drummond e a poetica da interrupcao

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    - - - - - - - - - - - - - - - - 1

    859 Drummond Revisitado / Organizado por Reynaldo

    Darnazio. So Paulo: Unimarco Editora, 2002.

    152 p.

    Bibliografia

    I

    SBN 85-86022-41-1

    1. Literatura brasileira L Ttulo

    CDD 869.9

    _______ . J

    J~IH~I; J

    S;t OMRICO~

    : iY J ~

    UN IV ERSIDA DE S D M ARC O S

    CH A N CE LER :

    O lav o

    Dr um m o n d

    RE ITOR : Ernan i B icudo de P aula

    U NIM A R C O E DITO RA

    PRESIDENTE : Luc iane de P aul a

    ED ITO R : R ey na ldo Da m a zio

    ED IT O R-ASS IS TEN TE: Lu iz P au lo R ouanet

    PR O J E T OG R FI CO E O IA G R A M A O : R egi na Ka sh ih ar a

    C O N S ELH O ED ITO RIAL : lvaro Cardoso G om es, Ca rlos Fe lipe M oi ss,

    F ab io M ag al he s, Fernando

    Nov ais

    I sma iL X avier , M arce lo Pe rin e,

    Pa u lo Ro ber to de A lmeida, S r g io Paulo R ouane t

    A V . N A Z AR . 9 00 . IP IR AN GA .0 42 62 -1 00 . S O PAU L O SP

    TEL : (11) 3471 -57 00 R . 57 77 FA X: (11) 6163 -7 34 5

    E -M A IL : unim arco@ sm arcos.b r

    S IT E: w w w .s m a rc o s.br /e d ito ra/edito ra.htrn

    IMPR E S S O E A C A B AM E N T O : P alas A thena TE L: ( 11 ) 3 2 0 9- 62 88

    IS BN : 85- 860 22 -41- 1

    U N I M A R COE DIT O RA2002

    \

    .\,Iil,r;[ 1 ; \ :iC l

    t i

    u m r o

    I.

    Apresentao . C arlo s Fe li p e M o is s , 5

    No ta s

    M argem da L eitu ra de D rummond T arso de M elo ; 9

    M elan co lia Gauche na V ida S rg io A lcide s

    l

    29

    D ru m m ond e a Po ti ca da In terrup o. Eduar do S ter zi

    49

    . . 191

    C o is as F o ra do T em po : a Po tica d o R esduo- Je rn im o Te lxel ra ,

    Poes ia e Humo r- Ivone D a r R ab el lo

    1 07

    E spao e M emr ia em Boi tempo C han tal C aste ll i

    1

    1 23

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    Urna pedra no meio do caminho

    ou apenas um rastro, no importa.

    a Cronos. Seu material, como o amor, triste como vrio,

    / e sendo vrio um

    S 79.

    A brisa leva e traz o canto, mas

    fica o seu resduo de significaes.

    '~-i...n uietante estranham_~2 ,-d.9s objeI().s_maiJamilia-

    res'~,.es(;reve Agamben, o re~_~le o mEal~

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    no se esforaram, no entanto, para apreender seu sentido

    mais fundo e integral, no se empenharam o suficiente (11 ; \1 1

    era seu escopo) para compreender, para alm de cada poem.i

    isolado, o porqu dessa imprevista constncia, dessa correu

    te subterrnea que aqui e ali eclode superfcie, ao longo d I'

    uma obra de resto to variada. Tampouco se aproximaram ;\

    hiptese - a qual procuro desenvolver nas pginas seguintes

    - de que, extrapolando o esquema narrativo mencionado,

    embora sempre orientando-se por seu modelo, a

    interrupo

    pode ser entendida como princpio tico-esttico, ou ncleo

    significante elementar, do que h de mais prprio e intenso, l'

    vlido para a posteridade, na poesia de Drummond.

    Podemos iniciar nossa perquirio perguntando-nos se

    poemas to diferentes, produzidos em pocas e contextos to

    distintos, como No meio do caminho , poro e A mquina

    do mundo , para nos restringirmos por ora a apenas alguns dos

    mais conhecidos, podem de fato ser reduzidos a um esquema ou

    princpio comum. Ou somos vtimas de uma iluso de tica?

    Para os leitores em geral (e mesmo para os no-leitores

    que conhecem seus versos somente de orelhada), Drummond

    parece ser sobretudo o poeta do impasse, do bloqueio, da inter-

    rupo. No meio do caminho provavelmente o principal

    responsvel por esta percepo. Escrito nos ltimos meses de

    1924 ou nos primeiros de 1925, dentro ainda, portanto, do

    esprito irreverente e combativo da Semana de Arte Moder-

    na, no guarda, porm, seno resqucios do gosto modernis-

    ta pela stira, pela piada, Embora, como acertadamente nota

    I 111 1 . Costa Lima, a referncia s retinas to fatigadas possa

    I lida como um momento de ironia , pela quebra que

    1 1 11 \> lH: estrutura permutacional dos versos anteriores, pela

    1 11 1

    roduo da nota subjetiva e emocional na seqncia quase

    III.\ql1inaP, essa ironia no coincide com o cmico, e o poe-

    - 4

    1 \1 .\ ,

    no seu todo, resulta

    srio,

    engenhosa concreao poetlca

    .l.:

    1110notonia e do tdio modernos, mas tambm de algo

    Ill.\isque isso. Tal seriedade, argumenta Arnaldo Saraiva, s

    \ Illltribuiu para a recepo polmica do poema, desde sua

    11IIhlicaono livro

    Alguma poesia,

    em 1930: os leitores, que

    11 1 \

    sua ignorncia ou preconceito teriam preferido tom-Io

    I'H.:osamente,foram compelidos a torn-lo a srio. Inmeras

    loram as tolices ditas e escritas sobre seus poucos versos;

    t.utas amostras foram coligidas pelo prprio Drummond no

    1

    ?

    A chave humorstica no por definio avessa ao fenmeno que

    1 _. c

    l'stamOs definindo como

    interrupo.

    Comprova-o outro poema

    produzido na mesma poca, Cota zero

    (Poesia completa.

    Rio de

    Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 28):

    Stop.

    A vida parou

    ou foi o automvel?

    t :

    certo, porm, que este um poema bem menos rico em sugest:s, do

    que No meio do caminho , Daquele, podemos extrair toda uma etica;

    deste, apenas um convite a um sorriso irnico.

    I LIMA, Luiz Costa. O princpio-corroso na poesia de Carlos

    Drummond de Andrade , em

    Lira e antilira:

    Mrio, Drummond, Cabral,

    2 ed. revista (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), p. 136.

    Haroldo de Campos, um dos inventores da poesia concreta, observa

    que No meio do caminho pode ~er ~isto - e_,assi~, que,? vem os

    poetasconcretos - como uma verdadeira concreao

    11l1

    g

    UlStl,CaHaroldo

    de Campos, Drummond, mestre de coisas , em

    Metalmguagem

    1 sutras metas: ensaios de teoria e crtica literria (SoPaulo: Perspectiva,

    1992),

    p,

    50.

    Ver Arnaldo Saraiva, Apresentao , em Carlos Drummond de

    Andrade (seleo e montagem),

    Uma pedra

    110

    meio do caminho:

    biografia de um poema (Rio de Janeiro: Editora do Autor 1967)

    ,

    50

    51

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    divertido volume Uma pedra no meio do caminho: biogral:

    de um poema. Mas, afora o pitoresco de algumas re ae s

    desinteligentes de primeira hora e por isso mesmo ainda

    vivn .,

    na lembrana, resta a repercusso invulgar que o poema desdi'

    sempre obteve. Como observa Saraiva, esta repercusso pode

    ria justificar-se pela sntese, nele alcanada, de uma situao

    limite numa expresso memorvel. Em poucos anos, o verso

    No meio do caminho tinha uma pedra - especialmente em

    sua reverso quismica, Tinha uma pedra no meio do cami

    nho , ou na abreviao uma pedra no meio do caminho -

    se incorporou ao repertrio coloquial do brasileiro mdio, como

    artifcio retrico eficiente para a nomeao de situaes de

    impasse as mais diversas. E, contribuindo para a compreenso

    pblica de Drummond como poeta

    par excellence

    do embara-

    o, da obstncia, outro verso seu, igualmente assimilado ao

    patrimnio lingstico comum, desempenha funo semelhan-

    te, embora em formulao interrogativa: E agora, Jos? .

    Talvez nenhuma outra medida da pertinncia de um poeta

    em relao ao povo do qual emergiu seja to eloqente quanto

    a absoro de um ou dois versos seus

    linguagem do dia-a-dia.

    Em momentos como este, o poeta parece retomar uma respon-

    sabilidade primitiva - esquecida ao longo de sculos de cres-

    cente desencantamento das relaes entre o ser humano e seus

    instrumentos de interveno na realidade - quanto criao c

    recriao da lngua. Todavia, quanto maior o poder de comuni-

    cao de um verso convertido em lugar-comum, quanto maior

    sua virtude emptica, seu apelo sentimental para o leitor e o

    falante, menor a chance de conservar sua significao e fora

    originais. Mas a elas que devemos retomar, sempre de novo.

    E, nesse retorno, no inesperado que nos surpreendamos, mais

    uma vez, como certamente j nos surpreendemos no passado,

    o

    00 1 \ \ J estranheza liminar e derradeira do poema, com sua dura-

    o

    1 1 1 1 : 1

    resistncia em ser decifrado. Para comear, No meio do

    o uuinho nos impressiona pela perfeio cristalina da forma,

    I o . \ : t extraordinria economia vocabular e sinttica:

    No meio do caminho tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    tinha uma pedra

    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento

    na vida de minhas retinas to fatigadas.

