a pessoa surda e o direito ao silÊncio helena … · logo, a pessoa surda é pessoa em sentido...

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Texto de apoio ao Curso de Especialização Atividade Física Adaptada e Saúde Prof. Dr. Luzimar Teixeira Uma Abordagem Jurídica A PESSOA SURDA E O DIREITO AO SILÊNCIO HELENA PEREIRA DE MELO Introdução "Quando a Bárbara nasceu, passados três dias, comecei a ter um pressentimento estranho relativamente a ela. Comecei a interrogar-me se seria surda ou ouvinte. Ainda estava no hospital (...). Resolvi pegar-lhe ao colo e fazer uma experiência: segurei numa colher e larguei-a sobre o tabuleiro das refeições, que era de metal. Eu não queria acreditar! Estava mesmo aborrecida. Repeti novamente o acto, simplesmente porque não podia acreditar. Fi-Io uma terceira vez. Pensei: Oh, Meu Deus, ela é ouvinte! O que é que vou fazer! Tenho uma filha ouvinte! O meu marido chegou e eu disse-lhe, Valha-nos Deus, a nossa filha é ouvinte! Ele ficou igualmente surpreendido, mas disse-me que não tinha importância, que tudo iria correr bem. Sou a terceira geração surda. Nunca tinha posto em causa que iríamos ter filhos surdos. Agora descubro que a minha filha é ouvinte. Como vou cuidar dela? Nem sei como hei-de comunicar com ela!.[55] Do outro lado do espelho encontramos os casais norte-americanos que pretendem recorrer à interrupção voluntária da gravidez com fundamento no facto de o feto ser portador de um gene de susceptibilidade para a surdez. É preferível ser-se ouvinte ou surdo? Um ser humano "normal" é apenas aquele que goza de plena capacidade auditiva'? A normalidade passa por apresentarmos todos iguais características físicas e intelectuais? A quem incumbe definir o que é normal? Quais os critérios subjacentes a esse juízo? Nas próximas linhas analisaremos, nas suas linhas gerais, o estatuto atribuído à Pessoa Surda[55] pela ordem jurídica portuguesa - quer à Pessoa Surda na perspectiva de "pessoa com deficiência", quer à Pessoa Surda como "pessoa pertencente a uma minoria linguística ou cultural".

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Page 1: A PESSOA SURDA E O DIREITO AO SILÊNCIO HELENA … · Logo, a Pessoa Surda é pessoa em sentido jurídico e goza de capacidade jurídica. No entanto, enquanto a noção de personalidade

Texto de apoio ao Curso de Especialização Atividade Física Adaptada e Saúde

Prof. Dr. Luzimar Teixeira

Uma Abordagem Jurídica

A PESSOA SURDA E O DIREITO AO SILÊNCIO

HELENA PEREIRA DE MELO

Introdução

"Quando a Bárbara nasceu, passados três dias, comecei a ter um pressentimento estranho

relativamente a ela. Comecei a interrogar-me se seria surda ou ouvinte. Ainda estava no

hospital (...). Resolvi pegar-lhe ao colo e fazer uma experiência: segurei numa colher e larguei-a

sobre o tabuleiro das refeições, que era de metal. Eu não queria acreditar! Estava mesmo

aborrecida. Repeti novamente o acto, simplesmente porque não podia acreditar. Fi-Io uma

terceira vez. Pensei: Oh, Meu Deus, ela é ouvinte! O que é que vou fazer! Tenho uma filha

ouvinte! O meu marido chegou e eu disse-lhe, Valha-nos Deus, a nossa filha é ouvinte! Ele ficou

igualmente surpreendido, mas disse-me que não tinha importância, que tudo iria correr bem.

Sou a terceira geração surda. Nunca tinha posto em causa que iríamos ter filhos surdos. Agora

descubro que a minha filha é ouvinte. Como vou cuidar dela? Nem sei como hei-de comunicar

com ela!.[55]

Do outro lado do espelho encontramos os casais norte-americanos que pretendem recorrer à

interrupção voluntária da gravidez com fundamento no facto de o feto ser portador de um gene

de susceptibilidade para a surdez.

É preferível ser-se ouvinte ou surdo? Um ser humano "normal" é apenas aquele que goza de

plena capacidade auditiva'? A normalidade passa por apresentarmos todos iguais

características físicas e intelectuais?

A quem incumbe definir o que é normal? Quais os critérios subjacentes a esse juízo?

Nas próximas linhas analisaremos, nas suas linhas gerais, o estatuto atribuído à Pessoa

Surda[55] pela ordem jurídica portuguesa - quer à Pessoa Surda na perspectiva de "pessoa

com deficiência", quer à Pessoa Surda como "pessoa pertencente a uma minoria linguística ou

cultural".

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1. Legislação Aplicável à Pessoa Surda Enquanto Pessoa Portadora de Deficiência

1.1 Direito Constitucional

A Constituição da República de 1976 (CRP) consagra no artigo 71.º[55] , que "Os cidadãos

portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos

deveres consagra- dos na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles

para os quais se encontrem incapacitados".

Norma que reconhece o direito dos cidadãos portadores de deficiência a gozar dos mesmos

direitos e a estar sujeitos aos mesmos deveres que os restantes cidadãos, ou seja, o "direito a

não serem vítimas de uma capitis diminutio, por motivo da deficiência, para além daquilo que

seja consequência forçosa da deficiência"[55]. Este direito comporta uma vertente negativa, que

se traduz no direito de a pessoa portadora de deficiência não ser privada de direitos ou isenta

de deveres (e nesta medida o direito liga-se ao princípio da igualdade, consagrado no artigo

13.º da CRP[55]), bem como uma vertente positiva, que se traduz no direito .a exigir do Estado

a realização das condições de facto que permitam o efectivo exercício dos direitos e o

cumprimento dos deveres (e neste sentido se articula com o disposto no artigo 9.º, al. b), da

CRP[55]).

Preconiza-se, no n.º 2 do mesmo artigo, a obrigação de o Estado:

· realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos

cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias;

· desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e

de solidariedade para com eles;

· assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e

deveres dos pais ou tutores;

· apoiar as organizações de cidadãos portadores de deficiência.

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O texto constitucional alude igualmente aos direitos dos cidadãos portadores de deficiência no

artigo 74.°, n.º 2, al. g), onde formula uma imposi ção constitucional de acção estadual, uma vez

que declara ser incumbência do Estado, na realização da política de ensino, "promover e apoiar

o acesso dos cidadãos portadores de deficiência ao ensino e apoiar o ensino especial, quando

necessário"[55]

Realçamos ainda e por fim[55] , a norma contida no artigo 64.º, n.º 3, al. a), segundo a qual,

"para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado garantir o

acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados

da medicina preventiva, curativa e de reabilitação".

Da análise conjugada destas normas facilmente se conclui que a CRP não define o que se deve

entender por "cidadão portador de deficiência física ou mental", ou, melhor, por "deficiência

física ou mental". Trata-se, pois, de um conceito pré-constitucional ou exógeno, vindo de outro

sector do Direito, uma vez que se encontra densificado a nível da legislação ordinária, pela Lei

n.º 9/89, de 2 de Maio, a "Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das

Pessoas com Deficiência", cuja análise sumária faremos de seguida.

O conceito "deficiência física ou mental", situado nas disposições constitucionais tem, portanto,

de ser entendido em conexão com os outros conceitos presentes na CRP e analisado tendo em

conta o seu sentido originário, em princípio "recebido" pelo texto constitucional[55].

Só mediante tal actividade interpretativa poderemos concluir se a surdez deve ser entendida, à

luz da CRP, como configurando uma "deficiência física ou mental

1.2. Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação das Pessoas com Deficiência

O conceito de pessoa com deficiência encontra-se contido, como dissemos, na Lei n.º 9/89, de

2 de Maio, cujo artigo 2.º dispõe considerar-se "pessoa com deficiência aquela que, por motivo

de perda ou .anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual,

fisiológica ou anatómica susceptível de provocar restrições de capacidade, pode estar

considerada em situações de desvantagem para o exercício de actividades consideradas

normais tendo em conta a idade, o sexo e os factores socio-culturais dominantes".

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Da leitura desta norma decorre que, face à ordem jurídica portuguesa, a Pessoa Surda é

considerada como sendo uma pessoa com deficiência.

Deste modo goza, desde logo e antes de tudo, do direito à prevenção da própria deficiência.

Prevenção que é "constituída por um conjunto de medidas plurisectoriais que visam impedir o

aparecimento ou agravamento da deficiência e das suas consequências de natureza física,

psicológica e social, nomeadamente o planeamento familiar e o aconselhamento genético, os

cuidados pré, peri e pósnatais (.)"[55]

Podemos assim suscitar as seguintes questões: Poderá a prevenção ser levada ao extremo de

se evitar o nascimento da Criança Surda recorrendo-se uma interrupção voluntária da

gravidez[55]? Ou, recuando ainda um pouco mais no tempo, aconselhando as Pessoas Surdas

a não procriarem, atento o risco genético de poderem vir a ter um filho com deficiência

auditiva[55]?

Retornando ao nosso tema, a Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das

Pessoas com Deficiência reconhece à Pessoa Surda o direito ao tratamento e à reabilitação,

entendida esta como sendo "um processo global e contínuo destinado a corrigir a deficiência e

a (.) restabelecer as aptidões e capacidades da pessoa para o exercício de uma actividade

considerada normal"[55]. A reabilitação abrange medidas de reabilitação médico-funcional, a

qual, nos termos do disposto no Decreto-Lei em análise, "compreende o diagnóstico e um

conjunto de tratamentos e de técnicas especializadas que tendem a reduzir as sequelas (...) da

deficiência, restabelecendo as funções físicas e mentais, valorizando as capacidades

remanescentes e restituindo, tão completamente quanto possível, a aptidão de um indivíduo

para o exercício da sua actividade"[55].

Neste âmbito, pode revelar-se importante o papel desempenhado pelas ajudas técnicas, que se

destinam "a compensar a deficiência ou a atenuar-lhe as consequências e a permitir o exercício

das actividades quotidianas e a participação na vida escolar, profissional e social"[55]

Não será possível, face ao regime delineado nesta Lei afirmar que é perfeitamente legal colocar

implantes cocleares em Crianças Surdas?

