a percepÇÃo do sagrado na educaÇÃo ambiental:...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO
A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA ABORDAGEM COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR
VITÓRIA 2007
MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO
A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA ABORDAGEM COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Martha Tristão.
VITÓRIA 2007
Ficha Catalográfica
D359p Del Maestro, Maria da Penha Kopernick. A percepção do sagrado na educação ambiental entrelaçamentos de uma abordagem complexa e transdisciplinar /Del Maestro, Maria da Penha Kopernick. - Vitória, 2007. 185 folhas : il. Orientadora: Martha Tristão Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação 1. Educação Ambiental. 2. Transdisciplinaridade. I. Tristão, Martha. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título CDU 37:504(815.2)
MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO
A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
ENTRELAÇAMENTOS DE UMA ABORDAGEM
COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Vitória, 21 de dezembro de 2007.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________ Profª. Drª. Martha Tristão
Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora
__________________________________________ Profª. Drª. Haydée Torres de Oliveira
Universidade Federal São Carlos
__________________________________________ Profª. Drª. Janete Magalhães Carvalho
Universidade Federal do Espírito Santo
__________________________________________ Prof. Dr. Hiran Pinel
Universidade Federal do Espírito Santo
AGRADECIMENTOS
Agradeço a DEUS pela criação. Sem Ele nenhuma invenção humana seria possível.
Agradeço aos amigos e companheiros de caminhada que direta/indiretamente contribuíram para a elaboração deste estudo, sem os quais esta pesquisa não teria alcançado sua (trans)intenção de abordagem do sagrado. A vocês dedico os resultados deste trabalho, uma possibilidade de aprendizagem do ser-comigo, com-o-outro e com-o-mundo pelos caminhos da Educação Ambiental. À Satya, Aryan e Raji – pela paciência de conviver com uma mestranda. À D. Anízia (in memoriam) pelas histórias noturnas que embalaram meu sono e meu futuro. À minha mãe, Lúcia, e a meu pai, Edu – pela oportunidade do estudo. Ao Maninho, a Olívia e a Lady – pela confiança fraternal que anima a vida. Ao Waltinho – pelas aventuras quixotescas de sempre. Ao Pejota – pelas experiências compartilhadas e pelo apoio constante. À Margarida Pinho Carpes, educadora de almas, cuja dedicação e amor, na seara cristã, marcou para sempre minha forma de ver o mundo e cujo exemplo de vida confere à minha práxis educativa novos significados a cada dia. Ao GESJ e GER – amigos e amigas com (a)os quais compartilho a esperança de uma Terra sem fronteiras geográficas, nem raciais, econômicas, sociais e religiosas, habitada por seres vivendo como irmãos. Aos estimados professores e trabalhadores do Programa de Pós-Graduação em Educação, em especial aos Srs. e Srªs. Prof. Dr. Hiran Pinel − por sua acolhida incondicional e generosa presença, ajudando-nos a compreender o universo fenomenológico ser-sendo ele mesmo um fenômeno de amabilidade. Prof. Drª. Janete Magalhães Carvalho − pela presença sempre descontraída e pela alegria contagiante. Profs. Drs. Edivanda e Faundes − pela abordagem educativa que foi fundamental nas descobertas investigativas. Prof. Drª. Denise Meirelles − pela atenção e colaboração preciosas. Aos colegas do Curso de Pós-Graduação. Em especial ao Grupo Pau de Chuva − pela alegria de caminharmos juntas. Andressa Lemos Fernandes − em grande parte responsável por eu ter chegado até aqui, minha irmã querida, de amizade incondicional, alegria constante, incentivo e apoio decisivos para a concretização deste sonho. Kátia Gonçalves − pela presença generosa e sempre atenta.
Às tradutoras Sumika e Aurora Cristina Ramis Fernandes − pela ajuda. Ao Sr. Júlio Martins e Mauro do Laboratório de áudio e vídeo da UFES − pelo trabalho realizado. Aos educadores ambientais − pela atuação anônima que fomenta nosso sentido de pertencimento, em especial, aos entrevistados – pela entrega e confiança que
tornou possível esse mergulho no universo tão pessoal do sagrado de cada um. À Coordenação de Educação ambiental do IEMA e da SEDU − pela autorização para a participação de suas educadoras, nesta pesquisa. Um agradecimento especial à Aparecida de Jesus Fernandes Oliveira (in memoriam) pelo incentivo de anos, que, sempre presente, potencializou este trabalho.
Em especial, à Prof.ª Drª. Martha Tristão, Nossa Martinha
Orientadora presente e comprometida, agradeço pela coragem de enfrentar junto comigo os desafios, pelas lições
compartilhadas, pelo apoio, pela confiança e pela experiência de ousarmos o entrelaçamento do sagrado e do profano numa pesquisa acadêmica, demonstração
viva da dimensão guerreira do seu ser-sendo educadora ambiental.
BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE Milton Nascimento
...E me fala de coisas bonitas Que eu acredito
Que não deixarão de existir Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor Pois não posso
Não devo Não quero
Viver como toda essa gente Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia, bola de gude O solidário não quer solidão...
RESUMO
Esse estudo procurou tocar a dimensão do sagrado ao mesmo tempo em que foi
sendo tocado por ele, rompendo o silêncio do tabu místico. Deu voz às percepções
dos sujeitos formadores em Educação Ambiental, buscando, por meio de uma
pesquisa fenomenológica, conhecer a rede de sentidos atribuídos ao sagrado e às
experiências a ele associadas. O trabalho no campo da percepção baseou-se na
fenomenologia de Merleau-Ponty cujos elementos perceptivos trabalhados foram:
idéias, instintos, linguagens, afetividades, imaginação e intuições presentes em
nosso modo de ser-no-mundo, avançando até os estudos sobre percepção
ambiental num esforço de compreender a relação existente entre esses campos do
saber. A problematização da dimensão do sagrado nos processos de formação em
Educação Ambiental teve por finalidade questionar a disjunção promovida pelo
paradigma da modernidade, confrontando seus pressupostos com as teorias
emergentes, em especial a teoria da complexidade. No que se refere ao campo da
educação, referenciou o pensamento pela abordagem transdisciplinar, considerando
que as questões investigadas poderão fomentar debates nos espaços de formação
em Educação e Educação Ambiental, buscando superar dogmatismos e
preconceitos no que se refere à esfera do imaterial, do invisível e do intangível. O
estudo esteve contextualizado nas discussões contemporâneas acerca da ética e da
sustentabilidade. A metodologia utilizou a realização de entrevistas não estruturadas
e encontros em grupos focais. Sem levantar a bandeira das verdades conclusivas e
absolutas, procurou compartilhar conhecimentos e percepções inacabadas e
provisórias, mas vivas e atuantes, impregnadas e impregnando de significados e
sentidos nossa vida e nosso fazer pedagógico.
Palavras-chave: Percepção do Sagrado. Educação Ambiental.
Transdisciplinaridade.
ABSTRACT
This research intended to touch the dimesion of the Sacrate being, also touched by
it, breaking the silence of mistic tabu, giving voice to the perception of the educators
of Enviromental Education trying, by means of a phenomenological research, to meet
the net of meanings attributed to the sacrate and to the experiences associated to it.
The work in the field of perception was based on the phenomenology of Merleau-
Ponty, in which the perceptive elements approached were: ideas, instincts, language,
afectiveness, imagination and intuitions present in our way of living in this world,
advancing up to the studies of Enviromental perception in an effort to understand the
existent relation in these areas of knowledge. The investigation about the Sacrate`s
dimension in the processes of formation in Enviromental Education has the goal to
pose a problem regarding the disjunction promoted by the paradigm of the modern
world fighting its assumptions with emergent theories, specially the theory of
complexity. Concerning to the field of education we take as reference the
transdisciplinar approach considering that the investigated questions shall create
debates in spaces of formation in Enviromental Education and Education itself,
looking for the overcoming of dogmas and prejudices in which refer to the immaterial,
invisible and intangible sphere. The study was contextualized in contemporary
discussions about ethics and sustainability. The methodology used was non
structured interviews and meetings with focus groups. Not pulling the flag of
conclusive and absolut truths, we intend to share provisory and unfinished, but live
and active, knowledges and perceptions, impregnated of and impregnating meanings
and feelings of our personal life and pedagogical activities.
Keywords: Sacrate perception. Enviromental education. Transdisciplinarity.
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO................................................................................................13
2 INTRODUÇÃO......................................................................................................16
3 TECENDO OS FIOS DO SAGRADO E DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL PELO
VIÉS DA PERCEPÇÃO E DO OLHAR FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL....23
3.1 DO SAGRADO AO HORIZONTE FENOMENOLÓGICO DA PERCEPÇÃO......28
3.2 BREVE INCURSÃO AO UNIVERSO TEÓRICO DA PERCEPÇÃO
AMBIENTAL........................................................................................................32
3.3 (TRANS)MODERNIDADE...................................................................................38
4 FIOS E REDES NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL...................................................48
4.1 DIMENSÕES E CORRENTES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUAS
ARTICULAÇÕES COM O SAGRADO................................................................50
4.2 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
SUSTENTABILIDADES E ÉTICA COMPLEXA.................................................. 72
5 CAMINHANTES E CAMINHOS............................................................................81
5.1 ENCONTROS E HOLOGRAMAS .....................................................................84
5.2 A DESCOBERTA DOS/NOS ENCONTROS: PRAZER E
APRENDIZAGEM................................................................................................89
5.3 ENTRE EMERGÊNCIAS E IMPOSIÇÕES....................................................... 100
6 (ENTRE)LAÇOS: NO DESVELAR DO SAGRADO A POÉTICA
DE SER COM O OUTRO...................................................................................104
6.1 DE PESQUISADORA A PESQUISADA E DE VOLTA À PESQUISADORA.....105
6.2 PRECONCEITO E MEDO, ZONAS DE RESISTÊNCIA AO SAGRADO...........108
6.3 NA RECURSIVIDADE DAS EMOÇÕES A DIMENSÃO ESTÉTICA DO
SAGRADO..........................................................................................................116
6.4 A DIMENSÃO POLÍTICA DO SAGRADO..........................................................119
6.5 NO ENTRELAÇAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO-SOCIAL-AMBIENTAL:
QUAL O LUGAR DO SAGRADO?.....................................................................127
6.6 DIMENSÃO ÉTICA E O SAGRADO: “A ÉTICA DEPENDE DE UMA
PERSPECTIVA DE HUMANIDADE”..................................................................131
7 (TRANS)CONCLUSÕES....................................................................................136
8 REFERÊNCIAS...................................................................................................142
ANEXOS.............................................................................................................. 149
ANEXO A − PROJETO CIRET- UNESCO............................................................. 150 ANEXO B − CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE........................................... 172 ANEXO C − TERMO DE CONSENTIMENTO............................................................... 176 ANEXO D − TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA SOCIEDADES
SUSTENTÁVEIS E RESPONSABILIDADE GLOBAL .......................178
13
1 APRESENTAÇÃO
A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos (NICOLESCU, 2005).
Muito tempo se passou desde que vivíamos agrupados em sociedades primitivas,
quando os níveis de organização permitiam uma vida simples e ligada à natureza.
Hoje vivemos, na nossa aldeia planetária, tempos complexos em todos os sentidos.
Enquanto alguns de nós desfrutamos do que há de mais avançado em
conhecimento e tecnologia, vivendo confortavelmente em cidades verticais; outros
ainda lutam... Seu objeto de disputa não é mais o fogo, como outrora, são objetos,
que se diversificaram porque os interesses se modificaram. Enquanto alguns lutam
para sobreviver; outros guerreiam para dominar e o que respinga por toda parte é
muita desigualdade. Fome e violência gritam a realidade de um modelo civilizatório
falido. Enquanto mudanças climáticas assombram o futuro da humanidade; a miséria
assombra o presente. As promessas da modernidade não foram cumpridas e as
novas tecnologias seguem alimentando a esperança de que, ao raiar de um belo dia,
suas soluções dêem conta dos problemas que criamos para nossa civilização.
Enquanto isso não acontece, vamos, forçosamente, nos auto-organizando em
grupos sociais cada vez mais complexos.
Essa auto-organização parece nos impelir a um movimento de demarcação de
novos nichos socioambientais fechados o que, subjetivamente, tende a incentivar a
formação de grupos sociais intolerantes entre si. Assim, vão se tornando mais e
mais complexos nossos modos de ser e ver o mundo, de ser e viver a natureza.
Como sociedade, vamos entrelaçando alegrias e dores, mentes e espíritos,
percepções e realidades, profanos e sagrados, trançando os fios do tecido social
numa intrincada rede de sentidos, valores e conhecimentos que se misturam todo o
tempo.
A pesquisa que agora apresentamos é uma parte inacabada dessa rede, cujas
pontas soltas abrem-na para a possibilidade de refazimento permanente, abrem-na
para novas tessituras e desmanches. Tentamos ao máximo permanecer fiel ao
desejo de conjunção dos fragmentos, procurando e propondo caminhos de
14
reconciliação da ciência com a vida, que é o sentido mesmo que vejo em ser-no-
mundo; sentido do qual minha história se encontra impregnada desde que me
recordo.
Ao encarar o desafio de um mestrado, mesmo sendo este um caminho de
desenvolvimento intelectual, não poderia percorrê-lo deixando para trás um pedaço
significativo do que sou. Uma parte tão difusa e impregnada da dimensão espiritual,
que afastá-la significaria ficar pela metade. Mas, também, uma parte de difícil
materialização. Em uma palavra simples e controversa, a parte difusa a que me
refiro é a fé. Não se trata da concepção religiosa de uma fé cega, mas da
possibilidade de se construir uma espiritualidade que não subjugue a razão e nem
por ela seja subjugada, uma espiritualidade sensível, capaz de confrontar a razão e
caminhar a seu lado num espaço de não resistência, em que, juntas, vão
descobrindo seu lugar, abrindo-se ao surgimento de um novo modo de ser-pensar a
si, o outro e a vida.
Definir um objeto de pesquisa nesse contexto foi demorado ou, melhor dizendo, a
definição se fez no instante em que li “O manifesto da transdisciplinaridade”.
Contudo, apesar da euforia custou-me aceitar o desafio. Assumir, num meio
estranho, repleto de obstáculos o ser-sendo da minha vida particular,
prioritariamente dedicada ao trabalho espiritual, parecia um sonho irrealizável;
articular razão e fé no contexto acadêmico pareceu um atrevimento paradoxal, ao
mesmo tempo, prematuro e ultrapassado.
Antes e durante o desenvolvimento do trabalho, uma sombra me perseguiu: sentia a
ousadia da proposta e me envergonhava por havê-la feito, considerando-me incapaz
dessa realização. Mas, ainda assim, havia algo que não sabia descrever (e ainda
não sei), que incendeia minhas idéias, algo que me impulsionava, uma inquietude,
uma insatisfação com o que aí está que é mais forte do que a razão e que só me
deixaria em paz se eu seguisse adiante.
Nunca estamos sozinhos e, assim, incentivada aqui, apoiada ali, orientada acolá,
caminhei, compreendendo que o maior desafio da complexidade é enfrentar-se a si
mesmo e o mar de nossas incertezas. Dentre as inúmeras vozes dos companheiros
15
de viagem, destaco as palavras de Maffesoli (1998), pois me ajudaram a despertar
do imobilismo ao reconhecer que “[...] é preciso saber desenvolver um pensamento
audacioso que seja capaz de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao
mesmo tempo, de compreender os processos de interação, de mestiçagem, de
interdependência que estão em ação nas sociedades complexas”.
O que está em ação nas sociedades complexas está também em ação frenética
dentro de nós, pois, como sistemas abertos, interagimos a todo momento com o
“mundo das idéias” e se esse, num minuto nos cerca, em seguida está em nós. E
por falar em interação, vou finalizando esta apresentação. Não sei se consegui
lançar meus pensamentos para além das fronteiras do invisível, mas sinto que valeu
a tentativa, por isso deixo aberto um convite para que você continue lendo este
trabalho e interagindo com seu tema. Ao chegar no tempo-espaço em que me
encontro agora, desejo compartilhar com todas e todos o sentimento de que
estamos vivendo no limiar de um novo tempo, com possibilidade de outros “níveis de
Realidade”.1 Nesse novo tempo nos encontramos em iguais condições àquelas das
sociedades primitivas do início da história de nossa civilização. De alguma forma, na
recursividade do movimento da vida, parece que estamos de volta ao começo.
Saudações fraternas
Penny
1A expressão “nível de Realidade”, escrita dessa maneira mesma, é abundantemente encontrada no texto de Nicolescu, de quem sigo o pensamento para a realização deste trabalho.
16
2 INTRODUÇÃO
O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional (NICOLESCU, 1999, p.161- 162).
Cada tempo traz consigo percepções, idéias e significações que lhe são peculiares.
A Modernidade, por exemplo, traz intrínseco um pensamento a partir do qual é
imprescindível separar, dissecar, reduzir e classificar objetos de estudo ou um
fenômeno, visando a conhecê-lo e compreendê-lo. De acordo com Santos, (2000, p.
62), no que se refere à natureza pensada na Modernidade, “[...] é total a separação
entre [esta] e o ser humano. A natureza é tão somente extensão e movimento; é
passiva, eterna, reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e
depois relacionar sob a forma de leis”.
Sabemos que esse modelo de racionalidade mecanicista teve origem com a
revolução científica do século XVI e que, ao longo de seu império, menosprezou e
alijou do universo das ciências a diversidade das dimensões humanas, com especial
negação das dimensões estética e espiritual. Para afirmar a superioridade da razão
instrumental, foi necessário subjugar toda expressão que se lhe opunha. Foi assim
que perderam lugar as formas de saber construídas fora da lógica clássica e dos
princípios racionais. Tudo que esteve ligado à ordem do subjetivo, da crença, do
imaterial foi/é desconsiderado como saber.
Estreitamente vinculado às esferas de poder, esse modelo agregou força e
hegemonia, mas nunca foi homogêneo. Mesmo em meio à sua presença asfixiante,
outros pensamentos não-lineares mantiveram-se vivos ao longo da história e/ou
emergiram no início do século XX, como resultado mesmo do próprio e insuficiente
saber-fazer científico moderno, que, não sendo capaz de atender às necessidades
humanas, deixou brechas, dando os primeiros sinais da iminente crise
epistemológica do paradigma dominante. Em nosso estudo, utilizamos o sentido de
paradigma proposto por Capra (1982) que deriva do grego paradeigma, “padrão”, e
o consideramos como o conjunto das percepções, pensamentos, sentimentos e
valores, que formam uma determinada visão da realidade.
17
Não se pode, portanto, desconsiderar que: questionar a Modernidade ocidental é
questionar o poder engendrado nas suas formulações teóricas; romper com a razão
instrumental significa romper com as formas de poder dominantes; colocar em xeque
o paradigma da Modernidade é também colocar em xeque o poder hegemônico. Isso
não deve representar, necessariamente, um retorno ao domínio das ideologias
religiosas, mas, talvez, o momento psicológico de abdicar da rigidez e do rigor da
racionalidade instrumental em favor de uma flexibilidade capaz de derrubar os
fundamentalismos e acolher novas formas de racionalidade e/ou não racionalidade.
Concordamos com Bateson (1994, p. 63), ao dizer que “[...] com toda sencillez diré
que rechazo y temo estos dos extremos de opinión y que considero ambos extremos
epistemológicamente ingênuos, epistemológicamente errôneos y politicamente
peligrosos”.
Considerando as inúmeras lacunas deixadas pelas promessas de igualdade,
liberdade, justiça e domínio da natureza, não cumpridas pela Modernidade, num
movimento de ressurgência,2 o “paradigma emergente”,3 destemido, ousado e
inovador vem estimulando um outro modo de ser e pensar a vida. Também vem
contribuindo como adubo para emergência desse paradigma a diversidade de
saberes inconclusivos que não deram suporte para enfrentamento dos problemas
sociais contemporâneos, dentre os quais salientamos aqueles envolvendo
sociedade e natureza.
Todas as áreas do conhecimento humano encontram-se fortemente influenciadas
pelas diversas mudanças socioambientais que vêm ocorrendo em alta velocidade
nessa virada de século. Com a Educação Ambiental não foi diferente, especialmente
porque “[...] a Educação Ambiental tem sido vinculada em termos teórico-práticos à
reformulação de valores éticos, individuais e coletivos" (TRISTÃO, 2004, p. 39).
Falar de ética e refletir sobre valores implica abordar componentes da percepção
humana, determinantes das atitudes de comprometimento, engajamento,
conservação e degradação ambiental, que não são nem elementos de síntese do
intelecto, nem resposta neurológica a estímulos externos. Esses componentes estão
2 Ressurgência é um movimento vertical da água do mar, provocado pela divergência de correntes superficiais. Nesse movimento, a água carrega consigo nutrientes assentados no fundo dos oceanos, tornando as águas “mais nutritivas”. 3 Santos (2000 p. 74).
18
em evidência neste momento crítico que vivemos.
Sendo assim, sintonizada com a abertura que proporciona o paradigma emergente,
desejamos materializar, na forma de produção acadêmica, elementos perceptivos
que se manifestam como idéias, sentidos, instintos, linguagens, afetividades,
imaginação e intuições que envolvem, alimentam e limitam nosso modo de ser-no-
mundo. Contudo, considerando o cuidado imprescindível com o lugar de onde
falamos, procuraremos não perder de vista o rigor próprio de um estudo intelectual
criterioso que aqui procurou constituir-se com auxílio de bases conceituais
reconhecidas e aceitas no movimento da transdisciplinaridade, acreditando ser
possível a articulação entre diferentes racionalidades4 no contexto da pesquisa
científica.
O debate atual da Educação Ambiental é bastante variado e abre possibilidade para
inúmeras incursões teórico-metodológicas, facilitando o desvendar de novos
caminhos que atendam à multiplicidade dos desafios socioambientais que estamos
enfrentando. Esse contexto diverso favorece a abordagem do sagrado entendido
tanto na sua percepção de dimensão concreta, quanto na sua versão de expressão
simbólica, decorrente das culturas humanas, mas, em qualquer dos casos, presente
na vida e, portanto, legitimamente integrada às abordagens educativas, de toda
natureza.
São estruturais as mudanças que surgem no pensamento científico contemporâneo
e estas apontam possibilidades de reintegração da complexidade do pensar-fazer-
ser humano. Esse clima de mudança paradigmática suscita diferentes inquietações
e interpretações. Abrem-se portas, que indicam novos caminhos. Em educação, os
discursos enfatizam a importância da formação de sujeitos politicamente atuantes,
sensíveis, que respeitem as diversidades e outras formas de ser, viver, fazer e
conhecer no mundo. Diante dessas portas abertas, colocamo-nos algumas
questões: será que, no movimento de sensibilização do sujeito, ou enfatizando os
discursos e práticas em torno de diferentes racionalidades, não estaríamos, ainda,
4 Baseamos a noção de racionalidade no pensamento de Edgar Morin (1998, p. 165), para quem a
racionalidade difere da racionalização por aquela “[...] estar aberta ao que resiste à lógica e mantém o diálogo com o real [enquanto essa] integra à força o real na lógica do sistema e crê, então, possuí-lo”.
19
perpetuando um pensamento reducionista? Seria o sagrado uma forma de
racionalidade? Ou seria ele mesmo uma não racionalidade a ser ainda legitimada
pela razão? Em Educação Ambiental, quando privilegiamos e defendemos ora a
discussão em torno da dimensão estética, ora da dimensão ética ou política, não
estaríamos apenas reproduzindo o movimento clássico de disjunção do mundo?
É claro que compreendemos e consideramos legítimos e justos os motivos para
privilegiar tais dimensões. Compartilhamos mesmo, em alguns momentos, desse
movimento. Longe, portanto, de nosso pensamento pretender em alguma instância
negar sua relevância, mas também não podemos deixar de manifestar as
inquietações que estão presentes e que são fruto de vivência e reflexão nas e sobre
nossas práticas no âmbito da Educação e da Educação Ambiental. Com essas
indagações, pretendemos apenas agregar ao debate teórico mais alguns fragmentos
que percebemos flutuar no microuniverso do conhecimento humano, ainda
fortemente influenciado pelo sentido de dissociação das idéias. Nas palavras de
Maffesoli (1998, p. 146), as “[...] diversas formas de sincretismo, a empolgação pelas
filosofias espiritualistas, o recurso aos diversos ‘Orientes míticos’ [são] fenômenos
sociais que, pelo fato de existirem, merecem atenção”.
Nesse momento em que nos preocupamos com a composição de parâmetros de
dignidade humana e com a defesa da vida, é bastante significativo estender as
mãos, repletas de diferenças, na direção uns dos outros e caminhar pelos atalhos
labirínticos de um espaço cognitivo complexo, promovendo encontros; transpondo
os muros da razão e, da emoção e num movimento transgressor, alçar vôo em
direção ao espiritual, ao imaterial, adentrar nesse território controverso, buscando
recursos intelectivos e vivenciais para um intercâmbio de sentidos que nos aproxime
uns dos outros como num abraço, para além dos nossos dogmatismos tão
concretos.
20
A mão estendida é o início do abraço, isto é, o ponto de partida para o pensamento complexo, o marco inaugural do longo processo de busca da espiritualidade [...]. Estou falando de algo que possa livrar-nos de um padrão de vida segundo o qual em muitos casos a palavra é separada do real, a justiça se preocupa menos com o sofrimento dos homens do que com a letra da lei, e esta, em muitos casos, busca verdades que pouco ou nada têm a ver com o cotidiano das pessoas. (MARIOTTI, apud D’AMBROSIO, 2001, p. 115).
Esta pesquisa procura tocar a dimensão do sagrado ao mesmo tempo em que vai
sendo tocada por ela, rompendo o silêncio do tabu místico, procurando dar voz aos
sujeitos formadores em Educação Ambiental, ampliando a rede de sentidos presente
nas diversas percepções do sagrado e as experiências a ele associadas.
Para percorrer esse caminho, referenciamo-nos pelo pensamento transdisciplinar do
sagrado, enunciado por Nicolescu como uma “zona de não resistência”. Sem a
rigidez da lógica moderna, lançamo-nos em busca das percepções do sagrado entre
aqueles que atuam na formação em Educação Ambiental. Consideramos que as
questões investigadas, pertencentes à esfera do imaterial, invisível e intangível,
poderão fomentar debates nos espaços de formação em Educação e Educação
Ambiental, contribuindo com esse universo dinâmico e em permanente
ressignificação, de maneira não apenas conceitual e muito menos dogmática.
Cores e fios: no Capítulo 1º, procuramos ampliar nossa compreensão acerca do
sagrado, buscando discuti-lo a partir de referenciais teóricos, estabelecendo, assim,
marcos conceituais para este estudo, investigando algumas das suas significações
no universo acadêmico. Entendemos que o sagrado pode ser percebido como
experiência simbólica e concreta por diferentes sujeitos, constituindo diferentes
percepções que Nicolescu cita como diferentes níveis de percepção e os associa a
diferentes níveis de Realidade. Essa ressignificação é fundamental, pois representa
a conexão entre um caminho linear e outro, complexo. Sendo assim e considerando
a profunda subjetividade do tema, procuramos também, nesse capítulo, analisar o
conceito de percepção na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999).
Essa abordagem surpreendeu-nos por mostrar, tanto quanto a transdisciplinaridade,
que está, ao mesmo tempo, entre, através e além dos conhecimentos apresentados
pela ciência e pela realidade vivida e sentida do senso comum. Os conhecimentos
21
aqui foram fios multicores que docilmente se lançaram na tessitura de uma
complexa rede de sentidos.
Partindo da percepção fenomenológica, tivemos um breve olhar na direção da
percepção ambiental cuja recorrência em pesquisas de Educação Ambiental
desperta atenção. Interessou-nos entender a existência de conexões entre esse
universo conceitual e o contexto da percepção fenomenológica de Merleau-Ponty na
tentativa de analisar suas articulações e implicações com o ser-sendo-no-mundo-
educador(a)-ambiental.
