a-pessoa-2

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7/21/2019 a-pessoa-2 http://slidepdf.com/reader/full/a-pessoa-2 1/23 Da pessoa Introdução É bem conhecida a definição da pessoa, de Boécio 1 : persona est naturae rationalis individua substantia 2 .  Pessoa aqui se refere ao indivíduo humano, portanto ao ser do homem. A respeito dessa definição, Tomás de Aquino di ser e!a ap!icá"e! também #s tr$s pessoas da %ant&ssima Trindade, contanto que se entenda rationalis como intellectualis e individua como incommunicabilis 3 . 'essa perspecti"a a definição soaria: persona est naturae intellectualsi incommunicabilis substantia ( . )essoa aqui se refere #s pessoas da %ant&ssima Trindade,  Pai, Filho e Espírito Santo. )ortanto ao ser de Deus num sentido todo próprio, a ser e*p!icitado nesse comentário. A se+uir, tentemos comentar a 1- con"ersação espiritua!  do /estre 0chart, intitu!ado: Como deve o homem manter-se em Paz, uando n!o se encontra em penoso labor e"terno, ue Cristo e muitos santos tiveram# como o homem,$ent!o%  deve se'uir a Deus . % que o que se+ue como comentário tem pouco a "er com coment(rio, pois o seu modo de  proceder é em "árias ref!e*3es, a modo de hipteses, di"a+ar para dentro de pressuposiç3es,  presumi"e!mente pré45acentes sob os termos usados pe!a definição acima mencionada da  pessoa, ou"indo ne!as a resson6ncia de fundo, di+amos onto!+ica 7  da 1- con"ersação espiritua! de 0chart, que para nossos ou"idos modernos são apenas e*ortaç3es espiritua!4 morais, psico!+ico4de"ocionais. /as, diante do te*to de 0chart, per+unta4se de imediato, o que tem a "er, esse te*to com a definição de pessoa de Boécio e de %to Tomas8 A imp!ic6ncia desse te*to com a definição de pessoa, embora 0chart não use pa!a"ra pessoa no te*to em questão, está  presumi"e!mente, ao menos de modo sofr&"e!, 5ustificada pe!o fato de 0chart e*ortar com repetida e acentuada insist$ncia que cada um dos se+uidores de 9risto de"e se+ui4!o a  seu modo, no modo próprio de cada um. Aqui o modo próprio se refere ao próprio de cada um de ns, a saber, ao que há de mais substancia!; em mim, # pessoa; de mim ou ta!"e di+amos ns ho5e, ao meu Sel)  ou Selbst .  'essa 1- 9on"ersação, 0chart descre"e frustração e des6nimo usuais das pessoas, se+uidoras de 9risto, quando se descobrem med&ocres, ao se compararem com 0!e e com os santos, seus disc&pu!os e*traordinários. 0 se+ue o te*to: Texto )or isso, essas pessoas, quando no %e+uimento se acham de!es tão des"iados, se consideram !on+e de <eus, a quem e!as não poderiam se+uir.  'in+uém, 5amais, de"e faer ta! autoa"a!iação= > homem de modo a!+um de"e se considerar !on+e de <eus, nem por causa de enfermidades, nem por causa de fraqueas, nem por nada, se5a o que for. 0 por mais que tenham os teus +randes trans+ress3es, te arrastado a "a+uear !on+e de <eus, tu de"es, aco!her a <eus como pr*imo a ti. 0, há um +rande ma! nisso de o ?omem des!ocar a <eus para !on+e de si@ pois, se5a que o homem ande !on+e ou perto de <eus: <eus 5amais "ai para !on+e, e!e

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  • Da pessoa

    Introduo

    bem conhecida a definio da pessoa, de Bocio1: persona est naturae rationalis individua substantia2. Pessoa aqui se refere ao indivduo humano, portanto ao ser do homem.

    A respeito dessa definio, Toms de Aquino diz ser ela aplicvel tambm s trs pessoas da Santssima Trindade, contanto que se entenda rationalis como intellectualis e individua como incommunicabilis3. Nessa perspectiva a definio soaria: persona est naturae intellectualsi incommunicabilis substantia4. Pessoa aqui se refere s pessoas da Santssima Trindade, Pai, Filho e Esprito Santo. Portanto ao ser de Deus num sentido todo prprio, a ser explicitado nesse comentrio.

    A seguir, tentemos comentar a 17 conversao espiritual5 do Mestre Eckhart, intitulado: Como deve o homem manter-se em Paz, quando no se encontra em penoso labor externo, que Cristo e muitos santos tiveram; como o homem,6 deve seguir a Deus7. S que o que segue como comentrio tem pouco a ver com comentrio, pois o seu modo de proceder em vrias reflexes, a modo de hipteses, divagar para dentro de pressuposies, presumivelmente pr-jacentes sob os termos usados pela definio acima mencionada da pessoa, ouvindo nelas a ressonncia de fundo, digamos ontolgica8 da 17 conversao espiritual de Eckhart, que para nossos ouvidos modernos so apenas exortaes espiritual-morais, psicolgico-devocionais.

    Mas, diante do texto de Eckhart, pergunta-se de imediato, o que tem a ver, esse texto com a definio de pessoa de Bocio e de Sto Tomas? A implicncia desse texto com a definio de pessoa, embora Eckhart no use palavra pessoa no texto em questo, est presumivelmente, ao menos de modo sofrvel, justificada pelo fato de Eckhart exortar com repetida e acentuada insistncia que cada um dos seguidores de Cristo deve segui-lo a seu modo, no modo prprio de cada um. Aqui o modo prprio se refere ao prprio de cada um de ns, a saber, ao que h de mais substancial em mim, pessoa de mim ou talvez digamos ns hoje, ao meu Self ou Selbst.

    Nessa 17 Conversao, Eckhart descreve frustrao e desnimo usuais das pessoas, seguidoras de Cristo, quando se descobrem medocres, ao se compararem com Ele e com os santos, seus discpulos extraordinrios. E segue o texto:

    Texto

    Por isso, essas pessoas, quando no Seguimento se acham deles to desviados, se consideram longe de Deus, a quem elas no poderiam seguir.

    Ningum, jamais, deve fazer tal autoavaliao! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de enfermidades, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham os teus grandes transgresses, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como prximo a ti. E, h um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele

  • permanece com constncia bem perto e se no puder ficar dentro, ele se cola porta e dela no se afasta.

    Assim tambm com o rigor do Seguimento. Observa em que pode consistir nesse caso o teu Seguimento. Tu deves conhecer, deves ter percebido em que tu s exortado por Deus de maneira a mais forte; pois, de nenhum modo os homens so chamados a Deus em um caminho, como diz So Paulo

  • simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importncia do que talvez admitir um pesado golpe, para o qual a gente se tinha prevenido, e nos s vezes mais difcil deixar algo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma, a qual se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e no pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

    Comentrio

    I: Indivisibilidade e incomunicabilidade

    Com uma exortao incisiva, Eckhart nos convida a no avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreenso dessa partcula conjuntiva e distncia de separao. Antes o seu modo de falar o de nos incentivar a compreender relao Deus-criatura como radicalizao cada vez mais intensa de unio9. Essa unio, a partir de Deus to sria que imediatez e totalidade ab-soluta:

    Ningum, jamais, deve fazer tal autoavaliao! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de enfermidades, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham os teus grandes transgresses, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como prximo a ti. E, h um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constncia bem perto e se no puder ficar dentro, ele se cola porta e dela no se afasta.

    Proximidade-imediatez: communicatio e participatio:

    Essa ab-soluta proximidade de Deus da sua criatura, considerada a partir de Deus se chama communicatio (comunicao). Trata-se da comunicao, a saber, da incondicional doao de si de Deus, do ser de Deus criatura. Porque Deus o ser, ipsum esse (o prprio ser) Ele a plenitude do ser, de tal sorte que fora, ao lado, para alm ou para aqum Dele em se dando a si todo, nada h que seja ser10. Surge ento a pergunta: como possvel, pois que haja criaturas como seres? As criaturas, que realidade elas possuem, se fora de Deus no pode ser seno nada? Mas, como os entes criados so, constituindo a imensido do universo criado, necessrio permitir que elas sejam seres de algum modo. Assim, atribumos s criaturas uma entidade, mas entidade de participao no ser de Deus. Participao significa ter parte, tomar parte.

    Usualmente se diz que esse binmio communicao-participao para no se cair no pantesmo, ao falar do relacionamento Deus e criatura. Certamente, o medieval cuidava com muito rigor que a explicao do relacionamento Deus e criatura no fosse eivada de pantesmo. Mas esse cuidado, no significava de modo algum o receio de aproximar demasiadamente a criatura de Deus, mas pelo contrrio o medo de afastar a Deus da criatura, a Ele que no seu prprio ser, s pode ser a no ser a imediatez da doao de si, total e absolutamente, afastar a Ele e a criatura do ser prprio da proximidade, da imediata intimidade sui generis desse relacionamento inominvel. O medo do pensamento medieval expresso no combate ao pantesmo o receio de reduzir o sentido do ser prprio da realidade chamada Deus-criatura a um outro sentido do ser, inadequado e imprprio ao nvel de sua intensidade, inconveniente ao da regio das substncias simples. Nesse sentido, para o medieval, o problema do pantesmo parece surgir, somente se, no se tiver

  • suficiente sensibilidade ontolgica, i. , senso de diferenciao referida ao sentido do ser operante na fala do relacionamento Deus e criatura. Se, o sentido do ser ali operante, o do ser na acepo fsico-coisal quantitativa, ento o relacionamento entre Deus como o ser absoluto e a criatura como o ser em parte, resulta na relao de coisa e coisa, cuja diferena apenas de quantificao, o todo de um lado e o em parte, de outro. Alis, numa tal colocao, de modo algum se d relao, muito menos, relacionamento, pois tanto Deus quanto criatura so reduzidos coisa, de tal sorte que aqui nem se quer se d o toque entre coisa e coisa. Esse modo de o homem se entender e a tudo quanto de alguma forma est referido a ele, resultado da dominao de um determinado sentido do ser, denominado coisal, a partir e dentro do qual o homem se posiciona como esta coisa-sujeito e agente da relao que ele lana sobre aquela coisa-objeto, chamado Deus, de cujo ser ele, o homem participa. Como ser aqui entendido como ser-coisa, coisa aqui e coisa l, por mais que se diga serem diferentes, a coisa divina e a coisa criatural, esta coisa finita e aquela, infinita etc., so feitas de mesmo elemento. Surge a ameaa do pantesmo que na realidade deveria ser chamado de panrealismo.

