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A PERCUSSÃO CORPORAL NO ENSINO DE MÚSICA Renata Ribeiro Silva Maria Cristina Lemes de Souza Costa [email protected] [email protected] Universidade Federal de Uberlândia Universidade Federal de Uberlândia Comunicação – Relato de Pesquisa RESUMO: Esta comunicação apresenta dados provenientes da pesquisa concluída em 2015 sobre o uso da percussão corporal no ensino de música na escola de educação básica. Diante dos desafios de ensinar música em espaços não favoráveis para esta prática, toma-se a percussão corporal como uma prática viável por prescindir de espaços físicos e materiais especiais. Como referências dos estudos de percussão corporal a pesquisa se apoiou em Pederiva (2005) e Simão (2013). Este último, lista sons corporais pesquisados e sistematizados pelo grupo Barbatuques. A partir de procedimentos metodológicos de uso da percussão corporal elaborados na pesquisa, apresenta-se uma atividade prática realizada com adolescentes em um Centro de Formação que exemplifica a performance e aprendizagem musical por meio da percussão corporal. Concluindo, entende-se que é fundamental haver um diálogo entre as culturas musicais dos alunos e as da escola acolhendo e potencializando os conhecimentos musicais trazidos por eles tornando esses fazeres democráticos e significativos para os alunos. Introdução As práticas musicais são construções sociais e como tal acontecem em diferentes espaços. Nas escolas de educação básica ou em espaços extraescolares, de formação de crianças e adolescentes, o ensino e a aprendizagem de música podem se dar independente de procedimentos tradicionais a que estamos acostumados a ver nas escolas específicas de música. As relações que as crianças e jovens estabelecem com as músicas denotam suas identidades, sua localização na sociedade, demarcam seu grupo de pertenças e suas crenças. Como professoras, partindo do princípio de que a educação musical é uma prática social, no sentido que defende Souza (2004), entendemos que as crianças e adolescentes chegam às escolas com sua bagagem de experiências musicais, gostos e interesses construídos entre seus pares e têm muito a compartilhar com professores e

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A PERCUSSÃO CORPORAL NO ENSINO DE MÚSICA

Renata Ribeiro Silva

Maria Cristina Lemes de Souza Costa

[email protected] [email protected]

Universidade Federal de Uberlândia Universidade Federal de Uberlândia

Comunicação – Relato de Pesquisa

RESUMO: Esta comunicação apresenta dados provenientes da pesquisa concluída em 2015 sobre o uso da percussão corporal no ensino de música na escola de educação básica. Diante dos desafios de ensinar música em espaços não favoráveis para esta prática, toma-se a percussão corporal como uma prática viável por prescindir de espaços físicos e materiais especiais. Como referências dos estudos de percussão corporal a pesquisa se apoiou em Pederiva (2005) e Simão (2013). Este último, lista sons corporais pesquisados e sistematizados pelo grupo Barbatuques. A partir de procedimentos metodológicos de uso da percussão corporal elaborados na pesquisa, apresenta-se uma atividade prática realizada com adolescentes em um Centro de Formação que exemplifica a performance e aprendizagem musical por meio da percussão corporal. Concluindo, entende-se que é fundamental haver um diálogo entre as culturas musicais dos alunos e as da escola acolhendo e potencializando os conhecimentos musicais trazidos por eles tornando esses fazeres democráticos e significativos para os alunos.

Introdução

As práticas musicais são construções sociais e como tal acontecem em diferentes

espaços. Nas escolas de educação básica ou em espaços extraescolares, de formação de

crianças e adolescentes, o ensino e a aprendizagem de música podem se dar

independente de procedimentos tradicionais a que estamos acostumados a ver nas

escolas específicas de música. As relações que as crianças e jovens estabelecem com as

músicas denotam suas identidades, sua localização na sociedade, demarcam seu grupo

de pertenças e suas crenças.