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Crianças essas que são titulares do direito à educação especial, entendida, de acordo com o

disposto no n.º 1 do artigo 9.º do diploma em análise, como uma "modalidade de educação (...)

que visa o desenvolvimento integral da pessoa com necessidades educativas específicas, bem

como a preparação para uma integração plena na vida activa". No entanto, o n.º 2 do mesmo

artigo, salienta a importância de serem "adoptadas as medidas necessárias de integração

progressiva dos alunos do ensino especial no sistema normal de ensino"[55].

Será benéfico para o desenvolvimento integral de uma Criança Surda ser destinatária de uma

política de integração progressiva no sistema normal de ensino?

Por fim, referimos que a presente Lei visa igualmente garantir o respeito de um outro princípio,

também consagrado na CRP: o da equiparação de oportunidades da pessoa com deficiência.

Princípio cujo respeito "impõe que se eliminem todas as discriminações em função da

deficiência e que o ambiente físico, os serviços sociais e de saúde, a educação e o trabalho, a

vida cultural e social em geral" se tornem acessíveis à Pessoa Surda[55].

Nesta linha, a política nacional de reabilitação definida pelo Estado Português, deve assegurar

à Pessoa com deficiência auditiva:

· reabilitação profissional, com o objectivo de permitir à Pessoa Surda "o exercício de uma

actividade profissional e compreende um conjunto de intervenções específicas no domínio da

orientação e formação profissional, bem como as medidas que permitam a sua integração quer

no mercado normal de emprego quer noutras modalidades alternativas de trabalho"[55];

· apoio sócio-familiar, que faculte à Pessoa Surda os meios que "favoreçam a sua

autonomia pessoal e independência económica e a sua integração e participação social mais

completas"[55];

· benefícios fiscais[55];

· participação nos domínios da cultura, desporto e recreação[55].

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Da análise efectuada ressalta que a Pessoa Surda, enquanto pessoa com deficiência, é titular

dos referidos direitos, muitos dos quais assumem a natureza de direitos sociais, de direitos

positivos, i.e., de direitos dos cidadãos a prestações ou actividades do Estado[55].

Se passarmos para o plano do Direito Civil, portanto para o Direito Privado, qual o estatuto

jurídico reconhecido pela lei à Pessoa Surda?

1.3. Direito Civil

De acordo com o disposto no artigo 66.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344,

de 25 de Novembro de 1966, "a personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento

completo e com vida".

A Criança Surda quando nasce é, face à ordem jurídica portuguesa, uma pessoa em sentido

jurídico, uma vez que goza de personalidade jurídica, a qual consiste na "aptidão para ser titular

autónomo de relações jurídicas"[55].

O reconhecimento da personalidade jurídica a todo o ser humano, a partir do momento do

nascimento completo e com vida, decorre da aceitação de que todos os seres humanos nascem

livres e iguais cm dignidade e em direitos[55]. Tal reconhecimento implica que a Criança Surda,

pelo simples facto de ser sujeito de direito, seja necessariamente titular de um círculo mínimo

de direitos de personalidade, como sejam o direito à vida, à integridade moral e física, à

identidade pessoal[55]...

O artigo seguinte da Lei Civil, o artigo 67.º, formula a regra da inerência da capacidade jurídica

à personalidade jurídica, estatuindo que "As pessoas podem ser sujeitos de quaisquer relações

jurídicas, salvo disposição legal em contrário". A capacidade jurídica exprime, portanto, a

aptidão que o sujeito de direito tem para "ser titular de um círculo, com mais ou menos

restrições, de relações jurídicas"[55].

Logo, a Pessoa Surda é pessoa em sentido jurídico e goza de capacidade jurídica.

No entanto, enquanto a noção de personalidade jurídica é puramente qualitativa (no sentido de

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que se é ou não se é, pessoa em sentido jurídico , tertium non datur[55]) e não é susceptível de

graus (não se podendo ser mais ou menos pessoa), a capacidade jurídica é susceptível de

medida e admite limitações. Dizendo de outro modo: a medida dos direitos e das obrigações a

que uma pessoa pode estar adstrita é susceptível de variação[55].

O código Civil determina, taxativamente, as situações de incapacidade de gozo de direitos e as

de incapacidade de exercício de direitos.

Reafirmamos, portanto, que toda a pessoa quando nasce é pessoa em sentido jurídico, que não

deixa de o ser pelo facto de nascer surda profunda ou por vir a sê-lo, até ao momento da sua

morte[55].

No entanto, a capacidade jurídica da Pessoa Surda, ao longo da sua vida, pode sofrer

restrições decorrentes da Surdez.

1.3.1. Menoridade

Enquanto menor, a Criança Surda, como qualquer outra criança, sofre de uma incapacidade

geral de exercício de direitos, resultante da menoridade[55]. Incapacidade essa que abrange

em principio quaisquer negócios de natureza pessoal ou patrimonial, embora comporte

excepções, consagradas no artigo 127º do Código Civil[55] Os negócios jurídicos realizados

pelo Menos Surdo em contrariedade à proibição em que se traduz a incapacidade de exercício

de direitos, estão feridos de anulabilidade[55].

Para além desta incapacidade de exercício de direitos, todo o menor com idade inferior a

dezasseis anos, encontra-se ferido de uma incapacidade de gozo de direitos no que se refere

ao casamento, ao testamento e à perfilhação[55].

A incapacidade do menor, na primeira das situações referidas - a incapacidade de exercício de

direitos - pode ser suprida através do poder paternal ou da tutela[55]. Ou seja, nos domínios em

que não é reconhecida ao menor capacidade de exercício de direitos (em que o menor não é,

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portanto, admitido a agir por si mesmo), pode o representante legal do menor (em princípio os

pais) actuar em vez do menor, em nome e no interesse do menor[55].

Na segunda das situações referidas, a da incapacidade de gozo de direitos, pode ser arguida a

nulidade[55] ou a anulabilidade[55] do negócio jurídico realizado pelo menor, sendo esta

incapacidade, como facilmente se compreende, insuprível[55]: i.e., o pai ou o tutor não podem

validamente casar, testar ou perfilhar em nome do menor com idade inferior a dezasseis anos...

A incapacidade por menoridade cessa, nos termos da lei[55], quando o menor atinge a

maioridade, aos dezoito anos, ou quando se emancipa, sendo o único facto constitutivo da

emancipação, o casamento.

A aptidão para actuar pessoal e autonomamente é pois reconhecida, em princípio, a todo o

cidadão que atinja os dezoito anos de idade ou, quando ainda não os tendo, se case. No

entanto, esta regra comporta uma excepção: se contra o menor, ao atingir a maioridade, estiver

pendente uma acção de inabiliação ou de interdição, mantém-se o poder paternal ou a tutela

até ao trânsito em julgado da respectiva sentença[55].

Da análise efectuada decorre portanto, que a Criança Surda, é pessoa em sentido jurídico, que

se encontra sujeita, como qualquer outra criança à incapacidade resultante da menoridade, a

qual poderá cessar quando atingir a maioridade ou se casar, passando a ter plena capacidade

jurídica de gozo e de exercício de direitos. Não cessará, no entanto, se estiver pendente, neste

momento, contra si, uma acção de inabilitação ou de interdição. Neste caso poderá vir a ficar

sujeita ao regime de outra das incapacidades de exercício de direitos disciplinadas pelo Código

Civil: a interdição ou a inabilitação.

1.3.2. Interdição

Como aludido, em princípio todos os seres humanos têm capacidade de exercício de direitos - a

capacidade é a regra, sendo as incapacidades excepcionais. O quadro das incapacidades de

exercício é fixado no Código Civil[55], podendo tais incapacidades resultar da interdição ou da

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inabilitação.

Podem, deste modo e de acordo com o disposto no artigo 138.º do Código Civil. "ser interditos

do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou

cegueira se mostrem incapazes de governar as suas pessoas e bens".

A Lei Civil prossegue, dispondo que ia incapacidade resultante da interdição é aplicável apenas

a Surdos-Mudos que tenham atingido a maioridade, dado que os menores se encontram

protegidos pela incapacidade por menoridade. No entanto, permite o requerimento e o

decretamento da interdição "dentro do ano anterior à maioridade, para produzirem os seus

efeitos a partir do dia em que o menor se torne maior"[55].

Concluímos, pois, que a surdez-mudez (habitual ou duradoura e actual[55]), quando pela

gravidade torne a pessoa surda-muda incapaz de reger a sua pessoa e bens, constitui

fundamento de interdição.

No entanto, não basta a simples existência de surdez-mudez paro existir automaticamente

incapacidade. É igualmente necessário que haja uma sentença judicial que, no termo de um

processo especial, declare a incapacidade[55]. Só então haverá interdição.

E, de acordo com o estatuído no artigo 139.º do diploma em análise, "o interdito é equiparado

ao menor, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regulam a

incapacidade por menoridade".

A incapacidade é, portanto, suprida por meio da representação legal, estabelecendo-se uma

tutela, que é deferida pela ordem estabelccida no artigo 143.º do Código Civil. Quando a tutela

recai nos pais, estes exercem o poder paternal como se a Pessoa Surda fosse menor[55].

A sentença de interdição definitiva deve ser registada, sob pena de não poder ser invocada

contra terceiros de boa-fé, encontrando-se os negócios jurídicos praticados pelo Surdo-Mudo

depois deste registo, feridos de anulabilidade[55].

Ressalta-se ainda que o interdito por surdez-mudez (contrariamente ao que sucede com os

interditos por anomalia psíquica) tem plena capacidade matrimonial, testamentária e para

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perfilhar[55].

Por fim, alude-se que a incapacidade do interdito por surdez-mudez não termina sem mais, pelo

simples facto de o surdo-mudo, por hipótese, passar a ouvir. Para que termine é indispensável

que se proceda ao levantamento da interdição, requerida pelo próprio interdito ou por qualquer

das pessoas com legitimidade para requerer a interdição[55].

Segundo a doutrina, o interesse determinante da interdição é o interesse do próprio surdo-

mudo, a quem falta a aptidão para actuar pessoal e autonomamente -a quem falta a

"capacidade natural de querer e entender", pelo que a lei entende que não lhe é possível

"determinar em normal esclarecimento ou liberdade interior os seus interesses"[55].

