda que Galxias, livro-poema que geralmente considerado a sua obra-prima, est

    repleto de palavras e expresses em idiomas estrangeiros variados.

    O que poucas vezes se pergunta a intensidade e o tipo de presso que o conhecimento

    e o uso das lnguas estrangeiras exercem na obra de Haroldo de Campos. Minucioso em

    seu trabalho e incumbido de preocupaes lingustico-filosficas, ele prprio oferece

    (especialmente quando se trata de traduo) uma srie de ensaios e para-textos que

    publicizam e justificam seus propsitos poticos e suas escolhas lingusticas. Atravs de

    um aparato tcnico e crtico, expondo as verses consultadas, Haroldo chega muitas

    vezes a dissecar os procedimentos por ele utilizados, inibindo, dessa maneira (por fazer

    crer que est j tudo explicado), estudos que busquem investigar os modos da presena

    da lngua estrangeira em seus textos, seja nas transcriaes, seja em sua poesia

    propriamente autoral.

    Mobilizados por esta questo, pela forma como a lngua portuguesa pode ser

    interpelada, forada ou matizada pelas lnguas estrangeiras na obra de Haroldo de

    Campos, e considerando a iminncia que ela parece adquirir neste contexto, por se tratar

    de um autor cujas reflexes estavam sempre voltadas para a materialidade e os

    processos de conformao da lngua, propomos uma leitura de Escrito sobre jade

    (coletnea de tradues de poetas chineses) e de Galxias, que flagre no texto

    haroldiano os processos que configuram essas relaes.

    A princpio, os dois livros parecem apresentar procedimentos radicalmente opostos noque concerne ao tratamento das lnguas estrangeiras.Escrito sobre jade uma antologia

    publicada primeiramente em 1996 e reeditada em 2009 com o acrscimo de um ensaio e

    algumas tradues. Trata-se de poesia clssica chinesa reimaginada em portugus por

    Haroldo de Campos. Segundo ele, essas reimaginaes foram realizadas com os

    recursos da poesia moderna, utilizando tcnicas que seguem e radicalizam a lio

    paradigmtica de Ezra Pound (CAMPOS, 2009, p.13). So, na edio mais recente, 31

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    poemas de autores como Li Po (701-762), Wang Wei (701-761), Tu Fu (712-770), Lu

    Lun (748-800) e at mesmo Mao Tse-Tung (1893-1976), que cultivou a forma potica

    clssica.

    Conforme Haroldo detalha em ensaios como Trs verses do impossvel: Wang Wei

    (CAMPOS, 1997) e A torre do grou amarelo de Li Po a Mao Tse -Tung(CAMPOS,

    2009), ele parte dos ensinamentos de Ernest Fenollosa e de sua proposta de composio

    ideogramtica, para tentar dotar, ao mximo, suas transcriaes das nuances

    interpretativas do original chins, atravs de recursos fnicos, sintticos, lexicais e

    grficos, que procuram compensar o aspecto pictogrfico do original na transio para

    uma lngua fontica. Haroldo explica:

    Procuro compensar os aspectos caligrfico-visuais de uma poesiamonossilbica, escrita por meio de ideogramas, adotando tcnicas deespacializao grfica da poesia moderna para dispor o texto no branco da

    pgina e usando, quase exclusivamente, a composio em caixa-baixa,dispensando a pontuao habitual (vrgulas e pontos finais) (CAMPOS,2009, p. 14).

    Desse modo, a presena do chins nos textos traduzidos se manifesta (j considerando

    que se manifesta) subterraneamente, subjacente sua composio, que visa imprimir ao

    texto em portugus certas impresses de leitura similares quelas proporcionadas pela

    lngua oriental.

    Em Galxias livro-poema composto de 50 fragmentos, lanado integralmente em

    1984 (verses parciais haviam sido publicadas anteriormente) , ao contrrio, o que

    temos a presena fsica e incontestvel, na superfcie do texto, de palavras, sentenas e

    expresses em pelo menos uma dezena de lnguas estrangeiras (pudemos identificar

    ocorrncias de latim, grego, francs, alemo, italiano, ingls, japons, nuatl, russo,

    tcheco e espanhol). Esse dado, por si s, denota a diferente natureza da utilizao dos

    extratos lingusticos em uma e outra obra, alm do fato bvio de que se tratam por

    mais que Haroldo tenha realizado suas tradues dentro do discurso da alteridade, onde

    o texto traduzido vale por ser um outro texto (CARDOZO, 2009, p. 183), no qual

    transparece a personalidade potica do tradutorde gneros diferentes: Galxias um

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    livro totalmente autoral, enquanto os poemas deEscrito sobre jadepossuem uma matriz

    cujos efeitos semnticos e estticos se perseguem, ainda que nunca pela via da

    literalidade.