    Repetindo e dito com outras palavras: os termos communicatio e participatio so termos usados pelo pensamento medieval para viabilizar a proximidade do relacionamento Deus-criatura, salvaguardando a absoluta alteridade de Deus, a sua aseidade11 e a validez do apriori de que o seu ser a plenitude do ser, de tal modo que fora de Deus no h ser, nem sequer nada, enquanto este ainda de alguma forma pode ser predicado pelo verbo ser12. Mas ao mesmo tempo, com essa afirmao, sob o termo participatio tenta-se salvaguardar a in-seidade13 da criatura, e evitar que criatura seja apenas um prolongamento de Deus. A criatura um ente in se, no in alio, embora seja totalmente ab alio e no a se como Deus. Nesse sentido, criatura no o ser de Deus, nem Deus o ser da criatura, no porque ela finita e Deus infinita, mas porque o sentido do ser aqui operante no faz jus nem a Deus nem a criatura14. Nessa estranha situao expressa nos termos Communicatio e participatio, no se trata, como h pouco foi dito, do medo do pantesmo. Antes medo de ser entendido como pantesmo, no porque no guarda a distancia entre Deus e criaturas, mas porque a tal igualao coisificante de dois entes a partir e dentro de um sentido do ser de densidade e qualificao bem rarefeita, inadequada para uma igualdade absoluta entre Deus e criatura, cuja proximidade e imediatez de Deus na criatura e da criatura em Deus somente pode ser realidade num sentido do ser, cuja palavra originria diz pessoa15.

    A definio de Bocio persona est naturae rationalis individua substantia, aplicada s pessoas divinas, pode ser modificada pela sugesto de Sto. Toms em: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia. Em Bocio: substncia individua se refere s criaturas. Em Santo Tomas: substncia incomunicvel se refere a Deus, no enquanto natureza, mas enquanto pessoa. Examinemos brevemente em que consiste a individualidade do indivduo e da sua individuao, e em que consiste a incomunicabilidade da pessoa divina e da sua processo. Pois aqui no termo pessoa aparece a conotao da indivisibilidade16 e incomunicabilidade17, como nitidez da perfilao da substncia enquanto ens in se, de tal modo que nessa definio da pessoa, se acentua mais a distncia do que a proximidade no relacionamento Deus e criatura18.

    Indivisibilidade ou incomunicabilidade se referem ao uno

  • Para que aqui possamos ver a diferena entre substantia individua e substantia incommunicabilis necessrio evitar trs equvocos. O primeiro de identificar o indivduo do pensamento medieval como um momento pontilhado de funes de um conjunto, dentro do sistema das cincias naturais fsico-matemticas, onde o sentido do ser, ali operante, reduz toda e qualquer realidade realizao da classificao generalizante funcional, quantitativo fsico-matemtico. O segundo , a partir do primeiro equvoco, pensar que a ordenao medieval do universo, em intensificaes do ser nas graduaes, ou melhor, nas ordens de esferas de entificaes, portanto a ordenao do universo em gnero, espcie e indivduo a modo da definio essencial da rvore porfiriana, no outra coisa do que uma modalidade antiquada da classificao generalizante, funcional, quantitativo fsico-matemtico, sem perceber que se trata de dois modos de classificao bem diversos. Assim, na ordenao das esferas das diferentes intensidades de ser, a saber, da esfera da substncia material (o ente sem vida como pedra, metal), da esfera da substncia vivente (os vegetais), da esfera da substncia sensvel (os animais), da esfera da substncia racional (homem) no se percebe a diferena ontico-ontolgica da intensidade de ser na escalao da qualificao de ser das esferas19. E isso muito mais, em se tratando da regio das substncias simples. E o terceiro , j dentro da ordenao medieval a modo da rvore porfiriana, entender a palavra substantia da expresso substantia individua e a palavra substantia da expresso substantia incommunicabilis como se fosse unvocas. Com outras palavras, esquecer que a ordenao a modo de Porfrio, somente diz respeito s substancias compostas, e que nas assim chamadas substncias simples a intensidade do ser que qualifica o ente em questo entende o indivduo, no como um caso da realizao da espcie, e esta do gnero, mas como universal, cuja densidade faz coincidir indivduo com espcie, e espcie do gnero, de tal modo que essa universalidade singular caracterizar a ordem dos entes no materiais.

    Examinemos brevemente na ordenao dos entes denominados substancias compostas20, em que consiste e o que significa a individuao. Repetindo, a ordenao das esferas dos entes, substncias compostas, se escala, iniciando de baixo em:

    1) A substncia dos entes simplesmente ocorrentes ou no vivos (coisas fsico-materiais fsicas, p. ex. pedra, metal etc.: = espcie nfima substncia que tambm gnero para a espcie superior prxima vivente) e o seu modo de ser: ocorrer; 2) a substncia dos entes vivos (coisas vegetais, p. ex. plantas: = espcie vivente e ao mesmo tempo gnero para espcie superior prximo animal) e o seu modo: viver (vivere). Aqui se inclui de algum modo a substncia dos entes sensveis (coisas animais, p. ex., gatos, pssaros = espcie animal e ao mesmo tempo gnero para espcie superior prximo homem) e o seu modo: = vivenciar ou sentir; 3) a substncia dos entes racionais (coisas humanas, p. ex. homens, mulheres, crianas etc. = espcie supremo homem) e o seu modo: = conhecer. Nas trs modalidades de ser substncia: substncia coisal (1); substncia vivente (2); substncia racional (3), o termo substncia parece ser unvoco, mas se bem examinado em cada nvel na escalao da ordenao, diferente essencialmente. Na passagem de um nvel para outra, no se d apenas um acrscimo de uma qualidade diferencial especfico, a uma substncia-bloco, fixa, mas se d uma transmutao substancial qualitativa no ser, a modo de subsuno da ordem inferior pela superior. H ali na escalao das ordenaes em diferentes nveis ascendentes e descendentes um movimento da dinmica de qualificao do ser21. Assim, a substncia-coisa da espcie-nfima, ocorre como gnero na espcie

  • superior-vivente, para ser qualificado por diferena especfica-vivente, embora na descrio da sua composio soe como ajuntamento de uma especificao a um genrico, est ali no como uma classe mais geral em vista de uma especificao mais delimitado do campo de extenso geral, mas sim de um movimento de gnesis (da o termo gnero) donde brota, cresce e se consuma uma totalidade prpria na sua perfilao. Nesse sentido o termo espcie pode e deve ser lido aqui como intensidade da presena como perfil do seu esplendor (esplendor da face, beleza). Portanto a lgica da escalao no classificao do mais geral para mais especfico e ento terminar no indivduo como o extremo de delimitao ou vice versa, do indivduo para mais geral, e do geral especfico para o geral o mais extenso na abrangncia, com o mnimo de contedo. Portanto, na escalao da ordenao das esferas das substncias compostas a modo porfiriana, no pensamento medieval, trata-se de um movimento de essencializao que continua na ordenao das esferas das substncias simples at culminar no Ente, que em si e a partir de si simplesmente a plenitude do ser, denominado Deus. Trata-se, pois do movimento da concreo dinmica da imensido, profundidade e da vitalidade da assim chamada pelos medievais obra mxima da criao.

    Dentro dessa perspectiva o que significa substantia individua, o indivduo?

    Indivduo significa propriamente indivisvel. A essa impossibilidade de dividir, opomos a divisibilidade, a possibilidade de dividir. E entendemos por dividir, partir, separar uma parte da outra, fazer em pedaos. Essa ao de partir divide o que aparentemente uno, em seus componentes, e se no for componentes, em pedaos, at que no se possa mais dividir, pois, se chegou ao ltimo elemento nuclear, ao derradeiro tomo22. Aqui podemos logo perceber que essa maneira de divisibilidade e indivisibilidade pertence ao modo de ser acima descrito como o primeiro equvoco. O segundo equvoco era de pensar que esse modo de ser fsico-matemtico seja uma verso modernizada, cientificamente mais objetiva do modo de ser fsico-corporal, ainda subjetivo e antiquado da ordenao do ser no pensamento medieval, da esfera a mais elementar, a nfima da substncia composta coisal. Para os medievais, nessa esfera, no entanto, os entes subsistentes sem-vida p. ex. pedra, possuem peso, tamanho, densidade etc., que podem ser medidos em nmeros, matematicamente, mas aqui peso, tamanho, densidade no so, no seu ser, reduzidos pura quantidade matemtica a modo das cincias naturais fsico-matemticas, mas so tomados concretamente dentro da experincia de uso, a partir e dentro e a modo de uma existncia artesanal23. Como aqui, nessa perspectiva concreta da experincia do mundo circundante no uso e na vida, o que chamamos de gnero, espcie e indivduo, p. ex. no mundo das pedras? A espcie pedra aparece sob a denominao de a pedra. E o indivduo denominado esta, aquela pedra24. Aqui a pedra, a espcie denominada universal. E esta pedra ou aquela pedra, o indivduo denominado singular. O relacionamento do universal para com o singular e vice-versa bem diferente ao do geral ou comum para com o individual ou particular. Trata-se de outro teor do ser. Aqui preciso ser vista a diferena no teor do ser, portanto a diferena do sentido do ser operante em cada nvel da intensificao do ser na escalada da ordenao dos entes no seu ser. Aqui, quanto mais elevado for o nvel do teor do ser na dimenso, a que pertence um ente, tanto maior o teor da imensido, profundidade e liberdade do seu ser, que aparece na densidade, envergadura e na qualificao do modo de ser de uma totalidade, denominada por Eckhart de uno em se tratando do universo criado; e de Um, em se tratando da realidade da vida interna de

  • Deus uno-e-trino, cuja vigncia unitiva oculta, retrada, mas que se desvela como dinmica do intercmbio das trs pessoas divinas, acima designadas de incomunicveis. Esse modo de ser da intensificao no ser se chama universalidade. Uni-versal significa vertido, virado, convergido ao uno ou ao Um e designa a intensidade do ser, e no generalidade em oposio a particularidade.