1.3.3. Inabilitação

Quando os reflexos da surdez-mudez sobre o discernimento do Surdo-Mudo não excluem

totalmente a sua opinião para gerir os seus interesses, o Surdo-Mudo poderá ser apenas

inabilitado[55].

A incapacidade do Surdo-Mudo neste caso resulta igualmente de uma sentença, a qual

determinar uma extensão maior ou menor da incapacidade, uma vez que a inabilitação abrange

os actos de disposição de bens entre vivos e os que forem especificados na sentença, em

atenção às circunstâncias concretas de cada caso. Para realizar tais actos o inabilitado por

surdez-mudez carece de autorização do curador[55].

A inacapacidade resultante de inabilitação, tal como a resultante de interdição, apenas cessa

quando for levantada, mediante decisão judicial, a inabilitação[55].

1.4. Valores Subjacentes às Normas Analisadas

Como é sabido, a legislação, nunca é eticamente neutra, uma vez que, subjacente às normas

legais se encontra sempre a opção do legislador por uma determinada escala de valores, o

compromisso com uma determinada concepção do Ser Humano e do Mundo.

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Subjacentes às normas jurídicas analisadas encontra-se a concepção da surdez como

deficiência física e do Surdo como Pessoa portadora de deficiência.

Posição que decorre, segundo o que nos parece ser o melhor entendimento, do facto de a

maioria dos cidadãos portugueses nascer ouvinte e de noventa por cento das crianças surdas

ter pais ouvintes[55].

A regra é portanto, nascer-se ouvinte. Nascer-se Surdo significa nascer-se portador de uma

diferença relativamente à esmagadora maioria da população, diferença essa que a Medicina

qualifica como deficiência grave[55] e, como tal, originadora de dificuldades de adaptação

linguística, educacional, laboral...

Deste modo, com frequência, os Médicos (e outros profissionais como sejam os terapeutas sa

fala e os audiometristas) entendem que o tratamento da surdez deve ser feito, uma vez que se

trata de um tratamento no melhor interesse da Criança Surda, permitindo-lhe aproximar-se do

que é considerado como sendo "normal" - a Pessoa Ouvinte.

Encontramos, deste modo, a construção doutrinal da surdez como deficiência[55], subjacente

às leis que regulam a colocação de implantes cocleares, a educação especial (nomeadamente

o recurso ao método do oralismo na educação de crianças com deficiência auditiva), o emprego

protegido...

De acordo com esta concepção toda a socialização da Criança Surda é feita no sentido de esta

interiorizar que é uma pessoa portadora de uma deficiência, dado que não tem acesso ao som

e tem muita dificuldade em comunicar oralmente - o que naturalmente conduzirá a que a

imagem que terá de si própria ao longo da sua vida seja a de que é diferente do normal, porque

portadora de uma deficiência auditiva séria, que a excluirá irrevogavelmente de muitas das

áreas de actuação das Pessoas Ouvintes e que lhe dificultará a sua plena integração social[55].

Esta concepção (que é a tradicional nas sociedades ocidentais) é a construída pelos Ouvintes

relativamente aos Surdos, e exprime o que aqueles entendem ser o melhor modo de educar e

reabilitar a criança a quem falta algo para ser "normal": o acesso ao som. Concepção que tem

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estado, como decorre da análise feita, subjacente às leis que no nosso País regem a vida dos

Surdos e que é vivamente contestada pela Comunidade Surda.

2. Legislação Aplicável à Pessoa Surda Enquanto Pessoa "Diferente"

2.1. Valores Subjacentes à Lei

Muito expressivas, na matéria de que nos ocupamos, são as palavras do Presidente da

Associação Portuguesa de Surdos, que afirma que "(...) os surdos, após centenas de anos em

que ficaram prejudicados e marginalizados da sociedade, em que os ouvintes geriam e

tomavam decisões relativas aos surdos, impondo essas decisões, em que os surdos ficavam

sempre oprimidos, pelo que os surdos devem acordar. (...) Se não houvesse pessoas ouvintes

o que seria?"[55]

Com efeito, a Comunidade Surda propõe a substituição da concepção tradicional da surdez

como "deficiência", pela da surdez como "diferença"[55]. Entende que a surdez não configura

uma deficiência, pelo que a Pessoa Surda não pode ser considerada como Pessoa portadora

de deficiência. Mais ainda, defende que é bom ser-se surdo e que os casais de Surdos

preferem ter filhos surdos a filhos ouvintes[55]...

As Pessoas Surdas são pessoas "visuais"[55], afirmam, no sentido em que captam o Mundo

essencialmente pela visão e comunicam através de uma língua própria, a língua gestual, a qual

tem uma complexa estrutura gramatical que lhe é peculiar[55].

As Crianças Surdas têm, portanto, uma primeira língua, uma língua natural, que é a Língua

Gestual Portuguesa (LGP), a qual Ihes faculta o acesso à Comunidade Surda, cujos membros

partilham, para além da língua, uma cultura, valores, costumes, específicos e próprios.

Existe, na verdade, uma ldentidade Surda, uma Cultura Surda, da qual os Surdos se

orgulham[55]. E, como membros de uma comunidade portadora de uma cultura e de uma língua

diferentes das da maioria dos cidadãos portugueses, requerem ao Estado e à Sociedade Civil

que, em nome da tolerância e do respeito pela diversidade cultural, Ihes atribua o estatuto de

minoria linguística e cultural, com o reconhecimento dos correspondentes direitos[55].

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2.2. Direito Constitucional

Como é evidente, a Pessoa Surda, enquanto cidadã portuguesa, goza dos direitos e está

sujeita aos deveres consignados na CRP[55]. É, deste modo, titular de direitos, liberdades e

garantias (pessoais, de participação política e dos trabalhadores[55]), bem como de direitos e

deveres económicos, sociais e culturais[55].

Nas próximas linhas centrar-nos-emos no conteúdo de uma norma constitucional, que foi

introduzida pela 4" Revisão Constitucional, a contida no artigo 74.º, n.º 2, al. h), segundo a qual,

"Na realização da política de ensino incumbe ao Estado: proteger e valorizar a língua gestual

portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade

de oportunidades"[55].

Verifica-se, deste modo. o reconhecimento constitucional do estatuto linguístico e cultural da

LGP, como língua em si e por si (e não apenas uma simples colecção de gestos), dotada de

uma estrutura e vocabulário próprios, detendo a linguagem gestual igual estatuo linguístico que

a linguagem verbal[55]. O seu reconhecimento como "língua sem som", fundamentalmente

destinada a ser usada pela Comunidade Surda e, em consequência, na educação das Crianças

Surdas.

O disposto na aludida norma constitucional encontra-se, aliás e como é natural (uma vez quc

existe "uma unidade de sentido jurídico-constitucionalmente fundada no domínio dos direitos

fundamentais[55]), em correlação com o disposto noutras normas constitucionais, uma vez que

a CRP reconhece a todos, os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da

personalidade[55], tendo as crianças direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista

.ao seu desenvolvimento integral[55] e gozando os jovns de protecção especial para

efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente no ensino, na

formação profissional e na cultura[55].

Encontrando-se constitucionalmente garantida a liberdade de aprender e ensinar[55], todos têm

o direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito

escolar[55].

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Ora, como é bem sabido, o êxito escolar da Criança Surda passa por se .aceitar que esta tem

direito a uma educação bilingue: em que aprenda LGP e Língua Portuguesa, fundamentalmente

escrita. Isto porque como uma percentagem apreciável dos Surdos Profundos possui níveis de

expressão oral insatisfatórios para a comunicação do dia a dia, não deve a sua educação ser

norteada pelo objectivo principal de Ihes ensinar a falar, pelo oralismo[55].

Constituindo a LGP o modo privilegiado de comunicação das Pessoas Surdas, a Criança Surda

deve poder adquiri-Ia cedo, de forma a dominar uma língua natural que lhe assegure o

desenvolvimento das suas capacidades cognitivas em condições idênticas às das Crianças

Ouvintes[55] e que lhe sirva de matriz para o desenvolvimento de uma segunda língua: o

Português, principalmente escrito.

O exercício deste direito a uma educação bilingue supõe que nos diferentes graus de ensino

estejam presentes professores surdos e intérpretes de língua gestual.

Apenas pelo ensino de uma "língua que em vez da voz se utilize as mãos e em vez de se ouvir

se tenha de olhar"[55], se previne que a Criança Surda cresça como "um estrangeiro que vive

entre pessoas cuja língua ela nunca pode aprender"[55] .

2.3. Despacho sobre a Criação de Unidades de Apoio à Educação da Criança Surda

O ministério da Educação, concretizando o preconizado pelos órgãos competentes de várias

organizações internacionais, nomeadamente o Parlamento Europeu[55] e a Organização das

Nações Unidas[55], e visando "construir uma escola democrática e de qualidade, capaz de

garantir a todos o direito à educação e uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no

acesso e sucesso escolares", definiu, pelo Despacho m.º 7520/98, de Abril[55], as condições

para a criação e o funcionamento de unidades de apoio à educação de Crianças e Jovens

Surdos nos estabelecimentos públicos do ensino básico e secundário.

As escolas dotadas destas unidades concentram as Crianças Surdas de um ou mais concelhos,

competindo-lhes, nomeadamente e para que seja possibilitado o máximo desenvolvimento

cognitivo, linguístico, emocional e social destas Crianças, assegurar:

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· desenvolvimento da LGP como primeira língua;

· as medidas pedagógicas específicas necessárias ao domínio do Português;

· os apoios ao nível da terapia da fala e do treino auditivo às crianças que dele possam

beneficiar;

· a promoção de acções de formação de LGP para professores e familiares da Criança

Surda.

Com vista ao desenvolvimento educativo e à integração social e escolar da Criança, estas

escolas tentam criar novas respostas educativas que assegurem um processo de aprendizagem

adequado às necessidades específicas da Criança Surda e que permitam alcançar melhorias

significativas na qualidade do ensino que Ihes é prestado. Para o efeito, devem integrar

técnicos especializados, como sejam docentes com formação em LGP, intérpretes de LGP e

terapeutas da fala...