    Da decorre uma distino aguda entre as lnguas de Galxiase deEscrito sobre jade,

    que pode ser percebida em uma rpida folheada dos livros. Neste ltimo, levando em

    conta aquilo que A. C. Graham considera a menos dispensvel qualificao literria

    de um tradutor do chins: o dom da conciso (CAMPOS, 1997, p.173), Haroldo de

    Campos transcria poemas de extrema economia lingustica, em que o poder maior

    encontra-se na limpidez da metfora, na clareza da imagem que carece de adjetivao.

    em Galxias, por outro lado, que, contagiado pelo neobarroco propagado por Severo

    Sarduy (GUIMARES, 2009, p. 92), Haroldo tem a oportunidade de explorar

    largamente um procedimento que est presente tambm na composio deEscrito sobre

    jade, mas em escala muito menor. Ele justifica:

    Em poesiaadverte Jakobsontoda coincidncia fonolgica sentida comoum parentesco semntico (e no apenas aquelas coincidnciasfundamentveis etimologicamente, como na paraquese, mas, de modo

    amplo, como no caso da paranomsia latu sensu, quaisquer similitudesfnicas confrontveis semanticamente, num processo fecundante geral de

    pseudo-etimologia ou etimologia potica (CAMPOS, 1994, p. 48).

    Assim, os fragmentos que compem Galxiasso construdos em favor da fruio das

    etimologias e falsas etimologias, do fluir rtmico da lngua atravs da colocao

    incessante de palavras que se avizinham no som, fazendo aflorar sentidos mltiplos e

    dando ao texto a forma de torrente, que pouco tem a ver com a enxuta tenso dos

    poemas chineses.

    Muito embora essas divergncias to claras, a composio dos respectivos livros ainda

    pode guardar uma ntima relao. Em um nvel superficial, observamos que as tcnicas

    acima referidas por Haroldo como mtodos de compensao na traduo do chins, a

    composio em caixa-baixa e a dispensa da pontuao habitual, esto presentes tambm

    em seu poema-livro, e talvez de um modo ainda mais radical, pois nele no se

    encontram sequer os sinais de dois pontos e ponto e vrgula presentes nas

    reimaginaes. Do mesmo modo, os to aludidos recursos fnicos utilizados por

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    Haroldo em Escrito sobre jade (os ecos, as rimas assonantes, harmonizaes

    consonantes e assonantes, rimas etimolgicas, rimas internas, aliteraes, ressonncia

    de vogais tnicas), dissecados por ele nos ensaios e afirmados enquanto modos de se

    manter ou de se sugerir as especificidades do chins na transio para a lngua

    portuguesa, esto mais do que presentes nas Galxias, constituindo mesmo uma

    dimenso fundamental do texto, j que, diferentemente da coletnea de traduesonde

    aparecem como medium, no poema-livro tais recursos integram o primeiro plano das

    significaes.

    Convergncia imemorial

    Em Escrito sobre jade, h duas maneiras de manifestao de lnguas estrangeiras no

    portugus. A primeira e mais bvia, a possvel subjacncia do chins nos textos

    vertidos ao portugus. Numa traduo, como se sabe, existe sempre uma matriz com a

    qual o texto traduzido possui uma relao de intertextualidade em alto grau. Relao

    que pode se estabelecer de formas diferentes, a depender das concepes e escolhas do

    tradutor. Haroldo de Campos privilegiou sempre um modo de traduzir no qual,

    conforme explica Maurcio Cardozo, a despeito de no se perder do horizonte a relao

    com um texto de partida, leva-se s ltimas consequncias as implicaes de assumir o

    texto traduzido como um outro texto(CARDOZO, 2009, p. 183).

    Tal pressuposto, porm, jamais implicou, na obra tradutria do poeta, negligncia com o

    original. Ao contrrio, Haroldo bastante criterioso em relao ao trabalho de traduo:

    Num ensaio de 1969, [...] propus, inspirando-me nas idias de Fenollosa eEzra Pound, mas recorrendo tambm a outras fontes (Yu-Kuang Chu, E. H.Von Tscharner, R. Jakobson, W. McNaughton), os seguintes critrios detrabalho: a) exame do texto original, com auxlio de verses intermedirias;

    b) estudo dos principais ideogramas, para desvelar neles, dentro das balizassemnticas lexicalizadas, o casulo metafrico, etimolgico-visual, suscetvelde aproveitamento potico; c) manter a conciso sinttica e o caracterstico

    paralelismo; d) tirar partido dos recursos tipogrficos de espacializao napgina, usando, inclusive, de modo sistemtico, composio em caixa-baixa(CAMPOS, 2009, p. 98).