    Nunca me esquecerei que no meio do caminho

    tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    no meio do caminho tinha uma pedra.'

    No seria o caso de devassar estatisticamente a engenharia

    do poema, computando as ocorrncias e recorrncias de cad~

    Idavra ou sintagma (algo, alis, j feito alhures). O poem~ e

    1 :1 0

    conciso que a matemtica de sua composio, por aSSIm

    dizer, pode ser contemplada a olho nu. Destaquemos apenas os

    .Icitos de construo relevantes para nossa anlise.

    De incio, sublinhemos a relao especular entre os trs

    primeiros versos e os trs ltimos. Essa especularidade ou

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    simetria, pela presena, em ambos os versos, do segmenn,

    no meio do caminho , ainda que em posies divergent('~.

    A disposio

    es t r fic a

    irregular - uma quadra seguida de

    u nm

    sextilha - no obscurece a centralidade da seqncia NUlll';J

    me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas reri

    nas to fatigadas . De um ponto de vista semntico, o pOl'

    ma poderia ser recortado em duas quadras entremeadas _

    interrompidas - por um dstico. Essa centralidade, realach

    pela referida relao especular entre os versos que a anteco.

    dern e os que a sucedem, no casual. No meio do caminho

    de No meio do caminho , encontra-se, paradoxalmente, ()

    que no poema no pedra, mas declarao emocional sobre o

    deparar com a pedra. OLl seja, uma ruptura com a notao

    referencial e com o tom anteriormente estabelecidos. A pro-

    psito desse paradoxo, Costa Lima, como j vimos, falou

    em ironia ; em nossos termos, podemos dizer que estamos

    diante de uma interrupo dentro da interrupo.

    Contudo, se a primeira interrupo, anunciada insisten-

    temente desde o primeiro verso (a pedra no meio do cami-

    nho), atingia somente o sujeito do poema, a segunda inter-

    rupo atinge tambm o leitol~ que percebe, de repente,

    inviabilizar-se a forma de leitura programada desde o incio.

    Este o momento de mxima tenso da trama potica, cor-

    respondente - com todas as ressalvas devidas s diferenas

    de gneros literrios e perodos histricos _ ao que, na des-

    crio da estrutura da tragdia clssica, designava-se

    anagnorisis: o momento em que o sentido das aes prece-

    dentes, e at ento relativamente desconexas, se revela, para

    o personagem e para o espectador (ou leitor), e o desfecho

    aparece como conseqncia lgica, inevitvel. Essa tenso

    dependendo do grau de autoconscincia do sujeito do poem;

    54

    l

    i '

    (., ,llal no coincide necessariamente com o poeta-autor, em-

    . '1';1 sua imagem possa com a dele fundir-se, sobretudo na

    1 1 1 ica), tambm pode assalt-lo: como elucida Northrop Frye,

    ,I .iuagnorisis no simplesmente o conhecimento pelo he-

    loi

    do que lhe aconteceu [...] mas o reconhecimento ~a forma

    I J 1 d p e J determinada da vida que ele criou para, SI ,mes.mo,

    1 1 1 1 1

    uma implcita comparao com a vida potencial incriada

    Iille ele abandonou? Sendo assim, o Nunca me esquec~-

    .. equivaleria a uma verso inconformada, porque ati-

    1 1.

    v. i em sua negatividade, da anagnorisis subentendida no

    Iristssimo verso de Manuel Bandeira: A vida inteira que

    podia ter sido e que no foi?, Nunca me esquecerei tes-

    icmunha

    da vida

    que efetivamente

    (e que no pode ser de

    outro jeito), testemunha do compromisso tico (e trgic,o do

    poeta com o obstculo. Afinal, os aspectos problemticos

    do encontro do poeta com a realidade - o encontro com a

    pedra parece ser uma metfora desse encontro mais com-

    preensivo - no podem ser simplesmente elididos, ma~ a~-

    res devem ser internalizados, transfundidos no cerne srgru-

    ficante do qual promanam a autoridade (a

    auctoritas,

    o ser-

    autor) e a voz do poeta. S assim o poema se protege contra

    a mentira, qual se arrisca qualquer objeto esttico por um

    vcio de origem do seu processo de constituio como tal:

    a estetizao - a ordenao dos elementos materiais de modo

    a compor um objeto esttico - pode facilmente redundar

    em falsidade, ao representar (re-apresentar) em formas

    ,I

    i, /

    l

    i

    I

    I

    ? FRYE, Northrop.

    Anatomy of Criticism:

    Four Essays (Princeton:

    Princeton University Press, 1990), p. 212.

    8 BANDEIRA, Manuel. Pneumotrax, em

    Libertinagem (Poesia

    completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 206).

    55

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    2

    apaziguadas o que na realidade se apresenta irresolvido. E

    .1'.

    grandes obras de arte, como observa Adorno, no

    podcui

    mentir

    9.

    Por esse vis, no ser exorbitante vincular a

    seric

    dade indigitada por Arnaldo Saraiva em No meio do cami

    nho seriedade - residual, mesclada ironia cmica - do

    trgico moderno, talvez a orientao esttica mais afim ver-

    dade, a essa verdade difcil e inapreensvel a que j nos acostu-

    mamos, na literatura contempornea. Basta evocarmos, em

    corroborao, a relevncia dos procedimentos de

    repetio c

    interrupo em Kafka ou em Beckett.

    A dramatizao da desiluso - isto , do processo pelo

    qual a verdade volta a se impor depois de um momento de

    (auto-)engano - um procedimento bsico do trgico. Em

    Drurnmond, a interrupo inseparvel da desiluso. Para o

    sujeito-personagem de No meio do caminho , aquele que

    diz Nunca me esquecerei ... , o dstico central tem o sentido

    primeiro de um alvio em relao ao impasse figurado sob a

    espcie da repetio compulsiva (esse alvio talvez se reproduza

    no leitor). Ao pronunciar aquela frase, permite-se escapar, mes-

    mo que por um instante mnimo, constatao obsessiva da

    presena do objeto - presena no passado ( tinha), mas atu-

    alizada pela memria - para esboar uma reao mental

    situao em que se encontra.

    O

    alvio revela-se, porm, mo-

    mentneo e ilusrio: o pensamento, ao tentar reagir, s reafir-

    ma a impossibilidade de esquecer o acontecimento . Mas o

    que importante salientarmos agora que o Nunca me es-

    quecerei ... no decorre de, tampouco implica, um autntico

    conhecimento do objeto-realidade para alm da mera

    , lIstatao de sua existncia e presena - constatao que,

    , .- fato, contrria ao conhecimento, se o compreendemos

    , ,,1110 penetrao intelectual na realidade, avanando alm

    d:1

    superfcie dos objetos.

    A palavra acontecimento, com a qual Drummond

    ';c

    refere ao encontro com a pedra, jamais empregada

    illgenuamente por ele.

    uma palavra de uso reiterado em

    su a

    obra por designar com exatido uma forma de evento

    muito peculiar de sua tentativa de explorao e de inter-

    pretao do estar-no-mundo lo, podendo mesmo ser

    en-

    rendida quase como sinnimo do que estam os denominan-

    do

    interrupo.

    Esta possibilidade de sinonmia j est pre-

    vista

    etimologicamente:

    acontecimento

    deriva do verbo

    contingere, por meio do incoativo contingescere (ou, mais

    precisamente, de sua variao contigescere), tocar a, em;

    alcanar, atingir, chegar a; encontrar, topar; suceder; re-

    sultar de 11. O que importa ao poeta nesta palavra que

    sugere a irrupo ou instituio imprevista de uma determi-

    nada verso da realidade e, por imprevista, dificilmente as-

    similada, contornada ou solucionada por meio da reflexo

    ou da inteligncia, que, se bem-sucedidas, produziriam co-

    nhecimento.

    O

    acontecimento uma forma imperfeita de

    evento - pois que euentus comporta as noes de sada,

    10

    Com essa expresso, Drummond intitula uma das sees de sua

    Antologia potica

    (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962), p. 1962.

    11

    Ver Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa (Rio de Janeiro:

    Objetiva, 2001), p. 64.

    ADORNO, Theodor W.

    Teoria esttica,

    traduo de Artur Moro

    (Lisboa: Edies 70, s/d), p. 151.

    57

    56

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    8/24

    desenlace, resoluov'? - a qual pe prova, e por fim arru-

    na, a capacidade cognitiva do poeta. Por isso, o incipit de

    Procura da poesia: No faas versos sobre acontecimen-

    tos 13. Acontecimentos e versos, a rigor, so incomunicveis

    entre si (e logo mais voltaremos ao tema da incornunicabilidade,

    caro a Drummond). Por isso, tambm, a ainda escassamente

    compreendida epgrafe de Claro enigma, extrada de Valry:

    Les unements m ennuient (em francs, perde-se a distin-

    o que traamos entre acontecimento e evento). O ennui, tal

    como encarnado neste livro, no o sentimento da renncia

    interveno poltica (e potica) na realidade, mas sim o senti-

    mento da conscincia de que os instrumentos costumeiros

    da cognio, mobilizados por Drummond, essencialmente

    poeta e no pensador, fracassam frente complexidade e

    inapreensibilidade do real. Felizmente, a desistncia da

    inteleco no redunda na desistncia da poesia. Pelo con-

    trrio: a poesia, em Drummond, parece enraizar-se justa-

    mente na derrocada do intelecto , para usarmos, com sen-

    tido um pouco diverso, uma expresso de Breton destacada

    por Hugo Friedrich em seu estudo sobre a lrica moderna .