Relaça-se igualmente que a Criança Surda pré-locutória, ao longo do 1.º Ciclo, deve encontrar-

se preferencialmente integrada em turmas de alunos surdos, por forma a poder desenvolver a

LGP e a receber o ensino nesta língua, o que, por um lado, previne o isolamento da Criança

Surda e, por outro, Ihe facilita o acesso à informação. Prevê-se também, que participe em

actividades lúdicas e culturais com alunos ouvintes e que, terminado o 1.º Ciclo, seja inserida

em turma de ouvintes, contando com o necessário apoio de um intérprete de LGP, sempre que

os conteúdos curriculares o permitam[55].

Pretende-se portanto que a Criança Surda, tal como sucede com as crianças pertencentes a

outras minorias linguísticas, aceda a uma educação bilingue e bicultural.

2.4. Projecto de Lei sobre a Formação dos Intérpretes de Língua Gestual

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Considerando que a garantia da "possibilidade de uma comunicação plena é um dos factores

mais importantes para a real integração social dos surdos e constitui factor indispensável para a

sua formação escolar, profissional e cultural", que a LGP constitui o principal instrumento dessa

comunicação e que a correcta utilização e interpretação desta língua "necessita de profissionais

qualificados e devidamente formados para assegurar a comunicação entre surdos e ouvintes", o

Partido Comunista Português apresentou na Assembleia da República um projecto de lei[55]

em que define as condições às quais deve obedecer o acesso e o exercício de actividade dos

intérpretes de Língua Gestual.

De acordo com o disposto neste projecto de lei, para aceder a esta profissão, exige-se a

conclusão, com aproveitamento, de um curso de intérprete de Língua Gestual, com a duração

mínima de dois anos, organizado pelo Estado, em colaboração com Organizações Não

Governamentais de Surdos e a Associação de Intérpretes de LGP. Este projecto está na origem

da Lei n.º 89/99, de 5 de Julho, que define as condições de Acesso e Exercício da Actividade de

Intérprete de Língua Gestual[55].

2.5. Códigos de Processo Civil e Penal

No plano não já do Direito Substantivo, mas sim do Direito Adjectivo, do Direito Processual,

encontramos normas relativas à realização de actos processuais nos quais intervenham

Pessoas Surdas.

Exemplos destas normas, são as contidas no artigo 141.º do Código de Processo Civil,

aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembro de 1961, e no artigo 93.º do Código

de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 78/87, de 17 de Fevereiro.

No primeiro artigo aludido, dispõe-se que tendo de ser interrogada no processo uma Pessoa

Surda, "a palavra é substituída pela escrita, na medida em que for necessário e possível", bem

como que "em último caso intervirá um intérprete que, sob juramento, transmitirá as perguntas

ou as respostas ou umas e outras".

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A solução contida nesta norma legal é informada pelos princípios fundamentais, estruturantes

de todo o processo civil: os princípios do contraditório[55], da igualdade das partes[55] e da

cooperação entre juizes e mandatários, por forma a alcançar-se, de modo expedito e eficaz, a

justiça no caso concreto.

Solução semelhante encontra-se contida no artigo 93.º do Código de Processo Penal, onde se

afirma que, em qualquer fase do processo e independentemente da posição da Pessoa Surda

na causa, sempre que esta deva prestar declarações, se observam "as seguintes regras:

a) Ao surdo ou deficiente auditivo é nomeado intérprete idóneo de língua gestual, leitura

labial ou expressão escrita, conforme mais adequado à situação do interessado;

b) b) Ao mudo, se souber escrever formulam-se perguntas oralmente, respondendo por

escrito. Em caso contrário e sempre que requerido nomeia intérprete idóneo".

A falta de intérprete implica, segundo o disposto no n.º 2 deste artigo, o adiamento da diligência

em questão.

Esta norma, ao assegurar o direito do ofendido de intervir no processo, consubstancia uma das

garantias de defesa no processo criminal constitucionalmente previstas[55].

Considerações Finais

Terminamos este nosso texto com a referência a uma ideia central do Direito - a do justo meio,

do equilíbrio dos pratos da balança que Díkê, a deusa grega da justiça, segurava na mão

esquerda[55].

Equilíbrio no sentido de ser indiscutível o direito da Criança Surda a adquirir o mais cedo

possível o domínio da LGP, como primeira língua. Equilíbrio no sentido de respeitar o direito da

criança surda a aceder a uma comunicação total (gestual, escrita e se possível oral)[55], de

acordo com as suas possibilidades cognitivas e por forma a respeitar-se o direito ao pleno e

harmonioso desenvolvimento da sua personalidade, enquanto Pessoa única e irrepetíveI[55].

Equilíbrio no sentido de não impormos soluções uniformizantes para todas as Crianças Surdas

ou ouvintes, respeitando-se o lema de "todos diferentes, todos iguais"[55], o que nos pode levar

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a reconhecer e respeitar um direito à diferença[55] que, no caso da Pessoa Surda pode

traduzir-se num direito a que seja respeitada a sua opção pelo silêncio, por viver num mundo

sem som.

84. E mais não diremos - até porque, como ouvintes que somos, o nosso pensamento tem os

limites da nossa língua, o Português na sua norma oral e escrita. Porque, como disse

VERGILIO FERREIRA, "não se pode imaginar uma cor, fora das do espectro solar. Não se

pode ouvir um som, fora da nossa escala auditiva. Não se pode pensar, fora das possibilidades

da língua em que se pensa. (...) Mas mudar de língua já é mudar de pensar ou da tonalidade

desse pensar[55] ".

Cultura dos Surdos

A Língua Gestual é vital para a transmissão e evolução da Cultura dos Surdos. As Pessoas

Surdas possuem uma identidade comum e criaram uma Cultura dos Surdos como resultado

natural desta forma de comunicação partilhada.

A Cultura dos Surdos floresce através da Comunicação numa língua comum e, a língua, tal

como acontece com as línguas faladas, é o meio principal para a transmissão cultural. A Língua

Gestual é portanto um veículo importante - talvez o mais importante - da Cultura dos Surdos.

A "literatura" da Cultura dos Surdos, contada na Língua Gestual do País ou Região, consiste da

história, histórias, contos, lendas, fábulas, anedotas, poesia, peças de teatro, piadas, rituais de

dominação, jogos de gestos e muito mais. Visto que a literatura da Comunidade Surda reconta

a experiência dos Surdos, muita dela diz respeito, directa ou indirectamente, à opressão

exercida pelas pessoas ouvintes sobre as pessoas Surdas.

Através da literatura Gestual, uma geração passa para a geração seguinte a sua sabedoria, os

seus valores, o seu orgulho, reforçando assim os laços que unem as gerações. Deste modo, a

literatura Gestual é (num certo sentido) uma tradição "oral" e apenas pode ser registada em

filmes ou vídeos ou ser "traduzida" para a escrita. Visto que a Língua Gestual não é uma língua

escrita, as publicações em língua escrita - jornais, revistas e livros escritos por e para as

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Pessoas Surdas - desempenham também um papel importante na história da Cultura dos

Surdos.

Instituições particularmente importantes para o crescimento e desenvolvimento da Cultura dos

Surdos têm sido as escolas de internato e as numerosas Associações e Clubes de Surdos

existentes em todo o Mundo, especialmente na Europa e Estados Unidos.

Instituições de Desportos para Surdos, organizações políticas e religiosas também

desempenharam e continuam a desempenhar um papel significativo na vida social e cultural

das Pessoas Surdas.

Uma vivência habitual para as Pessoas Surdas, como membros de uma minoria, é que

raramente partilhamos a nossa identidade, a identidade de uma minoria, com os nossos pais e

mais tarde com os nossos filhos. Noventa por cento das Pessoas Surdas nascem em famílias

ouvintes e noventa por cento dos casais de Surdos têm filhos ouvintes. Isto faz realçar o papel

vital desempenhado pelas escolas de internato, para Crianças Surdas, na transmissão da

Língua e da Cultura dos Surdos e a razão pela qual o encerramento das Instituições

especializadas causa tanta preocupação à Comunidade Surda.

Outra característica marcante da Cultura dos Surdos é a sua taxa elevada de casamentos

endogâmicos. Estima-se que nove de cada dez membros da Comunidade Surda casam com

outros membros do seu grupo cultural. A Língua Gestual é vital para a transmissão e evolução

da Cultura dos Surdos. As Pessoas Surdas possuem uma identidade comum e criaram uma

Cultura dos Surdos como resultado natural desta forma de comunicação partilhada.

Uma Minoria Linguística e Cultural

"Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham

os objectivos comuns dos seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de

alcançarem estes objectivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas

próprias Surdas mas que apoiam activamente os objectivos da comunidade e trabalham em

conjunto com as pessoas Surdas para os alcançar".(Padden, Carol)

"A maioria das pessoas que nasceram surdas ou ficaram surdas com pouca idade e que

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cresceram fazendo parte da comunidade surda consideram-se como pessoas

fundamentalmente visuais, com a sua própria língua visual, organização social, história e

hábitos: resumindo, com a sua própria maneira de ser, a sua própria língua e cultura". (Lane,

Harlan)

Estas são citações de linguistas que escreveram recentemente sobre a natureza da

comunidade surda. No entanto, historicamente, a sociedade em geral não via as pessoas

surdas deste modo, o modo que nós, como pessoas surdas, nos vemos a nnós mesmos. As

pessoas surdas sempre se sentiram diferentes das pessoas ouvintes e instintivamente sentem-

se parte da comunidade Surda que tem a sua própria língua para comunicar. Uma comunidade

onde não ser capaz de ouvir e/ou falar não é visto como um problema.