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    A leitura dos poemas coletados em Escrito sobre jade, acompanhada da leitura dos

    ensaios referentes ao processo de realizao dessas tradues, demonstram, no mais das

    vezes, coerncia entre as enunciaes tericas e as realizaes textuais. Mas, mais do

    que avaliar a pertinncia ou a validade dos critrios tradutrios de Haroldo de Campos,

    interessa-nos ver, no texto traduzido, as formas particulares que assume a lngua

    portuguesa quando trabalhada sob a presso da lngua chinesa e como ela moldada

    para recriar, no contexto da poesia moderna e brasileira, a experincia do poema

    clssico chins.

    A espcie de leitura que propomos, embasada por Maurcio Cardozo quando este diz

    que o texto traduzido se realiza dominantemente como um texto na e da cultura de

    chegada(CARDOZO, 2009, p. 183), endossada por Haroldo de Campos quando ele

    destaca, de entre seus atributos de tradutor, o porte de um tirocnio de formas e de

    artesanato potico de quase meio sculo de ofcio no portugus do Brasil (CAMPOS,

    2009, p. 110). Ideia que ele corrobora ao afirmar que o xito dessas transposies

    [como realizaes poticas em lngua portuguesa] ser o melhor servio que a traduo

    poder prestar, numa lngua ocidental, ao original em idioma chins do qual procede

    (p. 111).

    Observemos, pois, que lngua Haroldo engendra nesses poemas.

    Ernest Fenollosa, em seu Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a

    poesia ensaio determinante para a apropriao da poesia chinesa clssica pelo

    modernismo ocidental, faz uma anlise do idioma chins que v, nas etimologias dos

    ideogramas, a primazia dos verbos transitivos sobre os nomes e os verbos nominais.

    Segundo ele, teria se cristalizado no aspecto pictrico dos caracteres chineses, certasugesto de ao, que seria proveniente da etimolgica derivao dos substantivos a

    partir dos verbos. Com o intuito de conservar ou aproveitar esta caracterstica singular

    do ideograma chins, Fenollosa diz que, ao traduzir, necessrio evitar sempre que

    pudermos, os adjetivos, nomes e formas intransitivas, buscando, pelo contrrio, os

    verbos fortes e individuais (1994, p. 121) e ressalta que, em especial, deveramos

    evitar o [is] (p. 133).

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    Em uma leitura atenta dos 31 poemas includos em Escrito sobre jade, encontramos

    apenas duas ocorrncias do verbo ser e nenhuma do verbo estar, o que indica que

    Haroldo de Campos levou a srio as recomendaes de Fenollosa. Na maioria das

    ocasies de predicado nominal, Haroldo opta por elidir o verbo. No poema Ki-Fu:

    senhor do machado da luz(CAMPOS, 2009, p. 39), encontramos os seguintes versos:

    nsgarras e caninosdo rei

    por que nos lanastes em desgraageneral?

    O que poderia ser o predicativo de ns, garras e caninos do rei, colocado entre

    travesses, transformando-se em aposto, recurso que substitui a construo discursiva

    ns que ramos as garras e os caninos do rei. No s o verbo ser desaparece da

    superfcie textual (conforme recomendado por Fenollosa), como a metfora conserva

    maior poder visual e evocativo, por aparecer despida de partculas de valor meramente

    discursivo, como o pronome quee os artigos. No mesmo poema, encontramos ainda:

    generalsem tino e sem ouvidoque fizestes?

    Aqui, ao invs de usar adjetivos para qualificar o general, como os pares louco e

    surdo ou insensatoe teimoso, Haroldo optapor duas locues adjetivas que, devido

    presena da preposio, conservam mais do que um nome o sentido da ao. A

    preposio sem traz consigo a ideia de falta de algo e deixa o sentido mais aberto

    neste contexto, pois permite a possibilidade de que a falta de tino e de ouvido do generaltenha sucedido apenas no momento decisivo de que fala o poema, enquanto que o uso

    do adjetivo louco, por exemplo, ou teimoso aponta primordialmente para uma

    caracterstica intrnseca ao general, para uma definio sua, e no para o fato de que ele

    no atinou para algo e no ouviu o que devia ter ouvido e acatado em determinado

    momento, antes de cometer o desatino denunciado pelo poema.