    12 Idem, p. 1277.

    13 Procura da poesia , em A rosa do povo (op. cit., p. 117).

    1 4

    Podemos lembrar urna observao de Dcio Pignatari sobre Drummond:

    No a tantos assim cabe to justamente a famosa tirada de Mallarm a

    Degas: poesia no se faz com idias, mas com palavras. Suas idias, sobre

    literatura, poltica, arte ou cinema, no se elevam acima do repertrio

    culto mdio do intelectual brasileiro; chega at a surpreender que a sua

    retrica esquiva o enleie em lugares to cornuns. Bastou-lhe, no entanto,

    uma idia: a do poema . Dcio Pignatari, Drurnmond: oitentao, em

    Letras artes midia

    (So Paulo: Globo, 1995), p.

    70.

    15

    Ver Hugo Friedrich,

    Estrutura da lricamoderna,

    traduo de Marise

    M. Curioni (So Paulo: Duas Cidades, 1991), p. 143-144.

    ( ) verso crucial do Poema de sete faces - seria uma rima,

    u.io seria uma soluo 16 - ilustra bem a compreenso desi-

    ludida, embora irresignada, que Drummond tinha dos po-

    deres da poesia, limitados embora inevitveis e mesmo im-

    prescindveis. De modo um pouco enviesado, mas com a

    vantagem de aqui mais uma vez recorrer-se

    palavra acon-

    iccimento (e j no ttulo), essa compreenso tambm ani-

    ma Em face dos ltimos acontecimentos: Oh sejamos

    pornogrficos, convocao em que consiste o primeiro

    verso, sntese do poema, pode ser lida, metaforicamente,

    como convite a sermos plenamente, vitalmente, poticos.

    Pois ser potico - o contraste entre rima e soluo leva-nos

    ;J crer - trocar, por fora do enfrentamento malogrado

    com a realidade, o dever da razo, o dever do conhecimen-

    to, pelo investimento na materialidade da linguagem, pelo

    apelo aos sentidos. Davi Arrigucci

    J r .

    observa que o que

    est em jogo , na circularidade de No meio do caminho ,

    sempre o princpio e o fim da criao potica: a pedra

    ser, recorrentemente, a pedra no caminho de toda criao

    drumrnondiana

    .

    Para Drummond, a criao fundar-se-

    ia sempre numa dificuldade bsica , a qual fator

    desencadeante e, simultaneamente, entrave do ato potico .

    O problema da interpretao de Arrigucci ter praticamen-

    te equiparado o ato potico com a reflexo: A pedra o

    que move o poeta reflexo e procura da poesia, que ela,

    entretanto, barra, obrigando-o ao crculo infernal da busca

    sem fim, a retomar indefinidamente . Essa infinitude, acredi-

    tamos, no a Sda reflexo, tal como se encontra formulada

    16 Poema de sete faces , em Alguma poesia (op. cit., p. 5).

    1 7 ARRIGUCCI JR., Davi. Op. cit., p. 72-73.

    58

    59

    l

    i

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    9/24

    Nenhum desejo neste domingo

    nenhum problema nesta vida

    o mundo parou de repente

    os homens ficaram calados

    domingo sem fim nem comeo.

    Gastei uma hora pensando um verso

    que a pena no quer escrever.

    No entanto ele est c dentro

    inquieto, vivo.

    Ele est c dentro

    e no quer sair.

    Mas a poesia deste momento

    inunda minha vida inteira.

    I li

    \

    ' , 1 ,

    ~

    nos fragmentos de Friedrich Schlegel e de Novalis estuda

    dos por Walter Benjamin l~, mas sim a da impossibilidade

    da reflexo, que constitui a poesia.

    Poema que aconteceu o expressivo ttulo de um po

    ema que compartilha as pginas de Alguma poesia COlll

    No meio do caminho . Nele,

    poema

    e

    acontecimento

    Se

    confundem na perspectiva da interrupo:

    . nverte-se em forma, poema. O poema, anuncia-o j o t-

    lido, torna-se, aos olhos do poeta, um acontecimento.

    O intervalo entre acontecimento e poesia encontra uma

    II'resentao mais concentrada - com a abolio do aconte-

    . uncnto externo, ou antes a sua subsuno ao ato da criao

    pt>tica- em outro poema do mesmo livro:

    A mo que escreve este poema

    no sabe que est escrevendo

    mas possvel que se soubesse

    nem ligasse.

    Aqui fica evidente que a interrupo o movimento, ou,

    m elho r , no-movimento, gerador da verdadeira poesia, cons-

    riruda

    por versos idealmente inescritos, perpetuamente la-

    u -ntes , dos quais os versos efetivamente escritos parecem ser

    .ipcnas

    plida imitao. Pode-se concluir que a aspirao mais

    .ilra de Drummond para seus poemas que tambm sejam,

    de algum modo, acontecimentos, interrupes, tanto para o

    11l ,

    traduo de Mrcio Seligmann-Silva (So Paulo: Iluminuras e Edusp,

    1 99 3 ),

    19 Poema que aconteceu, em Alguma poesia (op. cit., p.

    17).

    '

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    10/24

    disso exemplar ), no parece interessado em esta belecer

    com

    o leitor um relacionamento baseado na empatia ou na id e n t

    i

    ficao, e sim, antes, no choque ou em alguma outra modali

    dade mais branda de

    estremecimento.

    Oficina irritada

    :1

    expresso suprema desse intento:

    pedicuro , em sua carnalidade ostensiva, no deixa mar-

    1 ',1 1 1 :1 dvidas: o poema deve ser incorporado - isto , agrega-

    .1 ,10 prprio corpo - pelo leitor. Essa nfase na corporeidade

    II,I )

    gratuita. Drummond parece estar postulando um novo

    IIII:,;1r,mais corpreo, material, para a memria e, por exten-

    ',:11),

    para o que no poeta produz poemas. Um lugar alm do

    uu c lec to e da reflexo. Lembras-te, carne?, indaga em

    ' .scada , de Fazendeiro do ar:

    Oficina irritada, um soneto que se nomeia como so-

    11 1 '1 '0, um soneto sobre o prprio ato de escrever o soneto

    .iuora

    apresentado, exprime um primado da vontade estra-

    uho potica do acontecimento e da interrupo tal como a

    vnhamos delimitando at aqui. O acontecimento, por defi-

    uio,

    o que no pode ser programado, o que se d sem

    mot i va o

    racional aparente. Se compararmos Oficina ir-

    ritada com Poema que aconteceu , verificaremos uma

    discrepncia escandalosa entre o mpeto das expresses

    voluntaristas quero e h de e a serena renncia de no

    ,:1

    be ou nem ligasse . Mas n o parece ha ver genuna con-

    I

    radi o

    entre ambos os comportamentos, do que parece ser

    m d ice a pretenso desmesurada de um poema que ao mes-

    1110

    tempo saiba ser, no ser . Passarem-se quase vinte anos

    entre a composio de um poema e a de outro, algo tinha de

    mudar, e no seria errneo conceb-los como duas reaes

    .ilternativas,

    mas no excludentes, ao desafio da assimilao

    da realidade, na forma de acontecimento, ao poema - e realida-

    de, em ambos os casos, impressa apenas em marca d'gua no

    poema, o que d a medida do desafio. E as duas reaes - o

    poema que aconteceu e o soneto duro - so unifica das por

    Eu quero compor um soneto duro

    como poeta algum ousara escrever.

    Eu quero pintar um soneto escuro,

    seco, abafado, difcil de ler.

    Quero que meu soneto, no futuro,

    no desperte em ningum nenhum prazer.

    E que, no seu maligno ar imaturo,

    ao mesmo tempo saiba ser, no ser.

    Esse meu verbo antiptico e impuro

    h de pungir, h de fazer sofrer,

    tendo de Vnus sob o pedicuro.

    Ningum o lembrar: tiro no muro,

    co mijando no caos, enquanto Arcturo,

    claro enigma, se deixa surpreenderY

    Ningum o lembrar o passo irnico essencial. A

    esperana de Drummond parece ser precisamente contrria:

    que, por difcil de ler e incapaz de despertar o prazer do

    leitor, o poema permanea, como permanecem as coisas in-

    cmodas, na memria. Ningum o lembrar deve, pois,

    ser relido o mais literalmente possvel: o soneto no precisa-

    r, de fato, ser lembrado; s o que foi esquecido pode ser

    recuperado pela recordao. O smile tendo de Vnus sob

    21

    Cano amiga, em

    Novos poemas (op. cit.,

    p. 231).

    22 Oficina irritada , em Claro enigma iop. cit., p. 261).

    .'1

    Escada, em Fazendeiro do ar io p cit. p. 409),

    6

    63

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    11/24

    sua disposio numa rgua de gradao progressiva que V ;II

    da estudada indiferena at a afronta enftica ao leitor ('

    seus hbitos prazenteiros.

    Em suma, o que estamos propondo que Drummond arma

    uma teia de correspondncias entre o modo como autor e po

    ema relacionam-se com a realidade e o esquema narrativo

    (.l,

    interrupo; secundariamente, tambm entra nesse jogo o modo

    como ele ambiciona que o leitor se relacione com o poema.

    O movimento do poeta em direo realidade um movi

    mento essencialmente frustrado, impedido no apenas pela

    dificuldade ou impossibilidade de apreenso do real- o im-

    prio do real, que no existe

    _24,

    mas sobretudo pelo impe-

    rativo tico de no escamotear essa inapreensibilidade, ou,

    antes, de exp-Ia s claras. Em outros termos: a interrupo

    pode ser uma metfora ou, mais precisamente, uma alego-

    ria do modo singular de Drummond ir ao encontro da rea-

    lidade e anex-Ia ao poema na forma de acontecimento.