"No entanto, como a língua e o intelecto estão tão ligados no que é a nossa percepção das

pessoas (ficamos surpreendidos ao ouvir uma pessoa distinta e intelectual falar num dialecto a

não ser que o faça propositadamente), as pessoas ouvintes viam as pessoas surdas como

pessoas com uma audição defeituosa, como pessoas deficientes que necessitavam de ajuda e

assistência e todo o tipo de serviços. Por outras palavras as pessoas surdas eram vistas como

casos patológicos que necessitavam de tratamento". (Lane, Harlan)

Então, em 1965 um linguista Americano propôs uma nova descrição da Língua Gestual,

baseada somente em princípios linguisticos, que veio quebrar os pressupostos existentes. Ao

mesmo tempo este linguista propôs uma descrição das características "sociais" e "culturais" das

pessoas Surdas que usam a Língua Gestual Americana. Em retrospectiva, os seus escritos

constituíram um marco, um ponto de viragem na história dos Surdos. Nos anos 60 era

revolucionário descrever as pessoas surdas como constituindo um "grupo cultural". Os médicos

e outros profissionais que trabalhavam nas ciências físicas e de educação descreviam as

pessoas Surdas tipicamente em termos da sua condição médica: a perda auditiva. Estes

profissionais nunca prestaram uma atenção séria ao facto de que as pessoas surdas formam

grupos, grupos onde os membros que os formam não sentem "deficiências" e onde as

necessidades básicas dos membros individuais sã satisfeitas, como em qualquer outra

comunicação entre seres humanos. (Padden, Carol)

Assim, a visão mais tradicional sobre as pessoas surdas, prevalecente na influente classe

médica, é que a principal característica da surdez é falta de alguma coisa, como a audição e/ou

capacidade de comunicar. Esta é a abordagem clínico- patológica da surdez e baseia-se

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frequentemente em dados psicológicos ou educacionais. Esta visão é também prevalecente no

seio da comunidade ouvinte. (Kyle, J.G. e Woll, B.)

Os linguistas, descrevendo as pessoas Surdas como formando uma "comunidade linguistica"

representam assim uma ruptura com a longa tradição de se considerar as pessoas Surdas

"patologicamente". E ainda mais importante, esta nova visão trouxe consigo um reconhecimento

público e oficial de um aspecto fundamental da vida das pessoas Surdas: a nossa cultura.

(Padden, Carol)

Assim, estas visões não são simplesmente diferenças de atitude: elas têm profundas

implicações sobre o modo como as pessoas surdas são tratadas. A abordagem médica enfatiza

o que falta nas pessoas surdas e assume como primeira prioridade a " normalização" das

pessoas Surdas, enquanto que a visão mais recente implica aceitação (embora nem sempre a

compreensão) das pessoas Surdas como um grupo separado com as suas próprias

organizações e tradições. (Kyle, J. G. e Woll, B.)

Em conclusão, as pessoa Surdas vêem-se a si mesmas como uma minoria cultural e linguistica.

Cultural, porque fazem parte da Comunidade Surda e uma minoria porque vivem na Sociedade

maioritária das pessoas ouvintes.

Um dos principais objectivos das comunidades Surdas, Nacionais e Europeia, é o de conseguir

reconhecimento oficial como minoria cultural e linguística. Procuramos a aceitação pública das

pessoas Surdas como iguais - iguais na cidadania, no emprego, na representação política e no

controle das instituições que envolvem pessoas Surdas tais como escolas e organizações de

serviços. Um objectivo igualmente importante é a aceitação e reconhecimento da nossa história

e do nosso uso da Língua Gestual como um meio de comunicação. (Padden, Carol)

Dois passos importantes para alcançar estes objectivos foram já dados com o apoio do

Parlamento Europeu e da Comissão Europeia.

RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU SOBRE LÍNGUAS GESTUAIS PARA SURDOS

O Parlamento Europeu, através da sua Resolução de 17 de Junho de 1998, reconheceu a

Língua Gestual como uma Língua usada pelas pessoas Surdas e o direito das pessoas surdas

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usarem a Língua Gestual. A resolução delineia uma série de medidas para promover o uso das

Línguas Gestuais e apela aos Estados Membros, à Comissão Europeia e às autoridades dos

média a agirem.

Primeiro e além de tudo, a resolução apela à Comissão Europeia que prepare uma proposta

respeitante ao reconhecimento oficial das Línguas Gestuais usadas pelas pessoas surdas em

cada Estado Membro da EU. Também foi pedido aos Estados Membros que abolissem

quaisquer obstáculos ainda existentes ao uso da Língua Gestual, reconhecendo a interpretação

Gestual como uma profissão e estabelecendo formação a tempo inteiro de Intérpretes de

Língua Gestual e programas de emprego.

Entretanto, as instituições da EU devem dar o exemplo providenciando a interpretação em

Língua Gestual nas reuniões por elas organizadas e às quais assistiam pessoas Surdas. Os

Estados Membros devem assegurar que toda a informação governamental relevante, sobre

benefícios da segurança social, saúde e emprego, seja produzida em formatos acessíveis,

usando, por exemplo, Língua Gestual em vídeo para as pessoas surdas. Os Estados Membros

são também instados a apoiar projectos para o ensino da Língua Gestual a Crianças e Adultos

Ouvintes, utilizando para isso Professores Surdos com formação, e a apoiar a investigação e a

publicação de dicionários actualizados das suas respectivas Línguas Gestuais nacionais.

Os programas de TV, especialmente os programas de notícias e aqueles de interesse político,

devem incluir tradução em Língua Gestual ou Legendagem. Os serviços de teletexto devem

estar disponíveis em larga escala.

PROJECTO DAS LÍNGUAS GESTUAIS DA EUD 1996/97

O Parlamento Europeu e os membros do Inter-grupo da Deficiência atribuíram 500.000 ECU

EM 1995 de modo a permitir à EUD lançar um Projecto das Línguas Gestuais em toda a

Europa. Este trabalho pretendeu-se cimentar o caminho para uma total implementação da

Resolução de 17.06.1998 do Parlamento Europeu sobre as Línguas Gestuais para os Surdos.

O Projecto das Línguas Gestuais 1996/97, montado pela EUD, tem por objectivo dar uma visão

interior da situação das Línguas Gestuais e da situação das pessoas Surdas nos Estados

Membros da EU. O Projecto tem cinco pedras lapidares:

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1.. uma pesquisa sobre a situação das Línguas Gestuais na EU,

2.. um trabalho em rede a nível nacional e por toda a Europa,

3.. um curso introdutório sobre as Línguas Gestuais e a Cultura dos Surdos,

4.. uma conferência Europeia sobre a situação e perspectivas futuras das Línguas,

5.. a publicação de Boletins com fins informativos e destinados a criar uma melhor

compreensão, entre o

público em geral, pelas questões ligadas aos Surdos.

Comunidade Surda: Que Futuro?

Texto de Conferência dos Drs Miguel Ricou e Rui Nunes do Departamento de Bioética e Ética

Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto no Seminário organizado pela

ASPorto em 5 de Maio de 2001)

Queríamos, antes de mais, deixar uma pequena mensagem aos organizadores e participantes

deste evento que reputamos de grande importância, não só pelo papel informativo que, sem

dúvida, detém, mas por servir de instrumento aglutinador de vontades e esforços no sentido do

desenvolvimento da Comunidade Surda Portuguesa.

Queríamos agradecer aos organizadores deste encontro pela oportunidade, ainda que indirecta,

de participar com o nosso modesto contributo, e prestar a nossa homenagem à Associação de

Surdos do Porto pela disponibilidade e empenho que sempre colocaram em todos os projectos

que fomos desenvolvendo em conjunto. Sem a Associação, os elementos do Serviço de

Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina do Porto, nos quais nos incluímos, não

teriam nunca tido a possibilidade de desenvolver os seus parcos conhecimentos sobre a

realidade complexa e multifactorial que representa a Surdez. Bem hajam!

Expressões como cultura surda ou mundo surdo são frequentes no léxico de quem trabalha,

estuda ou vive junto de uma Comunidade Surda, ou mesmo de quem de perto conhece alguém

que, por um qualquer acaso, nasceu ou ficou Surdo. Infelizmente, em Portugal, e dentro dos

limites óbvios em que o empirismo nos coloca, será de lamentar que determinado tipo de

informações não ultrapassem os grandes centros urbanos nacionais, onde existem de facto

associações que promovem a integração dos indivíduos privados da audição, deixando

carentes de apoio e identificação os Surdos de outras zonas do território nacional.

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Somos um País de reduzida dimensão, com cerca de 10 milhões de habitantes, pelo que,

apesar de uma forte incidência relativa de surdez, encontramos muitas zonas do território

nacional onde os Surdos acabam por estar um pouco isolados. Se em países como os Estados

Unidos da América, os Surdos acabam por se concentrar em alguns Estados, como é exemplo

o Estado de Maryland na costa Este daquele país, em Portugal, talvez pela falta de estruturas

de apoio bem organizadas, tal não se verifica.

Pretende esta comunicação trazer à discussão a possível existência de uma cultura e de uma

comunidade surda, perspectivando, desta forma, o seu futuro. Partimos do pressuposto que a

produção de cultura é uma característica única do Homem, que visa a sua adaptação ao meio

ambiente, seja através da modificação deste último, seja através da adopção de regras e

valores que visem optimizar a sua vida. É por isso o resultado de uma vivência racional, o

exercício da autonomia individual de cada ser humano.

Será, porventura, na comunicação que residem as grandes diferenças culturais da nossa

época. Poderá, à partida, parecer uma afirmação estranha; mas não. Se a cultura, é a parte do

ambiente feita pelo homem, ela serve para este melhor se adaptar ao mundo em que vive.

Assim, se a questão da diferenciação cultural assume importância pelo facto de proporcionar,

por isso, uma melhor vida ao homem, facilitando a adaptação do ambiente às suas

necessidades, então a base e objectivos da cultura são comuns. Diferentes, serão as

interpretações do que são as necessidades humanas. Dizemos interpretações, porque não

parece existir nenhum motivo para que as necessidades humanas não correspondam à

finalidade teleológica do homem: viver feliz; sendo por isso equivalentes entre si.

Temos desta forma que é pela comunicação que se transmite e se faz interiorizar o conceito de

cultura de cada um. Não será por acaso que Moles (1967) afirma: "cultura, termo tão carregado

de valores diversos que o seu papel varia notavelmente de um autor para outro e do qual se

enumeraram mais de 250 definições".

Aliás, como afirma Fernandes (1999), "a vida em si mesma desconhece o seu próprio destino".

São as representações mentais que os indivíduos fazem da realidade que levam as sociedades

a definir os seus próprios objectivos e formas de estar no mundo, como que definindo as

normas de convivência e sobrevivência dos seus diversos membros. Na verdade, o mundo

humano será um espaço de relações sociais construído segundo as posições relativas de cada

um dos seus elementos e perante a avaliação subjectiva de cada um. O próprio espaço físico

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constituirá igualmente a construção do imaginário individual e colectivo, sendo que a relação do

homem com ele será mediada por representações.