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    No poema A ctara de cinqenta cordas (CAMPOS, 2009, p. 91) lemos os seguintes

    versos:

    Chuang-tzu sol nascente sonha-se borboleta

    Wang-ti alma-primavera muda-se em pssaro noturno

    Nestes versos, transparece fortemente o possvel intento de Haroldo de Campos em

    destacar a transitividade da imagem. Primeiro na forma como ele adjetiva os

    personagens atravs de imagens que contm em si uma ao: o sol nascente que

    sobe no horizonte, que assoma, irrompe, e a alma-primavera, que floresce ou faz

    florescer. E, mais notadamente ainda, nas construes sonha-se borboleta e muda-se

    em pssaro noturno, nas quais a colocao reflexiva do pronome inclui radicalmente o

    sujeito na ao, muito mais do que numa construo como sonha ser borboleta. Alm

    disso, as imagens colocadas, reforadas pelos verbos no presente do indicativo, parecem

    flagrar (com sua ideia forte de metamorfose, sugerida tanto mais pela presena da

    borboleta) os sujeitos em plena transformao, em pleno ato transitrio.

    Outro exemplo bastante expressivo deste procedimento encontra-se no poema O

    refgio dos cervos (CAMPOS, 2009, p. 51).

    raios do poente filtram na espessuraum reflexo ainda luz no musgo verde

    A imagem completa representa um momento muito fugaz. Na montanha vazia, os

    raios do poente filtram no bosque um reflexo que ainda luz, mas que logo deixar de

    s-lo. A percepo da transitividade da qualidade do reflexo e, logo, da passagem do

    tempo, se d precisamente pela colocao do advrbio ainda, que significa at o

    momento, at agora, at ento. Caso houvesse optado por um adjetivo, certamente

    se perderia o carter breve da cena, que seria, neste caso, esttica: raios do poente

    filtram na espessura um reflexo luminoso no musgo verde, por exemplo, parece-se

    mais descrio de um retrato ou de uma pintura, onde o momento capturado e fica

    eternizado, sem o movimento e a passagem de tempo inerente observao da natureza

    propriamente dita.

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    O desejo de Haroldo de Campos de perseguir em suas tradues aquilo que na poesia

    clssica chinesa toca de perto os ocidentais que nela se debruam sua conciso,

    sentimento de inacabado, de sustentada surpresa, de aforismtico vigor aliado

    plasticidade da imagem visual (CAMPOS, 2009, p. 97) revela-se ainda mais

    contundente ao se cotejarem suas verses com outras realizadas em portugus.

    Observemos o seguinte poema de Li Po, reimaginado por Haroldo (p. 59):

    leitolcida luaalumbra

    uma dvida:

    geia naterra escura?

    cabea altalho nalua prata

    cabea cadamente naterra antiga

    O poema original, disposto ao lado da verso em portugus, composto por quatroversos que Haroldo desdobra em quatro estrofes de trs versos. Na primeira estrofe ecoa

    a aliterao com a consoante lquida /l/, presente nas quatro palavras. A repetio da

    vogal tnica /u/ conduz o ritmo do poema at a terceira estrofe: lcida, lUa, alUmbra,

    Uma, dvida, escUra, lUa. A palavra leito possui uma rima interna com geia, e, nas

    ltimas estrofes, rimam-se o primeiro com o terceiro verso: alta/prata, cada/antiga.

    Alm do aspecto fnico extremamente trabalhado, este poema prima por uma intensa

    economia lingustica, resultando em alto poder de sugesto. Comparemo-lo a outrasverses em portugus, encontradas na internet.

    Na pgina da Wikipdia referente a Li Po, h uma traduo sem autoria atribuda,

    bastante literal e, provavelmente, de origem mecnica:

    Na noite tranquila

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    Penso na noitediante da cama a lua brilhaem cima da geada est a dvidamiro em cima e h lua cheiamiro embaixo e sinto saudade da minha terra

    No site Garganta da Serpente encontra-se outra verso para o mesmo poema,

    igualmente sem atribuio da autoria. Vejamos:

    Recordao na calma da noite

    Diante da minha cama, estende-se o luar.Parece geada no cho.Levanto a cabea: avisto a montanha e a lua.Torno a deitar-me. E penso na minha terra natal.