    3

    A realidade com que Drummond se preocupa e ocupa

    sempre radicalmente histrica. Com a sagacidade habitual,

    Antonio Candido interpreta No meio do caminho nos se-

    guintes termos: a sociedade oferece obstculos que impedem

    a plenitude dos atos e dos

    sentimentos'f .

    (Que atos e senti-

    mentos so estes, o que pretendemos investigar.) Mesmo

    quando Drummond se refere natureza ou a alguma forma de

    24

    Procura , em

    A vida passada a limpo (op. cit.,

    p. 427).

    25 CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond, em

    Vrios escritos (So Paulo: Duas Cidades, 1995), p. 121.

    64

    Ir.\nscendncia, estas so de pronto rebaixadas ao cho da his-

    ruria,

    embora s vezes de forma to sutil que leitores desaten-

    ItlS no o percebem. A compreenso mais funda de um livro

    I,tjllivo como Claro en igm a passa pelo rastreamento paciencioso

    . perspicaz dos dados da realidade histrica obscurecidos pelo

    ';1,/,1110

    sublimis

    adotado na maioria dos poemas. Ainda h mui-

    I() a fazer nesse sentido, e a tarefa imensa: a sutileza do poeta

    demanda uma correlativa sutileza do crtico. Srgio Buarque

    dt: Holanda j ressaltava a persistncia da preocupao hist-

    rica nessa fase de Drummond: H de iludir-se [... ] quem veja

    nesse aparente desapego ao 'acontecimento' o reverso neces-

    s.irio de alguma noo transcendental da poesia: poesia enten-

    dida como essncia inefvel, contraposta ao mundo das coisas

    fugazes e finitas:. Porm, no mais das vezes, Drummond

    no esconde sua adeso histria - e histria no somente

    como coleo de antigualhas, ao menos no nos seus melho-

    res poemas, mas como processo a desenrolar-se no presente e

    :\0

    qual o poeta, dado seu compromisso moral e poltico com

    os homens presentes, no pode ficar alheio. Essa adeso

    enunciada enfaticamente em Mos dadas:

    No serei o poeta de um mundo caduco.

    Tambm no cantarei o mundo futuro.

    Estou preso vida e olho meus companheiros.

    Esto taciturnos mas nutrem grandes esperanas.

    Entre eles, considero a enorme realidade.

    O presente to grande, no nos afastemos.

    No nos afastemos muito, vamos de mos dadas.

    (,

    HOLANDA, Srgio Buarque de. Rebelio e conveno - I, em

    O esprito e a letra: estudos de crtica literria, v. 2, organizao,

    introduo e notas de Antonio Arnoni Prado (So Paulo: Companhia

    das Letras, 1996), p. 502.

    65

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    12/24

    No serei o cantor de uma mulher, de uma histria,

    no direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

    no distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida

    ,

    no fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

    O tempo a minha matria, o tempo presente,

    [os homens presentes,

    I

    irummond sublinha a perda da funo comunicativa da lin-

    ,.II:lgem como sintoma de tais sentimentos e ressentimentos:

    j

    . 1

    (Na solido de indivduo

    desaprendi a linguagem

    com que homens se comunicam.)

    a

    vida

    presente.

    Como veremos adiante com mais clareza, essa nfase na

    linguagem no circunstancial:

    o

    insucesso da linguagem

    \ omunicativa especialmente revelador do malogro da

    ,ognio e pode ser considerado o ponto de partida da ins-

    i.rurao de uma linguagem outra, essencialmente intransitiva,

    entranhadamente potica.

    Talvez seja o momento, agora, de assinalarmos as seme-

    lhanas e diferenas iluminadoras entre o esquema da inter-

    rupo na poesia de Drummond e a estrutura do

    sublime

    tal

    corno descrita por Kant na

    Crtica do juizo.

    Para Kant, o su-

    l-lime

    produz-se por meio do sentimento de uma suspenso

    momentnea das faculdades vitais, seguida imediatamente por

    11 m

    transbordamento tanto mais forte das

    mesm as t .

    Esse

    xcntimento de suspenso se d quando o sujeito depara com

    1 11 11objeto propcio a isso, seja por sua grandeza ou por sua

    fora excepcionais. Frente a esse objeto, o esprito percebe-se

    simultaneamente - ou alternada mente - atrado e repelido.

    Quando a grandeza que impressiona o sujeito, temos o que

    Kant chama sublime matemtico ; quando a fora, o subli-

    ru e

    dinmico .

    A

    enorme realidade referida por Drummond

    parece configurar uma cena da primeira modalidade de su-

    l-lime,

    para a qual Kant oferece uma explicao elegante.

    ;j

    i

    II II

    I '

    I

    Devemos destacar, neste poema, inicialmente, a decla-

    rao peremptria de recusa ao episdico, que tambm,

    no sem paradoxo, devido exatamente a essa recusa, uma

    declarao implcita de apego ao episdico como figura

    elementar da temporalidade histrica mais abrangente.

    Ou

    seja, o acontecimento s vale para o poeta em sua insuper-

    vel insuficincia, por meio da qual alude sem mentira

    rea-

    lidade histrica como um todo, ou ao menos parte do

    todo acessvel sua percepo. Mas devemos sobretudo sa-

    lientar a conseqente definio da realidade do tempo pre-

    sente como enorme realidade.

    O

    compromisso com os

    homens presentes, assim convertidos em companheiros ,

    decorre precisamente da urgncia em enfrentar essa enor-

    midade, demasiada para um s homem:

    O

    presente to

    grande, no nos afastemos . No por acaso, em outro poe-

    ma de

    Sentimento do

    mundo, Drummond corrige a compa-

    rao que fizera entre seu vasto corao e o vasto mundo

    no P d f

    N-

    ema e sete aces: ao, meu corao no maior

    que o mundo. Por sua vastido ser menor que a do mun-

    do, que ele precisa conectar-se a outros coraes. No entan-

    to, a desiluso e o

    ennui

    dela resultante pungem mesmo na

    hora da expresso do compromisso - e, significativamente,

    27

    Mos dadas , em Sentimento do mundo (op. cit., p. 80).

    's Mundo grande , em Sentimento do mundo iop. cit., p. 87).

    / KANT, Immanuel. Crtica dei juicio, traduccin de Manuel Garca

    rvtorente (Madrid: Espasa, 1997), p. 184.

    66

    67

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    13/24

    A imaginao dividir-se-ia em duas atividades complemen-

    tares: a apreenso e a compreenso. A apreenso poten-

    cialmente infinita. Por maior ou mais numeroso que seja

    um objeto ou grupo de objetos, a intuio sensvel (respou-

    svel pela apreenso) capaz de percorr-I o por inteiro,

    desmont-lo em fragmentos menores e carreg-I o para os do-

    mnios do esprito. A compreenso, no entanto, torna-se to

    mais difcil quanto mais distante v a apreenso. O sublime

    assoma quando a compreenso atingse o mximo quaniunt

    esttico de apreciao't . A apreenso chega to longe que

    as primeiras representaes parciais fornecidas pela in-

    tuio comeam j a apagar-se da imaginao, exigindo, por-

    tanto, que o esprito retroceda para retomar o que perdeu - o

    que, mais uma vez, deixa a descoberto o que ele possua antes

    desse retorno ao passado.

    ento que a imaginao v des-

    pontar uma faculdade supra-sensvel, a qual, substituindo a

    compreenso humilhada, apresenta para o esprito, a partir

    dos dados oferecidos pela intuio, uma idia de infinitude.

    Envaidecido com a capacidade de superar as prprias limi-

    taes, o esprito sente-se invadir pelo sublime. Assim em Kant.

    Em Drummond, a situao mais complexa, pois a pas-

    sagem do jogo entre apreenso e compreenso para o triunfo

    da imaginao quase sempre bloqueada. Arrigucci, com acer-

    to, detecta, em No meio do caminho , um complexo sen-

    timento de no-poder do Eu 3. No uma imaginao

    jubilosa que amarra os cacos da vida na forma da enorme

    realidade , mas antes uma imaginao - a servio do conhe-

    cimento e da ao - profundamente cnscia de seus limites.

    f i . conscincia do aspecto limtrofe da imaginao e, por ex-

    1l:I1So, da representao da realidade est flagrante num

    poema de A vida passada a limpo em que Drummond revisa

    I que escrevera em Mos dadas , quase vinte anos antes:

    No cantarei amores que no tenho,

    e, quando tive, nunca celebrei.

    No cantarei o riso que no rira

    e que, se risse, oferta ria a pobres.

    Minha matria o

    nada.

    Proclama-se assim, de certo modo, a equivalncia entre

    o tempo presente e o nada. O nada' pode ser entendi-

    do na leitura cruzada de ambos os poemas, como cifra do

    tempo presente em sua impossibilidade de imaginao,

    reflexo, representao, ao. O silncio, mais uma vez, o

    horizonte do poema, e mais uma vez est vinculado ao

    fracasso da cognio: No canto, pois no sei .

    Esse flerte com o nada tambm um flerte com a morte, de

    que nada eufemismo: no cantarei o morto: o prprio can-

    to diz-se no mesmo poema; poesia, cano suicida , poe-

    , .

    sia, morte secreta , reitera-se noutro. De fato, nos poemas mais

    significativos de Drummond, no h recuperao exultante das

    faculdades vitais depois da suspenso inicial, como previa Kant

    na descrio do sublime, mas sim anulao, ao menos retrica,

    dessas faculdades e da prpria vida, como se v exemplarmente

    em O enterrado vivo 33 Vem da a afinidade com o mundo

    dos mortos que Drummond est sempre a confessar: alis, a sua

    famlia,

    considerao da qual retoma e m inmeros poemas,

    s tem cidadania em sua obra como catlogo de defuntos ou,

    I :

    I lr l

    I1

    30

    Idem, p.