Um fio multicor: na seqüência desse percurso teórico, passamos ao Capítulo 2º,
quando procuramos mergulhar no universo da Educação Ambiental propriamente
dita, discutindo a dinâmica de evolução dos seus conceitos, dimensões e correntes,
escavando o terreno em busca das expressões teóricas do sagrado e
contextualizando nossa discussão na perspectiva de olhar o mundo pela ótica da
sustentabilidade planetária e na compreensão de uma ética complexa. Com o
objetivo de situar a pesquisa nessa ótica complexa e transdisciplinar, apresentamos,
ao final do capítulo, algumas considerações acerca dos referenciais teóricos e suas
possíveis relações com a idéia de ruptura epistemológica, que nos permitiram
discutir o paradigma emergente para além de uma concepção espaço-temporal pós-
moderna.
O tear: as escolhas metodológicas apresentadas no Capítulo 3º pretenderam
desvelar o caminho percorrido de maneira que pudéssemos, ao mesmo tempo,
viver, contar e compartilhar incertezas, medos, descobertas, desnudando, dentro do
que nos foi possível, o ser pesquisador que escolhe e é escolhido, que percorre um
caminho e entra por atalhos labirínticos ao longo da sua pesquisa, impregnando de
sentido sua caminhada, conectando saberes, influenciando e sendo influenciado
pelo mundo que o cerca. Além de entrevistas não estruturadas, realizamos
encontros em grupos focais. Nesses, o sagrado desvelou-se como a poética de ser
com o outro. Ali nos sentimos estrangeiros no território desconhecido da zona de
não resistência, cujas convergências e divergências encontraram um segundo plano
de existir, deixando emergir em primeiro plano um sentimento de conexão que
sugeriu profundo encantamento.
22
A rede: mesmo permitindo que aos resultados se misturassem às idéias na
construção do texto final, algumas percepções foram reunidas e entrelaçadas entre
si, procurando tecer uma rede de sentidos que dialogasse com as dimensões
consideradas pela Educação Ambiental resultando, assim,
no Capítulo 4º.
Como não poderia deixar de ser, já que desde o início nossa proposta não foi
levantar a bandeira das verdades absolutas, procuramos, no quinto e último capítulo,
compartilhar conhecimentos e percepções que notamos estarem presentes em nós
e no espaço-tempo de encerramento desta etapa. Percepções e conhecimentos que
denunciamos inacabados e provisórios, mas vivos e atuantes, impregnados e
impregnando de significados e sentidos nossa vida.
23
3 TECENDO OS FIOS DO SAGRADO E DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL PELO VIÉS DA PERCEPÇÃO E DO OLHAR FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL
O surgimento de uma cultura transdisciplinar, que poderia contribuir para eliminar as tensões que ameaçam a vida em nosso planeta, é impossível sem um novo tipo de educação que leve em conta todas as dimensões do ser humano (NICOLESCU, 2005).
O que é “o sagrado”?
A intenção desta pesquisa foi problematizar a disjunção clássica das dimensões
humanas na formação em Educação Ambiental, especialmente no que se refere ao
sagrado. Mas o que seria “o sagrado”? No decorrer da pesquisa, encontramos
muitos ecos a essa pergunta, por isso escolhemos começar por um deles: “Eu queria
falar do seu título, em relação a isso. O quê que você tá definindo, pra eles? A primeira
pergunta talvez que eles façam na tua banca. Como é que você define o sagrado?”
(Maria).5
O título da pesquisa, até então provisório, apenas materializava um pensamento de
(re)ligação, um desejo de conjunção. A ousadia de investigar se e como as
percepções, muitas vezes de formulações dogmáticas, podem existir num outro
nível, sem obrigatoriamente se constituírem como categorias fechadas e, desse
modo, tornarem-se permeáveis às emergências. Não foram incomuns as perguntas
curiosas e os comentários sobre nossas próprias percepções. Para responder a
elas, recorremos aos versos de Guedes e Bastos (1978), “[...] tudo o que move é
sagrado e remove as montanhas com todo cuidado meu amor [...]”. Ainda na mesma
empolgação, Maria continua:
Vou fazer a última pergunta, depois vou ficar quietinha [risos]. Eu tô tão interessada... eu... vamos supor, eu sou atéia, não acredito em nada, não teria o sagrado em mim ou poderia ter dentro de uma interpretação, que eu sou assim, mas eu também quero a humanidade boa, eu quero transformar a natureza [...].
Se considerado como uma zona de não resistência, o sagrado desvincula-se de sua
tendência dogmática, passando a figurar como um espaço-tempo de encontro
5 Nome fictício adotado para preservar a identidade dos educadores entrevistados, conforme descrito no Capítulo 2º: Caminhantes e caminhos.
24
consigo, com o outro, com o mundo. Invertendo a lógica, não nos apoderamos
desses espaços-tempos, mas somos apoderados por eles na medida em que nos
permitimos viver esse lugar de não resistência.
Maria é doutora, pesquisadora, atuante na área de Educação Ambiental e, portanto,
uma legítima representante do saber científico. Por isso seu interesse foi inesperado
e surpreendente. Intrigou-nos saber por que perguntava aquilo, mas, com medo de
que um questionamento naquele instante quebrasse o encanto e a espontaneidade
das indagações, apenas nos deixamos conduzir pelo fluxo de seu interesse.
Tínhamos um referencial, mas não uma resposta. Estávamos, como ela, buscando
respostas e, embora nos sentindo, até aquele momento, atrevida por abordar tal
assunto, identificamo-nos com sua curiosidade e percebemos que, por baixo dos
ícones6 sociais, nos reconhecemos nus e iguais.
Re-conhecer implica conhecer o que há no outro de mim e o que há de mim no outro. E, portanto que para além da diferença, há entre nós também continuidades, campos de referência mútua, de alianças e de similitudes que nos circunscrevem como semelhantes. Conhecer e re-conhecer é campo da ética (SATO; PASSOS, 2006, p. 28).
Fundados na ética de ser com o outro, reconhecemos que, durante muitos séculos,
vivemos instalados em fragmentos flutuantes de um saber cartesiano e, agora,
desvanecidas as ilusões e certezas da Modernidade, diante da imensidão de um
universo desconhecido, nos prostramos confusos, assustados, mas não menos
instigados pela aventura de conhecer. Em minhas-nossas interrogações, eu e a
entrevistada nos encontramos solidárias nesse desejo de saber, um desejo
sagrado porque livre de resistências. Aquela doutora, profissionalmente experiente
e com uma estrada de vida percorrida, pareceu-me uma criança naquela intrigante
fase dos porquês. Estivemos ali, solidárias e, por um lapso de tempo, conectadas
pelo sagrado.
Nas abordagens do sagrado, encontradas ao longo deste estudo, identificamos uma
ampla variedade de significações e sentidos. No campo da filosofia, Chauì (2005, p.
6 Ìcone aqui se refere ao signo. Segundo Santaella (1996, p. 59), “[...] o ícone representa o objeto por meio de qualidades que ele próprio possui, exista ou não o objeto que ele representa”.
25
252-253) sustenta que “[...] o sagrado é a experiência da presença de uma potência
ou de uma força sobrenatural que habita algum ser [...] a sacralidade introduz uma
ruptura entre natural e sobrenatural”. Já para Grün (apud CRUZ; COELHO, 2003, p.
46), “[...] o Sagrado pode ser o que possibilita a aproximação com Deus”. Por outro
lado, para o biólogo Gregory Bateson, a concepção de sagrado segue uma gênese
mais complexa do pensamento. A co-autora e também sua filha afirma que “Gregory
quiere que creamos em lo sagrado, em la contextura integrada del proceso mental
que envuelve todas nuestras vidas [...]” (BATESON; BATESON, 1990, p. 198). Em
outras palavras, diria que Bateson considera como sagrado o padrão que liga todas
as criaturas vivas, o que ele chama de “o padrão que liga ou metapadrão” e que
constitui sua tese fundamental.
O historiador romeno Eliade (1956, p. 25), sobre o conceito do sagrado, afirma que
“[...] a primeira definição que pode dar-se do sagrado, é que ele se opõe ao profano”.
Sagrado e profano seriam, então, duas modalidades de ser no mundo. Ele descreve
as modalidades do sagrado e afirma que, “[...] o homo reoligiosus7 crê sempre que
existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que se
manifesta neste mundo, e, por este facto, o santifica e o torna real” (p. 209). O autor
refere-se ao sagrado como: mysterium tremendum e cria o termo hierofania,
originado de hierofani que, segundo Hellern (2000, p. 18), é uma “[...] palavra grega
que significa, literalmente, ‘algo sagrado está se revelando para nós’”. Esse mesmo
autor, por sua vez, resgata da obra sobre Psicologia da religião: “A idéia do
sagrado”, de Rudolf Otto, outra abordagem do sagrado como sendo “Das ganz
Andere, ‘o inteiramente outro’, ou seja, aquilo que é totalmente diferente de tudo o
mais e que, portanto, não pode ser descrito em termos comuns” (HELLERN, 2000.
p. 18).
Quem fala, fala do que percebe e toda percepção encontra-se embebida de uma
visão de mundo. Sendo assim, olhando o sagrado pelas lentes dos filósofos,
biólogos e historiadores, os sentidos atribuídos variam, pois estão sujeitos a
interpretações vinculadas aos seus contextos teóricos específicos. Como esclarece
Tristão (2004, p. 174), “A definição de algo é uma decisão científica, o que um
7 O autor identifica o homo religiosus como o homem que aceita a sacralidade do mundo e assume
para si pressupostos e dimensões existenciais religiosas, como é o caso das sociedades tradicionais.
26
entende por uma coisa pode ser entendido com outro sentido por outra pessoa. É
uma questão de precisão teórica” e, sendo assim, buscamos, sempre que
necessário, o dicionário da língua portuguesa para referenciar o significado de
algumas palavras utilizadas neste estudo.
Buscar o significado das palavras no dicionário leva a compreender as relações
estabelecidas entre o grupo, suas redes e representações. Não interessa o
conteúdo, mas os sentidos produzidos (TRISTÃO, 2004). Mas, então, o que seriam
os sentidos? A produção de sentidos é social, ela se dá no encontro entre as
pessoas que, pelo uso da linguagem, estabelecem trocas e diálogos, quando vozes
são confrontadas, propiciando a compreensão de diferentes sentidos. No
entendimento de Spink e Medrado (1999, p. 41):
[...] o sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.
Para nós o sentido em questão é sobre o sagrado. O vocábulo sagrado está
traduzido em Ferreira (1986, p. 1536) da seguinte forma:
{Do lat. Sacratu.} Adj. 1. que se sagrou ou que recebeu a consagração. 2. Concernente às coisas divinas, à religião, aos ritos ou ao culto; sacro, santo. 3. Inviolável, puríssimo, santo, sacrossanto: sagrado amor. 4. Profundamente respeitável; venerável, santo. 5. Que não deve ser tocado, infringido, violado: os sagrados direitos do homem. 6. A que não se pode faltar; que não se pode deixar de cumprir: dever sagrado [...].
Em outros autores estudados, não encontramos referência direta a uma discussão
conceitual sobre o sagrado, contudo, numa abordagem que consideramos indireta,
ou do sentido que percebemos, alguns pensamentos compõem ou são compostos
pela idéia do sagrado, como é o caso de Ubiratan D’ Ambrosio (2001, p.110), por
exemplo, referindo-se ao horizonte espiritual, quando afirma que, “[...] na resposta à
pulsão de transcendência [o homem] incursiona no passado e no futuro,
desenvolvendo mitos e artes, religiões e ciências”. Essa pulsão de transcendência
de que fala o autor parece uma percepção relevante e que não aliena seu
27
pensamento a uma lógica fragmentária. Já o sociólogo Maffesoli (1998 p. 145) indica
que “[...] o fenômeno místico [...] repousa, essencialmente, sobre uma percepção
direta e intuitiva do si-mesmo do mundo e do divino”. Dessa forma, o autor relaciona
o sagrado com o místico.
Podemos notar que, para Grun e Maffesoli, a definição do sagrado implica a
apresentação de uma noção de Deus, enquanto Chauí nomeia uma força que habita
algum ser, sem, contudo, nomeá-lo, mas estabelecendo, pela idéia de ruptura, um
par de contraditórios: natural e sobrenatural. A noção do sagrado encontra uma
similitude inicial entre os pensamentos de Bateson e Mafesolli que não explicitam a
existência de forças sobrenaturais externas, nem de Deus. Não se percebe, nesses
autores, oposição ao conceito de hierofania proposto por Eliade, pois essa idéia
parece ser mesmo anterior àquelas, uma espécie de substrato teórico em que as
noções do sagrado foram, ao longo do tempo, buscando inspiração para se
desenvolver. No contexto da transdisiciplinaridade, a concepção de Nicolescu e
também aquela que pretendemos fazer atravessar todo o ambiente desta pesquisa,
aproximam-se do princípio de metapadrão proposto por Bateson. Vejamos que, para
Nicolescu (2002, p. 59), o sagrado “[...] é aquilo que nos conecta. O sagrado liga,
como indica a raiz etimológica da palavra ‘religião’ (religare – ‘tornar a ligar’), porém
essa habilidade não é atributo de uma religião”.
O sagrado, portanto, pode fundar a religiosidade ou, ainda, a instituição religiosa,
mas, no caminho investigativo que percorremos, ele não a representa e nem pode
ser tomado a conta de seu sinônimo. Por esse breve olhar sobre os sentidos do
sagrado, notamos que a palavra é polissêmica e, subsidiada pela teoria da
complexidade e pela transdisciplinaridade, concluímos ser de relevante importância
ampliar a noção de realidade, compreendendo, como Nicolescu, a coexistência de
vários e diferentes níveis de Realidade, alguns dos quais constituídos por diferentes
graus de materialidade. “A matéria está associada a um complexo
substância/energia/informação/espaço-tempo. O grau de materialidade quântica é,
na verdade, diferente do grau de materialidade considerado pela física clássica”
(NICOLESCU, 1999, p.70).
28
Pela abordagem do sagrado, estamos falando em diferentes graus de materialidade,
estamos propondo a transposição dos muros e fronteiras dimensionais erigidos
pelas leis da Física moderna, visando a ampliar nossos espaços de circulação
cognitiva e abrindo caminhos para aumentar nossa percepção até outros níveis de
Realidade com os quais possamos dialogar sem a arrogância de um saber definitivo
ou a ingenuidade de uma fé irracional.
3.1 DO SAGRADO AO HORIZONTE FENOMENOLÓGICO DA PERCEPÇÂO
O estudo da percepção no contexto desta pesquisa está fundamentado a partir do
referencial teórico das vertentes do pensamento filosófico ocidental, encontrando-se
identificado com a fenomenologia de Merleau-Ponty, com raízes no realismo
aristotélico, no que se refere à visão de um real fora de nós e que parte do princípio
de que tudo que existe é matéria ou depende da matéria para existir. Um real fora
de nós, oposto daquele defendiam os idealistas para quem, no começo de tudo,
estão as idéias e tudo que há é derivação de um real verdadeiro. O mundo real é
produzido pelas idéias e, desse modo, a realidade começaria dentro da mente e não
fora dela. Vejamos como se coloca Maurice Merleau-Ponty (1990), ao apresentar à
sociedade suas teorias sobre a percepção e suas conseqüências filosóficas na
discussão que se segue:
Bréhier: [...] O senhor toma esse idealismo platônico e segue precisamente o caminho inverso: tenta reintegrá-lo na percepção e creio que é aí que se apresentam todas as dificuldades, propriamente falando (p. 68). Merleau-Ponty: O senhor diz que Platão procurou deixar as percepções pelas idéias. Poder-se-ia também dizer que ele colocou movimento e vida nas idéias, como estão no mundo – e o fez quebrando a lógica da identidade, mostrando que as idéias se transformam em seu contrário (p. 70-71).
Considerando a percepção do sagrado como sujeitobjeto desta pesquisa, não
poderíamos, em certa medida, deixar de confrontar ao pensamento merleau-
pontiano o idealismo platônico bergsoniano, cuja percepção parece ser construída
considerando a intuição. Para Bérgson, a percepção se dá pela consciência que se
constitui simultaneamente pela inteligência, pela intuição e pelo instinto.
29
Intuição e inteligência representam duas direções opostas ao trabalho consciente...Uma humanidade completa e perfeita seria aquela em que estas duas formas da atividade consciente alcançassem o seu pleno desenvolvimento (BERGSON, 1999)
Na concepção bergsoniana, a inteligência só capta o que é material, ficando, por
assim dizer, no plano da racionalização o que encontra correspondência no sentido
que damos à racionalidade instrumental.8 Quando Bergson agrega o élan vital, ao
que ele chama de intuição, como fundamento da percepção e componente do ato da
consciência, parece fazer uma clara opção pelo idealismo, promovendo uma
subjetivação do conhecimento, enfrentando o dualismo “sensibilidade e
entendimento” e reconhecendo que “[...] idealismo e materialismo são, portanto, os
dois pólos entre os quais esse tipo de dualismo irá oscilar sempre [...]” (BERGSON,
1999, p. 186).
Também no sentido de enfrentar e romper com o dualismo cartesiano, no que se
refere à consciência, Gregory Bateson traz, com seu pensamento sobre o sagrado,
uma contribuição que consideramos fundamental na articulação com a idéia da
“zona-de-não resistência”, por meio da qual seria possível repensar novos caminhos
para uma abordagem científica “pós-moderna”. Bateson, em sua obra “El temor de
los angeles”, critica o dualismo da lógica clássica e afirma a necessidade de
aceitação do sagrado pela via do equilíbrio que descarta o fundamentalismo
materialista e o sobrenatural.
Para mi, el dualismo cartesiano constituyó una enorme barrera; talvez interese al lector que le cuente cómo llegué a una especie de monismo – la convicción de que espiritu y naturaleza forman una necesaria unidad en la que no existe un espiritu separado del cuerpo ni un Dios separado de su creación – y cómo aprendi asi a mirar con nuevos ojos el mundo integrado (BATESON; BATESON, 1994, p. 25).
No sistema filosófico ocidental, o idealismo parece propor uma redução da
existência ao pensamento, enquanto para o realismo, ao contrário, os objetos
existem independentes do pensamento. O idealismo reflete o interior e não o
8 A racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e tecnologia é uma das três lógicas de racionalidade definidas por Max Weber (SANTOS, 2000) e diz respeito a uma visão de mundo objetivada por princípios de eficiência e eficácia que, com o movimento da revolução industrial, tornaram-se hegemônicos na sociedade ocidental.
30
mundo exterior enquanto o ponto de partida do realismo é a matéria, que forma
o mundo e nos é revelada pela percepção.
Segundo Marin (2003, p. 41), podemos notar certa semelhança entre o pensamento
de Merleau-Ponty e o de Bergson, no que se refere à “[...] percepção de um ser
inserido no mundo percebido [...] na aceitação de uma influência de relações centrais
na sensação periférica [...] e nos conceitos de saber latente e síntese reflexiva [de
um] e de instinto e inteligência [do outro]”.
Também podem ser notadas diferenças entre o pensamento de Merleau-Ponty e o
de Bérgson, quando este se fundamenta pelo espiritualismo e dinamicidade
enquanto para aquele o fundamento é racionalista e estático, caracterizando mesmo
uma oposição de pensamento. O racionalismo e o cientificismo do pensamento
moderno, em certa medida presente no pensamento merleau-pontiano, não
reconhece como legítimo o processo supra-intelectual (MARIN, 2003).
Para superar a visão dicotômica do que se circunscreve no âmbito da subjetividade
e da objetividade, optamos por considerar, como Ribeiro Jr. (1991, p. 83), que “[...] é
na subjetividade da consciência que se encontra a objetividade do fenômeno”,
havendo, entre elas, objetividade e subjetividade, um fluxo contínuo de ações que
não nos permitiria delimitar uma da outra, como se acredita estarem fechadas nos
territórios demarcados pela verdade cartesiana.
A fenomenologia de Merleau-Ponty é considerada por Martins e Farinha (1984, p.
56) “[...] uma filosofia que recoloca as essências na existência” o que, por si, já
revela uma diferença conceitual marcante nesse autor, que demonstra, ao longo de
sua obra, uma visão transgressora do pensamento de sua época.
Se, por um lado, Merleau-Ponty tem como ponto de partida, para o seu debate
teórico, o epoché de Husserl, a ele não permanece aprisionado. No sentido original
do grego, epoché significa “suspensão do julgamento”. Para a fenomenologia de
Husserl, epoché representa uma separação necessária do mundo, um estado de
“suspensão do mundo natural”, uma “redução fenomenológica” (também
31
denominada “abstenção”, “enquadramento” ou “desconexão”) que pode desconectar
a experiência vivida de sua objetividade dando acesso às suas essências imanentes
(MARTINS, 1984).
Como característica fundamental do método fenomenológico, o epoché representa a
necessidade de um envolvimento existencial com a coisa mesma. Contudo, apesar
da influência husserliana, Merleau-Ponty compreende que não existe percepção por
si mesma e afirma que é por meio do corpo que se dá a compreensão em relação ao
mundo percebido. Para ele, o “[...] corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo
sem precisar passar por representações ou subordinar-se a uma função simbólica
ou objetivante” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 202-203).
Ao envolvimento existencial fenomenológico segue-se o distanciamento reflexivo,
cujo propósito é capturar, na subjetividade da vivência, o significado da experiência
vivida. Mesmo impregnado pela produção husserliana, para Merleau-Ponty, o
objetivo dessa reflexão:
[...] não é permanecer com a estrutura da filosofia da dúvida de Descartes [...] mas ir ao âmago da experiência incorporada, que é o que a percepção é. Colocando-se diretamente contra a abstração e o vazio do cogito cartesiano – ‘Penso, logo existo’ - , Merleau-Ponty mostra que ser um corpo é estar atado a um certo mundo (LECHE, 2002, p. 44).
Há, portanto, no pensamento merleau-pontyano um rompimento com a dicotomia
essência-existência, mente-corpo e ele propõe a explicação do sentido das
estruturas do real, entendidas como totalidades concretas, dinâmicas, porque
dialéticas e articuladas pelo sentido imanente dos fatos.
Essa visão é a que mais se aproxima da concepção de percepção que pretendemos
abordar como fenômeno complexo inerente a um sujeito encarnado, como propõe
Ponty, quando afirma: “[...] a mente que percebe é uma mente encarnada”
(MERLEAU-PONTY, apud LECHTE, 2003, p. 44). Por seu conceito de percepção,
entendendo a realidade como um sistema que relaciona as idéias figura-fundo,
admitindo relações de causa-efeito, poderíamos identificar esta pesquisa com a
corrente filosófica estruturalista. Entretanto, em seu posicionamento claramente
32
contrário ao engessamento cartesiano, notamos que as idéias merleau-pontyanas
vão ganhando novas possibilidades conceituais cujas relações vão além da relação
causal, identificando-se com uma fenomenologia existencialista. Por conseguinte
nos reconhecemos e situamos nossa pesquisa fenomenológica mais próxima dessa
vertente teórica.
No que diz respeito a pesquisas relacionando Percepção e Educação Ambiental, é
possível verificar que existe uma larga amplitude conceitual sobre a qual nos
interessa tecer algumas considerações devido à grande ocorrência de referências
em pesquisas acadêmicas. De acordo com Reigota (2007, p.50), sobre o Estado da
arte9 da Pesquisa em Educação Ambiental no Brasil, “[...] podemos identificar
predomínio de trabalhos que procuram analisar as percepções, signos, significados,
representações, representações sociais, concepções e conceitos prévios de grupos
específicos”.
Ocorre que, ao tomar conhecimento dessa realidade, surge uma dúvida: de que
percepção estariam falando os trabalhos em questão? Estariam essas noções de
percepção fundamentadas na Filosofia, na Psicologia ou delas seriam
desdobramentos conceituais ressignificados pela prática educativa?
3.2 BREVE INCURSÃO AO UNIVERSO TEÓRICO DA PERCEPÇÃO AMBIENTAL
Quando procuramos compreender, do ponto de vista da precisão científica,
objetivamente, o dicionário (FERREIRA, 1986) apresenta a etimologia da palavra
percepção, indicando sua origem do latim: (perceptione) que, por sua vez, deriva do
latim: percipere, cuja tradução literal é apoderar-se de, podendo seus significados
ser assim definidos: a) adquirir conhecimento por meio dos sentidos; b) formar idéia
de, abranger com a inteligência, entender, compreender; c) conhecer, distinguir,
notar; d) ouvir; e) ver bem, ver longe, divisar enxergar.
Dessa observação decorre a idéia de que cada sujeito percebe, conceitua, e
9 A expressão utilizada refere-se à teoria do Estado da Arte de Spink (1996) cuja definição diz tratar-se de “[...] uma exposiçâo sobre o nível de conhecimento e desenvolvimento de um campo ou questão” (REIGOTA, 2007, p. 50).
33
responde ao ambiente de uma maneira que lhe é própria e que difere de indivíduo
para indivíduo. Dentre as muitas concepções de percepção possíveis, há aquelas
que se relacionam, como vimos, com os verbos olhar, escutar, ver, entender e sentir.
Neste caso o significado da palavra percepção estaria, então, predominantemente
relacionado com a captação do mundo exterior pelos sentidos. Consideramos que
essa seria, numa perspectiva reducionista dos processos perceptivos, uma
abordagem da percepção, fundamentada no comportamento humano e em suas
respostas neurofisiológicas a estímulos ambientais. Essa é a concepção segundo a
qual os estímulos se transformam em impulso de energia eletroquímica e depois
seguem pelo sistema nervoso até o cérebro, onde se dá a consciência da percepção
e o início dos pensamentos, conforme Okamoto (1996).
De fato, a percepção encontra-se largamente estudada no âmbito da Neurofisiologia
e da Psicologia. Na área da Educação, a referência para os estudos da percepção
ambiental surgiu entre geógrafos e fundamentou-se incialmente nos trabalhos de
percepção e cognição de Piaget. Segundo Del Rio (1996), os profissionais ligados a
esse campo de estudos buscavam, com isso encontrar uma variante epistemológica
à racionalização e sistematização dos neopositivistas e ao materialismo e
economismo dos neomarxistas. Nessa perspectiva, o foco principal passou a ser a
percepção, representação, atividades e valores propagados por grupos humanos em
substituição ao conhecimento unicamente objetivo e/ou teórico.
De acordo com Oliveira (2004, p. 24):
[...] desde 1952, Dardel, em sua clássica obra já abordava o espaço
geográfico de uma maneira mais ‘humana’, mais ‘natural’, mais
holística. Esta Geografia não tem ‘grilos’, não é dicotômica, não há
oposição entre a Geografia Física e a Geografia Humana, não há
controvérsia entre um método geral ou um regional.
Para Amorin Filho (apud DEL RIO, 1996), além de Eric Dardel, outros precursores
dessa abordagem impulsionada pela Geografia se destacaram no início do século
XX, como: Carl O. Sauer; John K. Wright e Kirk, este último responsável por
introduzir, na década de 50, a idéia da “geografia comportamental”. Kirk foi pioneiro,
34
ao chamar a atenção para a relação entre as percepções ambientais e as tomadas-
de-decisões locacionais. Por fim, citamos Lowental (1961) cujo trabalho se refere à
valorização da experiência vivida.
Essa maneira de ver a Geografia introduziu no universo da ciência uma abordagem
mais qualitativa, permitindo uma articulação com a subjetividade das dimensões
éticas e estéticas, no que se refere ao conceito de meio ambiente. Os estudos da
paisagem passaram a ser permeados de novos sentidos. Para Schmit e Mateus
(2005, p. 58), “[...] a percepção ganhou novas perspectivas quando assumiu o
adjetivo ambiental”.
No Brasil, o princípio da experiência, no campo da percepção ambiental, ocorreu na
década de 70, com o pioneirismo da professora Lívia de Oliveira na apresentação
dos trabalhos: “O conceito geográfico de espaço” e “Contribuição dos estudos
cognitivos à percepção geográfica”. De 1970 a 1990, os trabalhos, na área da
percepção, ganharam volume e conquistaram espaço avançando ao encontro de um
paradigma emergente. Nesse caminho, citamos os autores: Anne Buttimer
(1971/1974) e Gold e White, em 1974.