Num mundo simbólico, em que o homem se tornou incapaz de discernir entre os símbolos

apreendidos ao longo da sua evolução individual e a própria realidade concreta, teremos

inevitavelmente que concluir que será muito difícil, senão impossível, orientar uma avaliação

sensitiva da realidade sem a culturalizar imediatamente. Ou seja, não fará sentido falar do

homem e da sua relação com o mundo sem percebermos que, inevitavelmente, esta será

sempre uma visão subjectivada pelo fundo cultural de cada um. Ainda que cada pessoa tenha

uma perspectiva própria de tudo aquilo que percepciona, essa perspectiva foi construída

através das representações que lhe foram impostas pela sociedade - o facto social é exterior e

coercivo, obrigando-nos por isso a determinadas posturas, a determinados gostos, a

determinadas opiniões, ou melhor ainda, a sermos determinadas pessoas. Somos por isso

pessoas na nossa relação com os outros; Engelhardt faz a distinção entre Ser Humano, que

considera numa perspectiva biológica, e Pessoa, agente moral capaz de entrar em relação com

o outro. Definindo a moral como normas interiorizadas por cada um nas suas relações com o

outro, temos que, mais uma vez, a comunicação assume um papel primordial.

Já aqui dissemos que existem mais de 250 enunciações de cultura. Trata-se portanto de um

conceito indeterminado que é preenchido pelo intérprete de acordo com as suas necessidades.

Em consequência, tentar definir cultura, ou mesmo optar apenas por uma das definições já

existentes envolveria o risco de sermos muito específicos, tornando-nos reducionistas ou, pelo

contrário, demasiado vagos, perdendo objectividade. Se no entanto e por exemplo optarmos por

duas definições, poderemos tentar induzir o tronco comum das mesmas. Se o Dicionário da

Porto Editora (2000) se refere a cultura como « maneiras colectivas de pensar e de sentir » e

como um « conjunto de costumes, de instituições e de obras que constituem a herança social

de uma comunidade ou grupo de comunidades », Giddens (1993) define-a como consistindo

nos « valores de um dado grupo de pessoas, nas normas que seguem e nos bens materiais que

criam ».

Ambas as definições, que têm objectivos obviamente diferentes, incluem a ideia de

transmissibilidade, dado que só terão nexo se respeitadas e interiorizadas pela maioria das

pessoas, uma vez que são estas a razão da sua existência. Temos pois, e uma vez mais, a

comunicação como estando na base de tudo aquilo que se convencionou apelidar de cultura.

Não existem dúvidas, hoje, que a única grande diferença entre os Surdos e os Ouvintes reside

precisamente no órgão da audição. Nenhuma diferença foi encontrada entre pessoas surdas e

ouvintes no que diz respeito às suas capacidades cognitivas. No entanto, existem inúmeros

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exemplos que nos demonstram que indivíduos privados do contacto com os seus semelhantes

desenvolvem perturbações cognitivas muito sérias, não conseguindo uma boa adaptação à

realidade, não atingindo um desenvolvimento harmonioso que lhes permita a aquisição das

aptidões necessárias para viverem autonomamente como pessoas. O mesmo sucederá a um

indivíduo que, por via da sua incapacidade auditiva não desenvolva processos que lhe

permitam uma comunicação rica com terceiros, com vista à aquisição dessas mesmas

competências, que não serão mais do que a cultura em si mesma.

Neste sentido, os Surdos desenvolveram meios de comunicação próprios, adaptados às suas

características, que lhes permitem diminuir ou mesmo suprir as limitações inerentes à sua falta

de audição. A língua gestual, tal como as línguas orais, é constituída por um pequeno conjunto

de elementos que, de uma forma figurada, poderiam corresponder às vogais e consoantes

ordenadas segundo determinadas regras: os gestos manuais, a sua localização na proximidade

do corpo, a sua orientação e os seus movimentos; é hoje, por isso, reconhecida como uma

língua, equivalente a qualquer outra.

Historicamente, as pessoas surdas sempre foram educadas com base na aprendizagem da

língua oficial do seu próprio país e da leitura labial. O pressuposto subjacente a esta prática era

permitir uma melhor integração destas pessoas na sociedade, promovendo a sua aculturação

através da língua. No entanto, e uma vez que os resultados deste tipo de intervenção,

sobretudo com Surdos profundos, não foram efectivos, essa adaptação nunca foi realmente

conseguida, sendo os Surdos, nesse tempo, tratados como débeis mentais ou mesmo como

loucos. Nunca teve Foucault (1954) tanta razão quando considerou que "a doença mental não é

um simples desvio cultural, mas sim uma manifestação dessa mesma cultura". Neste caso, os

diagnósticos psicopatológicos constituíram, claramente, projecções das sociedades, uma vez

que se basearam naquilo que é desvio da norma.

No caso dos Surdos, foi esquecido o critério heurístico de normalidade. Nunca os Surdos se

consideraram como pessoas portadoras de deficiência, sobretudo quando em contacto com

outros indivíduos portadores da mesma incapacidade auditiva. Apenas no que diz respeito a

critérios culturais e estatísticos, os Surdos poderiam ser considerados anormais. A sua tentativa

de integração numa sociedade onde predomina a comunicação verbal teria que,

inevitavelmente, estar condenada ao insucesso, pelo menos mediante os pressupostos de uma

cultura que ignorava as necessidades específicas de alguns grupos da população.

Foi assim que, segundo Harlam Lane, os Surdos foram colocados em asilos especiais onde,

fruto das suas reais capacidades cognitivas que lhes proporcionam o mesmo critério racional

inerente à condição de qualquer pessoa, criaram as bases daquilo que viria a ser denominado

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como "comunidade surda". Qualquer grupo, mais ainda um que pode ser considerado uma

minoria no seio de um grupo maior que é a população de uma cidade ou de um país, tende a

criar regras que, em sentido lato, o vão adaptar à sua realidade, permitindo-lhe satisfazer as

necessidades dos seus membros, atingindo os seus objectivos.

Como já vimos, as pessoas criam a sua realidade. Baseiam as suas actividades mediante as

suas ideias do real, sob orientação do que consideram bom ou mau, normal ou anormal -

logicamente num critério pessoal, heurístico - e, por consequência, naquilo que dá prazer ou

não dá prazer. Neste sentido, os Surdos começaram a construir o seu próprio mundo quando

agregados em grupos afastados da realidade exterior. Falamos, portanto, da Comunidade

Surda que, necessariamente, como qualquer agrupamento de pessoas, terá regras próprias e

objectivos informais comuns à maioria das comunidades, que facilitam o nosso fim último - viver

feliz.

Mas o que é uma comunidade? O conceito envolve tanto a noção de área social, ou seja, a

extensão da rede de relações que indivíduos e grupos que vivem em determinada área

estabelecem entre si, e a ideia de uma ligação natural ou espontânea entre as pessoas, ou

seja, de um sentimento de pertença a uma unidade colectiva bem diferenciada.

Desta forma, será facilmente compreensível que os Surdos formem uma comunidade entre si,

ou melhor, um sem número de comunidades espalhadas pelo mundo, uma vez que, se numa

primeira fase foram agrupados formalmente por terceiros, nos já referidos asilos ou escolas

especiais, hoje, juntam-se espontaneamente. No entanto, tal não se fica apenas a dever às

suas características sensoriais comuns. Para se ser membro da Comunidade Surda é

necessário que o indivíduo se identifique com o mundo surdo, partilhe experiências, e participe

nas actividades da própria comunidade, existindo, desde logo, uma clara noção de pertença ao

grupo.

Mas, como em qualquer grupo, existem regras para aceder ao mesmo, sendo que estas são

essenciais para promover a sua coesão. Será necessária uma partilha de objectivos que só

poderão ser atingidos com a interacção dos seus elementos, através do desenvolvimento de um

conjunto de normas e valores partilhados, que estruturam a sua acção colectiva e adquirem

consciência de si próprios como indivíduos membros do grupo.

O sentimento de identificação com a Comunidade Surda faz com que os seus membros se

relacionem mais facilmente com pessoas surdas do que com pessoas que beneficiam da

audição, qualquer que seja a sua condição, ainda que, aparentemente, se assumam como

totalmente desconhecidas, como sejam os estrangeiros. Deste pressuposto, partem

determinados tipos de atitudes tal como, para dar um exemplo, o facto de membros de uma

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sinagoga judia para Surdos façam mais depressa doações a membros de outros grupos

religiosos de Surdos, do que a outros judeus Ouvintes. Aliás, a nomenclatura utilizada pelos

"surdos" que distingue claramente estes dos "ouvintes" é disto uma boa prova.

O desenvolvimento desta identificação com a Comunidade Surda passa, entre outros factores,

pela partilha de experiências comuns ao longo do desenvolvimento da pessoa. Desde muito

novos que todos os Surdos experimentaram a frustração de não serem compreendidos e a

solidão provocada por não conseguirem interagir com real efectividade com os outros membros

da família, vizinhos e outros. Estas experiências passadas e também presentes serão outro dos

contributos para a grande coesão grupal existente numa Comunidade Surda. Tal como qualquer

grupo, o sentimento de ameaça vindo do exterior reforça as ligações internas e diminui a

expressão dos conflitos individuais. Qualquer um de nós já passou por essa experiência, uma

vez que todos temos grupos de referência. O melhor exemplo é o da família: sempre que

externamente ameaçada, as ligações entre os seus membros reforçam-se, aumentando os

sentimentos de identificação, assumindo-se como prioritária a sua defesa.

Será esta, provavelmente, uma das razões que tornam tão difícil, senão impossível, a entrada

de uma pessoa ouvinte para uma Comunidade Surda. Também sabemos que, quanto mais

coeso é um grupo, mais difícil se torna aceder-lhe - só assim, existem garantias que a sua

identidade se mantenha. Aliás, isto leva-nos ao terceiro critério proposto por Higgins, ou seja a

participação. A Comunidade Surda não é meramente simbólica, constituída por indivíduos que

se identificam com ela e que partilharam experiências comuns. O seu corpo é constituído pelas

suas actividades como sejam os casamentos entre os seus membros - muito frequentes - as

amizades, as festas, as organizações religiosas, entre outras. Talvez resida aqui também a

grande dificuldade de aceitação, por parte dos Surdos, dos indivíduos com implantes cocleares.