    192.

    31 ARRIGUCCI JR., Davi. Op.

    cit.,

    p. 71.

    1 2

    Nudez , em

    A vida passada

    a

    limpo (op. cit.,

    p.

    419).

    13 O

    enterrado vivo, em

    Fazend e iro do ar (op. cit.,

    p.

    404).

    68

    69

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    14/24

    melhor, lbum de fotografias intolerveis, / alto de muin

    metros e velho de infinitos minutos , como se l em (

    h

    mortos de

    sobrecasaca:. A

    expanso hiperblica no

    es l'oI

    o e no tempo d conta da fora sublime agnica, da fora

    di

    interrupo, da imagem de sua famlia como figurao

    di

    uma certa abordagem da realidade pelo ngulo da mitologi..

    pessoal, da tentativa de compreenso da situao presente

    por meio de seus vnculos com o passado. legtimo

    qll

    alguns se espantem com que um poeta to voltado par ,I

    recordao do passado familiar identifique o tempo prescn

    te como sua matria; mas no h contradio: o tempo

    d . 1

    memria o presente, a partir do qual ela lana suas redes ao

    passado, para apanhar resduos. O Drummond autobio

    grfico antes autogrfico: escreve-se a si mesmo para ser,

    sugere Dcio Pigna

    tari . O

    vrtice de significao desses rc

    sduos o

    hic et nunc:

    eles valem pelo que depem do passa-

    do como elucidao do presente. Como se a pedra, com que

    se topou no meio do caminho no passado, devesse ser carrc-

    gada como

    souuenir

    e talism (e o na memria), o obstculo

    tornando-se parte do sujeito. Em Tarde de maio, Drummond

    diz levar consigo a lembrana do momento que d ttulo ao

    poema, Como esses primitivos que carregam por toda parte

    o maxilar inferior de seus mortos . Porm, se os primitivos

    imploram

    relquia sade e chuva e outros portentos,

    o poeta s pede sua tarde que continue,

    (...] no tempo e fora dele, irreversvel,

    sinal de derrota que sevai consumindo a ponto de

    converter-se em sinal de beleza no rosto de algum

    que, precisamente, volve o rosto, e passa...

    36

    Mais uma vez, o engano e a posterior desiluso: o sinal

    .lc derrota transmuta-se em sinal de beleza , mas num rosto

    que, logo aps responder ao olhar do poeta, passa.

    A

    mquina do mundo, do ponto de vista da compre-

    cn s o

    da realidade como realidade histrica e do paralelo

    com o sublime, um poema especialmente ilustrativo. Com-

    partilha com No meio do caminho o esquema narrativo

    b s ic o

    da interrupo. Entretanto, em vez de uma mera pe-

    dra o que o sujeito-personagem encontra em seu caminho

    ,

    .

    _ agora especificado como uma estrada de Mll1~S ',~v~-

    cando a paisagem mtico-familiar da terra natal - e a ma-

    quina do mundo, que diante dele se abre, oferece~do-lhe,

    aparentemente, o conhecimento absoluto da realidade, a

    total explicao da vida. A renncia de Drummond p~-

    rante a mquina provavelmente seu passo mais desterni-

    do no rumo da negatividade cognitiva, tico-esttica ou,

    numa palavra,

    potica:

    ' I

    A treva mais estrita j pousara

    sobre a estrada de Minas, pedregosa,

    e a mquina do mundo, repelida,

    se foi miudamente recompondo,

    enquanto eu, avaliando o que perdera,

    d

    -

    37

    seguia vagaroso, e maos pensas.

    i

    \1

    34 Osmortosdesobrecasaca,em

    Sentimento do mundo (op. cit.,

    p.

    7 3 ).

    35

    PIGNATARI,Dcio. A situao atual da poesia no Brasil, em

    Contracomunicao

    (SoPaulo: Perspectiva,1971), p. 100. Cf. Luiz

    CostaLima, Carlos Drummond de Andrade:memria e fico, em

    Dispersa demanda:

    ensaios sobre literatura e teoria (Rio de Janeiro:

    FranciscoAlves,

    1981),

    p.

    159-175.

    .16

    Tardede maio , em

    Claro enigma (op. cit.,

    p.

    264).

    \7 A mquina do mundo, em

    Claro enigma (op. c it.,

    p. 304).

    71

    70

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    15/24

    Mas falar em negatividade, a propsito deste pOCIII..

    falar ainda muito pouco. Alfreclo Bosi, com razo, encoun.:

    um precedente da imagem da mquina do mundo 11.1

    Grande Mquina que aparece em Elegia

    1938 .

    Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

    e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

    Mas o terrvel despertar prova a existncia da Grande M quin .i

    e te repe, pequenino, em face de indecifrveis palmeiras.P

    o horizonte de pensamento tangencia a kantiana coi-

    sa em si, o nurneno, incognoscvel, alm daqueles fen-

    menos que so, no poema, as imagens do mundo apenas

    csboadas no rosto do mistrio. Ou no abismo (abyssos:

    sem fundo) .'10

    Agora, a prpria relao do eu com o mundo exte-

    rior que vem enfrentada de modo imediato e em um

    discurso de tenso mxima. Sobe ao primeiro plano da

    conscincia a busca de um sentido que o sujeito empreen-

    deu, e que forma a pr-histria da sua narrativa. As pup i -

    las gastas e a mente exausta de mental' (o pleonasmo diz

    da intensidade do processo) so o remate de uma an-

    gstia cognitiva que se debateu em vo contra o muro

    de pedra da realidade.

    Lembremos, antes de mais nada, que as expresses frisa-

    .I:ISpor Bosi neste poema encontram correspondncia em No

    meio do caminho (retinas to fatigadas ) e em poro

    (nt:xausto ), de que logo nos ocuparemos. Devemos tambm

    .lcstacar a preciosa expresso angstia cognitiva, muito

    .idcquada caracterizao de A mquina do mundo e da

    poesia de Drummond como um todo. Entretanto, temos de

    ';cr cautelosos com a identificao do incognoscve1, em

    Iirummond, com o numeno kantiano. O incognoscvel, aqui,

    ~ ainda a realidade histrica, como um exame do poema dei-

    xa claro, e seu lugar no coincide com o da mquina, situado

    que est alm dela e de suas cavilaes.

    No podemos confundir o que a mquina oferece ao

    poeta com o que

    o verdadeiro objeto de sua busca. O dis-

    curso da mquina, ao interpor-se ao caminhante, ostensi-

    vamente falso, conversa de vendedor; atribui ao caminhante

    uma procura que no

    a dele, com a inteno de

    fa z-l o

    mudar de rumo e meta:

    Atentemos, nesta estrofe, para a representao do SII

    jeito pequenino frente s indecifrveis palmeiras c .\

    Grande Mquina de que elas so desdobramento, a COII

    duzir-nos novamente s proximidades do sublime. Mas repu -

    remos sobretudo no adjetivo indecifrveis , denotativo

    li;\

    incognoscibilidade do real.

    A mquina, em Elegia

    1938,

    poderia ser entendida,

    segundo Bosi, como a figura metonmica da sociedade .

    Em A mquina do mundo , seu significado mudaria:

    38 El . 1938 S'

    gia ,em

    enttmento

    do mundo (op.

    cit.,

    p. 86).

    39 B~SI, ~fredo. 'A mquina domundo' entre o smbolo e a alegoria ,

    ~m

    Ceu,

    inferno: ensaios de crtica literria e ideolgica (So Paulo:

    Atica, 1988), p. 88.

    e nem desejaria recobr-los,

    se em vo e para sempre repetimos

    os mesmos sem roteiro tristes priplos,

    Abriu-se em calma pura, e convidando

    quantos sentidos e intuies restavam

    a quem de os ter usado os j perdera

    40 BOSI, Alfredo.

    Idem,

    p. 88.

    73

    72

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    16/24

    tudo se apresentou nesse relance

    e me chamou para seu reino augusto,

    afinal submetido vista humana.f

    assim me disse, embora voz alguma

    ou sopro ou eco ou simples

    percusso

    atestasse que algum, sobre a montanha,

    impondo seu prprio discurso, em que vai pouco a pouco nome-

    .indo os dados da realidade histrica, objetos de sua busca frus-

    Iada, a partir justamente da imagem metafsica oferecida pela

    mquina, sem, ao menos de incio, confront-Ia abertamente:

    convidando-os a todos, em coorte,

    a se aplicarem sobre o pasto indito

    da natureza mtica das coisas,

    a outro algum, noturno e miservel,

    em colquio se estava dirigindo:

    O que procuraste em ti ou fora de

    As mais soberbas pontes e edifcios,

    o que nas oficinas se elabora,

    o que pensado foi e logo atinge

    teu ser restrito e nunca se mostrou,

    mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

    e a cada instante mais se retraindo,

    distncia superior ao pensamento,

    os recursos da terra dominados,

    e as paixes e os impulsos e os tormentos

    olha, repara, ausculta: essa riqueza

    sobrante a toda prola, essa cincia

    sublime e formidvel, mas hermtica,

    e tudo o que define o ser terrestre

    ou se prolonga at nos animais

    e chega s plantas para se embeber

    essa total explicao da vida,

    esse nexo primeiro e singular,

    que nem concebes mais, pois to esquivo

    no sono rancoroso dos minrios,

    d volta ao mundo e torna a se engolfar

    na estranha ordem geomtrica de tudo,

    se revelou ante a pesquisa ardente

    em que te consumiste ... v, contempla,

    abre teu peito para agasalh-lo

    .41

    e o absurdo original e seus enigmas,

    suas verdades altas mais que tantos

    monumentos erguidos verdade;

    o ltimo pedido da mquina , a rigor, suprfluo; sugere-o o

    silncio ( embora voz alguma ... ) de seu discurso. silencioso

    porque provm, provavelmente, do interior do prprio poeta,

    como segunda voz que a sociedade, a Grande Mquina, incul-

    cou-lhe, para refrear seus impulsos de insubmisso. Ou seja, o

    que Marx designaria ideologia. Mas o poeta, com uma mano-

    bra astuta, consegue resguardar-se dessa voz capciosa e acaba

    e a memria dos deuses, e o solene

    sentimento de morte, que floresce

    no caule da existncia mais gloriosa,

    A natureza mtica das coisas , essa total explicao da

    vida, esse nexo primeiro e singular , bem poderiam conter

    41

    A mquina do mundo , em Claro enigma (op. cit., p. 301-302).

