a pessoa da escola

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Comunicação em encontro ABEM 2008 sobre o tema Escola

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Page 1: A Pessoa da Escola

A pessoa da escola: uma reflexão sobre a relação professor-aluno

Alice Marques

Introdução

Este trabalho é baseado em reflexões geradas pela pesquisa de mestrado

Processos de Aprendizagens Musicais Paralelos à Aula de Instrumento: Três Estudos de

Caso (2006), de minha autoria. A pesquisa abordou contextos, percursos e recursos

utilizados por três alunos de instrumento que buscavam por si mesmos por

conhecimentos além dos propostos em suas classes de instrumento. O presente trabalho

se propõe a destacar um dos aspectos observados na pesquisa citada, que é o da relação

professor-aluno.

Considerando esse aspecto nos três estudos de caso da referida pesquisa, três

respectivas variantes puderam ser conferidas: a) o pesquisado descreveu sua relação

com o professor como aberta, dialógica e favorável, o que parecia gerar um sentimento

mútuo de confiança e segurança; b) no segundo caso, a vida musical extra-escolar do

pesquisado era ignorada pelo professor, não havendo, portanto nenhuma interação

extraclasse. O pesquisado não sinalizou explicitamente nenhuma frustração decorrente

da pouca interação apontada; c) e no último caso, a relação descrita incluía baixa

confiabilidade no professor por parte do aluno e notada frustração pela baixa ou

nenhuma participação do professor em sua vida extraclasse. Este evitava o diálogo em

sala ignorando um possível interesse do professor em suas aprendizagens. Os três casos

me fizeram refletir sobre a importância da relação professor-aluno, principalmente

tendo em vista a pesquisa ter concluído que a imagem da escola se constitui

enormemente pela figura do professor concorrendo com o espaço propriamente dito.

Baseada uma perspectiva histórico-cultural, na qual o enfoque se dispõe nas

relações sociais, Tacca (2006) raciocina que se os objetivos de ensino, os conteúdos e as

estratégias pedagógicas estão harmoniosamente integrados e mesmo assim nem sempre

funcionam, então é natural que um novo ângulo deva ser apontado, qual seja justamente

o das relações sociais. A autora reforça que estas “repousam sobre concepções, crenças,

histórias de vida e outros aspectos emergentes no processo relacional” (p. 46), o que

significa que a imagem que um professor tem sobre seus alunos e respectivas

possibilidades seguramente se entrelaça nas relações educacionais. A autora

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Page 2: A Pessoa da Escola

complementa que o processo de ensino e aprendizagem deve ser contemplado

considerando “as significações e entrelaçamentos que o professor faz entre o seu

conhecimento sobre o aluno, sobre si mesmo e sobre o próprio conhecimento a ser

explorado, incluindo também o contexto vivido por ele” (p. 47).

Destaco esses entrelaçamentos como qualidades recíprocas, pertinentes à

mutualidade própria de uma relação intersubjetiva, como é a de um professor e seu

aluno. Esse aspecto relacional é legítimo e se apresenta como reconhecimento do outro

e de suas possibilidades (sempre considerando a reciprocidade da situação). Tanto um

professor que reconheça em seu aluno outros contextos vivenciados extraclasse quanto

o aluno que reconheça no professor os alcances e as limitações da sala de aula podem

ponderar uma produção mais otimizada do conhecimento por ambos aspirado.

É plausível considerar a relação professor-aluno dentro de uma dimensão

complexa na qual a subjetividade vem servir como base de compreensão. González Rey

(2005b) explica a subjetividade como um sistema complexo no qual sentidos subjetivos

são expressos nas várias ações do sujeito em sua vida. Esses sentidos são captados e

organizados por meio das emoções e passam a caracterizar nossas ações. Nesse caso,

palavras, gestos, atitudes emitidas por protagonistas de uma determinada ação ou

contexto imprimem um no outro, sentidos que hão de confluir em suas expressões e

sentimentos.

Querido professor

Célio foi um dos estudos de caso anteriormente mencionados que falou de forma

clara sobre sua boa relação com seu professor de instrumento. Ele nasceu em Brasília e

à época da pesquisa possuía 26 anos. Estudante de música desde os 10 anos de idade foi

matriculado numa academia por seu pai, músico autodidata, que o orientava com

relação a instrumentos e estilos a serem estudados. Célio experimentou violão, guitarra,

gaita de boca, percussão e então bateria, seu instrumento atual.

A prática com amigos - em formações de bandas - o levou cada vez mais a

querer se profissionalizar. Expectativas surgiram de sua inserção no mundo profissional,

como por exemplo, a de estudar música formalmente.

Oboísta, Professora do CEP Escola de Música de Brasília, Mestre em Música pela Universidade de Brasília e Doutoranda do curso de Educação, na linha Subjetividade e Complexidade na Educação - Universidade de Brasília.