Como professoras, partindo do princípio de que a educação musical é uma

prática social, no sentido que defende Souza (2004), entendemos que as crianças e

adolescentes chegam às escolas com sua bagagem de experiências musicais, gostos e

interesses construídos entre seus pares e têm muito a compartilhar com professores e

colegas. Viabilizar e potencializar esses encontros das diferentes culturas musicais, nos

diferentes espaços, é um desafio e um compromisso para professores de música.

Mas que saberes compartilhar? Que música fazer? Que espaço e que

instrumentos temos para essas realizações? Essas são perguntas que os professores de

música se fazem quando diante do desafio de ensinar música para turmas de alunos em

espaços e condições materiais não muito favoráveis. Ou seja, espaços em que o silêncio

e a ordem são mais valorizados do que as possíveis expressões sonoras dos alunos; ou

que os sons, muitas vezes percebidos como barulhos, não podem conviver com outras

atividades educativas; ou ainda, que a falta de instrumentos musicais ou outros materiais

didáticos básicos inviabilize a realização de práticas musicais.

Assim, o conhecimento de si, a exploração do próprio corpo como fonte sonora

genuína, capaz de expressão e comunicação pode ser um caminho viável e rico para os

fazeres musicais coletivos. A percussão corporal é uma prática musical que prescinde de

espaços específicos e materiais. Sua realização é estimulante e desafiadora, além de

democrática. Todos podem desfrutar dela.

A falta de instrumentos musicais e um local apropriado para o ensino de música,

deixam de ser um problema para o educador, pois considerando o corpo como

instrumento principal, o educador consegue desenvolver um trabalho consistente e que

não necessita de outros recursos, que não sejam os próprios alunos.

Gêneros e estilos diversos podem ser executados por meio da percussão

corporal, bem como o desenvolvimento da percepção sonora, da sensibilidade estética e

da expressão musical. Elementos e conceitos da linguagem musical podem ser

explorados objetivando a construção de conhecimentos. Habilidades de performance

musical também podem ser desenvolvidas com o fazer musical por meio da percussão

corporal.

Este trabalho apresenta, em sua primeira parte, um recorte de uma pesquisa

concluída em 2015 que aborda a percussão corporal como recurso principal no ensino

de música na escola, e na segunda, uma proposta de ensino de música vivenciada com

jovens em um Centro de Formação em Uberlândia, no primeiro semestre de 2016.

A criação, reflexão e apreciação musical podem ser desenvolvidas com a

percussão corporal. A cultura local em que os alunos estão inseridos passa a ser um

conteúdo prático, significativo para os alunos e base para as propostas do professor nas

aulas de música.

O que é a percussão corporal

Silva (2015) apresenta os conceitos de Consorte e Pederiva para percussão e

imagem corporal respectivamente como relatado a seguir. Percussão corporal é a

produção de sons resultantes de qualquer gesto corporal percussivo como batidas,

atritos de partes do corpo e estalos. Consorte (2012) considera que percussão corporal

são “técnicas que batem partes do corpo umas nas outras ou no chão”. Historicamente, a

percussão corporal é vinculada a culturas populares, que em sua maioria estão ligadas a

danças, tais como: Gumboot, Hambone Clogging e Steep Dance.

A exploração das sonoridades do corpo pode contribuir para que o indivíduo

reconheça sua imagem corporal. Pederiva (2005) aponta que a “imagem corporal é a

reconstrução constante do que o indivíduo percebe de si e das determinações

inconscientes que ele carrega de seu diálogo com o mundo” (p.22).

Para a realização de atividades musicais com o corpo é necessário que o

indivíduo explore e conheça seu próprio corpo dominando os movimentos. “[A] ação

pressupõe a imagem do membro ou do corpo com a qual se realiza o movimento”

(PEDERIVA, 2005, p.22).

A exploração do corpo é um auxiliador na busca do equilíbrio e da

conscientização corporal, um facilitador da compreensão do movimento e das vivências

rítmicas do indivíduo. Schafer (1991), diz que o movimento corporal pode funcionar

como um mecanismo para o desenvolvimento da coordenação motora e da boa

percepção do corpo, tornando-o assim, essencial para o exercício da musicalização e da

percussão corporal.