    Excurso ilustrativo

    Tentemos ver o universal mo de um texto que descreve como um arteso viu a obra perfeita, antes de ela estar diante dele como realizao da realidade. O texto do pensador chins Chuang-tzu, e se intitula O entalhador de madeira, na traduo de Tomas Merton25:

    Khing, o mestre entalhador, fez uma armao para sinos, de madeira preciosa. Quando terminou, todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram que devia ser obra dos espritos. O Prncipe de Lu disse ao mestre entalhador: Qual o seu segredo?

    Khing respondeu: Sou apenas operrio: No tenho segredos. H s isso: Quando comecei a pensar no trabalho que me ordenaste protegi meu esprito, no o desperdicei em ninharias, que no vinham ao caso. Jejuei, a fim de pr meu corao em repouso.Depois de jejuar trs dias, esqueci-me do lucro e do sucesso.Depois de cinco dias esqueci-me do louvor e das crticas. Depois de sete dias esqueci-me do meu corpo com todos os seus membros. Nesta poca, todo pensamento de Vossa Alteza e da corte se evanecera. Tudo aquilo que me distraa do trabalho desaparecera. Eu me recolhera ao nico pensamento da armao do sino. Depois, fui floresta ver as rvores em sua prpria condio natural. Quando a rvore certa apareceu a meus olhos, a armao do sino tambm apareceu, nitidamente, sem qualquer dvida. Tudo o que tinha a fazer era esticar a mo e comear. Se eu no houvesse encontrado essa determinada rvore no haveria qualquer armao para o sino. O que aconteceu? Meu prprio pensamento unificado encontrou o potencial escondido na madeira; deste encontro ao vivo surgiu a obra que voc atribuiu aos espritos. (XIX, 10).

    Todo o fazer do arteso era desprender-se de tudo quanto no era apenas a pura disposio de deixar ser. Assim, tornou-se lmpida e pura transparncia do receber. Esse vazio, essa suspenso, plena de acolhida o pensamento26. Nessa aberta do receber, se d o que os medievais chamavam de matria ou potentia27 (a rvore certa) e simultaneamente forma ou actus (o aparecer da armao do sino nitidamente)28 Materia e forma e potentia e actus29 na sua simultaneidade modo de dizer a dinmica una do vislumbre da totalidade (edos) que se manifesta como arqutipo, como exemplar, o uni-versal de toda e qualquer individuao desse prottipo. Aqui, portanto, a espcie (edos) vislumbre da totalidade, cuja medida a plenitude da unidade da possibilidade consumada no e do todo30. Nesse sentido, repetindo o que j dissemos acima, universal significa literalmente virado, concentrado na acolhida do uno: universo. A espcie, o eidos, o universal como perfilao densa, concreta e coerente do ser todo no seu assentamento, na sua in-sistncia na auto-presena do ser, o que o medieval chamava de substncia. Essa subsistncia na plenitude do ser que era captada como coisa indivisvel, indivdua.

    Assim, individual, indivisvel no tem prpria e primariamente a conotao de atmico, fechado em si, portanto tambm incomunicvel, mas sim da consumao da plenitude do todo no seu ser. Assim entendido o indivduo, o universal e o individual coincidem, dizem o mesmo. Para no confundir esse modo de ser uno, virado, concentrado no uno do todo, com o particular oposto ao geral da nossa classificao hodierna usual, empregamos o termo singular para esse tipo prprio do individual. Desse modo, o universal e o singular coincidem.

    O universal singular: a qualificao no ser

  • Acima dissemos que, no universo medieval, distinguimos a regio das substncias compostas e a regio das substncias simples. Se caracterizarmos a dinmica da escalao ascendente dessas ordenaes como crescimento na intensificao do ser, percebemos que aqui, os termos intensificao, intensidade no podem ser entendidos na acepo de aumento quantitativo na graduao, potencializao energtica ou escalada de fora. Mas como entender o aumento, a intensificao de outro modo? Costumamos responder: tratas-se no de quantidade, mas sim de qualidade do ser31. Como, porm, entender o aumento, a graduao, a escalada de qualidade? possvel colocar as qualidades a modo de uma escalao de aumento ou de diminuio a modo quantitativo? Qualidades no constituem cada qual uma totalidade de tal modo que no possvel falar de aumento gradual de uma qualidade para outra? Aumento ou diminuio s possvel, no entre as qualidades, passando-se de uma para a outra gradualmente, mas apenas dentro de uma mesma qualidade, no no sentido de quantificao, mas no sentido de limpidez, claridade e pureza do quilate de qualidade, no sentido de tornar-se ela mesma, sem mistura com outra dimenso que no seja a dela. Quando na ordenao das esferas do ser falamos de intensificao ou aumento do ser, devemos entender intensidade, crescimento, escalao no sentido acima insinuado da limpidez, da autenticidade da qualificao. No entanto, embora no entre aqui a quantificao, h constantemente, onipresente em todas as escalas, qualitativamente diferentes do ser, algo como vigncia ou presena que caracteriza um modo todo prprio de identidade e diferena, tratado na escolstica medieval sob a denominao da questo da univocitas et analogia entis.

    Deixando para mais tarde a questo da identidade da onipresena do ser em todas as esferas dos entes na sua diferena qualitativa, cada vez como ser de cada esfera, observemos como o relacionamento do universal e do singular nas esferas do ser da regio das substncias compostas. Na esfera das substncias materiais-fsicas, p. ex. temos o universal a pedra. O indivduo esta pedra. Aqui, nesse nvel da intensidade do ser, a pedra s se torna presente, somente , como esta pedra. Portanto a pedra e esta pedra no so duas coisas, uma ao lado, dentro, acima ou abaixo da outra. A pedra e esta-pedra so o mesmo. No entanto, a coincidncia aqui se d como repetio32 da tentativa sempre renovada de esgotar a intensidade uni-versal como esta, aquela individualidade. Nesse nvel do ser, no indivduo a pregnncia da uni-versalidade se apresenta mais rarefeita. Essa rarefao o que aparece como a diferena especfica dessa esfera na qualificao da substncia como morto, sem vida. O mesmo modo de ser da coincidncia se d nas outras esferas das substncias compostas, portanto, na esfera da substncia vivente; na da substncia dotada de sensibilidade, e at certo ponto na da substncia dotada da racionalidade. S que na medida em que cresce a intensidade do ser, portanto, como vida, sensibilidade e racionalidade, o indivduo de cada uma dessas esferas cresce na pregnncia do uni-versal, de tal modo que a coincidncia universal-individual se torna cada vez mais imediata, direta como indivisibilidade densa. Nesse sentido a possibilidade da reproduo dos indivduos no nvel do ser da pedra maior do que p. ex., no nvel do ser da planta; desta, maior do que no animal, deste maior do que no homem33. Isto significa que quanto menos pregnncia da presena do universal no indivduo, tanto mais o universal e o indivduo aparecem separados, tanto mais o universal aparece como geral e o indivduo como particular. E quanto menos pregnante, ou mais rarefeita a presena do universal no indivduo, tanto mais a indivisibilidade ou incomunicabilidade, ou melhor, a unicidade, a singularidade do indivduo relativa e rarefeita, possui menos assentamento em si mesma, menos

  • substancial. O que equivale a dizer que quanto mais pregnante e mais coerente a presena do universal no indivduo, tanto mais a incomunicabilidade ou a unicidade singular do indivduo absoluta, est mais assentada em si mesma, mais substancial. Se continuarmos esse modo de ver a coincidncia do universal e indivduo, da mais relativa para cada vez menos relativa at absoluta, agora para dentro da regio das substncias simples, portanto no reino dos espritos, podemos dizer que quanto mais se ascende na ordenao da intensidade do ser e se aproxima do ser por excelncia que se chama Deus, tanto mais intensa a identidade do universal com indivduo (singular) de tal sorte que na regio das substncias simples no h mais nem universal que de alguma forma saiba generalidade, nem indivduo que saiba particularidade ou individualidade, mas ali o ente cada vez totalidade, plenitude do seu ser, portanto simplesmente uni-verso ou uni-versal, o que equivale a dizer, simplesmente singular, nico, cada vez todo. Aqui, o ente o em-sendo-cada vez totalidade, todo um mundo ab-soluto na unicidade, no uno da sua propriedade, nica, plena, consumada.

    Recordemos aqui a definio de Bocio da pessoa: naturae rationalis individua substantia. E a sua aplicao, s pessoas da Santssima Trindade, na formulao sugerida por Santo Tomas: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substncia. E dentro da perspectiva do que viemos falando at agora, perguntemos como se devem entender a indivisibilidade e a incomunicabilidade.

    Usualmente entendemos o carter prprio do indivduo como indivisvel. E entendemos o pr-fixo in como no, como negao. Assim no-divisvel ou no-dividido insinua uma representao de algo compacto a modo de um bloco duro, difcil ou impossvel de ser partido. A idia do compacto sugere dificuldade ou impossibilidade de partilhar, de dar ao outro algo de si, portanto de no-communicvel, de incomunicabilidade. Essa imagem do compacto quantitativo coisal projetada p. ex. numa obra de arte, quando dizemos: essa obra indivisvel, no admite reproduo, no se pode repetir, singular. E cometemos aqui o equvoco de pensar que o caracterstico da intensidade e pregnncia da totalidade a compactidade-bloco, nos esquecendo de que um bloco quantitativo material jamais indivisvel, pois por mais que se divida um bloco, ele sempre passvel de ser dividido infinitesimalmente.