    Alm da omisso do ttulo, a primeira diferena clara que se nota entre a verso de

    Haroldo de Campos e estas outras duas a impresso de impessoalidade de sua

    traduo, resultante da eliso que ele faz dos verbos. Em Trs verses do impossvel

    (CAMPOS, 1997, p. 171), Haroldo explica que o chins possui uma ambiguidade

    sinttica prpria, decorrente da falta de marcas de flexo, tempo ou modo em seus

    verbos. Desse modo, substituindo os verbos pela descrio dos movimentos ou das

    aes, ele consegue manter a ambiguidade sinttica do chins, pois no se pode saber,

    ao certo, quem tem a cabea alta e o olho na lua prata (ou seja, quem olha pra cima

    contemplando a lua) ou a cabea baixa e a mente na terra antiga.

    As duas verses annimas apresentam uma preocupao pelo estabelecimento de

    sentido, pela clareza semntica, que as distanciam imensamente do poema de Haroldo,

    onde tudo mistrio. Nas verses annimas, temos uma cena prosaica: algum que se

    deita, contempla a lua, v a geada (ou a possibilidade dela) e sente saudades de casa; o

    que no deixa de ser uma bela cena, mas transparente demais, ao ponto de se perderem

    na clareza outras possibilidades de interpretao. Haroldo de Campos, ao contrrio,

    alm de construir uma pequena pea leve em seu ritmo sonoro, aspecto menosprezado

    pelas outras tradues, deixa nas mos do leitor a fruio dos sentidos possveis.

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    A segunda maneira da presena de lnguas estrangeiras em Escrito sobre jade, referida

    inicialmente, diz respeito introduo que Haroldo faz de epgrafes em dois dos poemas

    traduzidos, na Ode 20 (CAMPOS, 2009, p. 31) e na Ode 72 (p. 35), ambas extradas do

    Shi-King ou Livro das odes, compilao das mais antigas composies poticas

    chinesas. Na Ode 20, Haroldo de Campos selecionou como epgrafe o seguinte verso

    de Salvatore Quasimodo, poeta italiano morto em 1968, oriundo do poema Lamento

    per il sud:

    un lamento damore senza amore

    Na Ode 72, Haroldo ps a seguinte epgrafe, cuja expresso em provenal significa

    sem ver e foi extrada da biografia do trovador Jaufres Rudels, apaixonado por uma

    dama que nunca chegou a ver (CAMPOS, 2009, p. 18):

    cantar de amiga (ses vezer)

    Ao introduzir no texto traduzido tais epgrafes, cria-se uma conjuno significativa. No

    espao do livro aberto, convivem trs momentos poticos distintos: o original chins na

    pgina esquerda, escrito antes do ano 600 a. C. (data da primeira compilao das odes),seguindo o cnon da poesia clssica chinesa; a epgrafe em referncia poesia

    trovadoresca (tomemos este exemplo) na parte superior da pgina direita, evocando,

    com cantar de amiga, um gnero potico localizado na Idade Mdia, com referncia

    ainda a um poeta desta tradio; e, por fim, o texto traduzido ocupando o centro da

    pgina direita, inscrito dentro da tradio da poesia moderna ocidental, ps-vanguardas

    e modernismos, e dentro do mbito mais especfico da poesia brasileira.

    Com essa intromisso, Haroldo de Campos se empenha em fazer conviver,

    sincronicamente, grandes momentos da poesia universal, distantes no tempo e no

    espao. A introduo das epgrafesque de forma alguma aleatria, mas fruto de uma

    interpretao que complementa as verses dos poemas o dado mais concreto de

    como Haroldo de Campos faz intervir diversas tradies poticas em suas

    reimaginaes; de como, atravs da traduo, ele as coloca em dilogo, levantando

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    pontos de convergncia entre elas; e de como suas verses, ao menos essas verses

    constantes emEscrito sobre jade, se realizam como lugar de confluncia de poticas e

    lnguas distintas.

    Um livro de viagem onde o leitor seja a viagem

    Confluncia de poticas e lnguas distintas, por sinal, uma expresso que pode definir

    a experincia de leitura proposta por Galxias. Nos 50 fragmentos constantes do livro,

    mesclam-se ao portugus, sentenas ou palavras em 11 lnguas diferentes, fazendo-nos

    indagar o sentido da utilizao destas lnguas no texto, a funo que elas cumprem ali.

    Em Ora, direis, ouvir Galxias, Haroldo nos d algumas pistas:

    Quanto s palavras e frases em outros idiomas sempre de valor mntrico,transmental, ainda quando no imediatamente alcanvel no nvel

    semnticoessas palavras e frases so, via de regra, traduzidas ou glosadasno contexto, fluindo assim e confluindo para o ritmo do todo (CAMPOS,2004, p. 119).