Simão (2013) apresenta o repertório de sons que o núcleo Barbatuques

registrou partindo das experimentações de “novas fontes estéticas para produzir música

com os sons do corpo” (p.23), assim foi possível registrar as formas de produção

sonoro-corporal identificadas por eles.

No processo de exploração e mapeamento dos sons corporais foram listadas: 1)

a percussão com os pés, sendo o som mais básico, 2) cinco sons de palmas: palma

grave, palma estrelada, palma comum, costas de mão e palma pingo, 3) mãos nas

pernas, barriga, peito, boca e bochecha.

Com a percussão na boca e na bochecha, é possível construir uma linha

melódica. Batendo os dedos ou até mesmo a palma da mão na bochecha, somado ao

formato interno da boca, com diferentes aberturas e embocaduras, é possível produzir

sons de alturas diferentes favorecendo a construção de linhas melódicas.

A exploração dos sons obtidos com os pés, mãos e vozes é uma das

possibilidades da percussão corporal que pode ser incorporada em exercícios de

coordenação motora, ritmos e em jogos musicais. A busca de sonoridades do corpo é

um processo rico em que se constrói a percepção corporal, se desenvolve a percepção

auditiva e se estimula a criatividade.

Scherzo sem instrumentos1

No primeiro semestre de 2016, desenvolvi juntamente com alguns colegas, um

trabalho de musicalização2 com uma turma de adolescentes de 12 a 14 anos, no Centro

de Formação da Criança e do Adolescente (DEC), uma instituição não governamental

que atende crianças de 6 a 14 anos, no contra turno escolar. No decorrer das semanas os

alunos demonstraram muita facilidade com qualquer atividade rítmica proposta.

Acredito que o fato deles já participarem de atividades musicais oferecidas pela

instituição há cerca de 3 anos, tenha possibilitado-lhes um desenvolvimento

diferenciado do fazer musical percussivo.

Após vivências rítmicas diversas e experimentações das sonoridades corporais

com os alunos pensamos em alguma música que fosse desafiadora para a turma.

Lembrei-me de uma situação vivida em uma apresentação de um grupo de percussão

que eu fazia parte em 2008. Realizamos uma performance de uma música executada

exclusivamente com percussão corporal numa Escola Pública de Ensino Fundamental.

A reação das crianças que nos assistiam foi surpreendente. Elas acompanharam

atentamente cada gesto e ao final tentaram reproduzir os gestos e ritmos vistos. A

música era Scherzo Without Instruments de William J. Schinstine. Pensei então em fazer

1 Scherzo sem instrumentos foi o nome dado à adaptação da peça “ Scherzo Without Instruments” de

William Schinstine, feita por Renata Ribeiro Silva, a partir de um trabalho de construção coletiva de uma

turma de alunos do Centro de Formação da Criança e do Adolescente (DEC), em junho de 2016. 2 Este trabalho de musicalização foi realizado por mim, como estagiária, na Disciplina Estágio

Licenciatura 5, do Curso de Música da Universidade Federal de Uberlândia, sob coordenação da

professora Maria Cristina Souza Costa, no primeiro semestre de 2016.

uma adaptação dessa música para tornar viável sua execução no curto espaço de tempo

que tínhamos disponível para trabalhar com os alunos.

Apresentei para a turma um vídeo com a gravação de uma performance da

referida música e a reação dos alunos foi muito parecida com a que vivenciei há 8 anos

atrás com as crianças da escola de educação básica. Eles se entusiasmaram e já

começaram a dar ideias de modificações, sugerindo gestos e movimentos para

determinados trechos da música. Assim fizemos uma construção coletiva do arranjo

atendendo às expectativas da turma.

Na aula seguinte, gesto por gesto foi apresentado para os alunos e o processo

de aprendizagem aconteceu por imitação, já que os alunos não possuíam leitura musical.

Dividimos a música em quatro partes e decidimos como seria cada parte. Começamos a

executar e em um trecho de dificuldade encontramos uma saída por meio de uma

improvisação. Cada um criou um gesto dentro de um tempo do compasso solucionando

assim o problema e gerando mais um momento de participação ativa dos alunos e

composição coletiva.