    As colocaes acima feitas nas reflexes, porm, nos mostram que quanto mais se cresce na intensidade do ser, digamos, qualitativamente, cresce a compreenso da totalidade em todas as direes, no sentido de imensido, profundidade, vitalidade, sensibilidade, interioridade e liberdade. Assim, em vez de fixao e dureza compacta sem vida, de coisa, aumenta o volume e a qualificao na mobilidade, finura, simplicidade e diferenciao de estruturao, na coerncia interna, possibilidade da generosa e cordial partilha, livre, sem constrangimento. Com outras palavras, quanto mais se ascende na escala da ordenao dos entes em direo regio das substncias simples, o significado do indivduo se afasta da acepo de duro, imvel, compactidade de amontoao, de no-partilhvel, para indicar cada vez mais a intensidade, a grandeza, a subtileza e vigncia criativa e livre de ser, portanto o aumento da unidade da dinmica de difuso generosa e livre, portanto o aumento da comunicabilidade. Isto significa que quanto mais se intensifica na qualificao do ser, tanto mais a indivisibilidade significa intensidade, coerncia, unidade da fidelidade e autocomprometimento na doao de si, na comunicao, portanto da comunicabilidade.

  • Tentemos entender nessa perspectiva a definio: Persona est naturae rationalis (intellectualis) individua (incommunicabilis) substantia.

    II: O racional e o intelectual

    Os adjetivos racional e intelectual na sua acepo usual se referem faculdade chamada razo dentro da classificao tradicional das faculdades da alma em razo, vontade e sentimento. Sem negar que em Eckhart o racional e o intelectual possam se referir tambm razo como uma das faculdades da alma e de suas aes, primariamente o racional e o intelectual dizem respeito ao ser ou ao modo da intensidade e qualificao do ser no nvel da esfera Homem (animal ou nimo racional) e nos nveis da regio das substncias simples, a saber, dos espritos.

    Racionalidade e intelectualidade como qualificao da intensidade do ser

    Nessa perspectiva racional e intelectual devem ser entendidos ontologicamente. Assim, racional e intelectual primeira e primariamente significa o especfico, o prprio ser do homem, aquilo que perfaz a diferena essencial, i. , substancial da sua natureza, i. , da sua nascividade originria. Como tal, nesse sentido da diferena ontolgica sob o termo razo ou intelecto esto subsumidas as trs faculdades do homem de conhecer (razo ou inteligncia), de querer (vontade), de sentir (sentimento).

    No pensamento medieval a definio do homem animale rationale, animal racional. Ratio, Racional, aqui, primariamente, no tem tanto a ver com a nossa razo na acepo do racionalismo, mas muito mais com Verbum, que traduo do Lgos e Nus gregos. E animale no se refere ao bruto, ao bicho, mas sim a animus, a dinmica do vivente sensvel. Animale rationale na realidade a traduo latina da determinao do ser do homem, em grego, t zon lgon chon: o vivente atinente a lgos. Isto significa: a vigncia, a animao, cuja vitalidade ser pertena, atinncia fiel e obediente a Lgos o que perfaz o ente, a saber o em-sendo, chamado Homem. Esse ser do homem se define usualmente como: o vivente que tem a linguagem. Linguagem aqui, no tanto como meio de comunicao, mas mais originariamente como a potncia da dinmica criadora em trazer fala, concreo, o eclodir do mundo. E lgos aqui entendido mais na acepo arcaica de ajuntamento, acolhida, colheita. Essa significao de colheita, acolhida aparece na conotao existente no termo alemo Vernunft, no alemo medieval de Eckhart Vernnfticheit, cujo significado vem do verbo vernhemen que mais do que tomar, agarrar ativo acena para o passivo receber, colher, dispor-se a acolher34. Ratio, rationale portanto diz respeito vida do homem, sua essncia, ao seu ser, a saber: disposio de acolhida, prontido obediente e fiel de recepo. Dentro dessa perspectiva podemos interpretar o intellectus do pensamento medieval como potncia ou disposio, o nimo cordial de intelligere. Intelligere se l inter-lgere e de imediato significa ler entre linhas. Na palavra portuguesa ler (em alemo lesen) est a mesma raiz do verbo grego lgein. (=leg-: ajuntar, colher). E entre linhas conota o medium, o inter-meio, a saber, o espao livre, a aberta, a partir e dentro da qual se estruturam as coisas que nos vem de encontro. Nesse sentido, intelligere, intellectus, intellectualis significa acolher, acolhida, receber, recepo da abertura a partir e dentro da qual nasce, cresce e se consuma a totalidade de um mundo. Por isso o destaque que se d aqui na definio da pessoa, da natureza racional e

  • intelectual no tem muito a ver com racionalismo ou intelectualismo, muito menos com cartesianismo!, mas com um determinado nvel da intensidade do ser. Por isso em vez de questionar se aqui se trata da prioridade do intelecto ou da vontade ou do corao, fosse talvez mais til perguntar: nesse nvel da intensidade do ser denominado natureza humana (aqui nimo racional ou intelectual = lgos, nus) como e o que seria o que denominamos na psicologia popular de razo, vontade e sentimento como faculdades da alma.

    Observemos, agora numa viso panormica o todo da ordenao do universo no pensamento medieval, estruturado em duas grandes regies dos entes na escalada da intensificao qualitativa do seu ser, a saber, em regio das esferas das substncias simples e compostas. E tentemos localizar o homem nessa escalao.

    De imediato percebemos que ele ocupa o lugar de destaque, no meio, entre as duas regies. O Homem, na direo ascendente da escalao na intensificao do ser, iniciando-se da substncia-morta, pertence regio das substncias compostas, e ocupa a esfera suprema dessa regio inferior, onde a vigncia do ser dessa regio a mais intensa. E ao mesmo tempo, na sua identidade que o diferencia de outros entes da regio das substncias compostas, pertence ao e se torna, digamos partcipe do modo de ser das substncias simples. Nessa pertena, embora o homem ocupe a faixa a ele reservada na escala da ordenao dos entes, ele no seu ser como conduto, em si, enquanto micro cosmos, todo o trnsito da escalao das graduaes do ser, na implicao entificante. Passa ser substncia-nada35, coisa, vira vida, nimo-sensibilidade e alma, e por fim nimo-racional, e na racionalidade, se adentra para dentro da regio superior das substncias simples, se perfaz na escalao ascendente de intensificao no ser da sua racionalidade, como alma, esprito, intelecto e mente (mens), atravs da qual penetra para dentro do abismo da possibilidade de ser, denominado Deus36. Isto significa que o Homem se estende no seu ser desde a matria prima at Deus, no apenas somente at, mas muito mais, para dentro do abismo do ser de Deus, para dentro do abismo da vida ntima de Deus que nos vem de encontro e se desvela como a dinmica da estruturao das trs pessoas e uma natureza de Deus, portanto como o Mistrio da santa unidade-trina. Isto significa por sua vez que no Homem, pelo Homem e atravs do Homem que vem luz a vigncia da plenitude do ser que se torna presena no uno das totalidades regionais Deus-Homem-Universo, denominado pelos medievais de Opus maximum creationis, obra mxima da Criao. Se, porm o Homem per-faz o espao livre, a aberta que abarca desde a nfima at para dentro da suprema e para alm da suprema realizao da realidade, nele encontramos um fio condutor que perpassa toda a Criao e adentra o abismo da interioridade do ser de Deus. Esse fio condutor se chama natura rationalis e quando se subsumido para dentro da interioridade do ser de Deus se transforma em natura intellectualis, termos usados pela definio da pessoa em Bocio e da sua aplicao s pessoas da unidade trina de Deus. No extremo nfimo desse fio condutor encontramos a matria prima que se denomina potentia oboedientialis. E no extremo supremo dentro do abismo da interioridade divina encontramos o Verbo, a pessoa Filho, cuja natureza divina-humana como Deus feito Homem e Homem feito Deus no mistrio da Incarnao. E l onde o ser humano (todos os homens), portanto o homem na sua humanidade, i. , a natureza humana tocada pela natureza divina, nesse toque e na sua recepo, nessa unidade na plenitude singular, a natureza divina e natureza humana co-incidem, e o quilate, a cristalizao dessa comunicao absoluta dita pelo nome, Filho, pessoa. Essa parte do ser humano, em

  • participando da mesma sorte do Filho de Deus incarnado, na linguagem de Eckhart a parte suprema da alma que tambm pode ser chamado de esprito, assinalada como puro ou supremo intelecto. Se agora, entendermos o termo intelecto como acima tentamos interpretar, a saber, como Vernnfticheit, como pura e absoluta disponibilidade de receber, e tambm interpretarmos a matria prima como potentia oboedientialis, e esta tambm como pura disponibilidade de receber, ento finalmente encontramos um denominador comum, um fio condutor que perpassa de baixo a cima o todo do universo-Criao. Esse fio condutor , pois, a disposio pura, lmpida, grata e cordial de receber: a alegria da liberdade de acolher37.

    O racional e o intelectual significam essencialmente recepo

    Receber um termo correlativo ao dar, como o so os binmios esquerda-direita, em cima-em baixo, desvelado-velado. E na Tradio crist, na qual Eckhart se acha como medieval, o binmio receber-dar, uma vez referido a Deus e ao seu opus maximum, Criao, est intimamente ligado a Filiao divina e esta ao Nascimento do Filho Unignito do Pai, portanto, processo das pessoas divinas. E o que procede do Pai e Filho se chama Esprito Santo, que caracterizado como Amor. Nessa Tradio medieval Criao significa no fundo Filiao, e Filiao significa comunho no Amor. Assim, seguindo a usual Tradio crist, tambm Eckhart define a essncia, o mago visceral de Deus, a deidade, como amor. termo usado no alemo medieval de Eckhart para Liebe (amor) Minne. A palavra Minne38 possui parentesco com grego (= sentido), (recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar). A raiz indogermnica men que est em todas essas palavras significa pensar. Pensar, aqui, estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo corao. Nessa acepo do termo pensar como a liberdade de disposio da cordial jovialidade, Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente39, sem cessar, recordar, i. , avivar de novo no e do mago do ser a cordialidade amorosa. Ceia ntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemo Minne trinken (beber a Minne)40. Originariamente, Minne designava amor misericordioso, de diligente cuidado, i. , o amor de predileo e benevolncia inter-pessoal de tu para tu. Assim Minne era uma palavra boa para indicar a intimidade do nobre enamoramento em total doao ardente de corpo e alma no encontro entre Homem e Mulher: o amor esponsal. E dali Minne comeou a ser usada na mstica dos cavaleiros medievais do sculo12/13, para indicar o prottipo da paixo nobre de dedicao no amor de um cavaleiro para com a mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso mvel de busca para um cavaleiro medieval a incentiv-lo a realizar atos hericos a servio e para a honra da sua senhora, a quem doava a vida e o ser como sua Rainha e Senhora41. A partir dessa acepo cavaleiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da Mstica medieval crist, numa acepo ainda mais radicalizada de doao, nobreza, intimidade e paixo e finura como Gottesminne42 e se tornou a tonncia de fundo da assim chamada Brautmystik (a mstica esponsal)43.