    42 Idem (op. cit., p. 302-303).

    74

    75

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    17/24

    4

    o absurdo original e seus enigmas ou a memria dos deuses,

    mas dificilmente o que nas oficinas se elabora ou os recurso',

    da terra dominados . Aqueles pomposos convites a um conhc

    cimento etreo e imaterial so, como diz o poeta mais adiante,

    defumas crenas convocadas para as quais ele j no tem

    ;1

    f necessria - o que, alis, sua obra toda atesta. Aos poucos,

    a voz prpria do poeta, que ainda encabulada comeava a fazer

    frente

    segunda voz, a da mquina, vai-se encorajando, at ()

    ponto em que se desembaraa definitivamente dessa voz

    l'

    mesmo do falso ser que, na interioridade dele, ela animara:

    1 \

    negatividade do poema se amplia pela imagem das mos

    pensas , em posio decisiva no ltimo verso da ltima

    -strofe.

    preciso l-Ia como reviso da imagem das mos

    .l.idas'' de Sentimento do mundo. Pendem, sobre a estrada de

    Minas, mos incomunicveis, como a mo que, por imunda,

    deve ser cortada em A mo suja , de

    JOS

    45

    ,

    e como se outro ser, no mais aquele

    habitante de mim h tantos anos,

    Em Opaco , de Claro enigma, Drurnmond dramatiza o

    processo de descoberta, por parte do sujeito do poema, de que

    :\ interrupo lhe interna, bloqueio psicolgico-cognitivo,

    c no realmente externa, como figurada a princpio:

    passasse a comandar minha vontade

    que, j de si solvel, se cerrava

    semelhante a essas flores reticentes

    Noite. Certo

    muitos so os astros.

    Mas o edifcio

    barra-me a vista.

    m si mesmas abertas e fechadas

    Bosi diagnostica acdia - que define, seguindo a Summa

    Theologica, como torpor espiritual a impedir a busca do

    bem e da verdade - na recusa

    mquina do mundo. Pelo

    contrrio, a meu ver, a recusa expresso do desejo perseve-

    rante da verdade (e do bem) - no da verdade propagandeada

    pela mquina, mas a verdade da realidade histrica, perdio

    do poeta. No a esta que ele renuncia, embora de qualquer

    modo no a alcance. O que importa que a caminhada do

    poeta no encalo da verdade histrica recomea ao fim, ain-

    da que na treva mais estrita e ainda que s lhe reste reto-

    mar os mesmos sem roteiro tristes priplos de sempre.

    Quis interpret-to.

    Valeu? Hoje

    barra-me (h luar) a vista.

    Nada escrito no cu,

    sei.

    Mas queria v-Ia.

    O edifcio barra-me

    a vista.

    Zumbido

    de besouro. Motor

    arfando. O edifcio barra-me

    a vista.

    43 Id em iop cit.,

    p.

    30 3.

    44 BOSI, Alfredo.

    Op.

    cit., p. 93.

    1\ A mo suja , em

    Jos iop

    cit., p. 108-109).

    76

    77

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    18/24

    Assim ao luar mais humilde.

    Por ele que sei do luar.

    No, no me barra

    a vista. A vista se barra

    a si mesma.

    rc p r is-Ia

    pela perspectiva da pedra. O ser humano, esfinge

    mais monstruosa que a esfinge tebana, que agora intercepta

    I

    percurso. O homem o obstculo supremo do universo:

    Sem a percia formal de No meio do caminho , usa-se

    tambm aqui a tcnica da repetio para conotar o incmodo

    implacvel do obstculo sempre presente. Quis interpret-Ia ,

    referindo-se ao edifcio, uma passagem-chave, deixando

    mostra o impulso cognitivo que percorre a poesia de

    Drummond do primeiro ao ltimo verso.

    interessante veri-

    ficar como esse impulso dirige-se idealmente ao cu, nos quais

    os astros insinuam talvez uma escrita, da qual o poeta de

    pronto descr, mas, se calha de o edifcio barrar-lhe (ou pare-

    cer barrar-lhe) a vista, a vontade de conhecer detm-se nele.

    Interpretar o obstculo talvez seja, de fato, a melhor maneira

    de lidar com ele, embora no o elimine; afinal, o obstculo, e

    no o que est alm dele, que simboliza a realidade histrica,

    meta da cognio. Poderamos, agora, reler A mquina do

    mundo luz dessa considerao e notar que, embora a m-

    quina oferte ao poeta a viso de uma realidade mirfica e

    abstrata, ela mesmo, mquina, confundindo sua voz com a

    ideologia, signo da realidade histrica no processo de

    ocultamento de suas bases materiais.

    No poema em prosa O enigma, a internalizao do

    obstculo mais violenta do que em Opaco , e as bases

    materiais da realidade - na forma do sofrimento da natureza

    sob o domnio humano - no so sonegadas. Nele, Drummond

    retoma cena originria de No meio do caminho , para

    As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma

    obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e sua

    experincia mais particular. Conheciam outras formas

    deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulao na

    terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha s imagens

    trituradas pela experincia, prisioneiras do hbito ou doma-

    das pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detm-se.

    No esforo de compreender, chegam a imobilizar-se detodo.

    E na conteno desse instante, fixam-se as pedras - para

    sempre - no cho, compondo montanhas colossais, ou sim-

    ples e estupefatos e pobres seixos desgarrados.

    Mas a coisa sombria - desmesurada, por sua vez - a

    est, maneira dos enigmas que zombam da tentativa de

    interpretao. mal de enigmas no se decifrarem a si

    prprios. Carecem de argcia alheia, que os liberte de

    sua confuso amaldioada. E repelem-na ao mesmo tem-

    po, tal a condio dos enigmas. Esse travou o avano

    das pedras, rebanho desprevenido, e amanh fixar por

    igual s rvores, enquanto no chega o dia dos ventos, e

    o dos pssaros, e o do ar pululante de insetos e vibraes,

    e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se

    corresponder e se completar, que sobrevive conscincia.

    O enigma tende a paralisar o mundo.

    Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas

    fibras, mas no se compadece nem de si nem daqueles

    que reduz congelada expectao.

    Ai de que serve a inteligncia - lastimam-se as pedras.

    Ns ramos inteligentes; contudo, pensar a ameaa no

    remov-Ia; cri-la.

    Ai de que serve a sensibilidade - choram as pedras.

    Ns ramos sensveis, e o dom de misericrdia se volta

    46

    Opaco , em Claro enigma iop,

    cit.,

    p. 261-262).

    78

    79

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    19/24

    contra ns, quando contvamos ap l ic - lo a espcies me-

    nos favorecidas.

    Anoitece, e o luar, modulado de dolenres canes que

    preexistem aos instrumentos de msica, espalha no cn-

    cavo, j pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas,

    melanclica moleza.

    Mas a Coisa interceptante no se resolve. Barra o

    caminho e medita, obscura.

    o trecho crucial de O enigma consiste num breve

    mas luminoso apontamento sobre pensamento e ao, ou

    antes sobre o fracasso do pensamento frente realidade:

    pensar a ameaa no remov-Ia; cri-Ia . Um dos mais

    perfeitos poemas de Drummond, poro traz no seu cerne

    significante a admisso desse fracasso e a busca de uma sa-

    da para o impasse dele decorrente. E isso desde o ttulo:

    poro sinnimo de aporia, alm de nomear um inseto e

    uma orqudea:. A sada no passa pelo pensamento racio-

    nal, lgico, mas pelo que lhe radicalmente outro, a poesia

    em sua nudez extrema, no osso da palavra. O poema inicia-

    se com uma metfora do pensamento sob a forma de uma

    escavao aparentemente sem fim:

    Uma atmosfera de medo envolve a cena, medo decorren-

    te da irrupo brutal da realidade humana - histrica - no

    seio da natureza, realidade pr-humana ( canes que

    preexistem aos instrumentos de msica). Atravessa o poe-

    ma a nostalgia dessa realidade natural cujo conhecimento -

    sensvel, no intelectual- era e, residualmente, ainda poss-

    vel, pelo menos a um observador no-humano, pela capaci-

    dade universal de se corresponder e se completar, que sobre-

    vive conscincia . O homem pe tudo a percler: ao nomear

    a natureza natureza e a peclra pedra , j interrompe as

    correspondances naturais. Se natureza ele submete sem

    piedade, o que no far com outros homens ...

    Um inseto cava

    cava sem alarme

    perfurando a terra

    sem achar escape.