Figura 1: Experimentando gestos e sons com palmas Fotografia: Jennifer Gonzaga Em dois encontros de uma hora e vinte minutos de duração conseguimos

concluir o arranjo e a performance com uma imensa satisfação dos participantes. Poder

ser autor da construção de seus conhecimentos, expressar-se livremente na criação fez

com que os alunos se sentissem protagonistas de um fazer significativo.

Essa música foi apresentada na Mostra de Atividades do DEC, realizada em

junho de 2016, como encerramento das atividades do semestre.

Figura 2: Apresentação na Mostra de Atividades Fotografia: Maria Cristina Souza Costa

Considerações Finais

A percussão corporal se mostra como um recurso realmente viável e rico de

fazer musical em diferentes espaços tempos de educação de crianças e adolescentes. A

experimentação de gestos sonoros, a busca do som adequado e a construção musical por

meio desses fazeres rítmicos entusiasmam muito as crianças e adolescentes. Sua

necessidade natural de movimento e desafios vem ao encontro dessa prática.

Musicalmente, a realização da peça Scherzo sem Instrumentos é um grande

desafio, mesmo para músicos percussionistas, entretanto, surpreendeu-nos a forma

como o grupo de adolescentes conseguiu apreender a proposta e realizá-la num espaço

de tempo muito curto e com um resultado musical muito bom.

Uma das razões para isso, acreditamos ser o fato desses jovens estarem há algum

tempo participando de atividades musicais e artísticas, de modo geral, na instituição.

Isso os predispõe física e cognitivamente à realização dessas atividades rítmicas. Outra

hipótese refere-se diretamente ao conteúdo e a forma como ele foi proposto. Trabalhar

com o corpo, valorizar e estimular seus movimentos, permitir que se expressem, ou

melhor, que sejam atores ativos na construção do conhecimento torna esse fazer mais

significativo para os alunos. Acolher os elementos que esses alunos trouxeram de sua

cultura, como gestos específicos, representativos de seu meio, de suas identidades

favoreceu o empenho e dedicação para atingir os resultados que atingiram. Essas

constatações nos remetem à uma fala de Souza (2001) que diz: “Tomar o campo do

saber pedagógico-musical como absolutamente aberto, sem fronteiras, mas com

horizontes permitindo trânsitos inusitados e inesperados, articulações entre os diversos

espaços escolares e não escolares, talvez seja o desafio que temos que enfrentar.”

(SOUZA, 2001, p.91).

Nesse sentido, o diálogo que se estabeleceu entre as culturas musicais dos

adolescentes e dos professores estagiários, por meio da percussão corporal, reafirmou a

viabilidade da proposta para o ensino de música em espaços diversos de formação.

REFERÊNCIAS

CONSORTE, Pedro. A percussão corporal como recurso musical. Disponível em: <https://pedroconsortebr.wordpress.com/2012/05/24/guia-basico-para-a-percussao-corporal/ > Acesso em: 19 de jun. de 2016. PEDERIVA, Patrícia Lima Martins. O corpo no processo ensino-aprendizagem de

instrumento musicais: percepção de professores. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica de Brasília, 2005. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991. SILVA. Renata Ribeiro. A percussão corporal no ensino de música na escola de educação básica. 2015. 43f. Monografia (Licenciatura em Música) – Universidade Federal de Uberlândia, 2015. SIMÃO, João Paulo. Música corporal e o corpo do som: um estudo dos processos de ensino da percussão corporal do Barbatuques. 2013. Dissertação (mestrado em educação) – Universidade Estadual de Campinas, 2013. SOUZA, Jusamara. Múltiplos espaços e novas demandas profissionais: reconfigurando o campo da Educação Musical. In: Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical, 10., 2001, Uberlândia. Anais... Uberlândia, 2001, p.85-92. SOUZA, Jusamara. Educação musical e práticas sociais. Revista da ABEM. Porto Alegre, n.10, p.7-12, mar, 2004.