    Assim, o carter comum e unitrio, o fio condutor que perpassa todo o universo medieval, assinalado h pouco como receber, deve ser compreendido totalmente na sonoridade do toque, da percusso da realidade disso que Eckhart denomina de Minne. Assim a Minne, o amor misericordioso, de diligente cuidado, i. , o amor de predileo e benevolncia inter-pessoal de encontro, tu a tu, a Misericrdia o medium, onde se deve entender o qu e o como da definio da pessoa. Aqui todas essas palavras referentes ao Amor,

  • principalmente misericrdia, jogadas assim, nada dizem, se no as examinamos com cuidado, rigor e discrio, de que se trata no pensamento de Eckhart, principalmente quando ele fala do inter-relacionamento intratrinitrio, no nascimento do Filho, do Pai. Deixemo-las assim, pois faz-las ressoar, no tanto psicologicamente, mas ontologicamente, seria uma tarefa impossvel para esse comentrio. Entrementes, apesar de toda essa limitao, mesmo apenas assim referido Minne, que assim nada diz44, suponhamos como o tom fundamental a toar no fundo do sentido do termo receber, a dinmica inter-pessoal da Minne, e examinar brevemente como ligar esse receber com a compreenso da pessoa nas suas definies.

    Segundo o que foi dito acima, o modo de ser receber atravessa de baixo a cima, desde a materia prima, o nada criado enquanto potentia oboedientialis at o modo de ser do Filho Unignito no nascimento, ao proceder do Pai. A cada momento dessa escalada, se olharmos por assim dizer horizontalmente se espraia a imensido da dinmica criativa do receber, fazendo surgir, crescer e se consumar cada vez todo um mundo de entificaes que formam os entes de uma determinada intensidade do ser. E todos esses entes so como que fascas, ecloses, como que rebentos da gratuidade e generosidade de ser.

    Acima dissemos que receber correlativo ao dar. Na escalao dessa ordenao do universo medieval, no entanto, parece existir somente o receber em potencializao e qualificao cada vez mais imensa, profunda e criativa, de tal sorte que sempre de novo nos vem mente a pergunta: receber, pois no; mas receber o que e de quem? A tentao estabelecer uma lgica de ordenao no receber e no dar dizendo: a esfera de baixo recebe da esfera prxima superior at subir para dentro da dimenso Deus; e a partir de Deus, descendo, a dimenso de cima d dimenso prxima inferior. Mas d e recebe o qu? Porque acima dissemos que a tonncia, a sonoridade na qual se d o receber o Amor-Misericrdia, a Minne, a tendncia lgica da resposta seria: d e recebe no Amor, vida, ser, graa, filiao, existncia etc. Como todas essas palavras a essa altura da reflexo esto como que suspensas no toque da percusso do sentido do ser do Amor, da Minne, deixemos aqui tudo suspenso, a modo de um lusco fusco, e nos concentremos numa hiptese que nos faz suspeitar que aqui, nesse universo medieval-cristo tanto dar como receber, portanto o binmio dar-receber est em suspenso no mdium do receber todo nico e singular, acenado no modo de ser do Filho Unignito do Pai, incarnado em e como Jesus Cristo. E ento Nele, por Ele e atravs Dele, re-incarnado em todos, i., em cada um dos entes humanos. E por sua vez, neles, por eles e atravs deles re-re-incarnado em todos os entes sensveis, viventes, e coisais, estatuindo o medium uni-versal da disponibilidade grata, generosa do receber, como da pr-ferncia do receber como liberdade de ser. Essa liberdade de ser, se diz no pensamento de Eckhart, o Desprendimento, em alemo Abgeschiedenheit. Mesmo que aqui quase tudo esteja um tanto vago, ou melhor, no propriamente vago, mas suspenso, percebemos que h predominncia do receber, h prioridade, preferncia do receber em retraimento do dar. E surge a suspeita: no poderia ser assim que em Ekhart, o que ele chama de Minne, a saber, Misericrdia um modo de amar todo prprio, absolutamente singular, portanto, de uma difuso generosa da comunicao de doao de si, que incomunicvel, por ser esse modo to prprio, to ele mesmo que desprendido de tudo, mesmo tambm de dar-se, a ponto de em se dando tudo, todo inteiro e incondicionalmente, se retrai como que recebendo o prprio ser recebido pelo outro, a quem se d, recebendo como doao a ele feita do outro, como esmola?

  • A receptibilidade como pregnncia essencial do ser e sua estruturao

    Tentemos agora embora de modo formal, examinar melhor o movimento do dar e receber como se d na estruturao do universo em duas regies, em regio das substncias compostas e em regio das substncias simples. Na regio das substncias compostas comea-se na esfera da substncia-sem vida com receptividade como passividade, onde no h no padecer nenhum movimento de dar-se do e no receber. Mas na medida em que se sobe na escalao da intensidade do ser, a passividade passa na substncia vivente, e depois dela na substncia animal, do apenas padecer para disposio de receber, onde comea o movimento de dar-se do e no receber, de tal modo que o dar-se passa a ter predominncia no homem como animao racional, i. , o dar-se um sentido do ser a si mesmo (saber) e se produzir como realizao desse sentido do ser (querer). Essa predominncia pode crescer de tal modo que no homem o dar-se pode ir eliminando cada vez mais o receber, para se transformar na autodoao de si a si mesmo, a partir e dentro de si, na autonomia absoluta de auto-causao como causa sui, a ponto de no haver mais composio binmica do receber e dar, mas apenas o dar, pura e simplesmente, de modo que o prprio dar-se dado, num movimento assinttico de querer o querer do seu querer. Esse modo de ser puro ato45 atribudo substncia simples. Aqui a pessoa coincide com o eu super-acionado como sujeito e agente do seu prprio ser. No entanto, esse tipo de escalao da intensificao do ser, na potencializao predominante do dar, em diminuio do receber, para culminar na autonomia da causa sui, seria para o medieval errncia, a saber, de qualificar o ser do homem e a fortiori das substncias simples (espritos) com o modo de ser das substncias compostas emprestado da esfera nfima no nvel de ser: com o modo de ser da coisa, na sua quantificao, como p.ex. com a dinmica da exploso da energia material. Aqui o pensamento medieval parece ser muito mais diferenciado e subtil, mesmo na regio das substncias compostas, quando processa a escalao qualificativa do ser na sua intensidade constitutiva das esferas das substncias compostas: esfera da coisa, esfera da vida, esfera da sensibilidade, esfera da racionalidade. Mas em que sentido mais diferenciado e subtil? No sentido de o relacionamento do receber e dar, no se processa simplesmente nem no movimento unidirecional, nem na bidirecional, portanto da dominncia do receber ou do dar, nem na simultnea dominncia do receber e dar, deixando intacto e fixo o sentido do receber e dar, mas sim num movimento digamos espiral de continua transformao qualitativa tanto do sentido do receber como do dar, de tal sorte que esse movimento espiral pode ser circum-escrito da seguinte maneira: 1) Receber como pura passividade onde o sentido do receber no contm a dinmica da insistncia nem da a-seidade, portanto a possibilidade de apenas ser atuado, dependncia total de uma outra dimenso que possui mais in-seidade e a-seidade. 2) No vivente o receber contem em si maior intensidade do dar-se, iniciativa e inventibilidade de buscar; 3) no animal essa auto- receber; recebe e d o dar e o dar recebe e d o receber e nessa mtua implicao do receber e dar, como que do fundo desse movimento espiral se intensifica um receber todo prprio, que impregna e ao mesmo tempo libera o dar e receber como receber cada vez mais gratuito, cordial, e uno, numa doao total e solta disponibilidade obediente da liberdade de acolher. Se observarmos essa circunscrio um tanto desengonada do movimento de dar e receber, no mais unidirecional nem bidirecional, mas espiral, percebemos de imediato que est em jogo trs momentos, e isto quanto mais se ascende nas esferas das substncias simples at Deus, onde esses trs momentos aparecem na dinmica da vida una e trina de Deus como trs pessoas da SS.Trindade.

  • Temos assim no movimento 1) o receber, 2) o dar, 3) o receber o receber e o dar. Esse ltimo receber receber o receber e receber o dar num modo de receber que se afunda cada vez mais para dentro do ponto de fuga do movimento centripetal e cetrifugal da espiral. Esse receber vem fala como o princpio. Vem do abismo de onde e para dentro do qual se articulam os trs momentos acima mencionados, em cuja dinmica faz saltar de cada instante e cada estncia do movimento espiral, ecloso de um modo de ser, cada vez plena, intacta, na medida plena da intensidade do ser a que pertence. O ponto de fuga desse movimento espiral na direo ascendente de e para dentro do abismo da recepo se d na dinmica do movimento como o fator unitivo de todos os pontos desse movimento uno, como Um.