De todas as contribuições, consideramos que a mais abrangente, profunda e bela
vem do geógrafo Chinês Yi-Fu TUAN que, com seu pensamento, introduziu a
subjetividade como elemento constitutivo de “[...] novos e fundamentais conceitos
para a compreensão do ambiente e para as aspirações do homem, em termos de
qualidade ambiental” (AMORIN FILHO, apud DEL RIO, 1996, p. 141). Suas obras
mais conhecidas, encontram-se entre aquelas indispensáveis ao pesquisador que
deseja compreender e aprofundar seus conhecimentos na área da percepção
ambiental. Essas obras apresentam os seguintes conceitos: “topofilia”, “topofobia”,
“geopiedade” e “lugares valorizados”.
A partir desses trabalhos, novas pesquisas surgiram em diferentes centros de
estudos brasileiros, dentre eles: o do Paraná representado pelo professor Lineu Bley
e Lucy M. C. P. Machado (Unesp). Seguiram-se: Oswaldo Bueno Amorim Filho,
Maria Elizabeth Taitson Bueno e Márcia Maria Duarte (IGC/UFMG); Maria Elaine
35
Kohlsdorf (UNB); Lineu Bley (UFPR); Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (UFSC);
Vicente Del Rio (UFRJ). Essa diversificação ampliou a abrangência dos estudos de
percepção para além do campo da Geografia, alcançando estudiosos e
pesquisadores de diferentes áreas de formação.
Mesmo com a crescente articulação em torno dos estudos e pesquisas sobre
percepção ambiental, cujos saberes vêm ampliando e algumas vezes
ressignificando seu campo semântico, percepção ainda é a terminologia mais
empregada.
Enriquecendo o debate Del Rio (1996, p.4), esclarece que o significado dessa
palavra remete tanto a uma interação dos processos neurofisiológicos quanto aos
cognitivos, afirmando que “[...] a percepção é um processo mental de interação do
indivíduo com o meio ambiente que se dá através de mecanismos perceptivos
propriamente ditos e, principalmente cognitivos”.
Apesar dessa compreensão, parece-nos que, em alguns momentos, é comum o
entendimento da percepção e da representação social como sinônimos. Porém
concordamos com Oliveira (2004, p.23), quando afirma que,
[...] enquanto ver é uma sensação, perceber é atribuir um significado, conhecer já requer a participação da inteligência, é um pensar. Ao vermos um meio ambiente, ao percebermos, construímos uma imagem desse objeto, que ao mesmo tempo é sujeito. Ver, perceber, pensar são processos embricados, de difícil separação.
Sendo assim, com base nesse breve estudo, notamos que a gênese do conceito da
percepção ambiental brasileira parece encontrar raízes no pensamento
fenomenológico da percepção discutida por Merleau-Ponty, agregando alguns dos
elementos que propõe esse autor.
No debate contemporâneo da educação, não podemos deixar de acolher a
contribuição do biólogo chileno Humberto Maturana que discute a noção de uma
percepção transgressora da lógica clássica e binária. A percepção vista pelo ângulo
36
da lógica clássica, segundo o autor, encontra-se apoiada nos conceitos de
Realidade unidimensional e unirreferencial e no conhecimento disciplinar produzido
in vitro, resultado de uma cultura científica racionalista.
Notamos uma divergência conceitual explícita em Maturana (2002, p. 72), quanto à
noção simplista da percepção, quando ele afirma: “[...] o fenômeno que conotamos
com a palavra percepção não consiste na captação, pelo organismo, de objetos
externos a ele, como implica o discurso usual da neurofisiologia e da psicologia”.
Acreditamos que as idéias desse autor convergem com aquelas propostas por
Merleau-Ponty, permitindo-nos, no desvelamento dos caminhos fenomenológicos
desta pesquisa, estender a compreensão do corpo que percebe para além da
relação objetiva figura/fundo, ampliando tal relação numa multiplicidade aberta e
indefinida em que as interações são de implicações recíprocas, pois, como seres
vivos, sistemas dinâmicos e abertos, de acordo com Maturana operamos em
congruência com o meio. Assim sendo:
O fenômeno conotado pela palavra percepção consiste na configuração que o observador faz de objetos perceptivos, mediante a distinção de cortes operacionais na conduta do organismo, ao descrever as interações desse organismo no fluir de sua correspondência estrutural no meio (MATURANA, 2002, p. 72).
Considerando a grande influência da Psicologia na gênese do conceito de
percepção ambiental, é, por conseguinte, inegável a contribuição das principais
escolas nesse campo do conhecimento, tais como o Estruturalismo, o
Funcionalismo, a Gestalt, o Cognitivismo e o Behaviorismo, para os estudos de
percepção ambiental. Reconhecemos, nesse movimento de elaboração e
ressignificação permanente do conceito, a importância no que se refere à
popularização do termo e disseminação da idéia de subjetivação de nossa visão de
mundo. Em decorrência dessa perspectiva subjetivante introduzida pelo pensamento
perceptivo, visando aos mecanismos de gestão mais conscientes dos recursos
naturais, organismos internacionais passaram a recomendar estudos de percepção
em projetos envolvendo meio ambiente, como foi o caso do Programa Homem e
37
Biosfera10 da UNESCO.
Os estudos de percepção ambiental no Brasil ganharam impulso e cresceram
promovidos pelo projeto OLAM – Educação Ambiental Para a Paz, cujo instrumento
de divulgação é a revista eletrônica de mesmo nome (OLAM, nome hebraico que
significa universo) além dos encontros periódicos organizados pelo grupo
coordenado pela professora Drª Solange Guimarães, da Universidade Estadual
Paulista de Rio Claro.
Pelo exposto, nota-se, e aqui reside uma das intencionalidades dessa exposição,
que não se pode aprisionar o movimento dinâmico de origem e evolução dos
conceitos, e seus desdobramentos em categorias estáticas do conhecimento.
Embora algumas vezes seja necessário recortar conceitos para com eles estabeler
um diálogo, é fundamental conservar, na lógica espaço-temporal desse diálogo, a
lembrança de estarmos, por um lado, mergulhados na complexidade do mundo e,
por outro, constituirmos um ambiente perceptivo em permanente auto-organização.
Como nossa referência inicial é a abordagem da percepção do ponto de vista da
fenomenologia merleaupontyana, situamo-nos no escopo da cognição, como
processo mental ocorrido no nível da consciência que organiza nossa interface com
a realidade e com o mundo. Sendo assim, inicialmente pensávamos concentrar
nosso olhar na emergência dos fenômenos perceptivos e nos sentidos provenientes
do trabalho da consciência.
Contudo, considerando a amplitude conceitual agregada por Humberto Maturana e
aquela revelada no decorrer dos encontros em busca dos sentidos do sagrado, os
resultados conduziram-nos por caminhos não programados e enveredamos também
pelos campos enigmáticos do inconsciente. Por tratar-se de uma pesquisa
10 O Programa Homem e Biosfera (MaB – Man and the Biosphere) da UNESCO foi criado após a "Conferência Sobre a Biosfera", realizada pela UNESCO em Paris, em setembro de 1968. Trata-se de um programa de cooperação científica internacional que visa a compreender as repercussões das ações humanas sobre os ecossistemas mais representativos do planeta para promover conhecimentos, práticas e valores humanos capazes de implementar relações que contribuam para a conservação desses ambientes.
38
essencialmente fenomenológica exisitencialista, entregamo-nos a esse ser-em-
construção da investigação, aceitando trilhar as veredas do inconsciente, por meio
da articulação teórica de alguns pressupostos do pensamento psicanalítico de Carl
Gustav Yung, quando estes se fizerem presença no(s) sentido(s) do sagrado,
expressos por algum dos participantes e sempre dentro dos limites das nossas
possibilidades e do nosso alcance.
Apoiada na flexibilidade do autofazer-se da pesquisa, citamos Marin e Oliveira (2006,
p. 182), quando observam que
[...] perceber é, antes de qualquer estruturação do pensamento e do arranjo das representações e significados do percebido, estar imerso no mundo. É permitir a dissolução das categorias sujeito e objeto no encontro, o que pressupõe a natureza intencional do ser enquanto presença. Caracteriza-se, assim, o caráter existencial das nossas reflexões [...].
Ainda sob um olhar transdisciplinar dos conceitos, a partir de um lugar de não
resistência, a Psicologia analítica yunguiana, no que se refere à teoria da segunda
metade de sua vida, admite a existência do sagrado e propõe que a Teologia e a
Psicologia têm em comum a alma, já que, para esse autor, o fenômeno religioso
nasce na psique humana e se manifesta na forma de símbolos. Segundo afirma
Jacobi (1986, p. 88), na concepção yunguiana, “[...] a psique, como nível de reflexo e
expressão do mundo exterior e interior [cria os símbolos] e os transmite de alma a
alma”.
3.3 (TRANS)MODERNIDADE
Para falar de complexidade, vamos nos reportar a um diálogo que tivemos a
oportunidade de estabelecer com um sobrinho de quatro anos, por ocasião de nossa
participação no Encontro Brasileiro para Estudos da Complexidade, que ocorreu no
Rio de Janeiro, em 2006. O cenário é a mesa do café, em Niterói, numa bela manhã
de sábado.
-- Tia Penny, aonde você vai?
Temendo que a palavra congresso não fosse compreendida, pensei em usar algo
39
mais simples e respondi:
-- Vou à aula.
-- Mas hoje é sábado.
Não adiantou...achei melhor não resistir e ver onde aquela conversa iria dar.
-- É, você tem razão, na verdade, estou indo a um congresso.
-- E o que é um congresso?
-- É um encontro de pessoas que se reúnem pra conversar algum assunto.
-- E que assunto vocês vão conversar hoje?
-- Hoje vamos conversar sobre complexidade.
-- E o que é complexidade?
-- Ah, Igor! Complexidade é uma maneira de ver o mundo que envolve muitas coisas
ao mesmo tempo.
Breve silêncio e ele conclui:
-- Ah! Entendi. Você também não sabe o que é e vai lá pra aprender, né?
E ele começou a rir de/pra mim. Um risinho maroto de quem acabava de descobrir
um segredo. Aquela pequenina mente pensante, ainda não enquadrada nos
modelos e padrões educativos, falou-me do paradoxo existente entre simplicidade e
complexidade. A fenomenologia, opção metodológica que definimos para este
estudo, oferece-nos infinitas possibilidades de autodescoberta e nos coloca sempre
“abertos”, para o novo. Concordamos com a afirmação de Marins e Oliveira (2006,
p.182): “[...] a fenomenologia é uma abordagem que permite a elucidação de inter-
relações não-evidentes e a suscitação de reflexões que enriquecem o sentido da
complexidade”.
O diálogo suscita reflexões sobre o desejo de aprender e como somos
impulsionados por ele durante nossos primeiros anos de vida. A curiosidade da
criança, sua espontaneidade, o destemor com que enfrenta grandes obstáculos e
pouco a pouco vai aprendendo a engatinhar, falar, andar e, nesse exercício de
exploração, começa a descobrir o mundo.
Com o tempo, vão surgindo formulações cognitivas mais elaboradas, e a curiosidade
espontânea na criança se manifesta por meio de perguntas, cuja intenção ainda é
compreender o mundo. É possível assistir a vídeos de comportamento animal que
40
demonstram a curiosidade instintiva presente também em outras espécies, mas a
formulação de questões complexas, segundo a ciência, só a espécie humana é
capaz de realizar. Por isso é a mais criativa do planeta. O problema é que também
tem se revelado a mais destrutiva.
O tempo passa, a idade escolar chega e aqueles que têm acesso vão à escola às
vezes para comer, às vezes para conhecer. Mas o desejo de aprender ainda está
presente nos primeiros anos da vida escolar. E a escola apresenta e representa um
mundo mais amplo, de convivência com os outros e de exploração de novos sons,
cores, sabores e imagens, apetitosos ou não. A escola alarga as fronteiras da casa,
do bairro, da cidade. Parece uma janela de onde se pode ver um outro mundo. Prato
cheio para neurônios inquietos, determinados a saciar o desejo de conhecer. E as
perguntas se alvoroçam na mente: o quê? Como? Por quê? E da janela da escola
continuamos a nos perguntar: como pode um avião voar? Quem criou o mundo?
Masturbar dá calo na mão? Por que existe a fome? Por que ninguém acaba com as
drogas? E “[...] à medida em que a escola vai ‘ensinando’, o gosto e a curiosidade
[de alguns] se vão extinguindo, chegando freqüentemente à aversão” (CANIATO,
1987, p. 77).
Na simplicidade de olhar o mundo pelas lentes de uma criança, nosso ponto de
partida para falar da complexidade é o que podemos concluir com Morin (2005, p.
43) ao nos dizer: “[...] o mundo está no interior de nossa mente, que está no interior
do mundo”. Nas artes plásticas a tela I and the Village do pintor Marc Chagall
expressa, em nossa percepção, esse pensamento, o que pode ser observado na
Figura 1.
41
Figura 1: Marc Chagall, I and the Village, 1911, oil on canvas
E é desse lugar que deveríamos também olhar a educação, cheios daquela coragem
inocente, fazendo-nos as mesmas e simples perguntas de outros tempos e, outras,
novinhas em folha, ou apenas recursivas. Por exemplo, será que duzentos dias
letivos garantem a construção da liberdade de pensar? Parece mais como uma
tentativa, essa sim, infantil, de delimitar o tempoespaço da vontade de aprender e
ensinar. Na concepção de Bauman (2001, p. 23):
[...] libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou impede os movimentos, começar a sentir-se livre para se mover ou agir. ‘Sentir-se livre’ significa não experimentar dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou concebíveis.
Educação emancipatória, nesse sentido, significa retirar obstáculos, desobstruir
caminhos, desconstruir (pre)conceitos, permitir o movimento, deixar livre o desejo
humano de aprender. Sendo assim, consideramos pertinente articular livremente
teorias e conceitos emergentes, como a teoria da complexidade, as teorias dos
sistemas e do caos, as noções de auto-organização e seus desdobramentos
conceituais com outros que fazem parte da tradição acadêmica, pois entendemos
que essa dialogicidade sem fronteiras disciplinares se constitui em fundamento para
compreensão dos sentidos que vai adquirindo o sagrado, nos processos de
formação em Educação Ambiental.
42
Considerando a interação dos conceitos analisados, os fenômenos perceptivos
serão igualmente estudados como fenômenos complexos por constituírem uma
experiência para além das operações de captação da realidade externa e
estabelecimento das correlações sensório-motoras de observação do mundo
exterior. A teoria da complexidade passa a ser aqui fundamental para o
entendimento das questões, envolvendo o fenômeno da percepção, pois ela agrega
o uno e o múltiplo, o único e o diverso, estabelecendo interações e conexões,
tecendo, junto, fragmentos paradoxais. Ainda segundo Morin (2005.p.13), “[...] a
complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações,
retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico”.
A crise ambiental, que é também uma crise de degenerescência11 da ciência
moderna, e, por conseqüência, crise epistemológica, à qual estamos submetidos,
atravessa todas as áreas disciplinares e, portanto, atinge níveis profundos de
inteligibilidade do real, fazendo-nos refletir sobre a necessidade de constituição de
caminhos que sejam multirreferenciais e não-lineares.
Do ponto de vista da idéia de percepção que nos dá o suporte teórico para este
trabalho, vimos a necessidade de ampliar as fronteiras do conhecimento além dos
conceitos herméticos, exercitando uma atitude de tolerância quanto à incompletude
do saber, que é, em última análise, a própria incompletude humana. Como
conseqüência, vem a necessidade de articulação entre diferentes saberes, bem
como entre conceitos e afetos, numa tessitura muito mais ampla e profunda durante
a qual “[...] o sentir é esta comunicação vital com o mundo que o torna presente para
nós como lugar familiar de nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 84).
De acordo com essa visão de mundo, procuramos valorizar, em certa medida, uma
coerência paradigmática, muito embora, conforme o apresentado até aqui, parece
evidente um sentimento de liberdade que nos permite transitar entre as inúmeras
possibilidades existentes na desigualdade de teorias e idéias que se cruzam no
momento da atual transição paradigmática.
11 Termo utilizado por Santos (1995).
43
O novo, ao contrário do que afirma Bachelard (2003), quando diz que a história das
idéias se faz através de rupturas, revoluções, “cortes epistemológicos”, não
necessariamente necessita romper com o velho, e esse, numa perspectiva
atemporal, transdisciplinar de coexistência, talvez nada mais seja do que um
novovelho. Enquanto Bachelard fala de rupturas epistemológicas, para Santos
(2000), não existe ruptura paradigmática e sim um processo transitório marcado pela
continuidade e também por descontinuidades, retorno aos vazios e incompletudes
do pensamento filosófico. Nesse sentido, somos, a todo instante, atravessados pelo
novo e pelo velho.
[...] a modernidade tem, intrínseca, a arrogância de um saber final. Esse saber é validado por critérios de ‘verdade’ embutidos nos sistemas filosóficos, religiosos e científicos. Essas ‘verdades’ constituem os sistemas de valores que convalidam o conhecimento, tornando-os saberes concluídos. Conseqüentemente, convalidam comportamentos humanos (D’AMBROSIO, 2001, p. 107).
A herança conceitual do pensamento cartesiano e linear legou-nos um modo de
conhecimento baseado na disciplinarização, com delimitação objetiva de métodos e
objetos de estudo. Porém, segundo D’Ambrosio (2001, p. 105):
Já no século XVII o método revelou-se insuficiente e surgiram tentativas de reunir conhecimentos e resultados de várias disciplinas para o ataque a um problema identificado como tal. O indivíduo devia procurar conhecer mais coisas para conhecer melhor. Os sistemas escolares, que se organizaram a partir de disciplinas, praticavam essa multidisciplinaridade que hoje está presente em praticamente todas as grades curriculares (grifo nosso)
Esse autor relaciona e estabelece, em seus estudos, uma gênese evolutiva dos
conceitos de disciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade que os
articula com a própria gênese e evolução do paradigma tradicional. Para D’Ambrosio
(2001, p. 106) “[...] a interdisciplinaridade não só justapõe resultados, mas mescla
métodos e, conseqüentemente, identifica novos objetos de estudo”.
Na prática, o desenvolvimento de estratégias disciplinares, multi e interdisciplinares
revelou limitações de natureza intrínseca ao conceito do método moderno que é, em
essência, a idéia de disjunção a partir da qual se busca, na atualidade, uma
superação que talvez, pela gênese de sua axiomática, não seja possível realizar,
44
pois faltariam elementos de abertura ao sistema tradicional. “Para atingir esse ideal
é necessário ir além das limitações impostas pelos métodos e objetos de estudo das
disciplinas e mesmo das interdisciplinas” (D’AMBROSIO, 2001, p.107).
No sentido de superar difíceis desafios e romper as rígidas fronteiras entre as
disciplinas, surge, no cenário epistemológico da educação, a transdisciplinaridade
que, por sua vez, “[...] já tem um enfoque mais ousado do conhecimento. Aproxima-
se da idéia de transversalidade de conceitos, ou seja, os conceitos ficam mais soltos
para estabelecerem articulações, sem territórios, nem fronteiras” (TRISTÃO, 2004, p.
111).
Essa ousadia do pensamento transdisciplinar encontra-se presente no caráter
híbrido da Educação Ambiental, pois ela vai crescendo nas brechas dos muros
disciplinares e com isso vai flexibilizando estruturas rígidas, convergindo olhares,
unindo mãos e propósitos em favor não apenas de uma natureza equilibrada, mas
de um ambiente complexo, múltiplo e solidário. Convergindo suas idéias, alguns
autores corroboram esse pensamento e estabelecem algumas relações entre essas
abordagens. Nicolescu (1999, 49) sustenta que “[...] a linguagem disciplinar é uma
barreira aparentemente intransponível para um neófito. E todos somos neófitos uns
dos outros [...] no plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é
um conjunto vazio”.
Já em relação à pluridisciplinaridade, o autor esclarece que esta se refere “[...] ao
estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao
mesmo tempo [...] a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua
finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar” (p. 51). Dessa forma,
Nicolescu vai tecendo uma relação entre esses conceitos, revelando a linearidade
de suas abordagens que procuram inocuamente corrigir a disjunção cartesiana sem,
contudo, sequer abalar sua forte marca fragmentária do conhecimento.
A transdisciplinaridade, no dizer de Nicolescu, surge transgredindo essa lógica e, ao
mesmo tempo, rompendo com os conceitos anteriores e sendo, de certa forma, um
prolongamento na medida em que reconhece na disciplina o cerne da questão
objetivante do conhecimento e a ressignifica sustentando referir-se “[...] àquilo que
45
está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além
de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o
qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento [...]” (NICOLESCU, 1999, p.
51).
Na convergência do olhar transdisciplinar e em oposição ao paradigma simplificador,
a complexidade, um dos pilares de apoio dessa teoria, propõe (re)ligar o que esteve
disjunto e para isso é imprescindível romper fronteiras que separam. Não é tão
simples quanto parece. É preciso uma dose de coragem e ousadia para desconstruir
a lógica tradicional. É preciso humildade para reorganizar-se a cada novo instante. É
preciso compreender a lógica de uma unidade aberta do conhecimento, que se
reconhece incompleta. Concordamos com o pensamento de Tristão e Pinel (2005, p.
4-5) ao afirmarem que
[...] o paradigma da simplificação, que tudo fragmenta, não dá mais conta de explicar a mistura orgânica entre sujeito, sociedade e natureza nem os híbridos que representam situações concretas como as conseqüências da cultura humana sobre o meio ambiente e, muito menos, a diversidade da realidade contemporânea, embora estejamos todos impregnados pelo pensamento positivista reducionista.
Para criar e estabelecer novas relações com a verdade, ou talvez devêssemos nos
referir no plural, a verdades, em que a tolerância recíproca e a inquietude
investigativa sejam o ponto mais importante do processo de descoberta, mais do
que as descobertas em si, é necessário ampliar nossos campos perceptivos.
Tendo cada um de nós suas próprias percepções, estaremos, todo o tempo,
atravessando e sendo atravessados por diferentes realidades, orientados pela visão
transdisciplinar, passaremos a denominá-las níveis de Realidade. Estaremos, nós
mesmos, na condição de pesquisadores, percebendo a poética da vida tecida pelos
fios do tempo, dos saberes e dos sonhos: incompleta, impermanente, incerta e,
portanto, incapaz de afirmar verdades absolutas.
46
AS UVAS E O VENTO
Pablo Neruda
[...] Tu perguntas o que a lagosta tece lá embaixo...
Com seus pés dourados. Respondo que o oceano sabe. E por quem a medusa espera, em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em seu abraço... perguntas... Mais firme que uma hora e
um mar certos? Eu sei. Perguntas sobre a mesa
Branca do narval... E eu respondo cantando como
unicórnio do mar, arpoado, morre. Perguntas sobre as plumas do rei
pescador... Que vibrou nas puras
Primaveras dos mares do sul. Quero te contar que o oceano
sabe isto: que a vida... Em seus estojos de jóias,
é infinita como areia, Incontável, pura; e o tempo,
Entre as uvas cor-de-sangue... Tornou a pedra dura e lisa,
Encheu a água-viva de luz... Desfez o seu nó, soltou
Seus fios musicais... De uma cornucópia feia De infinita madrepérola.
Sou só a rede vazia diante dos Olhos humanos na escuridão...
E de dedos habituados à longitude Do tímido globo de uma laranja. Caminho, como tu, investigando
A estrela sem fim... E em minha rede, durante
A noite, acordo nu. A única coisa capturada
É um peixe... Preso dentro do vento
Investigando a estrela sem fim
Quanto à manifestação do sujejtobjeto desta pesquisa, é no ambiente relacional dos
múltiplos níveis de Realidade e de Percepção que esperamos encontrá-la, pois
partimos do princípio de que “[...] a percepção não é uma ciência do mundo, não é
47
nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual
todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (MERLEAU-PONTY, 1999,
p. 6).
Na axiomática transdisciplinar, a premissa básica não é a de fazer dos sujeitos da
pesquisa ou, como no caso deste trabalho, de suas percepções, objeto de estudo.
Buscando superar a relação binária sujeito/objeto, traçaremos um caminho por meio
do qual nos seja possível tornar presente a lógica do terceiro incluído. Nessa lógica,
o delineamento de um sujeitobjeto apresenta um elemento comum denominado
zona complementar de não resistência, cuja presença está associada ao conjunto
dos níveis de Percepção e de Realidade. Da definição transdisciplinar da “zona de
não resistência”, irradia-se o sentido de sagrado com o qual nos referenciamos para
avançar nesta investigação.
A filosofia clássica pressupõe um princípio de causalidade na organização da
matéria e da vida que, na idade Média, levou à elaboração das “provas lógicas da
existência de Deus” como um ordenador do cosmo.12 A idéia de auto-organização,
presente nas discussões contemporâneas, propõe uma ruptura nessa lógica,
demonstrando sua inconsistência. Interessa saber se essa ruptura vem se
expressando nos processos de formação em Educação Ambiental e de que forma
isso vem ocorrendo.
“Para compreender o problema da complexidade é preciso saber primeiro que há um
paradigma simplificador” (MORIN, 2005, p.50). O cenário epistemológico da
complexidade e da transdisciplinaridade parece-nos, portanto, ideal como mais um
componente do pano de fundo deste estudo que estamos realizando, por não estar
voltado para a resolução de problemas isolados, individualizados por um mecanismo
histórico e cultural de fragmentação do saber.
12 Expressão utilizada por São Tomás de Aquino, pensador cristão da Idade Média.
48
4 FIOS E REDES NA EDUCAÇÂO AMBIENTAL
Até este ponto pode parecer que a proposta de tecer os fios aparentemente distintos
da percepção, do sagrado e da educação, numa rede de saberes, seja uma
aventura sem nexo, provocando um estranhamento inicial. Mas “[...] a complexidade
se apresenta [mesmo] com os traços inquietantes do emaranhado, do inextrincável,
da desordem, da ambigüidade, da incerteza” (MORIN, 2005. p. 13). Apesar de
termos nós mesmos sentido esse impacto, percebemos que, ao falar de um
paradigma emergente, precisamos encontrar e aceitar novas formas de elaboração
para o pensamento complexo. Ou, como diria Bateson (1990), estabelecermos um
metapadrão capaz de, ao menos em parte, superar a disjunção de nosso
pensamento insistentemente reducionista.
Falar de educação é falar de complexidade e o que pretendemos aqui é fazer, criar
um metapadrão que ligue, de maneira complexa e temporária, os fios dos saberes
que elegemos como pressupostos de uma abordagem do sagrado na Educação
Ambiental. E porque desconcertados, perplexos e emaranhados no caos
socioambiental em que nos encontramos hoje, necessitamos de novos caminhos em
frente aos desafios da educação. O que devemos/queremos/ podemos ensinar?
Podemos ensinar? Como queremos/podemos ensinar? Ensinar a verdade do que
vivemos ou a verdade das intenções que constituem o currículo escolar? Nas
múltiplas e complexas coerções resultantes das verdades, encontramos efeitos
regulamentados de um poder real que nasce em toda parte, inclusive e,
principalmente, nas políticas de educação. Mas destas, que verdades estão se
tornando referência para os processos educativos formais e não formais que se
efetivam no cotidiano?
A construção teórica recente da educação indica, nas palavras de Foucault (1998,
p.142), “[...] não [ser] possível que o poder se exerça sem saber, não [ser] possível
que o saber não engendre poder”. Também Maffesoli (1998, p. 14) assinala que “O
saber ligado à ‘razão instrumental’ é um saber ligado ao poder”, o que para nós pode
significar que há, nos processos formativos, uma capilaridade que conecta as muitas
dimensões do educador, podendo imbuí-lo ou não do poder de religar suas práticas
49
ao paradigma da razão sensível13 e repensar na escola e fora dela o ambiente das
próprias emoções e o sentido de educar na e para a conturbada sociedade
planetária em que vivemos.