    J Rodrigo Guimares, em artigo sobre o neobarroco em Galxias, afirma, indo um

    pouco na direo contrria:

    Quanto ao fluxo do poema-livro Galxias, a entrada de outros idiomas dizrespeito a um entrechoque de vozes e lnguas diversificadas que sugeremcenas prosaicas de um viajante que cruza territrios estrangeiros em espaoscosmopolitas. [...] Evidentemente que promove efeitos de esgaramento dofio narrativo, mas no h um trabalho especfico na materialidade dosignificante como as palavras-montagem joycianas que aglutinam diferenteslnguas em um mesmo vocbulo. Os atravessamentos do outro no espaoconstelar de Galxias quase sempre no passam de falas corriqueiras, dasvozes da cidade (GUIMARES, 2009, p. 91).

    De fato, em variados momentos, a colocao de lnguas estrangeiras em Galxias

    refere-se especificamente irrupo de vozes de personagens ou a nomes de lugares,

    espcies de locaes dos fragmentos, momentos estes em que sobressai no livro seu

    aspecto de prosa, que se embaralha por vezes com a poesia. No entanto, como bom

    poeta e tradutor, Haroldo de Campos sabe da importncia que cada palavra, em sua

    materialidade, assume no poema (tanto mais sendo ele um concretista), e, por mais que

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    ele no realize mescla de morfemas entre as lnguas, nos parece precipitado pensar que

    no h no livro, por este motivo, um trabalho especfico na materialidade do

    significante. O que percebemos na leitura do poema, ao contrrio, que o uso das

    palavras estrangeiras em Galxias obedece a propsitos bastante especficos, que

    extrapolam a simples colocao de sentidos semnticos que poderiam ser postos em

    lngua portuguesa, mantendo-se na traduo as referncias e a intertextualidade e

    avanam para o mbito dos sentidos fnicos, rtmicos, que trabalham justamente na

    dimenso material, alm de evocar (sendo evocar uma palavra importante, j que

    Haroldo fala em valor mntrico) atmosferas, universos, imaginrios ligados s lnguas

    e s obras a que se faz referncia.

    No fragmento aafro,por exemplo, os trechos em italiano e ingls funcionam como

    vozes que irrompem no discurso, literalmente. Este um dos muitos fragmentos que

    possui uma espcie de enredo, operando de formahbrida entre a poesia e a prosa.

    Notem como se intercalam a voz de um suposto narrador em portugus e as vozes

    estrangeiras dos personagens:

    casarescortios alternando com/ vilas lei pu dirmi dov la via del

    consolato im not italian im/ amerkan de dentro de um carro esporte e o sr.poderia dizer-me onde/ fica o escritrio das aerovias suas try to understandteacher please/ capito da aviao tentando revender relgios pirateados [...](CAMPOS, 2004, [s.p.]).

    Estando os fragmentos localizados em pontos variados do globo, as palavras e

    expresses em lnguas estrangeiras prestam-se tambm descrio de paisagens e

    cenas, recriando o imaginrio despertado por determinados lugares, como nas

    referncias a la casa del chapiz, em Granada, a staatsgalerie em Stuttgart,

    goldene stadt, expresso alem que designa Praga como a cidade de ouro, ao rio

    moldau, em tcheco, que corta Praga ao meio, dentre muitas outras.

    Do mesmo modo, a intromisso da lngua estrangeira no texto em portugus serve

    muito bem sobreposio de imagens realizada constantemente no livro, por determinar

    uma quebra no discurso, com a subsequente colocao de outra instncia enunciativa.

    No trecho acima transcrito, por exemplo, as peripcias do capito da aviao se

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    sobrepem a cenas digressivas das cidades de Roma e Pompia, como se operando no

    texto dois fios condutores.

    No fragmento multitudinous seas, por outro lado, o aparecimento do ingls, do latim e

    do grego responde a impostaes de outra ordem.

    multitudinous seas incarnadine o oceano oco e regougo a proa abrindo um /sulco a popa deixando um sulco como uma lavra de lazli uma cicatriz /contnua na polpa violeta do oceano se abrindo como uma vulva violeta [...](CAMPOS, 2004, [s.p.]).