    III: Pessoa e retraimento

    Mas o que tem tudo isso a ver com pessoa? Com naturae rationalis individua substantia? Com naturae intellectualis incommunicabilis substantia? Se traduzirmos agora os termos natura, substantia, rationalis, intellectualis, individua, incommunicabilis e substantia, conforme o que at agora nessas reflexes viemos amontoando sobre eles, possamos talvez circum-escrever a definio de Bocio e de Sto Tomas da seguinte maneira: no ser humano falamos de pessoa, quando a sua natureza, i. , o seu ser dinmico na originariedade nasciva, se torna pura e limpidamente ela mesma, vindo a si como o que ela sempre foi, e ser. E o que ela sempre foi, e ser? A pura disponibilidade de ser o receber, e assim surgir, crescer e se consumar na plenitude de acolhida, bem assentada nela mesma, no avoada, no espria, mas reta, de p na consistncia da sua identidade como pura recepo. Portanto como subsistente em si, sem fragmentao, sem parcializao, mas na unidade em si sem diviso: natura (nascividade) rationalis (pura receptividade e acolhida no ser) substantia (assentamento na prpria identidade) indivisa (destacada como perfilao e nitidez da autoidentidade). Falamos de Pessoas no ser divino, quando nos referimos na vida da intimidade abissal da sua deidade nitidez e perfilao da sua subsistncia constante, toda prpria na nascividade nica e no singular novidade da Filiao Divina, i. , do nascimento do Filho, do e no Pai e processo do Esprito Santo do e no dar-se e receber-se de ambos, na alegria da liberdade da disposio no dar-se e receber-se, que se manifesta na mtua implicao das pessoas divinas. Mas nessa concreo cada vez, e sempre, a mais intensa, cordial e gratuita de receber, a mtua implicncia das trs pessoas divinas se perde no retraimento, o mais abissal para a interioridade de si mesma e se desvela como a dinmica unitiva cada vez, a mais una, a se ocultar como Um, na linguagem de Eckhart. E acena para um receber cuja atividade, cuja doao se perfaz em nada poder, nada querer, nada saber, nada ser a no ser doar-se lmpida e nicamente, sempre mais incondicional e gratuitamente, a tal ponto de em se doando total e inteiramente, nada reter para si e como si, nada ter de prprio, a no ser apenas estar na disponibilidade de receber e acolher o dom de ser recebido por aquele, a quem se doa. Esse retraimento e aniilao de si, esse desprendimento, chamado em alemo Abgeschiedenheit, permite que Deus, enquanto partilha e acolhida mtua da dinmica trina no dar-se e se receber, e nessa mtua implicncia, enquanto concentrao abissal una da humilde e pobre presena oculta da sua receptividade inominvel, possa ser cada vez, sempre novo e de novo o instante da vitalidade e vigncia da criatividade, em toda e cada entificao, desde o ente supremo deus, at o nfimo p da materialidade de um excremento, tornando-se livremente o como de cada ente, constituindo a jovialidade do modo de ser de cada ente. Essa grandeza de ser

  • no ocultamento, essa Agbeschiedenheit o pudor e a modstia da finura e delicadezas de um Deus, cuja divindade se chama deidade, e que em Eckhart recebeu o nome de Minne, a misericrdia, realizada como obra mxima da sua Liberdade como Uni-verso Criao, denominado mistrio da encarnao.

    Depois de todo esse falatrio desajustado e desajeitado acerca do que supostamente est ali como paisagem de fundo da fala de Eckhart na sua orientao espiritual n.17, possamos talvez compreender por que Eckhart acentua com tanta insistncia que conservemos, cuidemos e sempre de novo amemos o modo de cada um de ns como a medida apropriada do seguimento de Cristo. A seguir, apenas repitamos aqui algumas partes do restante do texto que no foi diretamente comentado, para apenas pinar alguns termos, agora j dentro e na perspectiva do que foi refletido e exposto como o fundo da paisagem do texto de Mestre Eckhart:

    O uno inominvel, a Abgeschiedenheit e o como de cada ente como pessoa

    Eckhart fala a mim que leio seu texto, na 2 pessoa singular: tu. Isto significa que o que aqui dito possui uma grande proximidade comigo, de tal sorte que se me torna um dever, uma tarefa o que ali me dito, a saber, conhecer e perceber em que consiste no meu caso o meu Seguimento e descobrir o como, o meu modo em que sou chamado por Deus de modo o mais prximo e o mais forte. Pois Deus no chama a ningum de um modo geral, no h um caminho geral, mas sim para cada um e cada vez o seu um, nico ou singular caminho. Esse caminho cada vez o modo prprio que dado a cada um como o seu caminho o mais prximo. Portanto, o que me importa, i., o que me conduz para a realidade de mim mesmo como Deus , o como, o modo meu prprio, l onde Deus me toca, na imediatez e proximidade, a ponto de ele, se ele no pode entrar porque eu no o deixo, fica colado porta, espera da primeira chance de estar mais junto de mim. A paz eu s a tenho, nesse modo meu prprio, pois s l que eu tenho o toque de Deus e eu sou eu mesmo na verdade, de tal modo que se eu almejo coisas maiores para mim, ou sinto-me obrigado a buscar determinadas medidas superiores, devo somente examinar se sou propriamente impelido por Deus, e que tenha a fora, para realizar tal coisa retamente sem o distrbio errante da minha interioridade46.

    A seguir, respondendo a uma objeo, Tu poderias sem dvida dizer: Se no h nisso importncia, por que ento assim o fizeram nossos antepassados, muitos santos?, insiste na importncia decisiva de o homem permanecer junto da interioridade de si mesmo, usando a palavra modo para designar a in-sistncia-mago, l onde o ser do homem se consuma numa perfilao na nitidez e transparncia da sua igualdade com Deus, portanto como pessoa. Diz pois Eckhart:

    Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e tambm a fora, para assim agir, a ponto de eles manterem esse modo at o fim e justamente ali, nisso ele encontrou sua complacncia junto deles; ali, nisso que eles deviam alcanar o que o melhor de si. Pois, Deus no atou a salvao dos homens a certo modo especial. O que um modo tem, isto, no o tem o outro modo; o poder de realizao, porm, Deus proporcionou a todos os modos bons, e no negado a nenhum modo bom, pois um bem no contra o outro. E por isso a gente devia perceber por si, que no se age retamente, se, ao ver ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avalia como inteiramente perdido, por ele no seguir o modo da gente. Se no agrada gente o seu modo, ento no se leva em conta o seu bom modo nem sua boa disposio. Isto no justo! No modo das pessoas deve-se atentar mais a

  • isso que eles possuem uma boa inteno, e que no desprezam o modo de ningum. No pode cada um particular ter somente um modo, e no podem todos os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo de um homem.

    Cada qual guarde o seu bom modo e todos modos ali dentro e empuxe no seu modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instveis. O que um modo te pode dar, isto podes tambm alcanar no outro modo, enquanto ele bom e louvvel e tem somente a Deus em vista. Alm disso, no todos os homens podem seguir um caminho. Assim o tambm com o Seguimento do rigoroso teor de vida daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu precises segui-lo.

    Mas, tu poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual devemos seguir constantemente por causa da retido.

    Isto certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convm e, no entanto, no em cada modo. Ele, Nosso Senhor jejuou 40 dias, jamais, porm, deve-se empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras para que o sigamos espiritual e no corporalmente.

    Por isso, devemos ser aplicados, para que o possamos no modo espiritual, pois, ele mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Ns devemos cada vez segui-lo no prprio modo. Como, pois?

    Ouas: em todas as coisas! Como e em que modo? Assim como eu j o disse muitas vezes: eu considero uma obra espiritual por muito melhor do que uma corporal.

    Como?

    Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que tu ests bem mais inclinado ou pronto: sobre isso de concentres e com acuidade fica de olho em ti mesmo. Muitas vezes te convm, te afastares disso mais e sem pr-ocupao, do que tu te privares totalmente de todas as comidas. Assim, tambm te muitas vezes mais difcil, silenciar uma palavra do que se abster-se simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importncia do que talvez admitir um pesado golpe, para a qual a gente se tinha prevenido, e nos s vezes mais difcil deixar alo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma, que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e no pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

    Observemos nesse texto que o modo, o como no mais entendido como acidente, como acrscimo substncia, mas indica propriedade, no no sentido de acidente essencial mas do ser prprio, ser ele mesmo, em pessoa, no que a entranha-mago da sua identidade: o prprio seu. Aqui, a substncia no mais, um bloco em si fixo fechado, indivisvel. nascividade (natureza) sempre de novo surgente a se consumar na ecloso da dinmica de ser, como possibilidade de ser novo mundo, bem assentado, bem percutido a partir e para dentro da recepo do toque da inominvel discrio continente da Abgeschiedenheit, colada em toda a parte, imediatez, proximidade cada vez mais.

    Finalizando essa reflexo-comentrio longa e esdrxula, podemos definir a pessoa como: o ser do Homem enquanto a nascividade receptiva da disposio pura, grata e cordial, levada lmpida e bem assentada consumao de ser a prpria disponibilidade receptiva do Filho unignito do Pai, no seu nascimento do Pai e no Pai. E nesse nascimento divino, o homem no seu ser pessoa nasce como filho no Filho e deixa nascer crescer e consumar-se todo o universo, cada ente na sua entificao, em milhes e milhes de possibilidades variegadas,

  • de sorte que tudo seja um na repercusso do toque no modo-retraimento da Deidade de Deus, da Abgeschiedenheit. Por isso:

    Ningum, jamais, deve fazer tal autoavaliao! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham os teus grandes transgresses, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como prximo a ti. E, h um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constncia bem perto e se no puder ficar dentro, ele se cola porta e dela no se afasta.

    Concluso

    Depois desse hipottico falatrio sobre pessoa e sua intimidade como abismo de Abgeschiedenheit de um Deus, que na sua absoluta alteridade do non-aliud47 se torna homem, e como homem, todas as outras coisas, possamos talvez ouvir tudo isso, com alvio, na sobriedade simples de uma fala pag a cerca do princpio prdigo de ser, o mais originrio e excelente:

    Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado. Respondeu Chuang Tzu: No h lugar onde ele no possa ser encontrado. O primeiro insistiu: Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado.