    49

    O que interrompe o caminho do inseto a prpria terra

    que at determinado momento foi apenas seu caminho. O que

    determina a converso do caminho em obstculo o cansao,

    assinalado na estrofe seguinte. Nesta, formula-se uma per-

    gunta, para a qual o poeta no chega propriamente a uma

    resposta, mas antes a uma no-resposta, proveniente de uma

    regio inspita cio esprito que est simultaneamente aqum

    e alm, definitivamente fora, de qualquer reflexo:

    1 8 O texto fundamental sobre poro , mesmo quando dele

    discordamos, ainda o deDcio Pignatari, poro: um inseto semitico,

    em

    Contracomunicao

    (So Paulo: Perspectiva, 1971), p. 131-137. Ver

    tambm Davi Arrigucci ]r., Sem sada,

    op

    cit., p. 75-105.

    - 1 9 Aporo , em A

    rosa do povo (op.

    cit., p. 142).

    47

    O

    enigma , em

    Novos poemas (op.

    cit.,

    p. 242-243). Semelhante

    reverso do olhar, que passa a dirigir-se do inumano para o humano,

    encontra-se em Um boi v os homens, de Claro

    enigma (op.

    cit., p.

    252). Ali os homens tambm so contemplados como enigma, mas,

    destitudos pelo discurso bovino de sua pretensa superioridade sobre as

    demais criaturas, no como ameaa, seno para si mesmos. Embora,

    certo, seus sons absurdos e agnicos: desejo, amor, cime ,

    despedaando-se e tombando ao solo na forma de pedras aflitas (note-

    se a ressurgncia do smbolo dileto), torne difcil, ao boi, a ruminao

    de sua verdade. Numa interpretao ligeira: os desejos humanos,

    concretizando-se

    em

    aes, perturbam a contigidade primitiva dos seres

    naturais com sua verdade. No ser abusivo detectar alguma influncia

    da doutrina do pecado original nessa considerao.

    80

    8 1

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    20/24

    Que fazer, exausto,

    em pas bloqueado,

    enlace de noite,

    raiz e minrio?

    1101 dizer51 Antes, corrigiramos, do que ficou por pensar.

    I)isso podemos deduzir que a intransitividade da poesia mo-

    derna e contempornea - aqui resumida pela obra de um de

    seus maiores artfices em nvel universal - no fruto de um

    mero capricho deseusinventores, mas nasce dessa epistemologia

    desiludida implcita no ato criativo.

    A chave do entendimento de por que o impensvel de fato

    impensvel provavelmente encontra-se no desvelamento, por

    meio da interpretao e da fantasia crtica (imprescindvel ante

    uma lrica to enigmtica), da consistncia histrica concreta

    da figura do pas bloqueado. Teramos de nos deixar guiar,

    nessa direo, por Pignatari, que chamou a ateno para a pre-

    sena em marca d'gua da realidade histrica no poema, sobre-

    tudo mediante a expresso destacada: pas bloqueado repor-

    taria, a u m s tempo, ao Estado Novo brasileiro eao nazifascismo

    europeu, ambos agonizantes naquele ano de 1945

    52

    Agonizan-

    tes, porm marcados pelo poeta com o selo do Nunca me es-

    quecerei desse acontecimento , expresso de um dever tico

    impretervel frente face catastrfica da histria.

    Pignatari e Arrigucci recorrem noo de metamorfose

    para definir a relao entre o inseto e a orqudea, entre o pri-

    meiro poro do poema e o ltimo. Contudo, se observarmos

    Eis que o labirinto

    (oh razo mistrio)

    presto

    se

    desata:

    em verde, sozinha,

    antieuclidiana,

    uma orqudea forma-se.

    A orqudea que se forma ao fim, como resposta ques ..

    to formulada, deve ser compreendida como metfora do

    prprio poema em formao. (No esqueamos que uma

    flor-poema, para falarmos como Pignatari, desabrocha

    em outro poema de

    A rosa do povo,

    o conhecido A flor

    l'

    a nusea . Nele, a indagao que interrompe poro

    apenas pressentida: Quarenta anos e nenhum problema /

    resolvido, sequer colocado

    vw.)

    O poema, como orqudea,

    apario sensvel, palavra como matria e como coisa, a

    ganhar consistncia ali mesmo onde o pensamento j no

    chega (da antieuclidiana ), por no achar escape em suas

    exaustivas perfuraes do real. O poema nasce precisa-

    mente do

    impensvel,

    como tropo complexo a este alusi-

    vo. O impensvel refratrio representao, sem a qual

    no h conhecimento; o impensvel s encontra lugar na

    linguagem por meio da figurao, aqui concebida como

    gesto suplementar representao obstruda. Joo Ale-

    xandre Barbosa, a propsito de Drummond, cogita do

    poema como possibilidade de instaurao do que ficou

    51

    BARBOSA, Joo Alexandre. Silncio & palavra em Carlos

    Drummond de Anclrade , em A metfora crtica (So Paulo:

    Perspectiva, 1974), p. 108.

    52 PIGNATARI, Dcio. poro: um inseto semitico,

    op cit.,

    p. 137.

    Para Pignatari, presto se desata pode conter uma aluso libertao

    de Lus Carlos Prestes, complementando assim o enraizamento do poema

    no tempo j efetuado por pas bloqueado.

    5.1 Cf. Harald Weinrich,

    Lete:

    arte e crtica do esquecimento, traduo

    de Lya Luft (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001).

    82

    8

    i i

    i

    50

    A fi '

    A d

    ar e a nausea , em.

    rosa

    o

    povo (op. cit.,

    p. 119).

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    21/24

    o poema de perto e com ateno, no identificaremos sequer

    um vocbulo que indique ou mesmo que apenas sugira a

    111l'

    tamorfose do inseto do incio na orqudea do final. Temos,

    na verdade, duas formas - a do inseto e a da orqudea - iso

    ladas ( sozinha , diz-se da

    orqudea),

    ligadas apenas pelo

    frgil liame da homonmia. A deteno nesse pormenor pod

    parecer bizantina, mas

    fundamental para a justa interprern

    o do poema. Poderamos tentar desmontar a noo de me.

    tamorfose por meio de uma analogia. Imaginemos qu

    estarnos usando uma palavra inadequada para nos referir.

    mos a determinado objeto. De repente, damo-nos conta do

    equvoco e passamos a utilizar a palavra correta. Diremos

    que o primeiro objeto rnetamorfoseou-se no segundo? Essa

    tendncia

    correo do olhar ou da nomeao freqenr

    em Drummond - recorde-se o verso exemplar O amor

    IH

    I

    escuro, no, no claro , de No se mate54 - e, acreditamos,

    est ativa em Aporo. Essa hesitao s outro sintomn

    das dificuldades do pensamento perante o real.

    Se houvesse de fato, como querem Pignatari e Arrigucci,

    metamorfose, continuidade ontolgica entre formas diversas,

    opoema se apresentaria como produto resultante das investidos

    do poeta sobre a realidade, como decorrncia direta do

    SC II

    esforo para conhec-Ia, Assim sendo, teramos de afianar

    que o poema , para Drummond, a forma final do trabalho d;1

    cognio, teramos de consentir que o poema alcana aprecn

    der uma imagem da realidade e a d a conhecer sem maion-.

    impedimentos ou perturbaes. Todavia, se no houver rnern

    morfose, s indiretamente, s

    tropicamente

    (de

    tropas,

    desvio),

    o poema remete ao esforo cognitivo que est em sua origem,

    54 N-

    B . d AI .

    o se mate, em rejo as mas op at., p. 58).

    84

    IZecorrendo aos termos de outro famoso poema de Drurnmond,

    poderamos

    dizer que, para ele, o poema pode at iniciar-se

    com uma luta com a realidade, mas s se encaminha para seu

    desfecho - recordemos a

    anagnorisis

    trgica - a partir de

    uma

    luta com as palavras. Que essa seja a luta mais v no

    subtrai o poeta - de incio lcido e frio , mas logo exaspe-

    rado - do seu caminho pedregoso e em treva. Antonio Candido

    .idverte que, para Drummond, tudo existe antes de mais nada

    como paJavra.I6, Dcio Pignatari, vinculando essa atitude ao.

    legado de

    Mallarrn,

    chega a proposio ainda mais cabal:

    tudo em Drummond palavra 57, O que podemos acrescen-

    lar que a palavra, nessa obra, a instncia por excelncia da

    interrupo. Pignatari, num ensaio crtico que uma verda-

    deira tomografia sensvel de poro , demonstra exaustiva-

    mente como o pensamento encarna - e se interrompe - na

    palavra, constituindo percursos de letras e fonemas a replicar,

    grfica e sonoramente, a escavao do inseto-reflexo e a

    llorao

    da orqudea-poema. Em Considerao do poema ,

    Drummond caracteriza as palavras como indevassveis : .

    I':, em Procura da poesia , ouvimos a palavra perguntar

    :10 poeta: Trouxeste a chaver >.

    No h, pois, propriamente, em Drummond, lira fi-

    losfica, como quer Merquior', ou poesia reflexiva, como

    )

    , .

    II

    Ver O lutador, em

    Jos (op. cit.,

    p. 99-101).

    Ih CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 139.

    PIGNATARI, Dcio. A situao atual da poesia no Brasil,

    op

    .it., p. 100.

    ',S Considerao do poema , em A rosa do povo iop. cit., p. 115).

    ,., Procura da poesia, em

    A rosa do povo (op. cit.,

    p. 118).

    ,. MERQUIOR, Jos Guilherme. Nosso clssico moderno, em

    Critica

    1964-1,989 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990), p. 307.