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Page 3: A Pessoa da Escola

Já matriculado em uma escola de música, seu interesse em aprender mais se

ampliou. Os desafios do mercado de trabalho se transformavam em tópicos de estudo.

”Ah, ‘vamo’ tocar música tal”, que era um samba; então eu tocava aquele samba mais quadrado da face da terra e chegava em casa e ficava: “meu Deus! Eu tenho que aprender a tocar isso. E ia correr atrás pra tentar suprir essa necessidade de tocar essas coisas que eu num me sentia à vontade tocando, né? Às vezes, até terminava de tocar e ficava assim: “Nossa! Tem que melhorar isso. Tem que melhorar”. Aí, isso ficava na minha cabeça. (Célio).

Foram muitas as oportunidades aproveitadas por Célio como desafios. O orgulho

de fazer bem feito o motivava, assim como o de corresponder aos anseios do grupo e

obter satisfação pessoal e profissional. Igualmente, o desempenho dos colegas era

valorizado como um referencial para buscas. Toda essa relação com a música foi

compartilhada com seu professor de bateria.

Bem, dentro da aula, o que me facilitou muito, por exemplo, era chegar no professor e falar “Pôxa, eu tô tendo dificuldade pra tocar samba rápido” e aí, ele sentar comigo e falar: “Vamo’ fazer alguma coisa pra você... pra a gente estudar samba rápido”. Meu professor sempre me deu liberdade de trazer de fora (as dúvidas). (Célio).

Na fala acima, Célio descreveu uma cena comum de sua relação com seu

professor de instrumento, em um contexto de sala de aula. Célio apontou a liberdade e a

facilidade permitidas nessa relação, e ainda foi além ao afirmar que o professor deve

sair da sala de aula para compreender o aluno dentro das dimensões extra-escolares. Ele

argumenta que na escola, a prática é predominantemente solitária; nela, o professor só

consegue ver aspectos limitados do aluno, não o enxergando por inteiro. Segundo ele,

na escola não há prática real, nesta, o aluno é aluno; lá fora, o aluno é artista, é

profissional. Quando o professor se desloca para assistir o aluno em contextos

extraclasse, por exemplo, ir a uma apresentação, possibilita a si mesmo visualizar outros

aspectos pouco nítidos em sala de aula e ainda refletir sobre os resultados de sua própria

estratégia de ensino. Célio complementou que as estratégias de ensino devem se voltar

para a formação do aluno artista, que não aprende um instrumento para tocar sozinho,

mas sim com outros.

Eu acho que é diferente tocar ali com ele um exercício em sala e eu aplicar esse mesmo exercício em um conjunto ou em uma banda, em algum local ou numa gravação. (Célio).

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Page 4: A Pessoa da Escola

Célio estabeleceu diferenças entre a escola – enquanto disciplinas e atividades –

e o professor. Principalmente com o professor torna-se possível desenvolver um

trabalho contínuo, baseado em interesse, em colaboração e respeito mútuo.

Muito do que eu aprendi foi meu professor que me deu a liberdade de: trazer de fora. É um intercâmbio, uma oportunidade de pegar as coisas que eu faço na aula e aplicar fora, e de pegar as coisas de fora e trazer pra aula, pra a gente abordar. (Célio).

Senhor Professor

Ana Clara foi um dos estudos de caso que experimentou dificuldades com seus

professores. Nascida em Brasília, começou a estudar música aos 9 anos de idade, já em

uma escola de ensino formal. À época da pesquisa contava com 17 anos e estudava

flauta doce e oboé já no nível universitário.

Ana Clara observou que alguns professores eram inflexíveis em seus pontos de

vista o que dificultava a interação e o estar à vontade para o compartilhamento de idéias.

Ela acredita que seria muito bom se os professores aceitassem as buscas e as diferenças

de seus alunos.

Eu não tenho visto oboístas tão flexíveis quanto a Escolas1. Por exemplo, o da Escola Americana tem resistência com o da Alemã e vice-versa. Então às vezes isso impossibilita; às vezes cê fica meio receoso, assim, de compartilhar certas coisas, porque cê tem a impressão de que ele não acha a mesma coisa e não recebe bem. A partir do momento que ele aceita isso, de você buscar outras coisas, acho que é uma relação muito mais satisfatória, né? acho que é muito mais estimulante também. (Ana Clara)

Para Ana, a tarefa da escola, na figura do professor, é contribuir e jamais

obstaculizar o exercício de liberdade e o interesse por outras coisas que a escola não

pode dar. Ela ressalta na fala seguinte a baixa ocorrência de diálogo com relação a essas

outras coisas que o aluno busca. O silêncio em seu discurso fala bem alto sobre essa

falta de diálogo.