    Est na formiga, disse Chuang. Est ele em algum dos seres inferiores?. Est na vegetao do pntano. Pode voc prosseguir na escala das coisas?. Est no pedao de taco. E onde mais?. Est no excremento. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

    Mas Chuang continuou: Nenhuma de suas perguntas pertinente. So como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando toda escala do ser, como se o que chamssemos mnimo possusse quantidade inferior do Tao? O Tao grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes trs aspectos so distintos, mas a Realidade o Uno. Portanto, vem comigo ao palcio do Nenhures onde todas as muitas coisas so uma s: L, finalmente, poderamos falar do que no tem limites nem fim. Vem comigo terra do No-Agir: O que diremos l que o Tao a simplicidade, a paz, a indiferena, a pureza, a harmonia e a tranqilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente Pois suas distines desapareceram. L minha vontade no tem alvo. Se no est em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, no sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, no sei onde terminar. A mente permanece instvel no grande vcuo. Aqui, o saber mais elevado ilimitado. O que concede s coisas sua razo de ser, no pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em limites, ficamos presos s coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se plenitude. O ilimitado do limitado chama-se vazio. O Tao a fonte de ambos. Mas no , em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovao quanto o desgaste, mas no nem um, nem outro. O Tao congrega e destroi. Mas no nem a Totalidade, nem o Vcuo.

    Mas, talvez, essa mesma toada oriental da imensido silenciosa e silenciada que no nem imenso, nem vcuo, nem totalidade, nem se quer nada, entoada pelo som medieval ocidental do absoluto, no retraimento da sua Abgeschiedenheit como sonncia e dissonncia agraciadas de um cntico finito, cuja melodia sai arranhada, esfregando-se dois galhos secos, nas mos tambm secas de um pobre-medievo que nada quer, nada sabe, nada tem, nada pode e nada faz a no ser a louvao da misericrdia, personalizada como a Senhora Pobreza, hino ptrio da Terra, onde todas as coisas so pessoas e brincam como irms e irmos do mesmo Pai48 a baila jovial da Terra dos Homens:

  • ...louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmo sol, o qual dia, e por ele nos iluminas... Louvado sejas, meu Senhor, pela irm lua e pelas estrelas, no cu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo, pelo qual s tuas criaturas ds sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irm gua, que muito til e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo fogo, pelo qual iluminas a noite, e ele belo e agradvel e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irm nossa, a me terra, que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo teu amor, e suportam enfermidades e tribulao... Louvado sejas, meu Senhor, pela irm nossa a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar... Louvai e bendizei ao meu Senhor, e rendei-lhe graas e servi-o com grande humildade49.

    Notas

  • 1 PL 64, 1343.

    2 Pessoa substncia individua da natureza racional.

    3 Toms de Aquino, S. theol. Ia, q. 29,a.3, ad 4.

    4 Pessoa substncia incomunicvel da natureza intelectual. Sto. Toms, loc. cit. observa que Ricardo de So Victor, ao aplicar a definio de Bocio SS. Trindade, mudou-a, dizendo: pessoa, dita de Deus existncia incomunicvel da natureza divina.

    5 Reden der Unterweisung (conversaes instrutivas), traduzido como Conversaes espirituais, em: Mestre Eckhart, O livro da Divina Consolao e outros textos seletos. Petrpolis: Vozes, 1991.

    6 Os textos alemes de Eckhart esto alemo medieval (mittelhochdeutsch) que na edio moderna de suas obras foram vertidos em alemo atual. As aspas indicam que a(s) palavra(s) ali cercada foi acrescentada, ou para suprir lacunas ou para melhorar a fluncia atual da linguagem, por ocasio dessa verso.

    7 Wie sich der Mensch in Frieden halte, wenn er sich nicht in usserer Mhsal findet, wie Christus und viele Heilige sie gehabt haben; wie er Gott nachfolgen soll.

    8 Ontolgico aqui no se refere disciplina, chamada ontologia, no ensino escolar da Filosofia, mas questo do sentido do ser, como foi inaugurada, sob o nome de ontologia fundamental, em Ser e Tempo (Heidegger) atravs da analtica da existncia e hermenutica da verdade do ser (cf. Ereignis - Heidegger).

    9 Adiantando, possamos talvez aventar uma afirmao, a saber: para a compreenso da definio da pessoa no ser humano indispensvel pontuar bem essa unio, unio de absoluta imediatez da proximidade de Deus da criatura e da criatura a Deus.

    10 Por isso, se Ele d algo, esse algo todo Ele. Ele s se pode dar e todo inteiro. Se eu lhe peo algo, a coisa a mais insignificante ou at mesmo coisa que lhe repugna, Ele, em me dando o que lhe peo, s pode se dar a si mesmo todo e inteiro.

    11 A se significa a partir de si e caracteriza o ser de Deus que no seu ser no depende de nada a no ser dele mesmo. oposto do ab alio, que significas a partir do outro e caracteriza o ser da criatura que no seu ser depende do outro, numa concatenao da dependncia causal, em cujo extremo encontramos a Deus que no mais ab alio, mas a se. Na nossa reflexo, quando usamos, embora indevidamente, a caracterizao a se tambm para a criatura, o fazemos num sentido lato e menos rigoroso, para indicar tambm na criatura um modo de ser dinmico auto-constitutivo de si, que embora no no sentido absoluto como o em Deus, mas no sentido de uma participao relativa ao modo da aseidade divina, determina o aumento da intensidade na qualificao do ser, na media em que se ascende na escala da ordenao das esferas do ser, no universo medieval, em direo a Deus.

    12 Deus todo o ser, de tal modo que se, fora de Deus ainda houver algo que seja ser, esse ente ou no seno apenas uma quimera ou Deus no Deus. Nessa perspectiva as criaturas seriam como palavras que saem da boca de Deus: de Deus, e no algo fora de Deus: comunicao de Deus.

    13 In se significa em si e caracteriza a substncia. oposto do in alio que caracteriza o acidente.

    14 como dizer que a grandeza de Deus de milhes de metros e a da criatura, de 3 metros.

    15 Aqui, pessoa no deve ser interpretada como sujeito, mas sim como o ontolgicum, i. , como o sentido do ser que inaugura uma dimenso, cuja intensidade e pregnncia de ser caracteriza o prprio dos entes pertencentes regio do ser das assim chamadas substncias simples ou dos espritos. Se, porm, no tematizamos o sentido prprio do ser, denominado pessoa, e ficamos sempre ainda sob a conotao do ser da entificao coisal, podemos raciocinar: se aqui Deus tudo e ns nem sequer parte como um ente em si fora de Deus, talvez houvesse uma nica possibilidade de criatura ser, a saber: em sendo como Ele, doao absoluta de si, inteira e totalmente no receber. Isto significaria que participar do ser de Deus no outra coisa do que ser pura e simplesmente nada a no ser apenas pura recepo, a tal ponto de, aqui no haver um sujeito que recebe, mas apenas o receber. Mas o tal receber seria ento no algo fora de Deus, mas sim um momento da prpria

  • doao absoluta de si que Deus. A situao aqui , bastante, estranha. Pois no pensamento medieval, somente Deus , no sentido de ele ser ipsum esse, i. , Deus e ser coincidem. Se, assim, o que so criaturas? Se, so apenas em parte, como possvel que de alguma forma sejam como participantes, existentes fora de Deus, diferentes Dele? E se so, h somente um modo de ser, a saber, uma parte, um momento, um algo Dele e Nele...

    16 Pessoa como substncia indivisvel, da natureza racional, i., do homem (criatura).

    17 Pessoa como substncia incomunicvel, da natureza intelectual, i., do Filho Unignito do Pai. Os medievais caracterizavam a imagem e semelhana de Deus na alma, referindo a memria ao Pai, intelecto ao Filho e vontade (corao, afeto) ao Esprito Santo.

    18 A partir e dentro do ontologicum, i. , do sentido do ser prprio da dimenso em questo no nosso comentrio, portanto do sentido do ser pessoa, indivisilidade e incomunicabilidade da inseidade substancial, longe de ser distanciamento, propriamente a condio da possibilidade de proximidade, de uma proximidade tal que Eckhart chama sem mais de igualdade.

    19 Assim, coloca-se, pedra, planta, animal e homem como ente (substncia), um ao lado do outro, em diferentes conjuntos, como gnero, espcie, cada qual contendo os indivduos correspondentes do conjunto, lanando-se sobre os diferentes conjuntos uma lgica de diviso, em cuja razo classificatria, o contedo como tal apenas funciona como elemento de delimitao quantitativa da ordenao em maior ou menor extenso lgica, a modo de conjunto de funcionalidade quantitativa, fsico-matemtica. Com isso se misturam dois modos bem diferentes de classificao, de sorte que no se est nem na classificao funcional quantitativo-moderna, nem na ordenao essencial da intensidade do ser, medieval.

    20 Como usualmente conhecido, o universo medieval apresentava-se em ordenaes da intensidade de ser que partindo de Deus (ens a se, absoluto e infinito), da fonte da possibilidade de ser e da plenitude absoluta de ser (Deus ipsum esse), formava algo como cascata de ser, em diferentes esferas ou nveis de intensidade de ser, at alcanar a esfera a mais longnqua e diluda do ser, a saber, o mundo dos entes materiais sem vida, que por sua vez por assim dizer se esvaia na pura possibilidade, denominada prima matria ou nada. Essa realidade ltima da Criao ou do universo criado era descrita como feita ex nihilo sui et subiecti a saber, do nada de si e do substrato anterior prvio. Essa pua possibilidade de ser era tambm denominada de potentia oboedientialis. A totalidade dessas ordenaes se constitua em duas grandes regies do ser, que vistas na ordem ascendente, eram 1. a regio das substncias compostas, a saber: esfera a) da substncia material sem vida (pedras, metais etc.; b) da substncia viva (vegetais); c) substncia dotada de sensibilidade (animais); d) substncia dotada de racionalidade (homens, animal rationale). 2. a regio das substncias simples ou dos espritos: esfera a) dos nove coros dos anjos na sua hierarquia ascendente b) Deus. Nessa ordem dos entes do universo medieval o Homem pertencia tanto regio das substncias compostas como das substncias simples. E enquanto pertencente regio das substncias simples, o que o caracteriza especficamente, a saber a racionalidade (ratio, rationale) se escalonava na intensidade da perfeio do ser e recebia ento na dinmica ascendente designao de animus (alma), intellectus, mens (ou spiritus). Essa posio do homem por assim dizer no meio da graduao das ordenaes do ser como que mediando a regio de cima (das substncias simples) com a regio de baixo (das substncias compostas) e vice-versa, era devido a doutrina da Incarnao. Homem aqui era entendido a partir e dentro do ser do Mistrio da Criao, interpretada como mistrio da filiao divina: a saber, Jesus Cristo, Deus feito homem e homem feito Deus.