Para Foulcault, a relação saber e poder se exprime em seu sentido político de
regulação e de controle, que são as melhores formas de conhecimento sobre a
população a ser governada. A sedução do poder engendra atos educativos que
manipulam e conduzem os sujeitos com a previsibilidade das intenções de quem
educa, ideologicamente orientado. Onde fica a autonomia? Na tensão existente
entre saberes intencionais e poderes manipuladores? O saber transformado em
poder, qualquer que seja sua intenção, amputa as asas da autonomia, impedindo o
vôo livre do sujeito em direção ao reencontro consigo e com o mundo. Como diz
Rubem Alves (2005, faixa 2):
Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.
O desafio que se apresenta ao educador no cenário dos conflitos sociais é o de
educar para a vida, para o amor, ainda que muitas vezes o sentimento seja de
estarmos mergulhados em trincheiras de medo e dor. Na “grade curricular” de
nossas emoções, desejosos de reencantar a educação, é possível desenvolver um
novo e complexo estilo de educar que se efetive por meio de nossos espaços
pedagógicos e estimule um aprender a conhecer, a ser e, principalmente, a viver
juntos, na diferença?
Na Educação Ambiental, a efervescência do pensamento contra-hegemônico vem
provocando profundas transformações. Há, nas tendências atuais da Educação
Ambiental, o esforço em tornar os educadores sensíveis e comprometidos com
temáticas que vão desde a conservação até aquelas de cunho social, econômico e
político. O pensamento contemporâneo de olhar o mundo pelas lentes de um sujeito
13 Expressão adotada por Maffezoli (1998, p. 153) para expressar a sinergia da razão e do sensível; da matéria e do espírito e “[...] compreender que a racionalidade aberta integra como parte o seu contrário, e que é dessa conjunção que nasce toda percepção global”.
50
encarnado14 traz em si novas e amplas noções, que estimulam avanços a partir da
superação das dicotomias clássicas. Deixar nossos afetos conduzirem o processo
educativo pode significar uma abertura importante nessa lógica e a opção por uma
visão de mundo que evidencie a relação de interdependência humana com o outro,
com o planeta, uma visão que produza e promova o sentimento de compaixão.
Para Bachelard, citado por Sato e Passos (2006, p.20), “[...] educar é uma atitude
filosófica para alimentar sonhos”. Segundo os autores, para a formação do sujeito,
Bachelard orientava que era preciso mergulhar no turbilhão de dúvidas, inquietações
e incertezas, sendo necessário revolucionar o modo de organização dos grupos,
num enfoque de uma geometria diligente não euclidiana; na dinâmica dos
movimentos contra a inércia newtoniana; na construção de saberes sem fragmentos,
aquilo que hoje Edgar Morin intitula de complexidade.
Assim, a Educação Ambiental vai agregando aos seus múltiplos conceitos aqueles
que considerem as utopias e os sonhos como fragmentos indispensáveis à formação
do mosaico de um outro modelo civilizatório, compreendido a partir de bases
epistemológicas complexas e, por conseguinte, capazes de privilegiar na sua
construção, também e, principalmente, as dimensões ética, estética e espiritual.
4.1 DIMENSÕES E CORRENTES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUAS
ARTICULAÇOES COM O SAGRADO
Dentre os componentes que alimentam os discursos e práticas em Educação
Ambiental, apontamos a questão do sagrado que, historicamente, foi relacionado
com a natureza, mas até agora é pouco investigado e debatido nas vertentes da
Educação Ambiental brasileira, embora, nós, brasileiros, estejamos impregnados e
intensamente atravessados pelas expressões do sagrado. Essa alienação decorre,
talvez, por um lado, da forte influência cartesiana que nos impôs uma desagregação
profunda de reconhecimento da nossa identidade espiritual e, por outro, do caráter
dogmático, polêmico e controverso com o qual o tema se revestiu ao longo da
história. Nas palavras de Sato e Passos (2006, p. 20):
14 A expressão utilizada por Najmanovick ( 2001) refere-se à afirmação da corporalidade do sujeito, provocando mudanças profundas na forma de apreciarmos nossa paisagem cognitiva.
51
[...] é necessário romper com a dicotomia do espírito e da matéria, permitindo que os sujeitos da EA pensem com os corações, ou seja, permitam unificar a racionalidade na sensação, oferecendo simultaneamente, o estranhamento ao lado do maravilhamento. Arroubo místico personificado na experiência humana do sagrado, no qual o tremor e a fascinação, Eros e Thanatos aliam-se no fluxo incontinente da vida [...].
Como prática educativa, a Educação Ambiental vem se tornando, na última década,
um espaço de diálogo sempre comprometido com a pluralidade de ser e pensar, e
por isso mesmo inclusiva, multi e transdisciplinar, participativa, integrativa e
transgressora, podendo, portanto, articular as variadas dimensões implícitas na
relação humano-natureza e humano-humano, no desenvolvimento de uma práxis15
em permanente transformação.
Envolvendo não apenas a confluência das áreas do saber das ciências sociais e
humanas, mas também das diversas formações discursivas oriundas de diferentes
campos do saber, assim como de múltiplas percepções e significações de mundo, a
formação do campo da Educação Ambiental resultou numa episteme difusa, não-
linear e auto-organizativa, que, de certa forma, “[...] reconhece a complexidade do
mundo na constante tentativa de religar, de associar o que esteve disjunto”
(TRISTÃO, 2004, p. 96).
Nesse sentido é que o poema abaixo tornou-se um ícone da Educação Ambiental,
na medida em que revelou e revela a disponibilidade de organização e
reorganização do conceito, mediante os ambientes internos e externos vividos pelo
educador.
Caminante son tus huellas El camino, y nada más;
Caminante, no hay camino, Se hace caminho al andar.16
Entre nós, grupo de seis mulheres integrantes da Rede Capixaba de Educação
Ambiental,17 esses versos do pensamento educativo complexo tornaram-se um
15 Por práxis estamos considerando a articulação teoria-prática como idéia indissociável, de uma prática fundamentada numa determinada corrente teórica. O termo é empregado com base filosófica em Gramsci e encontra-se fortemente presente na obra do educador brasileiro Paulo Freire. 16
Trecho do poema de Antônio Machado retirado de Gutierrez e Prado (2000, p. 61-62). 17 A Rede Capixaba de Educação Ambiental (Recea) foi rearticulada em 2003, após um período de
52
detonador psíquico de tal modo significativo que, quando eventualmente queremos
nos referir a uma qualidade ou um determinado aspecto da Educação Ambiental,
recitamos as primeiras frases e o riso é geral, um riso espontâneo e sincero que
representa um entendimento tácito de múltiplos sentidos e, ao mesmo tempo, de
algo comum que todas nós captamos e que nos constitui como coletivo, havendo
nisso uma clara demonstração do poder de sedução da idéia apresentada por
Antônio Machado.
Mas, embora aceitemos o sentido geral do ser-sendo-fazendo que se imprime nas
curtas estrofes que nos inspiram, após trilharmos pelos caminhos desvelados da
Educação Ambiental, sentimo-nos convidadas/(os) a reconhecer os percursos
daqueles/(as) que nos antecederam, pois deixaram pegadas não menos sedutoras,
que nos convidam a percorrer atalhos para uma compreensão de sua epistemologia
que vai aos poucos se constituindo num mosaico multicor, que representa a
diversidade de identidades da Educação Ambiental brasileira.
Segundo Sato (2006), ao longo de uma curta existência, a Educação Ambiental já
teve suas iniciativas tomadas à conta de prática ambientalista, de ecologismo
ortodoxo, de socioambientalismo e de ecologismo político.
Trajber e Marizochi (1996) citam a pesquisa de Sorrentino em que são classificadas
as diversas concepções de Educação Ambiental em quatro correntes: a
conservacionista, quando associada à Biologia; a educação ao ar livre, quando
fortemente marcada por aspectos culturais; a gestão ambiental, quando se aproxima
de uma tendência também política; e, por fim, a economia ecológica, derivada do
conceito de ecodesenvolvimento de Sachs.
O debate contemporâneo aponta tipologias da Educação Ambiental influenciadas
pela luta ambientalista, como o movimento de “ecologizar” as coisas que marcou o
retração de dez anos. Sua proposta é conectar entre si educadores/as ambientais e estes ao movimento da Educação Ambiental no Estado do Espírito Santo, propiciando o apoio mútuo entre os profissionais e instituições governamentais e não-governamentais ou outras organizações comprometidas com a Educação Ambiental.
53
pensamento crítico orientado para o paradigma da planetariedade, desenvolvido
pela ecopedagogia (GADOTTI, 2000; GUTIÉRREZ; ROJAS, 2000) e em vertentes
que variam da prática tradicional/conservadora e pragmática (LOUREIRO, 2004);
uma tendência crítica, claramente influenciada pelo pensamento revolucionário de
Paulo Freire e impregnada da (pre)ocupação socioambiental (GUIMARÂES, 2000,
2004; CARVALHO, 2004; LOUREIRO, 2006). Como demonstra Tristão (2007, p. 5):
Essa tendência, denominada de Educação Ambiental crítica ou transformadora, transforma a pedagogia em uma prática política, como sugere Giroux (2003), com uma cooperação entre educadores/as e outros sujeitos culturais engajados na lutas sociais e ambientais, criando espaços críticos de aprendizagem dentro e fora da escola, buscando a união com movimentos sociais organizados.
Notamos também, dentre as identidades da Educação Ambiental brasileira uma
tendência cuja marca é a emancipação do sujeito (LOUREIRO, 2004; LIMA, 2004).
Nesse caso, a relação conteúdo-prática se propõe crítica, porém vai além de um
olhar reduzido à politização do sujeito. A educação emancipatória, segundo nos
apresenta Lima (2004), propõe uma complexificação dos ingredientes que a
compõem.
Mesmo com a dinâmica de formulação e reformulação dos conceitos de Educação
Ambiental, ainda perpetuamos a lógica binária que dicotomiza o pensamento e opõe
as forças de ação. Em contrapartida, o pensamento pós-crítico, complexo e
transdisciplinar funda uma outra possibilidade que é a de convergência de saberes
fazeres nem concorrentes, nem unificadores, mas múltiplos, porque diversos, e
unos, porque conectados. Nesse sentido, fundada na perspectiva das correntes
sociofilosóficas, pós-estruturalistas e pós-modernas, emerge a tendência de uma
educação pós-crítica, cuja orientação abrange as demais e na qual, como afirma
Tristão (2007, p. 6):
[...] tanto a vida como o conhecimento são relacionados com a metáfora da rede. Essa abordagem considera a subjetividade, as relações intersubjetivas e a fundamentação como um conhecimento não-linear, fazendo analogia com a metáfora da rede para compreender a vida e o conhecimento, expressando o sentido de entrelaçamento e de interdependência.
54
Diante desse cenário diverso e extremamente rico, não pretendemos, no que se
refere as muitas tendências da Educação Ambiental, reificar agrupamentos e
classificações. Concordamos com Tristão (2007, p. 3), quando nos diz que “[...] a
intenção não é delimitar fronteiras, classificar ou rotular as diversas práticas e
tendências, mesmo porque não vamos encontrar nenhuma em seu estado puro, haja
vista que ora uma tendência se apresenta na outra, ora todas se apresentam em
uma única”.
Esse hábito de classificar, de erigir fronteiras se instala sub-repticiamente em nossa
mente como tentáculo do pensamento moderno, teimando em projetar os
pressupostos cartesianos em nossa visão de mundo. Seguindo a linha do
movimento subversivo presente na gênese da própria Educação Ambiental, não
pretendemos inventar o novo; queremos apenas percorrer as trilhas existentes,
seguindo os rastros, acolhendo as presenças conceituais, impregnando de sentido
suas pistas e com esses sentidos interagir, criando e recriando uma rede cognitiva
complexa. Como sugere Merleau-Ponty (2002, p. 42), “[...] falar e compreender não
supõe somente o pensamento, mas, de maneira mais essencial e como fundamento
do próprio pensamento, o poder de deixar-se desfazer e refazer por um outro atual,
por vários outros possíveis, e presumivelmente por todos”.
Por meio dessa interação, notamos que, dentre as diversas concepções teórico-
metodológicas de Educação Ambiental, vem havendo um aprofundamento e
valorização de aspectos da psique humana, nos processos educativos. Nesse
sentido, citamos algumas das correntes agrupadas por Sauvé (2005) que mais nos
chamaram a atenção: naturalista, sistêmica, humanista, moral/ética, holística,
feminista, etnográfica e ecoeducação, cujos enfoques dominantes recebem aportes
das dimensões criativa, estética, afetiva, sensorial, moral, intuitiva, simbólica e
espiritual.
Esta pesquisa trata de percepções e, portanto, traz intrinsecamente um olhar
fenomenológico da realidade, enquanto procura tecer, na perspectiva de uma
temporalidade não-linear e de uma razão sensível, os fios de diversos saberes. Com
a finalidade de compreender e conferir um novo sentido à práxis educativa.
55
Para Maffesoli (1998, p. 53),
O afeto, o emocional, o afetual, coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, bem confinados na esfera da vida privada; não são mais unicamente explicáveis a partir de categorias psicológicas, mas vão tornar-se alavancas metodológicas, que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais, que, sem isso, permaneceriam totalmente incompreensíveis.
Na concepção de Franz Brentano, filósofo alemão do final do séc. XIX e precursor
da fenomenologia, o campo de saber da Psicologia foi definido como ciência da
alma. O objeto da Psicologia é a subjetividade que por si só já incorpora a noção de
alma. Encontramos, portanto, em sua definição, um ponto de convergência, um
entrelugar, confortável para ocuparmos e que representa uma conjunção, verdadeira
ponte de ligação entre percepção e Educação Ambiental que, a nosso ver,
transversaliza a relação ser humano x natureza e a abordagem da espiritulidade
como dimensão humana, sendo cada uma dessas componente dinâmico na
constituição do devir humano.
Na redescoberta da natureza e no movimento de (re)integração do ser humano a
ela, a partir de novas construções teóricas, parece que estamos, como educadores
ambientais, nos conduzindo a uma revisão de nossa própria condição humana, com
formação de uma nova identidade, não mais predominantemente individualista, mas
uma condição de ser-em-grupo que se pretende solidária numa perspectiva
planetária. No pensamento de Tristão (2005), essa tendência pode ser reconhecida
numa dimensão ética da Educação Ambiental que envolve um princípio de
responsabilidade e respeito, no conceito polissêmico de participação associado pela
autora à dimensão política e à dimensão estética, identificada por um
reencantamento da vida, pelas utopias, sensibilidades e novas metáforas.
Já a reflexão hermenêutica de Grün (2004, p.27), ao referir-se à natureza, afirma
que “[...] a Natureza é o outro que se dirige a nós” e prossegue sustentando que “[...]
a aceitação da Outridade da Natureza passa necessariamente por um desejo
sincero de compreender e isso nos leva à hermenêutica da escuta” (p. 27). Por fim,
o autor diz “[...] que encontrando a Outridade da Natureza poderíamos retornar para
56
nós mesmos modificados, repensando aqueles preconceitos orientadores do agir
objetivador e antropocêntrico” (p. 29).
Tornamo-nos aprendizes de uma nova condição humana na qual a orientação
contínua dos fluxos de informação e consciência que atravessam e ampliam os
níveis de Percepção e Realidade, expandem o universo educador para além do
tempo-espaço linear, conectando simultaneamente sujeitobjeto, tornando-o, como
no entendimento de Nicolescu (1999), o sujeito transdisciplinar.
Nesse sentido, não consideramos relevante definir as vertentes de Educação
Ambiental a que este trabalho se vincula. Antes disso, queremos deixar clara a
liberdade que sentimos em transitar, como sujeito transdisciplinar, pelas diversas
concepções teórico-metodológicas, cujas contribuições, em momentos distintos, nos
fundamentam nesse exercício de dar sentido e conviver com os variados níveis de
Percepção e de Realidade, respectivamente, apresentados pelos formadores em
Educação Ambiental, entrevistados.
Assim como Sato e Passos (2006, p. 24), consideramos ser “[...] preciso evocar a
educadora ou o educador ambiental em sua nudez, no ímpeto do silêncio ou do
vanguardismo, sem se deixar dividir pela grosseira dualidade filosófica do sujeito e
objeto”. E ainda que:
Na dimensão político-poética da EA, não há orientações pedagógicas magistrais de receitas prontas, cartilhas que promovam o ABC de estratégias, ou bússolas que mostrem apenas um eixo ‘norteador’ do Universo, senão um conjunto de tentativas e erros, com acúmulo de dissabores [...]. A educadora ou o educador ambiental situam-se, assim, num enigmático mundo de descobertas, com dúvidas por onde caminhar ou qual itinerário seguir. O que move a EA não é suas temáticas abrangentes, mas localiza-se no enredo que se trama para que o mundo se mostre extraordinário, revelando que ‘o mundo não cabe no mundo e o real não cabe no concebível’ (p. 25).
Usando de linguagem metafórica, poderíamos relacionar a Educação Ambiental com
o barro que é maleável e, quando associado a outros elementos, ganha
consistências, resistências e durabilidades distintas. No entanto ele conserva
propriedades que lhe permitem tornar-se peça belíssima e necessária na expressão
57
cultural brasileira. Assim sendo, distinguiríamos, por questões óbvias, o tradicional
artesanato popular de confecção das panelas de barro capixabas.
A argila para nossas panelas vem de uma região conhecida como Vale do Mulembá,
situado no bairro Joana D’Arc, na Ilha de Vitória/ES. As artesãs extraem o barro, em
seguida, realizam o pisoteio para limpeza, retirando a matéria orgânica visível e os
grãos de areia maiores, elementos indesejáveis para o desenvolvimento de sua
técnica. Começa, então, a partir de uma bola de barro, a modelagem manual. Com o
movimento ritmado das mãos, as panelas são confeccionadas, alisadas e o
acabamento realizado com seixos de rio, cascas de coco, facas e estiletes. Quando
estão prontas, as panelas são colocadas para secar ao ar livre. Em seguida nova
limpeza é realizada nas panelas secas que seguem para a queima nas fogueiras e,
por último, passam por um processo de pintura, que é realizada com uma substância
especial, o tanino, extraído da casca de troncos de mangue vermelho (Rizophora
mangle), responsável pela coloração negra e pela resistência das panelas. Antes de
serem usadas, as panelas de barro devem ser “queimadas” com azeite e então
ficam prontas para alimentar nossas fomes. Resultam desse processo a beleza da
arte paneleira e o suporte para se cozinhar a famosa e cheirosa moqueca capixaba.
Assim como no trabalho artesão, o educador ambiental também realiza as etapas da
produção de sua arte, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento final,
passando ora pela queima de conceitos e práticas inoportunos, ora pela
incorporação de novos elementos, num enfrentamento permanente das incertezas e
numa tentativa constante de superação de seus desafios e limites, na
universalização de valores humanos. Nesse sentido, podemos dizer que o educador
ambiental, assim como o artesão, é aquele que junta e a Educação Ambiental, como
“[...] as panelas de barro não são [só] para serem contempladas, mas para dar de
comer [...]” (WALDECK, apud PEROTA et al., 1997).
Como sujeito transdisciplinar, o educador ambiental pode expandir seus horizontes
perceptivos alcançando uma visão progressivamente mais ampla e unificante da
realidade. O que costumamos chamar de: pensar globalmente, aqui se amplia para
um pensar-sentir-fazer englobante da realidade sem, contudo, pretender esgotá-la.
Para a transdisciplinaridade, “[...] a unidade que liga todos os níveis de Realidade,
58
se existir, deve necessariamente ser uma unidade aberta” (NICOLESCU, 1999, p.
59).
A idéia de unidade aberta da transdisciplinaridade encontra similitude com a unitas
multiplex de Morin. Ambas procuram se introduzir, na transdisciplinaridade e na
teoria da complexidade, respectivamente, a noção de simultaneidade no axioma da
não contradição entre os pares de opostos e a convivência do diverso. Nesse caso,
abertura e fechamento ao mesmo tempo.
Por meio dos estudos da Física, concluiu-se que os sistemas fechados estão
condenados à autodestruição. A própria natureza nos demonstra, pelos processos
de decomposição, uma abertura dos sistemas vivos e sua tendência de interação
com outros sistemas, em permanente abertura. A aceitação do paradoxo entre
abertura e fechamento, como princípio científico, só foi possível a partir das
descobertas teóricas (Max Planc, Einstein, Podolsky, Rosemberg) e comprovações
(Alain Aspect) da Física quântica. Alerta-nos Random (apud SOMMERMAN, 2002, p.
27):
Nosso olhar sobre a realidade determina a própria realidade. Mas a evolução do olhar, dos conceitos, das crenças é extremamente lenta, ao passo que a situação planetária experimenta, em todos os setores da tecnologia e da ciência, mas também na deterioração da vida planetária, uma aceleração exponencial.
Somente reconhecendo a existência de múltiplos níveis de Percepção e Realidade
podemos admitir a existência do terceiro incluído e do sagrado, sobre o qual nos
aventuramos a falar neste trabalho. Essa é uma abordagem que nos parece
efêmera, intermitente, praticamente inexistente na visão de mundo da lógica
clássica, mas uma presença real que se manifesta, numa outra lógica
(extra)ordinária, deixando dúvidas e incertezas que afastam muitos peregrinos, mas
que em outros despertam o grande encantamento da esperança expressa pela
poesia de Mello (2006).
AS ENSINANÇAS DA DÚVIDA
Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas Tão duras como lajedos.
Agora (o tempo é que o fez)
59
tenho um caminho de barro umedecido de dúvidas Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza de que vale a pena o amor.
Os ecos de nossos pensamentos, quando ressoam repetindo: ...aquilo que se
manifesta... encantamento e esperança... sagrado... submete a razão à sua
contraparte, ao seu inverso e sua materialidade esvai-se deixando entrever o
intangível. Por entre as cortinas da razão, a questão espiritual impõe-se à nossa
condição humana pela ação interminável de interrogações que nascem na mente,
crescem alimentadas pela dinâmica da vida, materializam-se nas expressões
culturais disseminadas como sementes aladas, transpassando o tempo e fertilizando
as sociedades planetárias. Para Eliade (1956, p. 84), “[...] o tempo constitui a mais
profunda dimensão existencial do homem, está ligado à sua própria existência,
portanto tem um começo e um fim, que é a morte, o aniquilamento da existência”.
Mas será mesmo a morte o fim da existência? “E a vida? E a vida o que é, diga lá
meu irmão....” As respostas se sucedem em cadência melodiosa e cativante
enquanto afirmam: “[...] Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo ...
Há quem fale que é um divino Mistério profundo... É o sopro do Criador ... Numa
atitude repleta de amor” (GONZAGUINHA, 1991). Que outros sentidos adquire a
questão existencial nas intermediações que emergem do hibridismo indivíduo -
natureza - sociedade? Que sentidos adquire o sagrado, nesse espaço-tempo do ser-
coletivo? Por mais avanços que a sociedade moderna tenha alcançado, ainda
permanecem alheias ao debate científico perguntas simples, como diria Rousseau,
e, para alguns inquietantes, que encontram, especialmente na cultura, oportunidade
de expressão. “Seja mítico ou inteligível, há um lugar em que tudo o que é ou que
será prepara-se ao mesmo tempo para ser dito” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 25).
Em busca de compreender o sagrado, os diversos caminhos percorridos pelas
civilizações geraram uma multiplicidade de símbolos, significados e valores que
muitas vezes traduziram relações de poder e potencialmente tornaram-se
causadoras de profundas divergências no pensamento humano, indicando assim o
terreno movediço sobre o qual caminhamos ao abordar esse assunto. Entretanto
não estamos mais sós e nem falamos de um senso comum, como sugerem as
60
palavras de Eisntein, citadas por Randon (2002, p. 39): “Se minhas teorias sobre o
universo estiverem certas, dizia Einstein, as pessoas precisarão de faculdades com
quatro dimensões para viver neste universo.” Ele estava certo.
Consideramos ser inócuo, no âmbito da Educação Ambiental, pretender
universalizar um conceito de sagrado a partir das características que constituem os
aspectos religiosos dessa humanidade. Contudo cabe considerar que as
abordagens científicas ocidentais que tratam desse tema têm como principal
fundamento o pensamento materialista de uma lógica binária, sempre partida do
pressuposto da existência daquilo que se pode comprovar concretamente. Não há
lugar, no contexto científico da Modernidade, para ampliação das noções de
espaço-tempo-matéria.
[...] ao expulsar o qualitativo e privilegiar exclusivamente o quantificável; ao mecanizar o cosmo e separar o corpo e a alma do homem; ficaram de fora do mundo da ciência a emoção e a beleza, a ética e a estética, a cor e a dor, o espírito e a fé, a arte e a filosofia, o corpo emocional e o mundo subjetivo (NAJMANOVICK, 2001, p. 84).
Como já mencionamos, em meados do século XX, emergem, na Física quântica,
descobertas importantes, cujos princípios tornaram possível a compreensão de uma
mesma realidade em diferentes níveis, e sua inclusão, nas discussões teóricas da
produção de conhecimento, ampliou o campo de visão, introduzindo uma nova
percepção da vida baseada na relatividade do conhecimento científico moderno. No
âmbito dessa nova perspectiva teórica, os dogmatismos de todo tipo tornaram-se
amarras indesejáveis e extemporâneas. Partindo desse lugar, a práxis da Educação
Ambiental emancipatória só pode se apresentar como problematizadora do
pensamento clássico da ciência moderna e proponente de um devir
progressivamente mais complexo.