Eu num faço muitos comentários não. Às vezes o professor pergunta, “ah, como é que tá a ponta?”. Aí, eu falo, né? Mas (silêncio) geralmente não tem muito diálogo. (Ana Clara).

À guisa de conclusão

1 Na música, conjunto de normas que delimitam concepções técnicas e estéticas determinantes à expressão musical (nota da autora). Para diferenciar essa concepção daquela que diz respeito ao ambiente escolar, grafarei aquela relacionada à concepção com a inicial maiúscula.

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Page 5: A Pessoa da Escola

Compreender a relação entre o professor e seu aluno como um dos aspectos mais

importantes do contexto educacional implica em aceitar que os sentidos e as

significações produzidas constantemente pelos gestos e atos dos personagens da relação

resultam em ações que se dimensionam tanto no contexto escolar quanto no pessoal e

profissional, o que ao mesmo tempo vem corresponder a uma grande responsabilidade

pedagógica. Nossas ações estão devidamente carregadas de sentido, aponta González

Rey (2006) e essas não são deliberações simplesmente automáticas, mas sim resultados

de longos processos cognitivos e afetivos. Na medida em que vamos organizando

nossas emoções e os sentidos que damos aos fatos da vida, à presença do outro, às

significações produzidas pelas relações, vamos nos configurando subjetivamente, vamos

nos apropriando cada vez mais de expressões e ações só nossas, mas que, no entanto,

interagem a todo instante com o outro.

Evidentemente que não é possível abarcar a complexidade das relações

intersubjetivas considerando-as como um fenômeno de causa e efeito. Tanto Célio

quanto Ana Clara desenvolveram seus ambientes internos e externos de estudo ao

próprio modo. Célio teve seu desempenho e sua autoconfiança reforçados por sua

relação com o professor, dentre outras fontes, naturalmente; e Ana Clara conseguiu

manter-se preservada em seus interesses, desenvolvendo forte espírito crítico, o que ao

mesmo tempo veio fortalecer suas escolhas e conseqüentemente seu desempenho.

Nos dois casos relatados, ambos contaram com resultados positivos do trabalho

educativo, o que poderia gerar a questão de por que então haveríamos de nos preocupar

tão seriamente com a relação professor-aluno, já que no final dá tudo certo. González

Rey (2006) coloca que “os sentidos subjetivos constituem verdadeiros sistemas

motivacionais” (p. 34). Esses dinâmicos sistemas alocam as emoções que emergem

durante o processo de aprendizagem as quais se relacionam não unicamente à

concretude do aprender, mas derivam de outras circunstâncias da vida bem como

alicerçam circunstâncias de vida futuras. Mais uma vez, torna-se razoável apontar a

responsabilidade do professor para com o aluno. Independente da personalidade do

aluno, a relação professor-aluno se impregna nas razões, nas expressões, nas memórias,

enfim nos sentidos subjetivos de todos enquanto alunos.

A partir do momento que ele (o professor) aceita isso, de você buscar outras coisas, acho que é uma relação muito mais satisfatória, né? acho que é muito mais estimulante também. (Ana Clara)

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Page 6: A Pessoa da Escola

BIBLIOGRAFIA

GONZÁLEZ REY, Fernando. O sujeito que aprende: desafios do desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In: TACCA, M. C. V. R. (org.). Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Campinas, SP: Editora Alínea, 2006.

GONZÁLEZ REY, Fernando. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Trad.: Raquel Souza Lobo Guezo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005 a.

GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. Trad.: Marcel Aristides Ferrada Silva. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005b.

MARQUES, Alice Farias de Araújo. Processos de Aprendizagens Musicais Paralelos à Aula de Instrumento: Três Estudos de Caso. Brasília, 2006. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Instituto de Artes. PPG-Música.

TACCA, Maria Carmen Villa Rosa. Ensinar e aprender: análise de processos de significação na relação professor x aluno em contextos estruturados. Brasília, 2000. Tese (dout.) Universidade de Brasília.        

TACCA Maria Carmen Villa Rosa. Além de professor e de aluno: a alteridade nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. In: MITJÁN MARTÍNEZ, Albertina e SIMÃO, Lívia Mathias (orgs.) O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

TACCA, Maria Carmen Villa Rosa. Estratégias pedagógicas: conceituação e desdobramentos com o foco nas relações professor-aluno. In: TACCA, M. C. V. R. (org.). Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Campinas, SP: Editora Alínea, 2006.

TASSONI, Elvira Cristina Martins. Afetividade e aprendizagem: a relação professor-aluno. Campinas, SP, 2000. Universidade Estadual de Campinas. http://scholar.google.com.br/scholar?num=100&hl=pt-BR&lr=&q=ECM+TASSONI+-+REUNI%C3%83O+ANUAL+DA+ANPEd%2C+2000+-+anped.org.br&btnG=Pesquisar&lr=

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