    21 Por isso, a expresso substncia composta no muito adequada para indicar essa implicao na escalao da qualificao no ser.

    22 Se entendermos a realidade a partir e dentro da realizao sob o sentido do ser do fsico-matemtico das cincias naturais modernas, a coisa entendida como quantidade e quantificao sempre divisvel infinitesimalmente. De tal sorte que na direo do mximo e do mnimo se abre total indeterminao em indefinido. Aqui no pode aparecer uma realidade e realizao do tipo totalidade. Se nessa dimenso fsico-matemtica, podemos de alguma forma pontuar estaticamente o ente como algo, porque delimitamos a extenso quantitativa, de aqui at aqui, e criamos a possibilidade de estabelecer dentro desse trecho delimitado, medida vlida, i. , coerente em si, conforme a delimitao.

    23 Aqui na medio mtrica, mesmo usando-se matemtica, no significa que o sentido do ser dominante nesse uso dos nmeros e do seu clculo seja o do fsico-matemtico no sentido hodierno das cincias naturais. A medio concreta em nmeros, operante no rigor de exatido artesanal nas construes dos medievais, pode ser por assim dizer a experincia concreta pr-cientfica, no uso e na vida, a partir da qual incoativamente as cincias naturais fsico-matemticas podem a grosso modo ter tirado provisoriamente os conceitos fundamentais da sua construo do saber como do seu positum.

  • Mas na medida em que a construo se afasta desse incio, pode ter sofrido uma modificao na intencionalidade, de tal sorte que o que vem fala como medida destacada de exatido objetiva fsico-matemtica se torna a media bsica de toda e qualquer rigor de realizao no contacto como tal com a realidade, como objetividade e exatido.

    24 Aqui evitar a compreenso classificatria usual a modo semi-lgico-matemtico de a pedra na acepo de pedra em geral, e de esta ou aquela pedra na acepo de uma das pedras, em particular, individual. Evitar tambm a compreenso de a pedra como a representao abstrada a modo indutivo, das pedras individuais.

    25 MERTON, Tomas. A via de Chuang Tzu. 4 edio, Petrpolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. um dos maiores pensadores chineses do Taosmo, do sculo III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mng-Tzu. Seus escritos esto reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai pien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradio atribui a autoria de nei pien a Chuang-Tzu e de wai-pien a seus discpulos. Cf. FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959. p. 47.

    26 Cf. Razo, intelecto, Vernnfticheit, Vernunft nas reflexes a seguir.

    27 Hle, matria-prima potentia oboedientialis, a concreo do receber.

    28 No assim que primeiro ou simultaneamente aparece a rvore e depois ou simultaneamente a armao do sino. A ntida auto-presena da armao do sino na sua perfilao concreta o apriori que determina o material certo para a configurao certa e a maneira de como conduzir a confeco para o seu vir fala individualizada dessa perfilao concreta. Os gregos chamavam essa perfilao concreta apriori de edos, que no idia, muito menos representao, mas a dinmica energtica do ser consumado (dnamis, enrgeia, entelcheia), da obra.

    29 O binmio matria e forma usado para mostrar a estruturao de crescimento na intensidade do ser,na escala das ordenaes dos entes que pertencem regio das substncias compostas. O binmio potentia e ato usado para mesma finalidade, mas referida regio das substncias simples.

    30 No representar aqui o todo ou a totalidade como soma das partes ou conjunto de mltiplas entidades, mas sim como intensidade da consumao, da densidade ou compactidade, concretudo e coerncia da identidade como autopresena de si, a partir e dentro de si mesmo, como assentamento, insistncia no ser. Nesse sentido pertencem essencialmente totalidade, a imensido, profundidade e originariedade.

    31 Quantidade aquela qualidade do ser, em cuja qualificao a nica medida quantidade.

    32 Podemos exemplificar esse estado-de-coisa numa experincia da criatividade. Quando a inspirao rarefeita e pouca, o que vem fala, tambm apoucada, de sorte que sua reproduo se torna como que repetio em srie, sem a pregnncia do prprio, do nico e necessrio.

    33 A superioridade numrica da repetio aqui indica a rarefao da intensidade da presena do ser. Ou melhor, dito de outro modo, a rarefao da pregnncia do ser que aparece no maior ou menor possibilidade numrica de repetio, constitui as diferenas das esferas na ordenao da regio das substncias compostas.

    34 Colher, ajuntar, recolher uma ao ativa. Esse momento ativo, no entanto, enquanto lgein, na acepo arcaica, algo como o momento terminal de todo um movimento constitutivo do receber. Mais ou menos no sentido de a colheita no campo, o momento terminal de todo um trabalho longo e paciente de receber do cu e da terra a possibilidade da dinmica do surgir, crescer e nascer, onde a cada momento est presente o receber como o fio condutor constitutivo de todo o movimento. No ajuntar, portanto no se trata, de execuo de um planejamento, cuja estrutura, comandada pelo projeto do interesse de um sujeito eu, mas de ser colhido pela conduo que me vem de encontro, a partir e dentro do a priori anterior constituio do eu e seu mundo, como um toque, cuja percusso se colhe, se ajunta em mil e mil possibilidades da constituio do(s) mundo(s).

    35 A saber, matria prima como nada criada como pura possibilidade da potentia oboedientialis.

    36 Cf. expresso como a da obra de So Boaventura: Itinerarium mentis in Deum. E observemos tambm o seguinte: o que denominamos a regio das substncias compostas no outra coisa do que o homem e seu mundo vital circundante. Os

  • entes no-humanos desse mundo vital circundante que no homem, atravs dele e para ele ali esto como elementos constituintes do homem e seu mundo, participam da sua sorte e da sua realizao e nessa pertena, so como seu prolongamento.

    37 Traduzido na fala da espiritualidade, esse fio condutor formulado como em tudo fazer a vontade do Pai.

    38 Cf. Verbete Minne, em: Trbners Deutsches Wrterbuch. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1943, p. 630ss.

    39 mens, -tis; , mente o nvel de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu pice, no e atraves do qual o ser humano tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cf. Itinerarium mentis in Deum, So Boaventura.

    40 Em grego gape, a ceia do encontro de amor, termo assumido por cristianismo para indicar o amor de doao livre e cheio de bem-querena de si de Deus; em latim charitas e dilectio e lembra a ltima ceia de Jesus no NT, na qual lavou os ps dos apstolos.

    41 As gestas e as canes da gesta.

    42 Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo objetivo, i. , amor que Deus tem para conosco e do amor que ns temos, tendo como objeto a Deus.

    43 Cf. So Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cf. So Bernardo de Claraval e seus escritos msticos.

    44 A impossibilidade de dizer aqui no se refere tanto ao fato de tudo isso ser inefvel, mas antes porque o contedo do ser somente se nos revela no e com o ser a pura recepo. Assim nessa nossa fala acerca da pura recepo, a melhor maneira de falar do contedo do ser deix-lo na suspenso, ou melhor, estarmos na suspenso da pura recepo, i. , na espera do inesperado.

    45 Puro ato, actus purus, designa no sentido estrito somente a Deus como ens a se. Aqui atribudo num sentido lato tambm a substncias simples, no mesmo sentido como o fizemos anteriormente com a expresso a se. Cf. nota 11.

    46 Paz significa ento estar assentado no modo prprio seu, recebido de Deus, e esse assentamento no que o seu prprio a interioridade.

    47 Non aliud (no-outro) nome dado por Nicolau de Cusa a Deidade, i. , a Deus da Abgesciedenheit, a acenar para uma radicalidade de retraimento que em sendo no-outro (aliud) to outro que nem se quer se pode dizer dele que no-outro, e isso de tal modo que ele na discrio da sua presena oculta o como de todas as coisas.

    48 Enquanto lermos esse n. 17 das Reden der Unterweisung como conversas de uma orientao espiritual, no surgem problemas especulativo-ontolgicos. Pois, hoje entendemos o espiritual como ndice da rea da regio do ente subjetivo-interior, portanto no h questo da ordem do ser no aspecto denominado ora tico, ora espiritualista, ora psicolgico-moral. Nesse sentido de conversas espirituais, a instruo de Eckhart seriam conselhos piedoso-prticos para orientar o comportamento de seus discpulos. Mas, o pensamento medieval se rege por um princpio ontolgico que diz: natura sequitur esse. A natureza, i. , a vigncia, a dinmica de um ente segue a esse, i. , ao ser. Primeiro ser, e a partir do ser, se d atuao do ser, i. , a natureza. Com outras palavras, esse e natura dizem o mesmo, mas uma vez, focalizado no seu ser e outra vez, na sua atuao essencial. Isto significa que em ltima instncia, o que vale examinar a ordem do ser, em todas as atuaes, atividades, relacionamentos etc. do homem, sejam eles essenciais ou acidentais. Portanto, o que deve ser visto o ser como a priori, i. , em primeiro lugar, no simplesmente como o primeiro instante de uma compreenso, mas sim como horizontes da captao do todo da paisagem da realizao da realidade, a partir e dentro da qual se do as manifestaes do homem, seja a respeito de si, seja a respeito dos entes que no so ele. Com outras palavras, a compreenso real dessa conversao espiritual nr. 17 de Eckhart depende da, e j pressupe a pr-compreenso do ser que pr-jaz como o fundo da acima mencionada proibio incisiva, na qual Eckhart no nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreenso dessa partcula conjuntiva e distncia de separao. A questo portanto especulativo-ontolgico, diz respeito ao ser do relacionamento Deus-e-criatura, a saber ao ser Deus, ao ser criatura e ser relao Deus-e-criatura. nessa perspectiva que o nosso comentrio gostaria de ter se colocado.

    49 Cf. Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrpolis: Editora Vozes e FFB, 2004.