Enquanto a ciência clássica, na medida em que avança, assiste ao
desmoronamento de seus alicerces teóricos, o meio ambiente também dá mostras
da falência desses pressupostos por meio de uma total incapacidade de reverter os
altos níveis de degradação impostos pela lógica exploratória dos recursos naturais,
como bem expressa a poesia concreta sobre espécies arbóreas da flora brasileira,
escrita por Gilberto Mendonça Teles e que apresentamos a seguir:
61
O MATO GROSSO DE GOIÁS18
1. Século XVIII
AROEIRA aroeira-branca/vermelha atambu ANGICO angico-branco/roxo/vermelho/
preto ANGELIM angelim-amargoso/araroba/coco/doce/pedra/rajado/rosa
almecegueiro ARAPUTANGA açoita-cavalos imburana CUMBARU breu-do-campo
BÁLSAMO canela BARAÚNA COPAÍBA copaíba-branca/vermelha cabrito
CABRIÚVA cega-machado canjerana CEDRO canjica carijó CAPITÃO-DO-MATO
coração de negro canjelim JENIPAPO/EIRO INGAZEIRO ingá-açu ingá-cipó
GARAPÁ calumbi chapada casco-danta IBIRAPITANGA cambiú CARAÍBA faveira
GAMELEIRA goiabeira-do-mato GONÇALO-ALVES embiú embira invira IPÊ ipê-
branco/amarelo/roxo/negro IPEÚVA imbiruçu JATOBÁ leite-vermelho JACARANDÁ
louro JACARÉ matuqueira Moreira macaqueiro MARIA-PRETA LANDI limoeiro
marinheiro mutambo mandobeira mandiocão nó-de-porco olho-de-cabra PAU-DE-
GOIÁS pau-candeia pau-cetim PAU D`ALHO pau-de-curtição PAU D`ARCO pau-
doce PAU D`ÓLEO pau-de-areia pau-roxo/ferro/rosa/santo pau-de-colher pau-
sassafrás pombeiro pimenta PAINEIRA PITANGUEIRA PIÚNA piúva PEROBA
peroba-rosa MOGNO quina SOBRO saputá SUCUPIRA SAPUCAIA tapororoca
TAMBORIL timbiúva VINHÁTICO vaqueta BARRIGUDA guatambu mangabeira
PITANGA pina catitanga canel-de-velho caiapó fruta-de-macaco osso-de-anta
catinga-de-cutia canela-gomosa farinha-seca pindaíba GUAPEVA almecegueira
INGÁ-MANSO roncador sangra d`água pé-de-branco caixeta pinheiro orelha-de-
burro joão-mole MARFIM papiro CABRIÚNA carvoeiro JATOBÁ freixo
MAÇAARANDUBA árvore-da-preguiça CATANHEIRO CEREJEIRA CARANDAÍ
carnaúba guariroba palmito FIGUEIRA piteira JEQUITIBÁ MULUNGU tamarindo
TARUMÃ CAJEIRA canil
18 Poema concreto apresentado na íntegra
62
2. Século XIX
AROEIRA aroeira-de-bugre/do campo ANGICO
imburana angelim-de-espinho/de folha larga
almecegueiro CUMBARU barbatimão BÁLSAMO
açoita-cavalos
canjica CABRIÚVA carijó CEDRO coração-de-negro
caparrosa-do-campo INGAZEIRO JENIPAPEIRO
GARAPÁ calumbi faveira CAPITÃO-DO-MATO
cangelim
CARAÍBA goiabeira-do-mato GAMELEIRA GONÇALO-ALVES
embiú embira IPÊ ipê-branco/amarelo/roxo/negro
peúva imburuçu JATOBÁ MUTUQUEIRA louro
moreira JACARANDÁ macaqueiro MARIA-PRETA LANDI
marinheiro PAU D`ARCO mandobeira PAU D`ALHO
mandiocão nó-de-porco olho-de-cabra
PAU-DE-GOIÁS pau-candeia pau-de-areia pau-de-colher
pau-roxo/ferro/rosa/santo pombeiro PAINEIRA
piúna pitangueira piúba PEROBA sobro saputá
SUCUPIRA tapororoca sapucaia timbiúva
VINHÁTICO BARRIGUDA mangabeira
timbiúva capitanga canela-de-velho caiapófrtua-
de-macaco
osso-de-anta catinga-de-cutia pindaíba
farinha-seca JEQUITIBÁ pé-de-pato-branco orelha-de-burro
sangra-d`água MARGIM CABRIÚNA joão-mole
treixo papiro pinheiro carvoeiro
árvore-da-preguiça carandaí CEREJEIRA guariroba
63
3. Século XX
aroeira-de-bugre aroeira-de-capoeira ANGICO
aroeira-de-campo angelim-de-espinho atambu
almecegueiro CUMBARU breu-do-campo
barbatimão canjica
GARAPÁ IMBURANA cedro caparrosa-
do-campo JENIPAPEIRO ingá-cipó
faveira casco-danta
cambiú goiabeira-do-mato
CARAÍBA GAMELEIRA cabriúva-do-
campo folha-de-bolo
PAU-D`ARCO MARIA-PRETA mandobeira
lixeira JATOBÁ landi marinheiro
mandiocão nó-de-porco pau-candeia
pombeiro JACARANDÁ piúva saputá
sapucaia canela-de-velho fruta-de-macaco
SUCUPIRA carandaí sangra-d`água
osso-de-anta catinga-de-cutia
caiapó canela-gomosa orelha-de-burro
freixo JEQUITIBÁ pinheiro papiro
árvore-da-preguiça SEBASTIÃO-ARRUDA
pau-terra lobeira araticum cortiça
canela-de-ema pequizeiro TAMBORIL
faveira aroeirinha banana-de-
macaco
64
4. Atualidade
babaçu bacaba bacuri capim-branco
capim-sempre-verde capim-bananeirinha capim-
meloso AROEIRA
capim-jaraguá catigueiro-roxo pau-terra
capim-gordura TAMBORIL capim-
membeca
capim-colonião capim-brachiaria PAU-D`ARCO
lobeira pequizeiro araticum cortiça
capoeirão capim-bengo capim-puba SUCUPIRA
faveira capim-navalha lixeira fedegoso
mangabeira aroeirinha guariroba JATOBÁ
derru derru derru derru
bada bada bada bada
iv iv iv iv
co ara co ara co ara co ara
le- le- le- le-
nha nha nha nhá
queimada qu`im`da q`eima`s qu`i`a`a qu``i``a`a
aceiro aceiro aceiro aceiro aceiro A ZERO
Se a dogmatização da ciência legou destruição, a dogmatização dos sentimentos e
de práticas religiosas resultou, de um lado, em negligência e repúdio gradativo de
seu conteúdo, identificado muitas vezes como alegórico-fantasioso ou romântico e,
por outro, em algumas partes do planeta forçou uma tendência oposta, a de tornar
suas verdades fundamentalistas. Em ambos os casos, as discussões teóricas e a
profanação da natureza, expressas pelo poema, avançaram em paralelo alcançando
o apogeu da dogmatização da ciência na expressão teórica do positivismo lógico e
gerando, no presente, uma realidade insustentável.
65
Em vão, a oposição sistemática à dogmatização dos valores espirituais, provocada
pelo paradigma moderno, tentou transformar a racionalidade instrumental no
ambiente aparentemente asséptico onde deveria florescer a verdade. Contudo a
influência desse pensamento nos ambientes naturais e humanos vem deixando
marcas profundas, a ponto de percebermos que é hora de rever(ter) nossas(novas)
posturas. Essa percepção foi também registrada na fala de uma das entrevistadas:
Tenho vinte anos fazendo EA, há vinte anos era mais importante que se tomasse isso como algo científico. No presente, como está a situação, urge a questão espiritual, agora urge. Já temos a base do científico, mas agora falta a teologia, faltam os valores, porque não resolvemos nada (ANALU).
No entrelaçamento do pensamento complexo e da transdisciplinaridade, podemos
destacar a presença de uma axiomática inovadora e compatível com algumas das
correntes mais atuais do pensamento pedagógico, especialmente da Educação
Ambiental. Citamos, por exemplo, a leitura de mundo propiciada pela teoria da
complexidade que, como vimos, torna possível uma imersão para além da dialética,
por inscrever-se num domínio teórico que não se encontra restrito ao tempo-espaço
histórico por ela definido, muito embora também se encontre inscrita nessa lógica.
O movimento de emergência de um novo paradigma favorece a problematização em
torno da contribuição que as dimensões, historicamente alijadas do processo
científico, poderão oferecer à qualidade de vida da biosfera terrestre. Os debates em
torno da ética, nessa sociedade de valores fluidos, também se tornaram foco de
análises e polêmicas. Para Albuquerque (2005, p.4), “[...] a procura por uma ética
que substitua os imperativos da neutralidade, da objetividade e da universalidade do
conhecimento científico, na gestão da natureza, abriu espaço para outras formas de
conhecimento”.
O mundo deixa de ser objeto de estudo do ser humano e este perde o status de
sujeito desse mundo. Homem e mundo manifestam faces de uma mesma realidade
multidimensional. No reencontro entre ciência e espiritualidade, vão se
desvanecendo, no horizonte dos tempos atuais, as figuras do “homem interior e
exterior”,19 derretendo-se as fronteiras do mundo macro e microfísico, tornando-se o
ser humano novamente (com)sagrado. 19
Merleau-Ponty, 1999.
66
Nada mais natural, no movimento inverso à disjunção, que se reintegre na
complexidade do ser o sagrado. A subjetividade do ser-sentir-fazer-sonhar e as
interrogações, enfim, encontram espaço para existir. Em tempos de preocupação
com o acondicionamento e destinação dos resíduos gerados pelas sociedades
modernas, pós-industriais, denominadas sociedades de risco20 (BECK, 1997),
podemos pensar na reciclagem de conceitos e na ressignificação do sentido da
verdade. No pensamento de Merleau-Ponty (1999).
A verdade não ‘habita’ apenas o ‘homem interior’, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.
Nessa consagração ao mundo, destituídos do poder da verdade absoluta,
encontramos o sentido de reciclagem da lógica cartesiana e os pares de
contraditórios: sujeito-objeto, subjetividade-objetividade, razão-emoção, corpo-
espírito, coração-mente, dentre outros, são rompidos e descontextualizam a
segregação. A teoria da complexidade e a abordagem transdisciplinar incentivam a
horizontalidade das relações e a verticalidade do pensamento por meio de diferentes
níveis de uma Realidade considerada multidimensional e multirreferencial
(NICOLESCU, 1999). Esse movimento que vivemos de desconstrução e
reconstrução permite pensar que “[...] a possibilidade de desdobramento dos
conceitos nos levam à indagação se o mundo da matemática, tratando de
quantificações e de medidas exatas, não está falando, também, de um mundo de
encantamento e magia” (AERTHE, 1996, p. 71).
Ressignificando o conceito do sagrado, a transdisciplinaridade, em sua lógica
ternária, considera-o como aquilo que não se submete a nenhuma racionalização.
Corresponde ao que se denomina zona de não resistência no modelo de realidade,
composto por diferentes níveis que se apresentam em uma estrutura descontínua.
Somam-se a esses a complexidade e a lógica do terceiro incluído que, reunidos,
constituem os pilares dessa abordagem.
20 “O conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (BECK, 1997a, p. 15, 16 e 17).
67
Chegando até aqui, notamos que é possível avançar interligando os fios dessa rede
de conhecimentos e afirmar que, numa perspectiva reducionista, a idéia de
reversibilidade parece inconcebível, mas, como nos coloca Eliade (1956, p. 81), “[...]
o tempo sagrado e forte é o tempo da origem, o instante prodigioso em que uma
realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente [...]”. E
prossegue: “[...] é pela sua natureza própria reversível, no sentido em que é,
propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Para um
homem não religioso esta qualidade trans-humana do tempo litúrgico é inacessível”
(p. 83).
Ainda que divergentes, as expressões, favoráveis ou contrárias à dimensão do
sagrado avolumam-se na linha do tempo da história humana na Terra. “Tempo rei,
oh! Tempo rei, oh! Tempo rei. Ensinai as coisas que eu ainda não sei [...]”
(MOREIRA, 1984). Soberano implacável das civilizações, o tempo age sempre,
destronando verdades absolutas, transformando as percepções e desvendando
mistérios. Outros povos, outras crenças e novas culturas foram postas em
movimento por sua ação permanente. As civilizações surgem ciclicamente
redirecionando caminhos, influenciando a trajetória humana, contribuindo, na
dinâmica de ordenação-reordenação do caos civilizatório, como se fossem
diferentes estágios do seu reverso, um princípio de ordenação, um ‘metapadrão’.
Em oposição ao caos, o pensamento científico postulou a idéia de ordem como
axioma das premissas que legitimam o paradigma moderno. Nas palavras de
Baumam (2001. p. 66), “[...] ordem [...] significa monotonia, regularidade, repetição e
previsibilidade [...]”. A ordem, na concepção do autor, regula a maior ou menor
probabilidade na ocorrência de determinados eventos. A desordem contemporânea,
vista e vivida pela ótica da crise ambiental ou social do mundo, soma-se ao
desencantamento da modernidade e contribui com o rompimento da sua expectativa
de previsibilidade.
Para Layrargues (apud TREVISOL, 2004, p. 33), “[...] a atual desordem da biosfera
decorre de uma longa, complexa e conflituosa cadeia de relações entre o mundo
humano e o mundo natural”. Estamos vivendo uma tal desordem ambiental, que
podemos chamá-la de caos. Em grego, a palavra caos (kháos) deriva do verbo
khaínein, que significa abrir-se, entreabrir-se, o que por si só já traz um sentido
68
profundo. Contudo, no exercício de compreender o mundo, a mente humana
complexa significa e ressignifica as palavras, instituindo verdades relativas e
provisórias. Como sustenta o pensamento de Merleau-Ponty (2002, p. 39), “A
filosofia não é a passagem de um mundo confuso a um universo de significações
fechadas. Ao contrário, ela começa com a consciência daquilo que corrói e faz ruir,
mas também renova e sublima nossas significações adquiridas”.
Qual a impressão que a leitura da palavra caos provoca em você? Com sentidos
diversos, “o caos” esteve presente na História denominando momentos da
humanidade. Na cosmogonia egípcia, por exemplo, o caos é uma energia poderosa
do mundo informe, que cinge a criação ordenada. “Existia antes da criação e
coexiste com o mundo formal [...], na tradição chinesa, o caos é o espaço
homogêneo, anterior à divisão em quatro horizontes, que equivale à criação do
mundo” (BRANDÃO, 2000, p. 184).
Na religiosidade da antiga civilização egípcia, situada no período da XVIII Dinastia, o
faraó Akenaton fundou o culto monoteísta consagrado ao deus solar Aton. O poema
“Pequeno hino a Aton”, como registro histórico dessa época, permite a percepção de
um conceito de caos profundamente religioso e interpretado como “[...] a estrutura
de onde emerge aquele que criará a vida” como se o universo fosse caos até a
intervenção divina. Foi a partir de Aton que se deu a ordem no caos e se fez a vida,
como pode ser notado no hino egípcio, citado por Eliade (1978, p. 134), que diz: “Foi
Aton quem criou todos os países, e os homens e as mulheres, e colocou cada um
em seu lugar próprio, atentando para suas necessidades”.
Embora múltiplas significações sejam possíveis, o conceito de caos por nós aqui
utilizado diz respeito ao plano das irregularidades, descrito pela teoria do caos
originada na Matemática e posteriormente associada à Física.
Essa revelação sobre o caos21 foi feita pela primeira vez por cientistas cerca do final da década de 1960, e desde então vem sendo intensamente pesquisada. Contudo, o verdadeiro significado do caos para nós, como indivíduos e como sociedade, só agora está começando a ser explorado (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 13).
21 O termo científico “caos” refere-se a uma interconectividade subjacente que existe em fatos aparentemente aleatórios (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 13).
69
Para essa teoria, pode-se identificar ordem na desordem aparente dos sistemas e é
nessa maneira de olhar o caos, do ponto de vista da ciência, que nos interessa
analisar e entrelaçar esse conceito com os demais. Embora descoberta recente, da
ciência formal, no Ocidente, a idéia de caos, como vimos, já circula há muito na
história da humanidade, especialmente quando procura retratar a busca das
civilizações pela compreensão das gêneses humana e do mundo.
Consideramos, como o faz Gobbi (2002), que, diante da “percepção do caos como
categoria de análise”, podemos inferir que, tanto no nível de realidade em que se
movimenta a ciência, quanto nos níveis de realidade sugeridos pelas crenças
religiosas, existem possibilidades de se estabelecer um diálogo, um entrelaçamento
que se manifesta inicialmente na transgressão de uma lógica binária, não-linear e,
posteriormente, no questionamento e revisão dos princípios do terceiro excluído e de
causalidade da lógica clássica. Pensar uma realidade multidimensional implica a
obrigatoriedade de estabelecer um estudo pormenorizado com base numa
perspectiva humanista, subjetiva e transdisciplinar a partir do qual sejamos capazes
de contemplar o sagrado destituídos dos preconceitos e fundamentalismos
culturalmente cristalizados.
Falar de fundamentalismo é chamar a atenção para as maneiras absolutistas de
interpretação das orientações teóricas de certas doutrinas religiosas, políticas ou de
qualquer outro lugar social, em detrimento do cuidado essencial com a vida. Diante
dos acontecimentos atuais, nós mesmos, por vezes, temos desejado que, no correr
do tempo, uma mudança se processe e que os conhecimentos produzidos por nossa
sociedade sejam colocados a serviço da paz mundial. Já se passaram mais de 100
anos desde que Max Planc revelou ao mundo a simultaneidade entre partícula e
onda ampliando o campo do conhecimento científico para uma lógica não-linear que
comporta diferentes níveis de Realidade. Contudo, com essas descobertas, pouco
ou quase nada se modificou no âmbito da educação que permanece em grande
parte sob influência de uma lógica binária.
No pensamento de Boff (2002, p. 39-40), “[...] outro tipo de fundamentalismo
comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência
contra a natureza”. Boff ilustra as idéias do filósofo ao citar seu pensamento:
70
[...] há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica.
No desempenho de seu papel, coube, portanto, à ciência dar sentido ao meio
ambiente, o que de fato aconteceu a partir de uma cosmovisão objetiva e
reducionista, como vimos. Num movimento silencioso e transgressor de resistência,
opondo-se ao pensamento clássico científico, inúmeros fios, espalhados pelo tecido
social como “pontas soltas” (ASSMAMM, 1998), resistiram e se perpetuaram através
da História. Dentre eles, destacamos a hermenêutica que, na concepção de Grün
(2004, p. 28-29), “[...] permite trazer a Natureza alienada para perto de nós
mantendo a sua alteridade, sua Outridade... A hermenêutica não visa dominar a
natureza e sim escutá-la e entendê-la como Outro para que possamos voltar
modificados desse encontro”. Nesse sentido, consideramos essa “escuta sensível”
(Barbier, 1985) de si e do outro como movimento criador de novas tessituras, de
formulação e reformulação de valores, sejam eles individuais, sejam coletivos,
presentes na sociedade, associando-os em muitos momentos ao sagrado.
De acordo com o exame realizado por Soffiati (2004, p. 98), “[...] as diversas
concepções de natureza produzidas pelas sociedades humanas, seja pelos sistemas
religiosos, seja pelos sistemas filosóficos, seja ainda pelos sistemas filosófico-
religioso podem ser reunidas em seis grandes grupos”, a saber: visão sacralizada da
natureza, visão semisacralizada da natureza, visão holística dos físico-gregos, visão
semi-dessacralizada judaico-cristã, visão mecanicista da natureza e visão
organicista da natureza, cujas heranças, no mundo ocidental, foram uma forte
dogmatização religiosa que parece reverberar no enfrentamento das questões
socioambientais contemporâneas.
Trazer para o diálogo da Educação Ambiental a dimensão espiritual e considerar os
sentidos daquilo que é sagrado, na percepção dos formadores entrevistados, é
reconhecer uma condição de humilde insuficiência da racionalidade científica. Esse
reconhecimento representa uma reflexão sobre seres humanos e,
71
conseqüentemente, sobre sociedades, cônscios de sua incompletude e, portanto,
abertos à experiência do transcendental. No entendimento de Merleau-Ponty (1999,
p. 95), “[...] esta palavra significa que a reflexão nunca tem sob seu olhar o mundo
inteiro [...], que ela só dispõe de uma visão parcial e de uma potência limitada”.
No postulado de Baumam (2001, p. 74), “[...] estar inacabado, incompleto e
subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário
também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade
precisa manter aberto”.
Apesar da noção de abertura, implícita no paradigma pós-moderno, notamos que
sua formulação não faculta à sociedade contemporânea o descolamento dos valores
e modos de pensar e agir da Modernidade. Ocorrendo simultaneamente, os
pressupostos de ambos coabitam o cotidiano, impregnando nossa visão de mundo
com sua axiomática, ao mesmo tempo em que abastecem os celeiros do
fundamentalismo como aquilo que “[...] representa a atitude daquele que confere
caráter absoluto ao seu ponto de vista” (BOFF, 2002, p. 25).
No mundo globalizado de hoje, que procura submeter as coletividades à perda de
suas identidades em favor da massificação nos níveis social, político, econômico e
cultural, estão sujeitos a tornarem-se fundamentalistas grupos de militantes políticos,
religiosos ou cientistas, dependendo para isso de sua visão de mundo e,
principalmente, de suas posturas no desenvolvimento das ações que lhes competem
tomar, sejam eles mais abertos e universalistas, sejam mais fechados e
individualistas em suas próprias convicções.
72
4.2 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: SUSTENTABILIDADES E ÉTICA
COMPLEXA
Diante de vários níveis de realidade, o espaço entre as disciplinas e além delas está cheio, como o vazio quântico está cheio de todas as potencialidades [...] (NICOLESCU, 1999. p. 52).
Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais grosseira. As duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula quântica ao cosmo (NICOLESCU, 1999, p. 27).
Os estudos de percepção vêm contribuindo na investigação das relações humanas
com o meio ambiente, porque possibilitam compreender as diferenças de
valorização, as relações, atitudes, comportamentos e importância atribuídos a estes,
além de tornar visíveis as aspirações das populações humanas envolvidas em
questões ambientais, considerando não apenas os aspectos cognitivos, como,
também, fatores de crenças, valores individuais e coletivos, busca da felicidade
pessoal e progresso material, processos políticos e ideológicos, além de
comportamentos socioeconômicos e culturais.
É o conjunto desses aspectos que sustenta nossas vidas. Quero dizer, que nenhum
de nós pode eleger apenas um dos aspectos descritos, para cuidar. A complexidade
da rede de interdependência entre as dimensões humanas éticas, políticas e
estéticas é que dá sustentabilidade à vida. Pensar, portanto, em sustentabilidade
implica pensar no que é insustentável à nossa condição. Nesse sentido, a sociedade
atual oferece vasto campo para reflexão, basta fechar os olhos, ou abri-los e refletir
sobre nosso sistema penitenciário ou sobre o sistema político brasileiro. Em nível
mundial, parar um minuto na compreensão da complexa teia do sistema econômico,
cujo principal e paradoxal fator de operação é a especulação. Do mesmo modo,
encontra-se insustentável o modelo educacional que adotamos, e assim por diante.
Se a reflexão avança sobre o sistema ecológico planetário, então vemos um
panorama no mínimo constrangedor e, com grande clareza, que as dinâmicas
insustentáveis não são mais apenas restritas a determinados locais no planeta. A
insustentabilidade dos sistemas locais vem provocando uma crise de
sustentabilidade planetária. “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem
73
mundial” (VELOSO, 1992). Na questão ecológica, por exemplo, algumas das
principais ameaças globais são: o esgotamento de água potável, a realidade das
mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a poluição e a redução dos
recursos energéticos. Sobre essas questões, vejamos a que emergiu no Grupo
Focal 2, na forma de (pre)ocupação manifestada por Tati:
Eu acho que a gente tá vivendo a questão do limite porque nós estamos muito perto, nessa discussão que tá sendo colocada... a questão do aquecimento global, como irreversível, como sendo um processo que a gente vai viver, que a gente já tá dentro dele, esse é o limite! É um limite pra humanidade, não tem como ficar ainda ensaiando coisas. A gente vai ter que aprender a viver com limite, tentar protelar essa questão, tentar resolver a questão de alguma forma, mas a gente tá dentro e parece que não tem retorno, não tem como voltar. As geleiras começarem a congelar de novo! Não tem mais isso, sabe? Já tá dado, o mar vai subir mesmo, muitas populações vão desaparecer, muitas terras vão... quer dizer, então é o processo que a gente tá vivendo. E eu acho que tá colocando esse limite pra gente, esse limite que eu tô falando: nós usamos e abusamos enquanto espécie, muito além do que a Terra tinha condições de agüentar, então agora ela está dentro daquela perspectiva de Gaia, colocada pelo Lovelock, que ela tá se arrumando, a Terra tá buscando seu reequilíbrio e vai jogar fora aqueles que estão desafiando isso [...].
No decorrer das últimas quatro décadas, as formas de expressão da preocupação
mundial com a capacidade suporte do planeta Terra têm se apresentado de maneira
variada, ocupado as mídias e os diferentes cenários de discussão entre as nações.
A referência de emprego do termo sustentabilidade remonta ao século XVIII.
Segundo Brasil (2001, p. 155), “[...] o termo sustentabilidade foi usado pela primeira
vez por Carlowitz, em 1713, em uma referência à exploração de florestas na
Alemanha”. Depois, o termo foi cunhado de outras formas ganhando, a cada nova
terminologia, outros sentidos sem, contudo, haver, dentre suas matrizes discursivas,
uma definição clara e delimitada (LOUREIRO, 2003). Alguns desses conceitos que
aqui citamos são: desenvolvimento ecotecnológico (1973), ecodesenvolvimento,
(1980), desenvolvimento sustentável (1987/1972), desenvolvimento endógeno
(1988) e sociedades sustentáveis. Na análise de Tristão (2004, p. 48), a base do
paradigma da sustentabilidade “[...] está calcada nos pilares do desenvolvimento
sustentável, pois foi a partir disso que se pensou em sociedades sustentáveis; uma
garantia de renda mínima a todos os necessitados, isso conciliado com um clima de
liberdade e respeito aos direitos de participação nas políticas de desenvolvimento”.
74
Na mesma linha de pensamento, o Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global afirma a importância da
Educação Ambiental no processo de incentivo à formação de sociedades
sustentáveis, que o documento identifica como devendo ser, socialmente justas,
ecologicamente equilibradas e que conservem entre si relação de interdependência
e diversidade. Layrargues (2004, p. 50) vai além, quando nos convida a lembrar que
sociedades sustentáveis “[...] são aquelas ao mesmo tempo ecologicamente
prudentes, economicamente viáveis, socialmente justas, culturalmente diversas e
politicamente atuantes”. Há quem possa dizer que tais sociedades são utópicas,
mas, como diria o poeta Quintana (1999, p. 36):
DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis...ora! Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas!
Voltando ao nosso movimento de busca pelo significado das palavras, fizemos
descoberta especial ao nos depararmos com as profícuas possibilidades de
significação do vocábulo sustentar, que dá origem aos conceitos discutidos
anteriormente. Segundo Holanda (1986, p. 1342), a palavra SUSTENTAR significa:
“[...] impedir a ruína, dar ânimo, proteger, defender com argumentos, alimentar física
e moralmente, estimular, incitar, instigar e pelejar a favor de”. O desencontro entre
significado e sentido pode ser observado no cotidiano, pois, se o termo
“desenvolvimento sustentável” apresenta um par de contrários, mostrando-se
inconciliáveis pelo modelo hegemônico, sua aplicação tem se revelado uma farsa
incontestável, sugerindo a necessidade de se pensar outros níveis de Realidade
envolvendo ecologia, economia e uma linha de dignidade22 humana, que comportem
uma lógica ternária.
Articular Educação Ambiental e sustentabilidade no âmbito da sociedade em que
vivemos implica pensar criticamente e romper com a farsa. Pensar não mais em um
22 Segundo Silva (2006) “[...] a Linha de Dignidade (LD) vem sendo desenvolvida pelo Projeto Brasil Sustentável e Democrático - no âmbito do Programa Cone Sul e em interlocução periódica com os projetos Chile, Uruguai e Argentina Sustentáveis. Este estudo tem o objetivo de transcender os limites dos indicadores normalmente em uso, como o IDH e a Linha de Pobreza”.
75
desenvolvimento sustentável, já que não existe perspectiva de que, com esse
parâmetro de desenvolvimento imperalista, a sustentabilidade aconteça.
Recursivamente retomamos a idéia de sociedades sustentáveis que parecem
sinalizar um diferente porvir. Essa diferença de emprego na terminologia nos
favorece a compreensão de que, ao educarmos para constituição de sociedades
sustentáveis, é imprescindível reconhecer o fracasso do atual modelo de
desenvolvimento econômico, político e social em que nos referenciamos. Por
conseguinte, como no jogo do xadrez, essa reflexão coloca em xeque os valores
sociais amplamente disseminados pelo movimento da globalização.
Na visão de Capra (1996, p. 27), “[...] se olharmos para a nossa cultura industrial
ocidental, veremos que enfatizamos em excesso as tendências auto-afirmativas e
negligenciamos as integrativas. Isso é evidente tanto no nosso pensamento como
nos nossos valores”. Como exemplo, o autor opõe algumas dessas tendências,
conforme demonstra o quadro 1 a seguir:
PENSAMENTO VALORES
Auto-afirmativo Integrativo Auto-afirmativo integrativo
racional intuitivo expansão conservação
[analítico] [sintético] competição cooperação
reducionista holístico23 quantidade qualidade
linear não-linear dominação parceria
QUADRO 1: Oposição de pensamentos e valores, segundo a percepção de Capra,
1996.
A globalização, como a percebemos hoje, é um fenômeno que busca a
homogeneização da cultura humana. Ela procura impor a todos o desejo de querer
fazer parte dessa atraente cultura “universal” que tem o poder aparente de nos
conectar em segundos com tudo o que há, num ilusionismo perfeito que induz à
sensação de completo domínio de tempo e de espaço. No âmbito da globalização,
23 Segundo N. do T., em Capra (1982, p. 13), “[...] o termo ‘holismo’, do grego ‘holos’, ‘totalidade’, refere-se a uma compreensão da realidade em função de totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas a unidades menores”.
76
estamos de fato conectados uns aos outros, mas por uma rede extremamente frágil
de relações voláteis e volúveis cuja satisfação é tão passageira e superficial quanto
pode ser uma visita a sítio de internet.
Por outro lado, o fenômeno da globalização, por afrontar, assim, abertamente a
tendência humana de viver em grupo, parece alimentar em algumas pessoas uma
forte rejeição à proposta de hibridização da sociedade, gerando uma relação
paradoxal de supervalorização daquilo que é eminentemente identitário. Se, por um
lado, a cultura de massa leva à perda das identidades locais, por outro, pode
estimular o resgate e o fortalecimento da diversidade. No entendimento de Elias
(1993), para se compreender o fenômeno indivíduo/sociedade, é necessário desistir
de pensar em termos de substâncias únicas e começar a pensar em termos de
relações e funções.