    A abertura do fragmento com o verso multitudinous seas incarnadine, extrado do

    Macbeth de Shakespeare, deflagra a irrupo direta da referncia na instnciaenunciativa, sem mediao. O livro/viagem de Haroldo de Campos, atravs de

    procedimentos como este, instaura um universo de confluncias que dispensa a

    mediao a priori. Ela aparece, no entanto, posteriormente, na traduo ou glosa da

    expresso emprestada, ou, ainda, no caso especfico deste fragmento, na re-elaborao

    da imagem shakespeariana em portugus, na qual Haroldo se empenha durante todo o

    fragmento, desdobrando de inmeras maneiras a metfora do mar multitudinoso que de

    verde passa a vermelho.

    mas a espuma mas a espumaescuma do mar recomeado e recomeando/ otempo abolido no verde vrio no aqurio equreo o verde flore/ como umarvore de verde e se v azul roxo prpura iodo de/ novo verde glaucoverde infestado de azuis e slfur e prola e prpur/ mas o mar mas o mar

    polifluente se ensafirando a turquesa se abrindo/ deiscente como um frutoque abre e apodrece em roxoamarelo pus de sumo [...] (CAMPOS, 2004,[s.p.]).

    Tal trabalho de composio, que explora as possibilidades de se enunciar em uma lngua

    determinada imagem visual, sustenta a impresso de que o trabalho com a lngua

    portuguesa o principal no texto ou, antes, a certeza de que a lngua portuguesa ,

    indiscutivelmente, a lngua de Galxias.

    Ainda assim, a colocao do verso de Shakespeare em ingls fundamental. Citando

    Macbeth no original, o texto remete tambm a Ezra Pound e a Jorge Luis Borges,

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    escritores que tinham o verso transcrito como seu preferido (assim nos informa Haroldo

    em Ora, direis, ouvir Galxias). O que soa como a citao da citao, a referncia da

    referncia. O verso significativo, belo e representativo no apenas em sua dimenso

    inicial de produo, no contexto da obra de seu autor, mas tambm por ter sido o

    preferido de outros grandes autores admirados por Haroldo, que certamente escreveram

    ou de alguma maneira deixaram registrada a sua predileo pelo verso, o que de algum

    modo o re-significa, meio ao modo do Quixote escrito por Pierre Menard (BORGES,

    2004).

    O fragmento sasamegoto d ainda outra dimenso a essa confluncia entre lnguas

    flagrada por Haroldo de Campos.

    num leque o oval azul subindo como uma lua tsuki aoi tsuki mas/ ahoj querdizer tambm ol ou al adeus numa outra parte onde a neve neva/ e omoldau congela onde a neve calva e o moldava alva [...] (CAMPOS, 2004,[s.p.).

    Aparecem a palavras em japons e tcheco, e justamente a partir de uma espcie de

    coincidncia entre estas lnguas: conforme o autor informa (CAMPOS, 2004, p. 121),

    aoi azul em japons e ahoj ol em tcheco se sobrepem no textodeflagrando a interseco entre dois planos e contextos narrativos distintos que se

    desenrolam no fragmento: uma viagem de carruagem pelo Japo e uma viagem de trem

    por Praga. O japons e o tcheco, lnguas cuja origem e formao so absolutamente

    distintas, possuem uma palavra cuja pronncia e escrita fontica semelhante, ainda

    que os significados no coincidam. Este fragmento parece ter sido inteiramente

    construdo em cima desta sintonia, deste pequeno momento de reconhecimento que liga,

    de alguma forma, o destino das duas viagens e conecta num timo de segundo as duaslnguas e as duas paisagens: um aceno (ahoj) parte da brancura gelada de Praga em

    direo lua azul de cu claro no Japo. Mas a epifania do momento dura pouco, pois

    ahoj tambm quer dizer adeus, e logo as duas viagens seguem i soladas, indiferentes

    uma para com a outra.

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    Momentos de ambiguidade e hibridez entre as lnguas tambm so encontrveis nas

    Galxias, especialmente entre o portugus e o espanhol. No fragmento reza calla y

    trabaja, lemos os seguintes versos:

    a cal caladao embaixador de sua/ majestade britnica visita um patrcio emgranada crianas correndo/ fugindo para os vos das portas e o brancoviolado a medula do branco/ ferida a fria a alvria do branco refluda sobresi mesma plazuela/ sn Nicolas j no mais o que fora o que era h doisminutos j rompido/ o sigilo do branco arisco rido do clcio branco da calque calla/ y trabaja [...] (CAMPOS, 2004, [s.p.]).