Ao aproximarem-se, por intermédio do aparelho, do "mundo ouvinte", mais dificilmente

partilharão todas estas actividades, bem como, as experiências de vida se tornarão um pouco

diferentes.

Temos desta forma que, não é apenas o facto de se ser surdo que determina a pertença à

Comunidade Surda. Muitos indivíduos que são audiologicamente surdos, nunca dela fizeram

parte, enquanto outros que apenas sofrem de uma deficiência auditiva moderada, sempre aí

desenvolveram a sua vida.

Considerando, pois, a existência real de uma Comunidade Surda, tal não implica, forçosamente,

que uma cultura própria, distinta de qualquer outra, desabroche a partir dela. No nosso País

existem um sem número de diferentes comunidades, bem diferenciadas, que nem por isso

clamam a paternidade de uma cultura própria.

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No campo filosófico quase todo o tipo de conclusões, desde que lógicas, são permitidas.

Contudo, não é nosso objectivo desenvolver uma qualquer teoria sobre a existência ou não de

uma cultura surda. Nada pretendemos provar; apenas ambicionamos lançar algumas pistas que

possibilitem a aquisição de mais algumas ferramentas que permitam a todos os presentes inferir

as suas próprias conclusões.

Discutíamos há pouco que a comunicação era a base da diferenciação cultural, dado que era a

nossa percepção da realidade, adquirida através dos conceitos que nos foram transmitidos, que

estava na base da cultura de cada indivíduo e, por força de razão, da cultura de cada povo.

Ora, os Surdos, pelo menos aqueles que vivem numa Comunidade Surda, têm claramente uma

forma de comunicação diferente da nossa, pessoas Ouvintes. Utilizam a língua gestual,

comunicação baseada num registo visuo-espacial, bem diferente da comunicação oral, baseada

na audição. Aliás, tal implica, inclusivamente, uma alteração cerebral no que diz respeito ao

comando da linguagem, uma vez que comunicando através do gesto é o hemisfério direito, em

sujeitos destros, que é dominante por se este especializado no tratamento de dados visuo-

espaciais. Em sujeitos que comunicam através de uma língua oral, o hemisfério dominante para

a linguagem é contra-lateral. Temos desta forma que o registo de raciocínio sobre a realidade

se torna bem diferente. A língua gestual socorre-se de símbolos que procuram inspiração na

realidade observada, transmitindo, desde logo, uma influência subjectiva. Já os símbolos na

oralidade - as palavras - mais dificilmente têm uma correspondência observável com a própria

realidade.

Não será difícil, pois, imaginar que as diferenças provocadas por este tipo de línguas tão

diferentes, serão relevantes. Mais, comunicação não é apenas linguagem. Comunicação é tudo

o que fazemos quando estamos em contacto com o outro. Não será por acaso que alguém

disse "é impossível não comunicar". Mesmo quando estamos calados, evitando trocar qualquer

olhar com o outro, estamos a comunicar exactamente que não o queremos fazer.

Será, com certeza, possível, provar empiricamente que nos identificamos mais depressa com

indivíduos que possuem afinidades connosco do que com outros de características bem

distintas. Uma dessas afinidades é a língua, tão mais importante quanto menos pessoas a

utilizarem. Não é então verdade que, uma vez no estrangeiro se ouvimos alguém comunicar na

nossa língua, rapidamente temos ensejo de entrar em relação com ele? Não será, pois,

estranho que o Surdo se identifique mais depressa com alguém que "fale" a sua língua,

estabelecendo um maior número de relações com os elementos da Comunidade Surda, dado

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que, no meio dos Ouvintes, ele poderá sentir-se como qualquer pessoa fora do seu país em

contacto com uma língua estranha que não domina.

Temos pois, e finalmente, que socorrendo-nos dos três grandes parâmetros utilizados nas

definições de cultura que aqui adoptamos - valores, normas e bens materiais - verificamos que

por via desta contextualização tão diferente entre as pessoas surdas e as pessoas que ouvem,

as relações estabelecidas entre elas vão ser necessariamente discrepantes, baseadas em

pressupostos distintos, o que resultará, inevitavelmente, em diferentes valores. A cultura surda

estará centrada em estratégias sociais que visam uma adaptação - não uma integração - a um

mundo ouvinte, em normas de convivência muito mais rígidas e menos tolerantes,

consequência provável do instinto de sobrevivência de qualquer minoria que se sinta

ameaçada. Ainda, em bens materiais diferentes que promovam uma melhor adaptação das

suas características sensoriais ao ambiente externo. Por exemplo, as habitações dos Surdos,

são caracterizadas pela existência de uma boa iluminação por forma a permitir que se possam

sempre ver uns aos outros; as próprias mesas dos alunos nas salas de aula estão dispostas em

semicírculo, por forma a que todos se possam visualizar mutuamente.

Como refere Virole, a cultura surda é uma cultura de adaptação à diferença e promotora de

relações sociais. O pressuposto básico reside na distinção entre handicap e deficiência. Se

parece claro que os Surdos sofrem de uma deficiência orgânica, combaterem-na com

obstinação poderá aumentar o handicap. Logo, o Surdo transforma a sua deficiência num estilo

de vida que, claramente, não pode ser reduzido a uma mera avaliação sociológica de um grupo

de deficientes. Só quem tentar interpretar a dinâmica de uma Comunidade Surda através da

compreensão de todas as variáveis que envolvem a sua cultura, poderá ambicionar aceder a

uma compreensão mais completa deste fenómeno fascinante de adaptação do Homem a um

ambiente que pode ser considerado hostil.

Parece-nos pois, fundamental, que as comunidades surdas possam prosperar e desenvolver-

se. Só através do aumento da coesão entre os seus membros, será possível interiorizar normas

que permitam a sua sobrevivência.

A cultura surda deve ser respeitada como tal, dado que visa o aumento da qualidade de vida

dos indivíduos pertencentes às comunidades que decidiram adoptar esse "estilo de vida".

Referimo-nos, pois, ao princípio da autonomia pessoal, como constituindo um dos pressupostos

básicos da vida em sociedade. Desta forma, todas as atitudes etnocentristas, ainda que

naturais, devem ser encaradas com extrema precaução.

No entanto, as ameaças não surgem dos implantes cocleares ou de qualquer outra tecnologia

que restitua, ainda que apenas em parte, a capacidade de audição do surdo. Como vimos,

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existe um sem número de deficientes auditivos moderados que pertencem à comunidade surda.

Fundamental, parece ser a capacidade dos surdos em organizarem-se por forma a poderem

exigir condições que lhes proporcionem "o direito a um futuro aberto".

Muito obrigado pela Vossa atenção

O Direito da Criança Surda a crescer Bilíngüe

Toda a criança surda, independentemente do seu grau de surdez, tem o direito de crescer

bilingue. Afim de poder atingir plenamente as suas capacidades cognitivas, linguísticas e

sociais, e como o demonstram as investigações após longos anos, esta criança terá quase

sempre necessidade de conhecer e de utilizar duas Línguas, a Língua Gestual e a Língua Oral

(sob a forma escrita, e se possível falada).

O que a criança deve poder efectuar com a Língua

Graças à Língua, a criança surda, como a criança ouvinte, deve poder efectuar um determinado

número de coisas:

1. Comunicar o mais cedo possível com os seus pais e família

Desde os primeiros momentos da vida, a criança começa a adquirir a língua, conforme esta lhe

é exposta e que ela possa entender. É graças a esta Língua precoce que se estabelecem os

laços pessoais e afectivos entre os pais e a criança. Como é verdadeiro para a criança ouvinte

deve sê-lo também para a criança surda. Ela deve poder comunicar plenamente com os pais

com a ajuda duma Língua natural. Esta interacção deve começar o mais cedo possível afim dos

laços afectivos e sociais se construam, mutuamente, entre a criança e os seus pais.

2. Desenvolver-se cognitivamente o mais jovem possível

Com a ajuda da Língua a criança vai desenvolver as capacidades cognitivas que são

indispensáveis ao seu desenvolvimento: observação, abstracção, memória, etc. A ausência de

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Língua, ou a presença duma Língua mal entendida ou não natural, terá um impacto nefasto

sobre o desenvolvimento cognitivo da criança.

3. Adquirir conhecimentos através da Língua

É em grande parte através da Língua que a criança adquire conhecimento do mundo. A

comunicação com os pais e outros parentes, com outros adultos e crianças, permitir-lhe-á a

aquisição e a transmissão dos conhecimentos e da sabedoria, que formarão a base

indispensável às actividades escolares. Além disso, facilitar-lhe-ão toda a compreensão da

Língua, porque não há uma real compreensão sem conhecimento do mundo.

4. Comunicar plenamente com o mundo próximo

A criança surda, como a criança ouvinte, deve poder comunicar de modo pleno com aqueles

que a cercam (pais, irmãos, outras crianças, professores, adultos, etc.). Deve poder fazê-lo

através duma forma de comunicação ideal e na Língua mais apropriada à situação. Em certos

casos, será a Língua Gestual, noutros a Língua Oral, e por vezes as duas Línguas em

alternância.

5. Aculturar-se nos dois mundos que serão os seus

A criança surda deve gradualmente tornar-se membro dos dois mundos aos quais pertence. È

necessário que se identifique, ao menos parcialmente, com o mundo ouvinte, o mundo dos seus

pais e da sua família na maior parte dos casos. Mas deve também poder entrar em contacto

com o mundo dos Surdos o mais precoce e rapidamente possível. A criança surda deve poder

sentir-se bem nestes dois mundos e identificar-se com eles, qualquer que seja o grau desta

identificação. É necessário fazer tudo para que a descoberta destes dois mundos tenha lugar de

maneira precoce que a integração nos mesmos se faça sem dificuldade.

A ÚNICA MANEIRA DAÍ CHEGAR: O BILINGUALISMO

O Bilingualismo, Língua Gestual / Língua Oral, parece ser a única via aberta para proporcionar

à criança surda uma comunicação precoce com os pais, um desenvolvimento cognitivo ideal,

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uma aquisição de conhecimento do mundo, um contacto linguístico com o que a rodeia, bem

como uma aculturação no mundo dos surdos e também no dos ouvintes.

Que tipo de bilingualismo?