Nesse caso, remetidos pelo pensamento do influente sociólogo da década de 70,
Norbert Elias, cujas obras também refletiram o pensamento sistêmico e complexo da
sociedade organizada como grandes “redes sociais”, recordamos que também vem
da Biologia a idéia de que realmente estamos conectados em redes, assim como
ocorre com os processos metabólicos, cujo encadeamento se dá por meio de redes
químicas, os ecossistemas se constituem e sustentam através de redes de
organismos e estes, por sua vez, resultam da relação entre uma delicada e
complexa rede de células. Finalmente, as células apresentam-se, nessa perspectiva,
como redes de moléculas e, assim, como sustenta Capra (2002, p. 27), “[...] onde
quer que haja vida, há redes”.
Ora, no contexto de uma comunidade internacional globalizada, referenciada por
uma lógica capitalista que se fundamenta em valores e pensamentos auto-
afirmativos, a expansão de uma “cultura-mercadoria” (GATARRI; ROLNIK, 1986)
que transforma pessoas e bens em mercadorias culturais, incluindo aqui também a
educação, tende a disseminar nas redes de nossas relações e funções,
pensamentos, discursos e atitudes insustentáveis. As questões colocadas no
contexto da relação meio ambiente e globalização vão, portanto, além de uma
preocupação com a visão utilitarista de recursos, cujo principal problema é a
77
escassez de matérias-primas ou a diminuição das fontes de energias renováveis.
Segundo Bauman (2003, p. 8):
Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências [é o que acontece por exemplo com] os processos de globalização sem controle político ou ético que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes.
Ao sucumbirmos diante da mercantilização da vida, dos interesses individualistas
colocados acima do interesse público, das tramas subjugadoras do poder, das
facetas enganadoras da tentativa de globalização da cultura ou da força devastadora
da ambição, estaremos aprisionando séculos de história, lutas e conquistas, no
vazio de um futuro no qual a ética tende a se tornar, cada vez mais, fluida e seu
sentido cada vez mais difuso. “Contudo, mulheres e homens, seres histórico-sociais,
nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir,
de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos
sendo” (FREIRE, 1996, p. 36).
Considerando nossa interdependência fundamental de ser-no-mundo, o fechamento
em si mesmo, o isolamento voluntário, o individualismo exacerbado a que nos
conduziu a visão de mundo da Modernidade é destrutivo em alta escala e a falta de
ética é o sinal dessa decadência. Mas de que ética falamos? No entendimento de
Morin (2005, p.36):
[...] a ética é, para os indivíduos autônomos e responsáveis, a expressão do imperativo da religação. Todo ato ético, vale repetir, é na realidade, um ato de religação, com o outro, com os seus, com a comunidade, com a humanidade e, em última instância, inserção na religação cósmica.
Sendo assim, não é difícil convergir o sentido atribuído ao sagrado pela abordagem
transdisciplinar e a ética complexa apresentada por Morin. É mesmo curioso
perceber a recursividade do processo de produção de sentidos pelas palavras
usadas para compreendê-la: religação, autonomia, responsabilidade. É possível
notar também a presença da preocupação com o outro, com as relações e com o
cosmo, refutando, do ponto de vista da ética complexa, a mercantilização da vida. O
chileno Pablo Neruda vai ao encontro desse pensamento fazendo uma crítica,
78
quando discursa ao receber o Prêmio Nobel. Diz o poeta:
O mercado tem uma relação muito direta com os danos ambientais. A contaminação dos solos não afeta apenas os ares, os rios e as florestas, mas também as almas. Uma sociedade possuída de um frenesi para produzir mais, consumir mais, tende a converter as idéias, os sentimentos, a arte, o amor, a amizade e as próprias pessoas em objetos de consumo. Tudo se envolve com coisa que se compra, que se usa e se joga no lixo. Nenhuma sociedade havia produzido resíduo como a nossa. Resíduos materiais e morais.
Nesse contexto de discussão e ação, podemos parecer nostálgicos, mas “[...] quem
é que nunca levanta de noite querendo de volta o perdido”? (SÁ; GUARABIRA,
2005). Pela abordagem da complexidade, ao pensarmos em sociedades
sustentáveis, não podemos deixar de (re)considerar os fios soltos do passado,
naquilo em que demonstram espelhar nossa condição humana que, além de
guerras, misérias e fomes, também é capaz de criar a arte, aprimorar os cuidados
com a sobrevivência e avançar no desenvolvimento de tecnologias que assegurem
uma vida digna e com qualidade. Também não podemos abrir mão de uma noção de
ética que seja complexa.
[...] as sociedades mais complexas comportam, ao mesmo tempo que a própria religação comunitária, antagonismos, rivalidades, desordens, todos inseparáveis das liberdades. Além disso, no espírito dos indivíduos, as religações acontecem a partir da responsabilidade, da inteligência, da iniciativa, da solidariedade, do amor (MORIN, 2005, p. 35).
Essas referências passam a ser imprescindíveis no enfrentamento da atual crise
civilizatória, entendendo como principais desafios a serem enfrentados pela
Educação Ambiental emancipatória articular as questões envolvendo
sustentabilidade com a ética. Os processos formativos, nesse contexto, serão
capazes de contribuir para ressignificar valores e pensamentos de expansão,
competição e dominação atualmente estabelecidos, buscando compreendê-los a
partir de outros níveis de realidade para que se convertam em seus pares de
contrários, quais sejam, as noções de conservação, preservação, recuperação,
cooperação e parceria. Nessa perspectiva, Tristão (2004) argumenta que o que a
Educação Ambiental propõe é uma teoria comprometida com a emancipação dos
sujeitos, com a transformação da realidade socioambiental.
79
Emancipar significa tornar independente, libertar. Quando nos referimos a uma
Educação Ambiental emancipatória, estamos subentendendo a educação como
processo democrático e participativo por meio do qual cada cidadão tem direito à
manifestação livre de suas idéias e realizações, mas, ao mesmo tempo, é convidado
a repensar seu campo perceptivo, para ampliar sua noção de pertencimento24 a que
a idéia das redes nos remete. E, assim, reportando-nos para a idéia do pensamento
em rede, podemos associar à cognição as noções de responsabilidade, autonomia,
respeito à diversidade, isonomia, multidimensionalidade e exercício do poder.
Por meio da partilha solidária, da descoberta de novos caminhos para a reinvenção
do mundo, acreditamos que se dê a potenciação dos sujeitos para enfrentamento
livre e libertário do imobilismo social e dos sentimentos silenciosos de impotência.
Nessa perspectiva, como educadores, visamos a contribuir com práticas, de fato,
inclusivas e responsáveis que se articulem com as necessidades e problemas
relacionados com a questão socioambiental dos tempos atuais, em atendimento às
necessidades da coletividade e não do interesse de poucos.
É nesse sentido que retomamos a expressão sociedades sustentáveis, postulada
pelo Tratado de Educação Ambiental Para Sociedades Sustentáveis e
Responsabilidade Global, importando considerar a complexidade das relações
sociais e destas com a natureza, para sustentar o movimento contra-hegemônico de
suplantação dos pensamentos e valores auto-afirmativos em favor daqueles de
natureza integrativa, considerando-se a auto-organização, inerente ao pensamento
das redes, como importante estratégia para criar e aceitar novos níveis de realidade.
Ao citar a auto-organização, estamos nos referindo “[...] a dinâmica de emergência
espontânea de padrões de ordem e de caos num sistema devido às relações
recursivas internas do próprio sistema e/ou às interações do mesmo com seu meio
ambiente” (ASSMAMM, 1998. p. 135).
Nesse sentido, há um fundamento complexo sobre o qual cresce a noção de
sustentabilidade, comprometida com a dinâmica socioambiental-econômico-cultural,
24 Expressão utilizada para designar um princípio que admite um sentimento de inclusão societária sem perda de identidade individual (MOURÃO, 2005).
80
cuja conquista requer, obrigatoriamente, um movimento ético de empoderamento
coletivo com um novo arranjo lógico, que deve considerar a necessidade e
relevância das noções transdisciplinares. O pensamento complexo
[...] não é um conceito manipulável, é o de integrar em si próprio uma visão que busca a multidimensionalidade, a contextualização. É uma ajuda ao pensamento pessoal, não é um programa, um método ou modelo que pode sair da minha bolsinha e ser utilizado. É uma integração em sua mente de alguns princípios fundamentais (MORIN, apud SATO; PASSOS, 2003, p. 20).
Para vivermos em comunidades sustentáveis e levar a mensagem de autonomia que
a Educação Ambiental emancipatória sugere, faz-se necessário, primeiramente, que
os sujeitos se emancipem. A emancipação começa em cada um de nós, passa pela
dinâmica complexa e auto-organizativa íntima, mas não termina enquanto não se
estender, também, em nível micro e macro, à sociedade dos indivíduos. Parece-nos
notório que a crise ecológica atual evidencia, antes de tudo, uma crise da própria
sociedade. Configurando esse fato, acrescido de outros, o conceito de sociedade de
risco (BECK, 1997; GIDDENS, 2000) referencia nosso olhar sobre as questões
cotidianas. “Não se deve acreditar que a questão da complexidade só se coloque
hoje em função dos novos progressos científicos. Deve-se buscar a complexidade lá
onde ela parece em geral ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN,
2005, p. 57).
Sentimos que há, agora, uma abertura na unidade do pensamento complexo para
mergulharmos no nível de Realidade do sagrado.
Para a filosofia ocidental uma crença intelectual fixa é a parte mais importante de um culto, é a essência de seu significado e o que o distingue dos outros. Assim é que as crenças formuladas fazem verdadeira ou falsa uma religião [uma teoria, uma filosofia, uma ciência], de acordo com sua concordância ou não com o credo de seus críticos (SRI AUROBINDO, apud D’AMBROSIO, 2001, p. 107).
81
5 CAMINHANTE E CAMINHOS
A transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido [...] o sujeito-conhecedor faz parte integrante da Natureza e do conhecimento (NICOLESCU, 2005).
O presente trabalho foi tecido numa perspectiva transdisciplinar, de tal forma que,
em sua constituição, pudéssemos abrigar as características de uma investigação
fenomenológica, inicialmente direcionada pela bússola do complexo olhar
merleaupontiano e posteriormente entrelaçada com elementos da teoria geral dos
sistemas, da auto-organização, da teoria do caos e da complexidade, consideradas,
por muitos, como abordagens pós-modernas e que, a nosso ver, ampliam as noções
de conexão/integração/(re)ligação/conjunção implícitas no pensamento de Merleau-
Ponty e presentes no paradigma emergente.
A percepção é aqui compreendida como referência a um todo que por princípio só é apreensível através de certas partes ou certos aspectos seus. A coisa percebida não é uma unidade ideal possuída pela inteligência (como por exemplo uma noção geométrica); ela é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas que se recortam segundo um certo estilo, estilo esse que define o objeto do qual se trata (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 48).
As novas possibilidades teórico-metodológicas subsidiadas pelo movimento da
transição paradigmática permitem-nos diferentes olhares sobre os mesmos
problemas, facultando um rearranjo no espaço conceitual das bases epistemológicas
aqui abordadas. Tornar mais elásticas as fronteiras disciplinares de um sistema é um
primeiro exercício no sentido de viver sem elas.
Para tecer os fios das percepções, atravessando suas fronteiras, articulando-as
entre si, visitando territórios alheios, seja do ponto de vista dos campos de saber
envolvidos nesta pesquisa, seja pela partilha intersubjetiva entre os sujeitos
participantes, concordamos com Morin, quando afirma que “[...] precisamos
ultrapassar a idéia simples de encerramento que exclui a abertura, a idéia simples
de abertura que exclui o encerramento [...] quanto mais complexo é um sistema,
mais ampla é a sua abertura, mais forte é o seu encerramento” (MORIN, 1997,
p.169-170).
82
Nessa perspectiva, abertura e fechamento são os mesmos conceitos que sempre
fizeram parte de nosso vocabulário. Entretanto ganham, no contexto do pensamento
complexo, uma conotação não excludente que se aproxima da idéia da lógica
ternária defendida por Nicolescu e encontra-se referenciada ao longo deste estudo.
Esta tensão existente entre os pares antagônicos engendra um princípio dialógico
que se encontra presente tanto na teoria da complexidade quanto na lógica do
terceiro incluído proposta pela abordagem transdisciplinar.
Em busca das percepções do sagrado, percepções presentes nos processos de
formação em Educação Ambiental, identificamos a configuração de múltiplos
sentidos atribuídos à palavra, o que nos remete a uma análise não estruturalista dos
resultados, eliminando de início a possibilidade de uma análise de conteúdo ou
análise textual. Segundo Carvalho (2005, p. 204),
[...] ao fechar-se na esfera do simbólico, o estruturalismo afirmaria sua necessidade de um universo de sentido logicamente estabilizado, expulsando de seus domínios a força dos jogos, deslocamentos e decisões de sentido que se impõem desde o plano da ação dos sujeitos e do acontecer histórico.
Pelo que foi discutido no quadro teórico, não acreditamos nessa estabilidade dos
sentidos e muito menos em uma lógica conceitual absoluta que desconsidere as
subjetividades dos sujeitos presentes no discurso. Para Spink (1999, p. 42),
produção de sentidos “[...] é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem
em uso [...], é tomada, portanto, como fenômeno sócio-lingüístico”.
Do ponto de vista do olhar merleau-pontiano, a virtude da linguagem é nos lançar ao
que ela significa: do signo ao sentido. O sentido triunfa ao apagar-se a palavra e dá-
nos acesso ao pensamento do autor. Nisso somos sustentados pelo movimento do
nosso olhar e de nosso desejo.
Os jogos intersubjetivos e a realidade espaço-temporal em que foi constituída esta
pesquisa influenciaram claramente os resultados, como podemos exemplificar nos
recortes feitos no conjunto das narrativas e depoimentos que passamos a
apresentar:
83
[...] o que me apavora ainda um pouco, e a gente pega pela questão do sagrado, ultimamente, quando eu tenho sentido assim, na fala do meu filho de doze anos, que algumas pessoas jovens demais... o que tá me preocupando muito é, é a falta da perspectiva de futuro. Meu filho falou comigo um dia conversando... eu falando de uma coisa de futuro, daqui a 30 anos: ‘Ah! Nem sei se eu vou tá vivo’. E aí ele falou assim: ‘Mãe, quem é que sabe que vai tá vivo daqui a 30 anos?’(TATI).
Após seu depoimento, Tati solta um enorme suspiro deixando transparecer que
acabara de fazer um profundo desabafo e esfrega o peito em movimentos circulares.
Logo em seguida, outra participante faz sua colocação:
Esse pessimismo, é que eu não concordo muito com ele. Eu acho que nós já usamos bastante a capacidade suporte do planeta, mas agora a gente tem que correr atrás do prejuízo, como se diz [...] (AMANDA).
Por esse motivo, entendemos haver uma riqueza de sentidos, sentimentos, afetos e
crenças que precisa ser valorizada. Então, tomamos as narrativas como práticas
discursivas que entendemos ser “[...] as maneiras a partir das quais as pessoas
produzem sentidos e se posicionam em relações sociais” (SPINK, 1999, p. 45) e
procuramos privilegiar igualmente as linguagens verbal e não-verbal, como formas
de expressão.
Além da possibilidade dialógica das narrativas, vemos como Silva (1995, p. 205),
que “[...] é através de histórias sobre o passado – narrativas - que podemos dar
sentido ao presente e construí-lo e é também assim que podemos imaginar um outro
futuro”.
Parece evidente que os problemas ambientais, de âmbito global, enfrentados por
nós na atualidade, aliados às questões de ordem econômica e social, afetam
diretamente nossa percepção, alçando-nos algumas vezes para outros níveis de
Realidade. A maneira de expressar o sentido daquilo que percebemos passa pela
linguagem verbal, mas inclui também uma linguagem não-verbal – respirações,
posturas corporais, gestos, expressões da face etc. cujo conteúdo influencia a
relação dialógica no grupo, talvez até muito mais do que a fala em si. Somos mais
tocados pela linguagem não-verbal do que pelo conteúdo do verbo.
84
5.1 ENCONTROS E HOLOGRAMAS
Encontrar pessoas foi o caminho escolhido para o desenvolvimento desta pesquisa.
Pessoas são, potencialmente, hologramas da sociedade. Nesse sentido, encontrar
pessoas pode representar um encontro com os diferentes níveis da realidade social.
No pensamento de Tristão e Fassarela (2007), os encontros e eventos de educação
ambiental são também como rituais de iniciação e de (auto)formação em Educação
Ambiental junto a pessoas que se sensibilizam, se mobilizam e participam desse
debate. Sendo assim, consideramos que os encontros de formação ou eventos
seriam lugares bastante favoráveis à expressão do sagrado por aqueles que estão
tecendo suas redes de contatos e sentidos.
As estratégias utilizadas nas etapas de abordagem dos sujeitos, no âmbito geral,
foram baseadas em entrevistas semi-estruturadas, que consistem na interação que
se desenrola a partir de um esquema básico, porém que não se aplica com rigidez,
permitindo mudanças e adaptações de acordo com o andamento do trabalho
(GATTI, 2005). Consideramos importante, nessa fase, ouvir (linguagem oral) e
observar (linguagem gestual, postura corporal, expressões faciais etc.), pois, de
acordo com Merleau-Ponty (2002, p. 23), “[...] exprimir não é então nada mais do
que substituir uma percepção ou uma idéia por um sinal convencionado que a
anuncia, evoca ou abrevia”.
No que se refere aos Grupos Focais, Gatti (2005, p. 44) também afirma que “[...]
cuidar da expressão das falas é importante, pois a análise delas constitui rico
manancial para a busca dos sentidos atribuídos ao tema pelo grupo”. Sendo assim,
como apoio aos momentos de encontro para entrevistas e Grupo Focal, foram
utilizados diário de campo, gravador para fita cassete panasonic e, no caso dos
grupos focais, filmadora Handycam 20 X optical zoom; 800X digital zoom da Sony.
Para todas as entrevistas e também para os participantes dos grupos focais foi
solicitada permissão para uso das informações concedidas, dentre as quais algumas
vieram oralmente, outras por escrito. Os modelos de registro encontram-se anexos.
85
Nesses termos, todos os entrevistados consentiram na utilização irrestrita de suas
narrativas para efeito do trabalho investigativo. Mesmo assim, optamos por omitir os
nomes reais nos relatos apresentados para que a palavra recortada e aprisionada na
frieza do papel não remeta à figura dos educadores conhecidos, pois são
consideradas como idéias dinâmicas e em constante processo de “autofazimento”.
As narrativas e depoimentos obtidos nas entrevistas-teste, com educadores
estrangeiros (México e Bolívia), foram traduzidos para o português com auxílio de
duas professoras de espanhol, de forma a garantir a compreensão e a interpretação
correta dos termos, expressões e regionalismos próprios de cada entrevistado.
Também foi com auxílio de uma tradutora que o Termo de Consentimento, em
língua estrangeira foi elaborado.
As cinco horas de áudio gravadas foram transcritas, mas deixaram muitas lacunas
em trechos em que duas ou mais pessoas expressavam suas idéias
simultaneamente. Esses trechos não puderam ser compreendidos, remetendo-nos à
necessidade de rever as filmagens na tentativa de esclarecer as obscuridades das
respostas. As cinco horas de gravação em fitas mini DV Sony foram, então,
convertidas, pelo laboratório de áudio e vídeo do Departamento de Comunicação da
UFES, em formato digital e gravadas em CD-ROM, o que permitiu a revisão dos
textos e complementação dos trechos perdidos, além de favorecer a observação das
posturas corporais, expressões faciais e linguagem gestual, utilizadas pelas
participantes. Apesar desse esforço para aproveitar ao máximo as narrativas, alguns
trechos foram perdidos ou deixaram dúvidas que impossibilitaram seu
aproveitamento para este estudo.
Como conceito, o sagrado foi (re)visitado pelos participantes da pesquisa, a partir de
seus contextos de vida, por onde a atribuição dos sentidos foi sendo tecida.
Considerando a natureza complexa deste trabalho e a escolha do tema, optamos
por estabelecer diálogos com e sobre os resultados a partir de uma análise
hermenêutica, pois, para a hermenêutica, “[...] a principal preocupação é com o
sentido. Este é produzido na experiência dos sujeitos no mundo e, portanto, é
contextual” (CARVALHO, 2005, p. 209).
86
Olhar atentamente, entrar num processo de escuta sensível do outro que fala, não
pelo que é falado, mas perscrutando o sentido do que se fala, propicia compreender
que
[...] a linguagem como a entende a hermenêutica, se constitui enquanto abertura à significação, aonde o jogo da produção de sentidos vai se dar através da dialogicidade e da interpretação, numa perspectiva de produção de conhecimento pela via que a hermenêutica designa como compreensiva (em oposição a via explicativa) (CARVALHO; GRÜN, 2005, p. 179).
Nesse sentido e considerando a dialogicidade, a recursividade e a noção de
holograma como princípios que balizam a teoria da complexidade, articulamos a
análise hermenêutica, com as noções de unidade aberta (NICOLESCU) do
pensamento transdisciplinar e da unitas multiplex (MORIN), esta última presente na
teoria da complexidade como estratégia de eliminar a tensão entre a individualidade
das práticas discursivas e a emergência dos sentidos para o grupo. Para Morin
(2005, p. 73-75):
O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da unidade [...]. A idéia recursiva é, pois, uma idéia em ruptura com a idéia linear de causa/efeito, de produto/produtor, de estrutura/superestrutura, já que tudo o que é produzido volta-se sobre o que o produz num ciclo ele mesmo autoconstitutivo, auto-organizador e autoprodutor. A própria idéia hologramática está ligada à idéia recursiva, que está ligada, em parte, à idéia dialógica.
Como, no princípio hologramático, o todo está nas partes e as partes compõem o
todo, o holograma, do círculo hermenêutico que propomos criar é a ponte
interdimensional que liga os diferentes níveis de percepção e Realidade permitindo o
“[...] fluxo de informação que atravessa [esses níveis] e pelo fluxo de consciência
que atravessa os níveis de percepção” (NICOLESCU, 1999, p. 63).
Não pretendemos, portanto, esgotar esta análise em nossa percepção dos
resultados obtidos, pois cada leitor poderá, dentro do fechamento axiomático da
abordagem teórica que apresentamos, dar sentido às narrativas a seu modo,
evidenciando essa ou aquela percepção emersa no universo das práticas
discursivas registradas. Nossas leitura e análise desses resultados servirão apenas
como uma percepção a mais, além daquelas investigadas e tantas outras possíveis.
87
Os cenários escolhidos para a realização das entrevistas foram encontros de
Educação Ambiental, explicitamente destinados, ou não, à formação. Como critério,
ficou estabelecido que esses espaços-tempos de formação deveriam reunir um ou
mais profissionais com história de atuação nessa área, em nível nacional e/ou
internacional.
Considerando tratar-se de uma pesquisa sobre o “sagrado”, as metodologias de
abordagens qualitativas escolhidas no primeiro momento foram, conforme descrito,
as entrevistas individuais e coletivas, semi-estruturadas, pois, segundo afirmam
Lüdke e André (1986, p.34), “[...] uma entrevista bem feita pode permitir o tratamento
de assuntos de natureza estritamente pessoal e íntima, assim como temas de
natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais”.
No cronograma inicial, as atividades destinadas às entrevistas ocorreriam de junho a
setembro de 2006, porém, para verificar a metodologia proposta e aproveitar a
oportunidade de realização de um encontro internacional de Educação Ambiental
que foi realizado no Brasil, congregando centenas de educadores, no período de 5 a
8 de abril, fizemos um pré-teste. O trabalho teve início, portanto, no V Congresso25
Ibero-Americano de Educação Ambiental, realizado em abril, na cidade de Joinvile,
e, na ocasião, foram entrevistados quatro educadores/formadores.
Os resultados do pré-teste, obtidos nessa primeira etapa, foram tão significativos
que indicaram a inserção de mais um instrumento metodológico, que foi a realização
dos grupos focais. As percepções obtidas foram tão importantes que consideramos
necessário contemplá-las como resultados e por isso foram inseridas na discussão
deste estudo. A despeito da qualidade dessas primeiras percepções coletadas, foi
feito um ajuste nas questões de investigação propostas, mantendo-se o eixo da
pergunta e flexibilizando-se a linguagem e sua profundidade de acordo com a
25 Esse evento contou com a participação de aproximadamente 5.000 participantes de 22 países. Sua realização ficou a cargo dos Ministérios do Meio Ambiente e da Educação, do Brasil, por meio do Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental e teve por objetivo discutir as potencialidades da Educação Ambiental na construção de sustentabilidade planetária. “O Congresso, realizado no âmbito da Rede de Formação Ambiental do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA/ORPALC) representa um marco na integração regional dos educadores ambientais ibero-americanos.” MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006. Disponível em ‘www.viberoea.org.br’. Acesso em 25/11/2006.
88
disposição dos entrevistados. Na prática, o objetivo de utilizar a entrevista como
instrumento na coleta dos dados garantiu a interação entre o sujeitobjeto da
pesquisa e o pesquisador, favorecendo uma relação respeitosa, não impositiva e de
confiança.
Além desse, outros objetivos motivaram a realização do Congresso Ibero-Americano
no Brasil: reunir as redes de Educação Ambiental, Ongs, movimentos sociais,
instituições públicas e privadas, educadores, estudantes e pesquisadores(as) de
várias partes do mundo; debater a contribuição da Educação Ambiental na
construção de valores, bases culturais e bases políticas de modo a contribuir para a
promoção de sociedades sustentáveis; consolidar e ampliar a Rede de Educadores
Ambientais Ibero-Americanos; e expandir a iniciativa de articulação e cooperação
internacional para os países de língua portuguesa.
Devido à diversidade de profissionais presentes, o evento representou ambiente
propício para a escolha de educadores com experiências e formações diversas,
presumindo-se diferentes percepções sobre a temática em questão. Essa escolha foi
acontecendo no decorrer do evento, por meio da observação dos participantes nas
atividades em que estivemos presente, pela oportunidade de abordagem e
disponibilidade dos entrevistados. Sendo assim, desde o início do evento, vários
potenciais sujeitos foram identificados.
Desses, quatro educadores ambientais, historicamente comprometidos com a
Educação Ambiental, foram entrevistados durante o encontro, sendo três deles
estrangeiros, o que abriu um leque extraordinário de informação e percepção,
enriquecendo muito a pesquisa, porque proporcionou o intercâmbio entre diferentes
contextos socioeconômicos, culturais e político-religiosos.
Os diálogos foram iniciados a partir de duas questões de investigação, apresentadas
em língua portuguesa, com tradução em apenas um dos casos para o espanhol, por
outro participante bilíngüe.
Durante o desenvolvimento das entrevistas-teste, notamos uma tendência natural
89
em haver uma socialização do debate em torno das questões apresentadas e dos
sentidos relacionando o sagrado com a Educação Ambiental. Isso aconteceu após
as primeiras entrevistas, quando colegas educadores, que tomaram conhecimento
do trabalho, iniciaram espontaneamente uma conversa, como segue transcrita:
A dimensão espiritual está presente na minha prática em Educação Ambiental. Na minha preocupação com a formação, existe esse elemento, através da minha maneira de atuar. Agora não sei se ela está presente, por exemplo, em termos de conteúdo, ou em termos de assunto que vai ser abordado, nesse sentido não (POLLY). Eu acho que está, porque a espiritualidade tem a ver com os valores, e a Educação Ambiental também tem, como princípios, um dos princípios da Educação Ambiental são os valores. Os valores éticos, a solidariedade, responsabilidade com o outro, o respeito, principalmente você considerar o outro, legitimar o outro, então esses valores eu acho que são valores que também estão presentes na espiritualidade e estão presentes na Educação Ambiental (AMANDA).