    85

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    22/24

    quer Arrigucci - embora este introduza uma importante ml

    dl lao ao falar de reflexo rtmica a propsito

    dI'

    Aparo e ilumine nossa investigao quando indica o n:lo

    saber C01110 horizonte da reflexo em Minerao do outro,

    ou ainda quando, sobre o mesmo poema, conjetura

    acen.,

    do carter incognoscvel extremo daquilo mesmo que

    nr,

    atrai com o fascnio do inexplicvel

    61,

    H, sim, a impossi

    bilidade da filosofia, a runa da reflexo, O trgico moder

    no, em Druml11ond, aparece exatamente como a coincidn

    cia entre a conscincia histrica e a inter1'llpo do ethos 011

    pa th o s reflexivo: a realidade histrica, o tempo presente ,

    revela-se, como j dissemos, impensvel e incognoscvel. Como

    a Sua uma poesia que incessantemente coloca a si mesma em

    questo, uma poesia que existe somente a partir de uma refle-

    xo matriz sobre o que e o que no poesia, sobre quais seus

    limites, razes e fidelidades, mais dramtico se torna esse

    movimento pelo qual a reflexo se anula para que o poema

    possa existir, A reflexo sobre a poesia j reflexo sobre a

    realidade histrica, que inevitavelmente a abarca, Disso de-

    corre que, a rigor, o poema seja desconhecido de si mesmo

    ,

    quanto mais do poeta, Por isso, talvez, Drummond supo-

    nha que a poesia mais rica I um sinal de menos 62, A

    singularidade de Drummond consiste, em larga medida, na

    arte de insular na palavra potica essa negatividade, sem no

    entanto romper os laos com o presumvel leitor. Drummond

    nunca d o salto final no silncio ou na palavra absoluta-

    mente oclusa que nos assombra, por

    exemplo,

    num Paul

    Celan. A poesia incomunicvel , escreve ele em Segredo,

    ( i l -

    B re jo das A 11 11as

    63

    Essa incomunicao se estabelece, num

    r.r.iu

    mais elevado do que entre poema e leitor, entre poema e

    .calidade e, no interior desta, entre o poema que efetivamente se

    lorrnou e o poema que poderia ter sido, se a reflexo e a cognio

    11 :1 0

    fracassassem. Como se esclarece na Confidncia do

    irabirano , essa incomunicabilidade pode nascer da prpria per-

    sonalidade do poeta, de seu alheamento do que na vida

    porosidade e comunicao't' . Mas o que importa ressaltar

    que essa incomunicao implica tambm o fracasso da ao sobre

    :l realidade, de que a solido do poeta, solido ou priso em sua

    classe e em algumas roupas , tal como figurada em tantos

    poemas, i1ustrativa: Para onde vai o operrio? Teria vergo-

    nha de charn-lo meu irmo65. Vergonha, culpa e remorso so

    inseparveis do

    ennui

    e da incomunicao inerentes ao poema.

    Em Procura da poesia , integrante de

    A rosa do povo

    assim como Aporo , v-se isso de modo exemplar, embora,

    como em todo poema que realmente interessa, por fim, como

    veremos, se supere a prpria exemplaridade.

    O

    momento de

    engajamento poltico mais explcito tambm o da mais aguda

    cincia das limitaes do poema em sua relao com qualquer

    realidade exterior ou interior. O poema se estrutura inicial-

    mente como uma seqncia de imperativos negativos dirigidos

    pelo poeta a si mesmo. Em meio a, e, principalmente, depois de,

    uma enumerao de dados da realidade - os acontecimentos

    - vedados poesia, Drummond conclui:

    O

    que pensas e sen-

    tes, isso ainda no poesia66. Mas mais relevante ainda,

    63

    Segredo , em

    Brejo das Almas

    io p

    cit.

    p. 59).

    64 Confidncia do itabirano, em Sentimento do mundo (op. cit., p. 68).

    65

    O operrio no mar, em

    Sentimento do mundo (op. cit.,

    p.

    72).

    66

    Procura da poesia, em A rosa do povo (op. cit., p. 117).

    61

    ARRIGUCCI ]R., Davi. Op

    cit.,

    p. 85, 126 e 144,

    62 Poema-orelha, em

    A vida passada a limpo (op. cit.,

    p. 418).

    86

    87

    ' . I II

    1 ,

    I1

    I

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    23/24

    de nosso ponto de vista, a afirmao de que a poesia eli.lo

    sujeito e objeto. Anula-se, assim, a condio sine qua non

    do conhecimento. Resta, como campo de ao (ou de batalha,

    como no j citado O lutador), somente a palavra:

    Penetra surdamente no reino das palavras.

    L esto os poemas que esperam ser

    escritos.

    Contudo, um pouco adiante, chega-se a uma formulao

    capital, pareando palavra e silncio na consumao do poema:

    Convive com teus poemas, antes de escrev-los.

    Tem pacincia, se obscuros. Calma, se te provocam.

    Espera que cada um se realize e consume

    com seu poder de palavra

    e seu poder de

    silncio.

    Poderamos evocar, em paralelo, o fecho de Canto

    esponjoso :

    Vontade de cantar. Mas to absoluta

    que me calo, repleto.f

    Mas o encerramento de Procura da poesia ainda

    mais significativo:

    Repara:

    ermas de melodia e conceito

    elas se refugiaram na noite, as palavras.

    Ainda midas e impregnadas de sono,

    rolam num rio difcil e se transformam em desprezo. 7 0

    67

    Idem (op. cit.,

    p. 117).

    68

    Idem (op. cit.,

    p. 118).

    69

    Canto esponjoso , em

    Novos poemas iop. cit.,

    p. 239).

    70 Procura da poesia, em A rosa do povo iop. cit., p.

    118).

    88

    Aqui, O poder de silncio sobrepujou o poder de pala-

    vra ( ermas de melodia e conceito ), mas no o suficiente, e

    as palavras persistem como fantasmas, reminiscncias de uma

    potncia abortada, e, como tal, expresses concentradas de

    um desprezo absoluto, impermevel, no limite, parfrase

    ou interpretao. Na continuao do trecho citado de O

    operrio no mar , Drummond escreve: Ele sabe que no ,

    nunca foi meu irmo, que no nos entenderemos nunca. E

    me despreza ... Ou talvez seja eu prprio que me despreze a

    seus olhos

    71.

    Contudo, seria ingnuo reduzir o desprezo de

    Procura da poesia ao desprezo do outro poema. Talvez

    apenas uma clebre sentena de Nietzsche fizesse justia

    significao a bissal de desprezo no verso final: Aquilo

    para o que temos palavras, j o deixamos de lado. Em todo

    discurso h um gro de desprezo. Somente a total aniqui-

    lao da poesia suplantaria esse desprezo, e Drummond no

    insensvel a essa exigncia:

    I '

    Impossvel compor um poema a essa altura da evoluo

    [da humanidade.

    Impossvel escrever um poema - uma linha que seja - de

    [verdadeira poesia. 72

    Mas no tenhamos dvida: precisamente nessa

    abissalidade , nessa interrupo que impe atividade

    hermenutica e reflexo crtica, que a poesia de Drummond

    mostra-se, de modo mais inequvoco, marcada pelo tempo

  • 7/24/2019 Drummond e a Poetica Da Interrupcao

    24/24

    C ois as

    Fo ra d o Tem p o a Po t i c a d o Res d u o

    ,

    I J e r n imo Teixe ira

    quem quiser conhecer o 'Geist' brasileiro, pelo menos de

    entre

    1930 e 1945, ter que recorrer muito mais a Drummond que a

    certos historiadores, socilogos, antroplogos e 'filsofos'

    nossos ...'>73. Que pintura mais fiel de um pas bloqueado

    podemos desejar do que uma poesia bloqueada?

    du a rd o S te r zi

    po e ta e crti co li te rri o . P ub licou

    Pr osa

    (IEL jC ORAG ),

    em 20 01 . M estre em Teo ria da L ite rat ur a (P UC RS) com disserta o sobro

    M u ri lo M endes , cu rsa d ou torado em T eoria e H is t ria L iterria n a Un icam p.

    E d ita , com Tarso de M elo , revi s ta de poes ia

    Cacto

    e o zine

    N asda q.

    Carlos Drummond de Andrade o oeta da tralha. Tudo

    ()que n~~Le~~a p~ra nadase transfigura emseus versos - e,

    em contrapartida, o que julgvamos duradouro e precioso

    revela sua iace mais frgil e contingente. Mesmo quando

    Drummond parte em direo ao vazio, ao nada mallarmeano,

    no deixa de carregar seus restos, as sobras do extinto mun-

    do rural de Itabira e os refugos da metrpole moderna por

    onde ele perambula entre melancolias e mercadorias.

    o que

    constatamos no final de Campo de flores :

    Para Jernimo Teixeira, a quem devo ter

    roubado umas tantas idias

    Para fora do tempo arrasto meus despojos

    e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

    I

    Tomados isoladamente, mal d para acreditar que estes

    versos pertenam a um poema de amor. No costumeiro

    associar esse sentimento a despojos de qualquer tipo - pelo

    73 FAUST1NO,Mrio. Poesia-experincia , em Snia Brayner (org.),

    Carlos Drummond de Andrade:

    fortuna crtica (Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 1978, p. 90.

    De

    Claro enigma.

    In: ANDRADE, Carlos Drummond de.

    Poesia e

    rosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 219. Todos os poemas

    so citados a partir dessa edio. Doravante, sero indicados apenas o

    nmero da pgina e, quando no constar no texto, o ttulo do livro

    original a que o poema pertence.

    90

    91