    Este fragmento gira sobre a inscrio reza calla y trabaja feita, provavelmente

    clandestinamente, pichada, no muro da Casa del Chapiz, em Granada. Neste contexto, a

    palavra calada (destacada na transcrio), possvel no portugus e no espanhol,

    carrega a sentena de ambiguidade. Em portugus, o verbo calar significa silenciar

    e, em espanhol, atravessar ou penetrar. No fluxo do fragmento, a ambiguidade

    proporcionada por este verbo, enriquece o poder da imagem, que tanto pode significar a

    cal branca do muro que no diz nada, signo mesmo do silncio e da impolutez (anterior

    inscrio), como pode significar o muro atravessado, penetrado, devassado pela

    inscrio, conforme sugerido posteriormente: o branco violado a medula do branco

    ferida.

    Obviamente, Haroldo no opera seus jogos lingusticos apenas pela presena de lnguas

    estrangeiras na superfcie do texto. Ao contrrio, seu principal trabalho em Galxias

    com a lngua portuguesa, forando-a, truncando-a, fazendo-a fluir por outros modos que

    no os da lngua instituda, oficial. Morfologicamente, Haroldo age criando

    neologismos atravs dos procedimentos de composio e derivao. Sintaticamente, ele

    deixa as sentenas flurem no discurso, sem ordenamento, sem pontuao, sem a

    necessria ordem lgica do discurso comum. Os encadeamentos esto embaralhados.

    Com isso, ele privilegia o ritmo do texto, servindo-se de mtricas variadas que no

    respeitam a organizao dos versos/linhas, mas que se revelam na leitura e esto

    embutidas no texto de maneira quase insuspeita.

    Variedades populares do portugus chegam a aparecer em alguns fragmentos,

    destacando-se ento suas possibilidades criativas e criadoras, sua no-submisso arte

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    oficial. No fragmento circulad de ful, aparece: o povo o melhor artfice

    (CAMPOS, 2004, [s.p.]), uma referncia frase de Dante sobre o poeta provenal

    Arnaut Daniel, que aparece no canto XXVI do Purgatrio: Il miglior fabbro. Antes de

    Haroldo de Campos, T. S. Eliot usou esta citao na dedicatria de seu poema The

    waste land. Escreveu ele:For Ezra Pound:Il miglior fabbro.

    O re-uso da frase no fragmento apresenta uma dupla perspectiva: ao se apropriar dela,

    Haroldo de Campos tanto se insere nessa linhagem da poesia moderna representada

    principalmente por Pound e Eliotque buscou suprimento na poesia medieval e antiga,

    propondo a renovao da poesia moderna a partir da incorporao de poticas clssicas

    e s vezes desconhecidas (caso da tradio chinesa); como funde, em uma sentenao

    povo o melhor artfice o erudito em favor do popular, como se dizendo: Arnaut

    Daniel no o melhor artfice, Ezra Pound no o melhor artfice; o melhor artfice o

    povo, esse o verdadeiro inventa-lnguas (CAMPOS, 2004, [s.p.]) outra frase do

    fragmento, desta vez extrada de Maiakvski. Com estas colocaes, Haroldo exalta a

    inventividade da arte popular, alm de realizar materialmente o encontro entre a poesia

    popular nordestinaj que o texto construdo, nos diz Haroldo, com tcnicas de som

    e sentido dos martelos galopados, dos desafios dos cantadores nordestinos e a

    poesia trovadoresca medieval, sua matriz.

    As sentenas e palavras em lnguas estrangeiras em Galxias, longe de serem

    meramente ilustrativas, ou dispensveis, inscrevem-se em uma instncia narrativa e

    potica na qual se supe a confluncia das lnguas, que instaura a possibilidade de

    convivncia entre elas. No que o fato de essas expresses serem em sua maioria

    traduzidas tenha um fim didtico, de no excluir aquele leitor que no conhece tais

    lnguas. Tampouco se trata da mera citao, ou de recurso de autoridade ou estilo. Aocorrncia dessas expresses, frases e palavras em Galxiasparece ligar-se muito mais

    ao ouvido; parece disposta a despertar aquela suposta caracterstica da poesia, que,

    segundo Emil Staiger, poderia ser lida mesmo numa lngua que no se conhece,

    podendo-se apreciar ainda assim suas qualidades sonoras e rtmicas (STAIGER, 1997).

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    GUIMARES, Rodrigo. A esttica neobarroca do poema Galxias de Haroldo deCampos. AISTHE, Rio de Janeiro, n. 4, 2009.

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    ANNIMO. Recordao da noite calma. Disponvel em:. Acesso em: 28

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    ANNIMO. Na noite tranquila. Disponvel em: .Acesso em: 28 jun. 2011.

    Recebido em 31/03/2012Aprovado em 24/07/2012

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