Considerando a multiplicidade de iniciativas existentes na formação do educador(a)
ambiental, a sua possibilidade de acompanhamento e a previsão de realizar
encontros de Grupo Focal, decidimos seguir o fluxo da pesquisa, pois foi ela mesma,
aos poucos, já se configurando, moldando-se ao real sentido e vivido. Sendo assim,
redefinimos o cronograma inicialmente proposto de forma a não estender as
atividades além do mês de abril do ano de 2007.
5.2 A DESCOBERTA DOS/NOS ENCONTROS: PRAZER E APRENDIZAGEM
Após o V Ibero e até março de 2007, chegou ao nosso conhecimento a ocorrência
de outros encontros de Educação Ambiental, entre congressos, seminários, oficinas
e cursos, promovidos pela iniciativa privada e pelo setor público na região da Grande
Vitória, região que abrange os municípios de Vitória, Vila Velha, Serra, Viana e
Cariacica, excluídos os encontros de formação, dos quais participamos, direta ou
indiretamente, no planejamento e/ou desenvolvimento das ações, que contaram com
a nossa percepção de educador. Dos que restaram, quatro momentos nos
pareceram significativos para nosso mergulho investigativo.
90
Promovido pela Rede Capixaba de Educação Ambiental (RECEA)26 e realizado no
período de 5 a 7 de novembro de 2006, o IV Encontro Estadual de Educação
Ambiental teve por objetivos: fortalecer a Rede Capixaba de Educação Ambiental;
aprofundar as discussões do V Congresso Ibero-Americano de Educação Ambiental;
integrar os educadores e educadoras ambientais do Espírito Santo; promover trocas
de experiências em Educação Ambiental; dar visibilidade às ações e práticas de
Educação Ambiental dentro de uma perspectiva da sustentabilidade no Espírito
Santo; inserir o Estado no debate nacional e internacional de Educação Ambiental.
A realização desse encontro contou com a formação de uma comissão organizadora
formada pelo grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação do
Centro de Educação da UFES, o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em
Educação Ambiental (NIPEEA).
Durante o evento, foram realizadas mesas-redondas, Grupos de Trabalho,
minicursos, oficinas, sessão coordenada com apresentação de projetos previamente
selecionados e apresentação de pôsteres, congregando diversos educadores da
Capital e cidades vizinhas no Centro de Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo.
Como convidados para participação nos debates, vieram, de outras localidades,
cinco educadores conhecidos pelo trabalho que desenvolvem em áreas específicas.
Dentre as quais despertaram nosso interesse a formação e suas articulações com
as Danças27 Circulares Sagradas. Essa atividade começa a fazer parte da
programação de vários eventos de Educação Ambiental e nos perguntamos por quê,
qual a relação existente?
O contato com as Danças Circulares Sagradas tocou-nos profundamente; dançar é
puro prazer. Êxtase sagrado! A dança está presente em muitas culturas, talvez em
26 A rearticulação e fortalecimento da RECEA fazem parte do projeto de extensão do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educação Ambiental e Ensino de Ciências da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). 27 A abordagem para a realização da entrevista com a focalizadora das danças circulares foi realizada e aceita com alegria. Contudo não conseguimos conciliar o tempo para realizá-la. Seis meses depois, uma nova oportunidade surgiu e conseguimos, enfim, entrevistar essa educadora.
91
todas. Esteve presente em minha infância. A dança é a linguagem do corpo.
Dançando ao ritmo da música, nossas percepções parecem formar, por alguns
instantes, uma unidade contendo vários níveis de percepção e é aí que a
circularidade promove o encontro com o ritmo do nosso corpo e com o ritmo do
“corpo” do grupo que dança, levando-nos de um nível a outro de Realidade, sem
resistências.
Bernhard Wosien, bailarino alemão, coreógrafo e professor de dança, iniciou sua
pesquisa sobre as Danças Circulares em 1952, investigando danças tradicionais de
diferentes povos. As danças foram por ele denominadas “Sagradas” porque
expressam – e conseqüentemente, nos fazem experimentar – a sabedoria da alma
dos povos e as qualidades espirituais, “[...] conteúdos primordiais da nossa própria
alma” (RAMOS, 1998).
Nas palavras de nossa entrevistada:
O sagrado é aquilo que todo mundo consegue acessar de uma maneira simples. O sagrado é aquele sentimento que a gente percebe em todos, igual. Não interessa o que eles são, de que formação ele é, de que tamanho, de que altura, de que idade que é, é aquele ponto que a gente tem em comum e que a dança circular consegue fazer acessar. Todos acessam juntos, ao mesmo tempo e se encontram, se encontram dentro desse ponto (IZA).
A subjetividade está presente no depoimento de Iza, o que nos leva a concluir que a
prática das Danças Circulares introduz, no movimento da Educação Ambiental, a
experiência de religação com aquilo que é sentido, numa vivência plena da
corporeidade28 na educação. Continua Ramos (1998):
O assombro diante da vida, a alegria, o amor, a vontade de conhecer o mundo e a si próprio, a coragem, a gratidão, a intuição do sagrado e do absoluto são percepções humanas universais, presentes em cada indivíduo, nas sociedades e culturas. Esses conteúdos são normalmente experimentados de forma isolada na nossa vida diária. Mas se potencializam na sessão de Dança, pois os participantes são estimulados a vivenciá-los de uma só vez.
28 “O termo pretende expressar um conceito pós-dualista do organismo vivo. Tenta superar as polarizações semânticas contrapostas (corpo/alma;matéria/espírito;cérebro/mente) (ASSMAMM, 1998, p. 150).
92
Findhorn, localidade onde se concentra a formação dos focalizadores em Danças
Circulares, é uma fundação, em forma de vilarejo, localizada na Escócia, nas
proximidades do Mar do Norte. Em Findhorn, vivem pessoas de todos os continentes
do globo. No Brasil, o movimento teve início em 1986, em Belo Horizonte, e se
espalhou por vários Estados.
Apesar da denominação, as Danças Circulares podem ser desenvolvidas em forma
de roda, linha ou espiral, independentemente da raça, credo, sexo ou idade, pois
todos são envolvidos pela magia do som e do movimento, harmonizados pelo
coletivo dos participantes. Há as danças de natureza alegre e vibrante, essas são
chamadas solares, e há as introspectivas, que são chamadas lunares.
Existe uma coreografia que se repete durante a reprodução das músicas. Porém,
após certo tempo, o corpo vai se soltando das amarras dos passos ensaiados e
ocorre uma abertura ao grupo, uma entrega daquilo que está dentro com todos que
estão fora, uma espécie de conexão entre o grupo que dança e cada pessoa
presente. “Quando repetimos os movimentos, realizados ao longo dos séculos por
inúmeras gerações, despertamos, da memória do planeta Terra, o significado
profundo contido em cada gesto” (BARTON, apud RAMOS, 1998, prefácio).
Promovido pelo Programa de Comunicação Social da Companhia Siderúrgica de
Tubarão (CST – Arcelor Brasil) e realizado entre os dias 20 e 23 de novembro de
2006, o II Encontro de Avaliação do Projeto Educacional Gênesis (Devolutiva),
trouxe ao Espírito Santo três educadoras paulistas. Após os contatos, conseguimos
participar de um dos encontros como observadora e também, a partir dele, foi
possível agendar entrevistas com duas delas, que haviam participado de todo o
processo na etapa de formação dos educadores capixabas.
De acordo com o fotógrafo Sebastião Salgado,29 autor do projeto, “Gênesis”, foi
concebido como uma tentativa de “[...] religar-nos com o mundo do início antes que
a humanidade o transforme de vez em algo quase irreconhecível. É um projeto que
dá continuidade à longa pesquisa fotográfica que deu origem a meus livros e
29 Texto extraído do caderno: Roteiros de viagem/manual do professor, emprestado da empresa Arcelor-mital, em agosto de 2006.
93
exposições”.
Suas fotografias capturam a essência de sua proposta e nos remetem a reflexões
sobre a relação tempo-espaço; natureza –sociedade e nossas origens, como a
demonstra a Figura 2 abaixo:
Figura 2: Lago no topo do vulcão Bisoke, fronteira entre Ruanda e a República Democrática do Congo Fonte: Sebastião Salgado (2007)
Apresentaremos um breve perfil desse autor, pelas palavras de uma de nossas
entrevistadas, pois, ao mesmo tempo em que descreve sua ação como fotógrafo, vai
analisando seu percurso de educador, cuja forma de comunicação e linguagem é a
imagem fotográfica:
Ele é um economista que começou a fotografar e se dedicou a fazer uma fotografia de denúncia, uma fotografia belíssima. Fotografia em que ele pega sempre gente e situações humanas. Olhares, gestos, relações, atitudes, grupos, situações, circunstâncias humanas, tudo isso muito forte, realmente de grande impacto, cada foto dele. Agora ele foi um militante em 64, perseguido, inclusive se exilou, fugiu, foi pra França onde foi morar e aí ele foi pelo mundo inteiro, fazendo essa fotografia de denúncia. Numa certa altura, ao que parece, ao que tudo indica, ele se encanta por esse mundo, pelo nosso planeta! Pela realidade de existência do mundo e ele, de uma certa forma, resolve se dedicar a ir mais fundo na questão, como se essa transformação que ele buscava na área de economia, que ele... a primeira crítica que ele faz, que leva a uma crítica política, que leva a uma discussão da realidade social e de uma necessidade de transformação; ele vai questionando mais fundo e ele chega a uma conclusão, como eu disse, do meu ponto de vista... ,ou seja, que se trata de uma mudança... a necessidade não é só uma mudança de visão política ou de visão econômica. É uma visão de paradigma mesmo, uma mudança civilizatória (MARA).
94
A narrativa de Mara vai além de um simples relato. Ela conta uma história e imprime
nela percepções e sentimentos que são seus. Apresenta, através do seu olhar, a
visão de mundo dinâmica do artista, tocada pela sensibilidade, que marca
definitivamente sua carreira e parece emocionar despertando admiração e profundo
respeito. É como se sua própria visão de mundo entrasse num processo
condensado/intensivo de transformação, seguindo a trajetória vivida pelo outro.
Quanto ao “Gênesis”, trata-se de um projeto educacional, cujo objetivo geral é
[...] contribuir para que a humanidade, redescobrindo-se como parte da natureza, lute pela conservação do meio ambiente, mudando as prioridades e as formas de promover o desenvolvimento e contribuir para ações de educação ambiental no ensino básico, articulando governos e diferentes parceiros na promoção de iniciativas que auxiliem educadores, crianças e jovens a atuar em favor de melhores condições socioambientais em suas comunidades, no país e no mundo (SALGADO, 2006, p. 4).
Figura 3 – Gorila na floresta impenetrável de Biwindi, área de Ruhija, Uganda Fonte: Sebastião Salgado.
Baseando seu trabalho na imagem fotográfica, Salgado rompe a linearidade
cognitiva e permeia de subjetividade o trabalho pedagógico, abrindo tempo-espaço
escolar para trocas intersubjetivas que favorecem o desenvolvimento de uma “razão
sensível”, como afirmam Tristão e Nogueira (2007) :
95
A imagem fotográfica pode nos transportar para outros mundos, fascinando-nos, maravilhando ao fugir da trivialização, como pode nos alertar sobre as mazelas do mundo e do cotidiano massacrante. Ela pode ser também transgressora do lugar-comum, do que às vezes os olhos sem suas lentes não conseguem ver, captar e sentir.
No contexto desse trabalho especial, é que abordamos as formadoras, com o
convite para participação na pesquisa. O grupo mostrou-se muito disponível e, como
em outros momentos no percurso desta pesquisa, o planejado foi ganhando
contornos diferentes na medida em que se concretizava, muitas vezes
surpreendendo, pelas descobertas propiciadas na dinâmica de “ir ao em-contro do
outro”. Nesse caso, a flexibilidade fenomenológica favoreceu esse desenho vivo,
bem humano, da realidade que vai sendo tecida por meio dos acontecimentos,
antes, durante e depois dos encontros de formação.
Foi assim que uma educadora, que, em princípio, não seria abordada para a
entrevista das outras duas, por não ter participado dos processos de formação do
referido projeto, demonstrou interesse em integrar-se à entrevista, passando a
figurar, de maneira espontânea, na pesquisa. Seu interesse manifestou-se,
sobretudo, pela presença de abordagem do sagrado e pela larga experiência, com
significativas observações sobre o assunto. As entrevistas que foram pensadas para
acontecer individualmente, nesse caso, iniciaram-se dessa forma e foram evoluindo
em entrevista coletiva pelo interesse e participação das entrevistadas, o que
proporcionou a todos agradáveis momentos de troca e aprendizagem.
Outro encontro que permitiu nossa aproximação foi o II Seminário de Formação de
Professores em Educação Ambiental, promovido pelo MEC/MMA e realizado pela
Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo (SEDU), no período de setembro
a dezembro de 2006, envolvendo professores de 5ª a 8ª séries do Ensino
Fundamental das escolas que participaram da II Conferência Infanto-Juvenil Pelo
Meio Ambiente.
O objetivo desse encontro de formação foi o fortalecimento e enraizamento da
96
Educação Ambiental nos espaços escolares; a formação de multiplicadores e o
incentivo ao protagonismo juvenil e formação das Comissões de Meio Ambiente e
Qualidade de Vida (COMVIDA) nas escolas. Para tanto, a formação contou com a
colaboração de sete educadores capixabas, dos quais dois já constavam como
convidados para participação na pesquisa. Dentre os demais, foi escolhido e
entrevistado um educador que conhecemos durante o IV Encontro Estadual de
Educação Ambiental do Espírito Santo e cuja disponibilidade favoreceu nos
reunirmos para a entrevista.
Após experimentar esses momentos e considerando a proposta fenomenológica do
trabalho, optamos por agregar ao processo metodológico, em desenvolvimento, a
realização de entrevistas nas quais pudesse haver troca de idéias entre os
participantes, cuja intenção foi ampliar a observação dos fluxos de informação e
consciência a respeito do sagrado, numa dinâmica de grupo.
Uma opção que nos pareceu interessante foi a realização do grupo focal por se
tratar de uma estratégia voltada para trabalhos em grupo, muito comum em
abordagens qualitativas nas pesquisas sociais. As definições de composição do
grupo, local das sessões, registros das interações grupais e o papel do moderador
foram referenciados com base em Bernadete Gatti, conforme veremos,
detalhadamente, em seguida à exposição dos procedimentos das entrevistas.
O grupo focal caracteriza-se por privilegiar a reunião de pessoas que apresentem
conhecimentos, vivências, interesses e outros pontos de vista que os habilitem para
uma discussão temática, favorecendo, assim, a teorização exploratória. A
possibilidade de utilização dessa técnica manifestou-se a partir das primeiras
entrevistas realizadas, como já descrito, e revelou-se um ótimo caminho para o
aprofundamento do olhar complexo sobre a percepção do sagrado.
O planejamento e organização dos encontros ocorreram de tal forma que cada
participante pôde contribuir com elementos presentes nas suas experiências
pessoais. Em nosso caso, a experiência de educadores ambientais. Na definição de
Powel e Single (apud GATTI, 2005, p. 16), “[...] um grupo focal é um conjunto de
97
pessoas selecionadas e reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um
tema, que é objeto de pesquisa, a partir de sua experiência pessoal”.
Considerando a temática em questão, o período de tempo disponível e pensando
interagir os resultados obtidos nas entrevistas, com a dinâmica do grupo focal,
optamos por realizar dois encontros com o mesmo público. Para facilitar essa
descrição, ao longo do trabalho, denominamos tais encontros como grupo focal 1 e
grupo focal 2, GF1 e GF2, respectivamente.
Para a composição dos grupos, de acordo com o critério estabelecido, foram listados
24 educadores capixabas conhecidos. Dessa listagem, selecionamos 12
educadores, preferencialmente com práticas de atuação em ambientes
diversificados, dentre eles Ongs, órgãos públicos e iniciativa privada. Procuramos,
também, dentro do possível, variar na seleção as afinidades religiosas dos
participantes, evitando a constituição de um grupo constituído por pessoas que
representassem o pensamento de apenas uma tradição religiosa. Como sugere Gatti
(2005, p. 18), “[...] a escolha das variáveis a serem consideradas na composição do
grupo depende [...] do problema da pesquisa, do escopo teórico em que ele se situa
e para quê se realiza o trabalho”, justificando, assim, nosso cuidado. Dos doze
convidados, oito confirmaram presença na data e hora agendadas. Destes, cinco
compareceram no primeiro grupo focal. No segundo encontro, também
compareceram cinco, dos doze convidados, e três destes foram comuns,
comparecendo aos dois.
Tomando o contexto da formação como cenário de emergência, ou não, do sagrado,
é que elegemos, para participar do GF1, educadores com mais de um ano de
experiência em processos formativos de Educação Ambiental e opções religiosas
variadas como traço comum. Vale destacar que, para efeito de sua participação, os
educadores poderiam ou não ter participado em eventos recentes de formação.
Com a perspectiva de realização dos grupos focais, uma educadora ambiental,
conhecida nossa, demonstrou interesse, solicitando a oportunidade de participar, no
que foi atendida. Portanto marca nossa trajetória uma abertura na construção do
caminho metodológico que caracteriza a pesquisa fenomenológica quando acolhe “a
98
coisa mesma”, o real, o acontecimento vivido.
O local escolhido para a realização dos encontros foi a própria universidade, pela
localização mais acessível e facilidade para a organização do trabalho. Foram
escolhidas salas com ar-refrigerado, carteiras confortáveis, dispostas em círculo.
Nossa intenção foi colocar os participantes em contato visual constante para que se
sentissem à vontade e se situassem no debate, explicitando pontos de vista,
analisando, inferindo, fazendo críticas e abrindo perspectivas diante das questões
apresentadas quando fosse pertinente.
Iniciamos a atividade por uma breve apresentação interpessoal, explicação da
proposta e funcionamento do grupo focal e solicitação de permissão para registro
em áudio e vídeo. A justificativa apresentada para essas formas de registro foi uma
captação mais fidedigna dos diálogos que estavam por vir.
Pensávamos enfrentar algum constrangimento inicial, conforme relata Gatti (2005, p.
26), “[...] as pessoas tendem a se sentir mais à vontade com a gravação em áudio
do que em vídeo”. Contudo notamos no GF1 apenas uma preocupação das
participantes com relação à sua aparência: eram todas do sexo feminino. No GF2,
apesar de também serem todas do sexo feminino, não houve constrangimento
aparente e os registros seguiram conforme o combinado com o grupo.
Para o GF1 realizado no dia 23-12-2006, assim como por ocasião das entrevistas,
foi lançada uma questão inicial, visando a dar impulso aos debates. As questões
propostas e aceitas pelo grupo foram:
a) A questão do sagrado tem surgido nos processos de formação em EA que você
facilita? Como? A que você atribui isso?
b) A relação sagrado-natureza está presente nas discussões que envolvem o meio
ambiente? De que forma?
Os diálogos que se seguiram aconteceram de maneira natural, não tendo sido
necessárias novas inferências para motivar ou retomar o foco no tema. O grupo fluiu
99
numa dinâmica própria de relatos, trocas, concordâncias e discordâncias que
conduziu os trabalhos até o limite do tempo previsto que foi de três horas. Ao final,
apresentamos uma música e os participantes foram convidados a trocar cartões de
mensagens entre si. Uma das participantes demonstrou o desejo de que o tema
fosse gerador de um grupo de discussão permanente.
O GF2, realizado no dia 30 de março de 2007, aconteceu em outra sala, com a
mesma dinâmica de apresentação da técnica do grupo focal. Compareceram três
convidados, que estiveram presentes também no GF1. Por essa razão, sugerimos
ao grupo apresentar, além da “questão problema” definida para o encontro anterior,
outra questão e/ou trechos de respostas obtidos tanto nas entrevistas quanto no
GF1. O objetivo dessa sugestão foi socializar com os presentes alguns dos
resultados já obtidos e, a partir dessa interação, dar início ao processo de debate e
observação. Ao contrário do primeiro encontro, o início do debate foi mais lento, de
difícil fluência e, no decorrer, houve certo desencontro na disposição dos diálogos,
entremeado com períodos de silêncio desconcertantes, conforme registramos no
diário de campo e apresentamos a seguir:
SEGUNDOS DE SILÊNCIO DESCONFORTANTE: parece haver um estranhamento, talvez não estejam se sentido muito à vontade de trabalhar com as falas de terceiros, talvez seja a técnica empregada ou a filmagem, talvez estejam apenas pensando sobre os textos recebidos.
Talvez, como nos diz Randon (2002, p. 41), “[...] como o território do sentido é tão
diferente, é preciso um tempo de adaptação”. Em função desse conjunto de fatores,
a realização do segundo GF foi reduzida a duas horas e não houve possibilidade de
finalizar com uma atividade integrativa como no primeiro. O grupo foi se desfazendo
aos poucos.
Embora completamente diferente em sua dinâmica, com diálogos às vezes
truncados, o GF2 não foi menos interativo no que se refere ao desenvolvimento das
percepções dos participantes, pois consideramos esse ambiente carregado de uma
certa tensão, a princípio indecifrável, um resultado interessante na medida em que
retrata como as redes de sentidos vão sendo tecidas no dia-a-dia da Educação
Ambiental. Da mesma forma que os encontros, os desencontros das percepções
100
podem conservar o princípio dialógico na complexidade, mantendo a dualidade no
seio da unidade em desordem.
Ao final do tempo definido, mesmo com a saída de três participantes, continuamos
reunidos procurando avaliar verbalmente o encontro realizado. Na avaliação, foi
discutida a importância do trabalho em grupo para tratar de temas delicados, como é
a questão do sagrado, por tocar na diversidade de pensar e de ser dos educadores
e possibilitar a troca de idéias, o desenvolvimento do respeito às diferenças e à
prática da tolerância.
No pequeno grupo ali reunido, foi lançada a sugestão anterior de prosseguir com
encontros periódicos, independente de trabalho acadêmico, com o objetivo de dar
continuidade ao debate da Educação Ambiental num contexto mais amplo da
formação, abrangendo, além do sagrado, outras dimensões humanas.
5.3 ENTRE EMERGÊNCIAS E IMPOSIÇÕES
No diário de campo, ficaram registradas algumas das percepções imediatas aos
momentos das entrevistas. Essas observações ganharam contorno e volume numa
leitura posterior, revelando-se ora como emergências do e no processo de
investigação e ora como imposições a ele.
Podemos chamar emergências as qualidades ou propriedades dum sistema que apresentam um caráter de novidade em relação às qualidades ou propriedades dos componentes considerados isoladamente e dispostos de maneira diferente num outro tipo de sistema (MORIN, 1997, p. 104). [...] imposições, restrições ou sujeições, fazem [os sistemas] perder ou inibem neles qualidades ou propriedades (MORIN, 1997, p. 105).
Como forma de organização dos resultados, inicialmente, pensamos a elaboração
de uma espiral concênctrica de sentidos, sustentada por um fio-eixo imaginário que
seriam os níveis de percepção sobre os quais girariam as questões de investigação
e as metodologias empregadas. Foi dessa forma que os sentidos do sagrado, as
emergências e imposições se revelaram intuitivamente a nós.
101
Posteriormente, percebemos ser possível conciliar a intuição inicial com o conceito
de círculo hermenêutico, pois, segundo Carvalho e Grun (2005, p. 177), “[...] para
Shleirmacher [primeiro a desenvolver a concepção de círculo hermenêutico], a
compreensão se dá sempre de uma forma circular, oscilando numa relação
recíproca entre o singular e o todo do qual esse singular faz parte”. Afastamo-nos,
desse modo, da objetividade atribuída à concepção metodológica de Dilthey, do
círculo hermenêutico, e passamos a uma interpretação compreensiva das narrativas
por acreditarmos que, “[...] no círculo da compreensão as relações dicotômicas
tendem a ser diluídas e, portanto, a idéia de causa-efeito ou ainda objetivo –
resultado [...] ficam sem sentido” (p.181).
Esses círculos concêntricos virtuais pareciam se sobrepor, podendo em alguns
momentos se tocarem ou se afastarem, dependendo dos fluxos de consciência e
informação que os atravessavam. Algumas vezes, o fluxo da espiral parecia ser
interrompido por imposições, para, em seguida, continuar espiralando como uma
molécula de DNA.30 As pontas da espiral, por mais que se aproximassem, nunca se
fechavam, fazendo-nos pensar que, quanto maior for a complexidade do sistema,
maior será o nível de condensação das idéias, maior o enovelamento dos sentidos e
a possibilidade de se formarem campos de resistência ou a passagem de um nível
para outro, assegurada pela lógica do terceiro incluído.
Do ponto de vista do registro gráfico dessas imagens, não conseguimos avançar,
não só por limitações no domínio da informática, mas como pela complexidade de
cartografar uma seqüência de emergências e imposições que vão se espiralando na
medida em que acontecem os diálogos, como citamos o exemplo originado no GF 1.
Se podemos fazer algo: recortar trechos dos diálogos e tentar reproduzi-los. Esse
recorte começa quando alguém recorda uma educadora ambiental capixaba cujo
nome e trabalho estiveram, segundo a interpretação da narrativa, vinculados ao
30 O DNA, ou como se fala em português, ADN: ácido desoxirribonucleico é uma molécula orgânica que concentra as informações genéticas que comandam o desenvolvimento e o funcionamento dos organismos vivos. É essa molécula protéica a responsável pela transmissão das características hereditárias de cada espécie existente. O ADN não existe como fita simples, composta por uma molécula única, mas sim como um par de moléculas associadas entre si que se enrolam em forma de uma dupla hélice.
102
misticismo, o que gerou preconceito por parte de colegas daquela época e levou
uma das participantes a um outro episódio em sua vida profissional, quando um
sonho fez com que descobrisse o preconceito de colegas que se reuniam para orar
e pedir a Deus punição para ela, que era considerada bruxa em função da sua
espiritualidade.
[...] ela tinha essa capacidade. Era uma pessoa que, quando falava pra multidão e tal...Nossa Senhora! Era um sacerdote falando, ela tinha essa capacidade e isso despertou na equipe de trabalho [...] um sentimento muito negativo em relação à pessoa dela, assim...de preconceito. Entendeu? As pessoas não... valorizaram esse trabalho dela como educadora ambiental, não. Achavam que era tudo um misticismo, que ela era muito mística [..]” (TATI).. [...] Nossa! Essa noite eu tive um sonho estranho... aí falei do sonho [e a colega respondeu]: ‘Eles vão lá todos os dias de manhã antes de vir pra cá, eles vão orar, e pedem a Deus que você queime no fogo do inferno’ [...]. Olha o século!!! XXI. Iam rezar, [...] em vez de rezar pelo bem do planeta, das pessoas, da harmonia, da paz, iam rezar pro meu mal, pra eu arder no fogo do inferno, porque eu era malévola, eu era... bruxa (YARA). [...] lavou os pés das meninas. Vocês sabem o que isso significa? [...] Nisso ele tava dizendo que ele era humilde, lavando os pés de cada [...] aí eu perguntei: ‘E vocês deixaram ele lavar o pé?’. ‘ Ah! Eu deixei, Yara, ele é o chefe!’ (YARA).
O desenvolvimento do debate no GF1 foi ganhando contornos de um espaço para
denúncia, desabafo e manifestação da indignação pelo preconceito e incoerência
das práticas ritualísticas nos ambientes de trabalho, envolvendo a Educação
Ambiental. Embora densos, os relatos foram transpassados por muita descontração
e risos, pois as situações descritas eram tão pitorescas que, contadas ali no grupo,
também divertiam.
Cada uma de nossas percepções, no momento do GF1, interagia com as outras,
como círculos concêntricos, em movimento. O diálogo aberto e o respeito às
individualidades foram conduzindo o grupo a uma zona de não resistência, que
permitiu a exposição dos sentidos atribuídos ao sagrado e de forma recursiva
retroalimentou o diálogo. A zona de não resistência possibilitou um fluxo de
informação e consciência que gerou as matrizes do pensar-sentir-fazer coletivos.