O bilingualismo procurado será um bilingualismo que respeite a língua gestual e a língua oral

(na sua forma escrita e, se possível, oral). Certamente que estas duas línguas terão um papel

diferente dependendo da criança (dominante a língua gestual entre umas, dominante a língua

oral entre outras, equilíbrio entre as duas línguas para algumas). Além disso será necessário

prever diferentes géneros de bilingualismo visto que os tipos de surdez que se vão encontrando

são diferentes e o contacto entre estas duas línguas é muito complexo. Assim a maioria das

crianças surdas estão destinadas a ser bilingues e biculturais, à imagem de grande parte da

população mundial. À semelhança de outras crianças bilingues, as crianças surdas utilizarão

duas línguas na vida quotidiana e pertencerão a dois mundos - neste caso o mundo dos surdos

e o dos ouvintes.

Qual o papel da língua gestual?

A língua gestual deverá ser a primeira língua (ou uma das duas primeiras línguas) das crianças

surdas. É a sua língua natural, duma riqueza incontestável e que proporciona uma comunicação

total. Contrariamente à língua oral permite uma comunicação precoce e excelente entre os pais

e o bebé surdo (condicionada que aqueles, sendo ouvintes, a aprendam o mais cedo possível),

ela estimula o desenvolvimento cognitivo e social rápido, ela permite a aquisição do

conhecimento do mundo, ela permitirá à criança surda aculturar-se ao mundo dos surdos (um

dos seus dois mundos) logo que a criança tenha contacto com ele. Além disso a língua gestual

irá possibilitar uma aquisição mais fácil da língua oral, seja sob a forma oral ou escrita.

Efectivamente possuir uma língua bem enraizada facilita muito a aquisição doutra língua (seja a

primeira língua uma língua oral ou uma língua gestual). Enfim, a língua gestual é garantia de

que a criança surda terá pelo menos uma língua bem estabilizada, visto ser bem conhecido que

o nível atingido na língua oral é geralmente insatisfatório, quaisquer que sejam os esforços

feitos e os meios tecnológicos disponibilizados. Aguardar vários anos para atingir um

determinado nível em língua oral, sem possibilitar à criança surda durante o mesmo período a

utilização da língua que é a sua língua natural e mais lhe convém desde os primeiros tempos, a

língua gestual, é expô-la a um enorme atraso linguístico, cognitivo, afectivo e social.

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Qual o papel da língua oral?

Ser bilingue significa conhecer e utilizar duas ou mais línguas. A outra língua da criança surda

será portanto a língua oral, sob a sua forma falada e/ou escrita. Esta língua é aquela do outro

mundo ao qual pertence a criança surda, o mundo dos ouvintes, normalmente aquele dos seus

pais, irmãos, familiares e de muitos dos seus futuros conhecidos, colegas e amigos. Se os

membros do seu círculo não sabem a língua gestual, é indispensável que a criança surda possa

comunicar com eles, pelo menos parcialmente, através da língua oral. Esta língua,

principalmente sob a sua forma escrita, será igualmente a condutora de numerosos

conhecimentos que serão adquiridos primeiro em casa e, mais tarde, na escola. O futuro da

criança surda, seu sucesso escolar e, por arrastamento, o seu desenvolvimento profissional

dependerão em grande parte dum domínio regular da língua oral, pelo menos ao nível escrito e

se possível oral.

CONCLUSÃO

É dever da Sociedade permitir que a criança surda aprenda as duas línguas, a língua gestual

(como primeira língua) e a língua oral. Para tal a criança surda deve entrar em contacto com

utilizadores das duas línguas e deve sentir a necessidade de utilizar as duas. Forçar só a língua

oral baseando-se nos novos avanços tecnológicos, é arriscar o futuro da criança surda. É uma

tomada de posição que envolve grandes riscos relativamente ao seu desenvolvimento humano,

é colocar em perigo o seu futuro pessoal, é negar a sua necessidade de aculturação nos dois

mundos a que pertence. Faça o que fizer no futuro, qualquer que seja o mundo que a criança

surda vier a escolher em definitivo (no caso de não pretender "pertencer" aos dois), um

bilingualismo precoce dar-lhe-á mais garantias para o futuro que apenas o monolingualismo.

Ninguém se pode lamentar de conhecer mais do que uma língua, mas poderemos lamentar-nos

de não conhecer nenhuma, sobretudo quando o nosso normal desenvolvimento disso depende.

A CRIANÇA SURDA TEM O DIREITO DE CRESCER BILINGUE. E UM DOS DEVERES DA

SOCIEDADE É TUDO FAZER PARA QUE TAL SEJA POSSÍVEL.

Adaptação de um Trabalho de François Grosjean

País do Silêncio

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O País do Silêncio, o País do Futuro, o nosso País, onde tudo será diferente porque tudo será

ao contrário da actualidade.

· Será um País onde, como todos os outros, haverá um Presidente da República com todo

o seu executivo: Ministros, embaixadores, deputados, etc., etc. mas nesse País haverá uma

grande diferença: todos estes personagens serão Surdos.

· Generais, Coronéis, Brigadeiros, Almirantes, Contra-Almirantes, enfim, as Forças

Armadas, Aéreas e Navais, serão compostas por Oficiais, Sargentos e Soldados e Marinheiros

Surdos.

· Manteremos relações diplomáticas com todas as Nações do Mundo assim como

entidades como a ONU, a UNESCO, etc., no entanto exigiremos que os seus representantes no

nosso País sejam Surdos.

· O idioma oficial será a Língua Gestual e o Ensino nas Escolas, Liceus e Universidades

será obrigatoriamente feito através da Lìngua gestual.

· Todos os Governantes, bem como os principais directores de Empresas serão igualmente

Surdos bem como todas as pessoas que exerçam postos chaves em todas as Entidades

Públicas e/ou Privadas.

· Os Advogados, Médicos, Arquitectos assim como todos os graduados nas diversas

carreiras também serão Surdos.

· Não existirá a Rádio, a Televisão não terá voz e será falada através da Língua Gestual ou

por legendas, o Telefone e o Telemóvel não transmitirá som apenas écran para transmissão de

imagem e/ou escrita.

· Todos os sistemas de maquinaria industrial e de segurança serão visuais não se

admitindo o som por nenhum motivo.

E.. .dentro deste Sistema qual será o papel dos que ouvem?

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· Ser-lhes-á proibido exercer algum cargo público importante, não poderão dirigir nenhuma

empresa, não se lhes permitirá ingressar no serviço militar, terão enormes restrições à

condução de veículos automóveis bem como de outros meios de transporte pois só com

condicionalismos poderão obter a carta de condução.

· Nas empresas e indústrias serão contados pelo dedos os casos em que pessoas ouvintes

manipulem alguma maquinaria ou tenham algum lugar privilegiado, se estiverem filiados nos

sindicatos se lhes dará a menor ajuda possível, não se dará importância alguma a seus pedidos

entre os quais, nós os Surdos, falaremos muito e não faremos nada, quando fizerem pedidos de

melhores regalias sociais e outros.

Assim sucede actualmente no nosso Pais - Portugal - só que ao contrário: NÓS OS SURDOS

somos os que ouvem e os ouvintes os surdos.

OUVINTES: gostariam de ter estas condições de vida? Qual seria a vossa atitude em serem

obrigados a estas condições de Vida?

MEDITEM... DEPOIS QUEIRAM DAR-NOS A VOSSA RESPOSTA.

Armando Baltazar

Fevereiro de 1990

Ser Surdo

Parafraseando alguém diremos que:

SER SURDO não impede que se ria mais ou se ria menos, que se goste de estar em casa ou

de passear ao ar livre, que se aprecie ou não se aprecie um bom petisco, que se fume ou não

se fume, que se beba ou não se beba um copo de bom vinho, que se viva mais ou menos

intensamente o amor...

Amar o sol, o ar livre, a natureza, a terra e o mar, o fogo e a água, as plantas e as flores, os

animais, as pedras, a luz, a cor, o som (sim, porque não?), o movimento, a alegria, o riso, o

prazer, é da própria Natureza do Ser Humano, Ser indissociável do planeta onde nasceu e onde

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vive. Próprio também do SURDO que, por ser Surdo, não deixa de ser um Ser Humano, antes

mais intensa e profundamente o é.

Glossário Surdo

LÍNGUA: Conjunto do vocabulário de um idioma, e das suas regras gramaticais. Cada Língua

tem estilo e difere de um país para outro como por exemplo, Português, Inglês, LGP

LINGUAGEM: Conjunto de sinais falados, escritos ou gesticulados que serve ao homem para

exprimir suas idéias e sentimentos. Como exemplo podemos utilizar: Linguagem computacional,

linguagem dos insetos, etc.

LÍNGUA GESTUAL: É a Língua oficial dos Surdos e que possui a sua própria estrutura e

gramática através do canal visual-gestual. Esse canal visual-gestual é composto por Canal

Emissor (movimento das mãos e expressão facial e corporal) e Canal Receptor (olhos). A

Língua Gestual é a Língua natural dos Surdos. Cada País tem a sua própria Língua Gestual

que poderá também diferenciar nas várias Regiões desse País.

ASL - Língua de Sinais Americana

LGP - Língua Gestual Portuguesa

AUSLANG - Língua de Sinais Australiana

LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais

MÍMICA: Expressão do pensamento por gestos, movimentos fisionômicos, etc. que imitam o

que se quer fazer compreender. Por extensão, movimentos expressivos do corpo e,

principalmente, do rosto.

GESTOS: Movimento do corpo, principalmente das mãos, cabeça e braços para exprimir idéias

ou sentimentos, aspectos, fisionomias, parecer, semelhantes, acto ou movimento obsceno.

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ORALISMO: É a filosofia educacional que só se preocupa com o ensino da língua oral através

de vários métodos tais como: - verbo tonal, leitura labial e outros.

COMUNICAÇÃO TOTAL É a filosofia educacional que procura desenvolver todas as

capacidades de comunicação tais como: a fala, audição, escrita, gestos, mímica...

BILINGUALISMO: É a utilização simultânea das duas modalidades de língua: a oral/auditiva e a

gestual/vistual

CONFIGURAÇÃO DAS MÃOS: A forma que a mão assume na realização de um sinal,

especialmente na utilização da Língua Gestual.

FONTE: ASSOCIAÇÃO DE SURDOS DO PORTO - PORTUGAL - www.asurdosporto.rcts.pt