103
O problema do sagrado, entendido como a presença de algo indubitavelmente real no mundo, é inevitável para qualquer abordagem racional do conhecimento. Podemos afirmar ou negar a presença do sagrado no mundo e em nós, mas para a elaboração de um discurso coerente sobre a Realidade, é obrigatório fazer referência a ele (NICOLESCU, 2002, p. 59).
A emergência do misticismo, das preconcepções, da atribuição de juízo e valor, da
prática ritualística de fundo religioso, dentre outras, permitiu a interação entre os
diferentes níveis de Realidade existentes no grupo o que, por conseguinte,
possibilitou a ação da lógica do terceiro incluído. A manifestação do terceiro incluído
só é possível quando houver um “fluxo” de informação entre os níveis de Realidade,
pois é a presença desse fluxo que induz a uma estrutura aberta no conjunto dos
níveis de Realidade. No momento em que falávamos de preconceito, o grupo,
religiosamente diverso, assumiu uma atitude transreligiosa.31
Dentre os múltiplos sentidos atribuídos ao sagrado no decorrer desta pesquisa,
podemos destacar uma tendência à associação imediata com aquilo que é religioso,
místico, espiritual, esotérico, e também à sabedoria, à idéia de Deus, à ética, ao
holismo, à educação de valores e ao pensamento de Paulo Freire, no que se refere
ao ato de transformação da realidade. A verdade também emerge no diálogo como
sinônimo do sagrado. Essa polissemia da palavra fala da importância dos contextos
onde são geradas as univocidades ou plurivocidades, no caso de espaços de
formação em Educação Ambiental, “[...] trata-se, sobretudo de manter uma postura e
um olhar atento ao diálogo, ao Outro e ao ambiente em sua outridade” (CARVALHO;
GRUN, 2005, p. 181).
31 É a atitude “[...] que nos permite aprender a conhecer e apreciar a especificidade das tradições religiosas ou não religiosas que nos são estranhas [...]” (NICOLESCU, 2002, p. 62-63).
104
6 (ENTRE)LAÇOS: NO DESVELAR DO SAGRADO A POÉTICA DE SER COM O
OUTRO
A ação transdisciplinar propõe a articulação da formação do ser humano na sua relação com o mundo (ecoformação), com os outros (hetero e co-formação), consigo mesmo (autoformação), com o ser (ontoformação) e também com o conhecimento formal e o não formal (NICOLESCU, 2005).
Antes de percorrer os caminhos de onde partirão nossos olhares sobre as
percepções reveladas e suas contribuições, concordamos com Santos (2000),
quando sustenta que “[...] todo conhecimento é também auto-conhecimento”.
Parece-nos convidativo (com)partilhar a experiência de ser-sendo aprendiz de
pesquisadora, mediada pelo mundo, no processo de tessitura da rede de saberes e
sentidos que foi se fazendo ao longo desses últimos dois anos. “A própria noção de
discurso [aqui] está submetida [...] a outra ordem de coisas, isto é [...] está
posicionada dentro de um registro fenomenológico que pensa o ser-aí (dasein) e
remete à experiência como origem do discurso” (CARVALHO, 2005, p. 209).
Inicialmente, o sujeitobjeto escolhido para o estudo desta investigação suscitou certa
apreensão, por se tratar de assunto delicado, polêmico e tradicionalmente refutado
pelo pensamento científico tradicional. Foi mesmo como um mergulho numa outra
dimensão, desconhecendo aonde nos levaria. Contudo, na medida em que o
caminho foi sendo percorrido, com parceria constante da orientadora, com a
preparação e repetição dos rituais de encontro com os sujeitos da pesquisa e com a
descoberta do sentido de cada um que os encontros proporcionaram; na
possibilidade de efetivação do diálogo democrático em torno do delicado assunto; na
identificação do amplo referencial bibliográfico, as angústias e o medo foram
cedendo lugar à alegria da descoberta e à felicidade, abrindo-se em mim um novo
espaço-tempo-com-sagrado à investigação científica, que fortaleceu o propósito de
prosseguir.
Antes de prosseguir, queremos expressar o quanto nos sentimos sensibilizada por
esses encontros investigativos na perspectiva fenomenológica. (Re)conhecemos, na
realização dos encontros, um jeito prazeroso de fazer ciência, uma ciência com
sentido. Sendo assim, participar de um encontro é ir ao encontro do outro e nesse
105
movimento, “[...] é necessário que minha experiência me dê, de alguma maneira, o
outro, já que, se não o fizesse, não falaria sequer de solidão e não poderia sequer
declarar o outro inacessível” (MERLEAU-PONTY, apud PASSOS; SATO, 2002, p.3).
Caminhamos sem pressupostos ou categorias previamente definidos. Sem a
pretensão de saber o que iríamos encontrar, mas aberta a encontrar no mundo algo
da diversidade, próprio do conhecimento, que nos contasse sobre a presença do
sagrado na Educação Ambiental. Nas palavras de TATI, descobrimos que
[...] a gente que lida com a Educação Ambiental, de uma forma ou de outra, a gente vai tocar ou vai ser tocado pela questão do sagrado, porque a gente não faz isso como obrigação da formação, a gente faz Educação Ambiental porque a gente foi sensibilizada para [...].
Seguimos fiel à proposta da pesquisa, procurando, buscando, investigando. Superar
o medo das incertezas, romper as resistências àquilo que é estranho foi o primeiro
difícil desafio. Desafio que pudemos reencontrar na apreensão compartilhada por
uma das entrevistadas que, apesar de não ter sido intencionalmente escolhida,
escolheu-se para entrar no processo investigativo interagindo espontaneamente com
as outras duas entrevistas. Sobre essa presença do medo, passamos a expor
alguns relatos e tecer considerações:
6.1 DE PESQUISADORA À PESQUISADA E DE VOLTA À PESQUISADORA
Em alguns momentos, sentimos como se algo terrível nos aguardasse no caminho
de pesquisa que escolhemos percorrer, tamanha foi a manifestação do cuidado e do
desejo em nos proteger e orientar por parte de uma das entrevistadas:
[...] a academia ela... eu não sou da academia... eu sou da academia também, mas eu sou também muito da prática do professor e eu sei como a academia é, tenho sofrido muito, as pessoas que estão participando de tese, elas estão sofrendo muito, então assim na metodologia e na personalização dos conceitos. Talvez o nome do seu trabalho, talvez você possa pensar... não sei... se você quer chocar, ótimo (MARIA).
106
Ser ou não ser da academia, essa dúbia condição parece descobrir uma
fragmentação desconfortável daquele que é professor universitário, mas não
compartilha de um certo modo de ser, pensar e fazer acadêmicos. Quantos mais
estão espalhados por aí que compartilham desse sentimento? Mentes brilhantes
desconectadas da força transformadora, que irradiam suas emoções. Essa condição
de dubiedade representa, em certa medida, a tensão existente entre os pares
antagônicos da teoria e da prática, diferentes níveis de Realidade em que nos
situamos na educação e na vida e que aqui parece nos remeter a uma dimensão de
sofrimento. Para Nicolescu (1997, p.3):
Todas as várias tensões – econômica, cultural, espiritual – são inevitavelmente perpetuadas e aprofundadas por um sistema de educação moldado por valores de um outro século e por um desequilíbrio acelerado entre as estruturas sociais contemporâneas e as mudanças que estão ocorrendo atualmente no mundo contemporâneo.
Aqui, em um dos níveis de Realidade, cultivamos nossa face teórica, simbolizada
pela entrevistada como o universo acadêmico. No outro, reconhecemos nosso agir
cotidiano, nossa vida prática, constituída por aspirações, inspirações e sentimentos;
aquilo que somos, solitários ou juntos. Educar é confrontar inevitavelmente teoria e
prática, o que percebemos de forma explícita nas palavras da entrevistada. O
enfrentamento do par de contrários emerge quando se toca a noção do sagrado,
que, então, se apresenta com o sentido de um tabu acadêmico, deixando
transparecer o paradoxo entre o que a educadora pensa e sente sobre a práxis e
sua vivência como professora universitária.
NOÇÕES Cecília Meireles
Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos. Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram. Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a. Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza. Óh meu Deus, isto é minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este
107
corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera [...]
Outra percepção parece repetir a tendência de relacionar a abordagem do sagrado
com uma dimensão de sofrimento, por considerar que “na academia não há espaço
para isso”. Diz outra entrevistada que chamarei de Mirna:
[...] o que você vai fazer... eu acho muito interessante, você manter essa orientação. Eu tenho uma amiga que na educação ela fez surgir a questão do espiritismo, imagina! Na academia não há um espaço pra isso. Ela conseguiu um orientador, e aí fez lá um embasamento filosófico e tudo, mas foi inédito e ela teve que decidir se ela fazia algumas concessões por conta da academia ou se ela arcava, ela pagou um preço e foi.
O interesse pelo tema, aliado ao cuidado demonstrado com minha felicidade,
resultou na constituição de uma zona de não-resistência coletiva ou um campo do
sentido, ou campo semântico, repertórios compartilhados pelo grupo, cujos sentidos
muito se assemelham. Por nos situarmos nesse lugar, espaço, zona ou campo de
não resistência coletivos, foi que pudemos superar a tensão gerada pelos diferentes
níveis de Realidade e dialogar abertamente, expressando cada uma suas
expectativas, sonhos, preocupações, desejos, angústias e medos. Foram momentos
muito agradáveis.
Ainda sobre o título da pesquisa, Maria prossegue questionando:
O que chama atenção no seu título é que o sagrado se percebe ou o sagrado emerge? A percepção do sagrado dá a impressão que você vai captar a representação social de cada pessoa sobre o sagrado, que é o que eu acho que você vai fazer. Mas pelo que você está colocando, parece que você vai um pouco além, não é isso? Ou eu estou enganada?
Não estava. O desejo de ir além foi intencional desde o começo, daí a opção por
uma abordagem complexa e transdisciplinar das percepções. O sagrado emerge da
complexidade do Real e é percebido ou não por nós. É nesse sentido que optamos
pela “[...] substituição da representação pela apresentação das coisas.”
(MAFFEZOLI, 1998, p. 19). Não importa muito decodificar as representações
simbólicas com que cada um expressa seus pensamentos e sentimentos em relação
108
ao sagrado, isso está em segundo plano aqui, embora identificar a associação que
cada um faz seja considerado um exercício importante para perceber os sentidos
que emergem da palavra e com que sentidos vão se entrelaçando com o fazer
educativo no âmbito da formação em Educação Ambiental. Como realizar essa
intenção foi uma dúvida que permaneceu até o momento de fazê-lo.
A princípio, concordamos que o título poderia mesmo representar um paradoxo
insustentável. Entretanto, demonstra-se no paradoxo o caráter complexo e
transverso da questão, sendo ele mesmo fechamento e abertura. Essa mesma
pergunta nos fizemos várias vezes até descobrir que “[...] a percepção é pois um
paradoxo, e a coisa percebida é em si mesma paradoxal. Ela existe enquanto
alguém pode percebê-la” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 48).
No fechamento da afirmativa merleau-pontiana, parece haver uma abertura que, de
forma tácita, revela uma saturação dos fluxos de informação e consciência, os quais
rompem as fronteiras do antagonismo, lançando-se para outro nível de Realidade e
permitindo a manifestação de um terceiro incluído que, nesse caso, é a zona de não
resistência, sobre a qual nos apoiamos para articular com a percepção subjetiva, a
objetividade das representações que também delimitam fronteiras dogmáticas,
sejam elas de natureza acadêmica, sejam religiosa.
Essas idéias nos fizeram recordar da permeabilidade seletiva da membrana
plasmática, que, sendo de natureza lipoprotéica, apesar de fechada e encerrar no
seu interior o material citoplasmático e nuclear, torna-se aberta de acordo com a
maior ou menor saturação do fluxo de substâncias que entram e saem da célula, por
meio do seu mecanismo de arranjo e rearranjo molecular. Na compreensão de
estarmos mergulhados num mundo profano, somos ou nos tornamos (com)sagrados
pelo encontro de nossas percepções, quando permitimos que isso aconteça,
quaisquer que sejam os níveis de Realidade em que nos situamos.
6.2 PRECONCEITO E MEDO, ZONAS DE RESISTÊNCIA AO SAGRADO
Também durante a realização do GF1, a percepção do sagrado na formação em
Educação Ambiental foi associada a uma experiência de religiosidade, gerando
109
medo e preconceito. Diz o relato da Tuca:
Foi um trabalho que a gente desenvolveu junto [a um grupo] no mosteiro Zen Budista32... Então a gente desenvolveu... uma vivência [...] pra todos os alunos que entraram [...] esse ano [...]. Foram quatro turmas de aproximadamente 40 alunos. Em todas as quatro turmas a gente [...] e eles chegavam lá assim, eles já subiam assim: ‘O que que a gente vai fazer aqui?’. A primeira turma chegou desesperada, achando que eles iam sofrer torturas lá em cima, no meio do mato [...].
Com o objetivo de compreender melhor o relato, procuramos captar mais elementos
perguntando como ela chegou a essas conclusões sobre o medo. Se foi sua
percepção, se houve comentários ou se foi apenas foi fruto de sua observação, ao
que ela responde:
Não, não, eles comentaram: ‘O que a gente vai fazer no meio do mato, lá em cima do morro?: Quer dizer, mato pra eles era uma coisa ruim, a visão do mato pra eles era ruim. O que eu posso fazer no meio do mato? [...] Eles jamais imaginavam que [...] iam pra lá curtir o mato. Extrair do mato o que ele tem de bom e se sentir integrado e se sentir mato [...], na verdade, é isso. A gente acabou fazendo eles se sentirem ambiente [...]. Então eles chegaram com essa resistência [...]. Em todas as turmas a gente encontrou a resistência com relação à questão espiritual, do sagrado em função da religiosidade [...] então eu vivi muito isso durante esse tempo todo. E, no final, só saía menino assim [mostrou um largo sorriso] com um sorriso de fora a fora e arrepiados. Depoimentos que a gente colheu, a gente tem tudo registrado, depoimentos assim lindíssimos: ‘Eu nunca imaginei que eu fosse viver isso aqui, eu nunca imaginei que meio ambiente fosse isso [...].
Considerando, como Morin (1997, p. 109), que “[...] toda a relação organizacional
exerce restrições ou imposições sobre os elementos ou partes que lhe estão
submetidos”, notamos que o preconceito surge no contexto da Educação Ambiental
como uma imposição. Segundo o entendimento do índio Tapuia Jecupé33
(informação verbal), “[...] o preconceito nasce da ignorância e a ignorância nasce da
falta de educação”. Mas, como educar se, ao fazê-lo, impregnamos a educação com
32 O Mosteiro Zen Morro da Vargem, fundado na década de 70, está localizado no município de Ibiraçu, ao Norte da cidade de Vitória, capital do Espírito Santo. Cuida de uma área de 150 hectares, de Mata Atlântica e tornou-se, nos anos 90, um pólo de Educação ambiental do Estado, desenvolvendo ações educativas em conjunto com visitantes, líderes e escolas da região.
33 Em palestra proferida no Centro de Educação Ambiental na Arcelor Mittal Tubarão, em 2007.
110
tantos (pré)juízos? A educadora, participante do grupo focal, na sua prática
discursiva, associa o espiritual ao sagrado e nota que estes estão intimamente
vinculados à expressão religiosa, o que acaba se tornando uma fonte de preconceito
e resistência no caminho de aprendizagem escolhido, cuja referência parece ser
uma abordagem holística. Nesse caso, percebemos a Educação Ambiental como um
terceiro incluído que, mediando as tensões existentes entre as diferenças religiosas
e perceptivas, lança o grupo num outro nível de Realidade, um nível situado numa
dimensão integradora, sistêmica, em que emerge uma atitude transreligiosa,
resguardada por uma zona de não resistência — o sagrado — que faz da imposição,
emergência; da tensão, relaxamento; do medo, descoberta e autodescoberta; da
desconfiança, confiança; do estranhamento, maravilhamento. Pelas palavras a
seguir, parece ser esse o sentido da Educação Ambiental aqui realizada:
Quando a gente trabalha a Educação Ambiental, a gente vai além, a gente trabalha também espiritualidade, trabalha o sagrado, quando a gente fala de Terra, de planeta Terra, de vida, não tem como deixar de abordar essas coisas e têm certos grupos que oferecem um pouco de resistência, dependendo do que a gente vai colocar[...]. (TUCA)
Encontramos, com facilidade, uma convergência de sentidos da questão ambiental
com as representações simbólicas do sagrado. São condicionamentos aos quais
estamos sócio-historicamente vinculados, subjetivamente ou não, e mais do que
imaginamos, esses condicionamentos influenciam nosso arbítrio do que e como
ensinar. Outra entrevistada, a Mara, expressou isso de forma clara:
Quando eu falo de equação do segundo grau, eu não remeto a nada do sagrado, mas quando eu falo de meio ambiente, se meio ambiente implica uma visão de mundo e uma visão de respeito, então eu tô já tangenciando.
Em alguns outros momentos, pudemos também detectar a presença de outros
condicionamentos internos ou externos, que estiveram à frente das narrativas,
reprimindo a clareza da linguagem e expressão oral. Tais condicionamentos
emergiram na forma de um silêncio impregnado de múltiplos sentidos, gestos de
uma opressão contida, risos nervosos e posturas corporais absolutamente
expressivas. Citamos, a seguir, alguns desses momentos, intercalando as
impressões que nos causaram:
111
Após a apresentação da proposta de trabalho no segundo grupo focal, houve um silêncio desconcertante na sala. Parece haver um estranhamento... eu fico sem lugar, a proposta pareceu muito clara pra mim, então por que estão tão quietas? [...] Amanda sugere que utilizemos tudo, as perguntas e os trechos transcritos das entrevistas como motivação para o debate. Com esse profícuo comentário caímos novamente no silêncio desconfortável, haveria medo em abordar o tema?
Essas incertezas não nos imobilizaram na elaboração de possíveis respostas, pois
não havia por aqui intenções de um estudo objetivante, mas sim de valorização das
subjetividades e intersubjetividades presentes no vivido. Nessa perspectiva, vale
mais evidenciar o caminho percorrido e nossas percepções do que encontrar as
respostas certas e por isso passamos a destacá-las, apresentando-as segundo
nosso próprio e limitado horizonte perceptivo. Como sustenta Merleau-Ponty (1990,
p. 47), “[...] Não é por acidente que o objeto se oferece deformado a mim, segundo o
lugar que eu ocupo; é a este preço que ele pode ser real”.
“O silêncio” esteve presente no GF2 e durante uma das entrevistas. O
desenvolvimento do debate no GF1 foi muito diferente, não emergiram, como no
GF2, momentos de tensão, embora as narrativas tenham, em algumas situações,
sido densas. Qual o sentido desse silêncio que emerge quando se propõe falar
sobre o sagrado? Talvez ele esteja indicando ser mais difícil do que se pensa
adentrar na zona de não resistência, no espaço do sagrado, quando estamos no
coletivo, quando integramos um grupo. Pode ser que cada um estivesse esperando
uma referência do que é o sagrado para só, então, a partir do conceito fechado, se
manifestar. O silêncio, nesse sentido, apresentou-se como tempo e lugar. Lugar
seguro onde nos refugiamos para não errar, e tempo de choque34 ou latência,
preparatório para a entrada na zona de não resistência.
Na relação de entrevista, o silêncio também emergiu diante da questão proposta: a
dimensão do sagrado está presente na formação dos educadores ambientais?
Como? Analu, ao responder à pergunta, disse:
34 Expressão utilizada pelo professor Drº. Hiran Pinel em reunião realizada para debate dos resultados obtidos no Grupo Focal 2.
112
Eu creio que não se fala [do sagrado] porque temos muitas distrações, e normalmente estamos muito reprimidos. Não queremos saber de nada do que temos medo e se é problema, não queremos saber o que se passa a outra pessoa, o que está acontecendo com as plantas [...].
A entrevistada fez um breve silêncio, parecia faltar o ar que respirava e sua
expressão ficou tensa, só depois pude compreender a presença do “medo de falar”.
Ao final de certo tempo, ela prosseguiu:
[...] nos reprimimos e necessitamos espaços para sensibilizar-nos e espaços para expressar os valores que temos. Todos temos capacidades e temos valores, mas este mundo nos reprime e desgraçadamente mais às mulheres, não te dão a oportunidade de nada, de expressá-lo.
Essas observações vão revelando uma rede de relações e sentidos do ser mulher,
educadora, em frente aos problemas do mundo, da educação e da vida social,
reprimida na manifestação de sua sensibilidade. Mais tarde, durante outra entrevista,
é que pude compreender melhor aquele nó na garganta que interrompeu o fluxo das
idéias. Rico, educador de mesma nacionalidade que Analu, parece ter sentido o
mesmo impacto, pois comentou e, no seu comentário, revelou mais uma ramificação
da rede de sentidos do sagrado, agora na sua interface político-religiosa:
[...] nas universidades públicas, principalmente do México onde a educação é laica por lei, não tem que envolver questões religiosas, ninguém. Não pode, é proibido por lei. Então, se tem uma situação especial. Por isso Analu falava isso. Pela situação da lei, de educação laica, é uma situação que freia e os professores ficam com distância porque pode acontecer que os pais podem se inteirar que professores ficam com essas situações e eles podem denunciar e o professor pode ainda perder o seu trabalho.
Essa relação de poder do Estado sobre a manifestação religiosa do povo mexicano
está vinculada ao processo histórico daquele país que, em certa medida, representa
também a história de outros países. Conseqüência da estreita relação de alguns
grupos religiosos à política partidária com a finalidade de lutas internas. São reflexos
do passado no presente. Ele continua: “Tem agora um programa muito forte de
educação dos valores, mas valores universais: respeito, responsabilidade, liberdade, amor,
paz, só isso”.
113
Pergunto: isso resolveria a questão?
[...] Não, é muito etéreo, muito longe, é tudo e não é nada. Nós temos que ficar com exemplos concretos. Se posso fazer, não é problema, mas não é muito acertado ainda [...]. Você vai no banco, vai no escritório da instituição oficial, não tem nenhuma indicação religiosa oficial, situações oficiais de governo não tem, há muito receio.
O olhar que nos oferecem os dois educadores mexicanos apresenta elementos de
um nível de Realidade interno (microcosmo) à vida do País. Essas percepções
engendram combinações coletivas de representações sociais que, por se tornarem
muito amplas, perdem sua identidade individual e se colocam em processo
constante de ressignificação. No que diz respeito ao tema aqui proposto, notamos
que há, constantemente, uma confusão entre os sentidos do sagrado, do que é
religioso e do arcabouço simbólico a eles atribuídos.
Esse modelo que reúne, num mesmo conjunto, diferentes práticas discursivas sem a
preocupação de reconhecer e respeitar suas identidades, é excludente, inclusive
para quem fez a opção de viver num mundo dessacralizado. E também tende a
reforçar os dogmatismos existentes nos diálogos intersubjetivos, do homo
religiousus, podendo tornar-se obstáculo aos princípios de participação, integração,
inclusão e ética da Educação Ambiental.
No entendimento de Carvalho (2002, p. 99), com o qual concordamos,
[...] a religião tem um papel importante no ideário ecológico [...] o sujeito ecológico parece ser atravessado por um espírito religioso cuja melhor expressão estaria no sentido latino do re-ligare, que alude a um movimento de realinhamento humano com a natureza como lugar sagrado.
Considerando, portanto, esse modo de ser-sendo-no-mundo educador
ambiental/sujeito ecológico,35 reconhecemos haver uma importância em garantir os
espaços paradoxais entre as identidades culturais dos sujeitos, sem o fechamento à
diversidade, igualmente sem a abertura pseudo-includente que procura 35 Expressão utilizada por Carvalho (2004, p.65-67) para designar “[...] um ideal de ser que condensa a utopia de uma existência ecológica plena [...] e agrega uma série de traços, valores e crenças e poderia ser descrito em facetas variadas”.
114
homogeneizar o diverso, concordando com Ferreira (1998, p.64): “[...] a não-
homogeneidade serve como ponto de referência e orienta o homem dentro de um
espaço homogêneo que é o caos”.
Nilo, outro educador, também estrangeiro e latino, expressa sua percepção,
estabelecendo uma comparação da percepção do sagrado em diferentes lugares do
mundo, fazendo uma narrativa que parte de um nível de Realidade macro:
Quando observamos uma realidade latino-americana, sim, podemos localizar essa presença do espiritual também no âmbito universitário, porém, se falamos, por exemplo, de uma realidade européia, a presença do espiritual é quase marginal, quer dizer, não temos a presença do espiritual, nem do religioso, nem do sagrado como tal, como uma expressão religiosa dentro do âmbito da universidade, porque a crença religiosa ou esse sentimento do sagrado é algo particular e pessoal de cada sujeito. Portanto não se deve mesclar com outras dimensões [...]. Essa seria a visão que se tem na Europa, essa visão de desligar as coisas humanas do que aparentemente ou se diz que é: o sagrado.
Um depoimento no grupo focal contribuiu com esse enfoque transcultural, na medida
em que indicou a presença de uma visão de mundo diferenciada com relação ao
sagrado, na região do Oriente. O olhar é da mitologia hindu e a vivência é
disseminada em larga escala no cotidiano da sua população. Diz o relato:
[...] se a gente observar as culturas mais antigas, a gente tem essa coisa... tudo muito interligado, não é separado, se você vê a cultura indiana, nada é separado, nada. A ciência, do que é religioso, do que é lenda. Então o panteon deles, as deidades, é um negócio assim, uns arquétipos psicológicos maravilhosos... Então, assim, porque a vaca é tão sagrada? [...] quando o homem... fazendo grandes queimadas, muita guerra, Bhumi [como é chamada a vaca] desesperada foi em direção a Brahma que é a deusa, para pedir misericórdia, foi aí que Brahma então falou que ela seria considerada um animal sagrado [...].por isso, pros indianos, hoje, a vaca é um animal sagrado e que representa a Terra, representa o planeta, um grande respeito porque ela dá, assim, o leite e todos os seus derivados, não a carne.
Em sintonia com o pensamento de conjunção, a música brasileira já anunciava a
insuficiência da visão masculina e cartesiana de mundo. “Um dia vivi a ilusão de que
ser homem bastaria. Que o mundo masculino tudo me daria, do que eu quisesse ter”
(MOREIRA, 1979). Esse mundo masculino de que nos fala a música parece
115
representar também uma visão de mundo mecânica e auto-suficiente. Nesse
contexto de fragmentação, do olhar cartesiano, o feminino, a cultura, o sagrado,
quando se expressam, em geral são subjugados e/ou tomados à conta de
romantismo, o que tacitamente obriga a revestirmos nosso olhar feminino, com a
visão de mundo materialista que é hegemônica. Por conseguinte, a Educação
Ambiental, em sua natureza feminina e repleta de sentidos, parece tomar, algumas
vezes, um aspecto objetivo, rijo e sem alma.
A contribuição da identidade feminina na Educação Ambiental passa pela aceitação
do ser sensível. Um ser educador, que pode reconhecer, na Terra que o alimenta e
sustenta, sua mãe. “Não importa o nome pelo qual se possa chamá-la: vitalismo,
naturismo, terra-mãe, existe uma indubitável ligação entre uma sensibilidade
ecológica e uma ecologia do espírito, da qual a intuição é um dos aspectos mais
evidentes” (MAFFESOLI, 1998, p. ). Intuição e sensibilidade vão tangenciando de
alma e sentimento o fazer pedagógico, temporariamente enquadrado na razão-
cognitiva. Pensamos que o medo, tão presente em alguns dos relatos que vimos até
agora, nasce dos desejos e das relações de domínio e poder de subjugação da
verdade de um sobre a verdade do outro.
É esse o sentido que damos à narrativa de Polly, concordando com a importância
que destaca em propiciar atividades preparatórias para superação do estranhamento
e entrada na zona de não resistência, no sagrado, quando planejamos encontros de
formação. Momentos de ambientação capazes de romper, por meio de um toque da
delicadeza feminina e da diversidade cultural, as fronteiras dimensionais que se
interpõem entre os níveis de Realidade em que se encontram os componentes do
grupo, como descreve a narrativa a seguir, colhida no transcorrer dos trabalhos do
GF2:
[...] considero essa dimensão que estaria além do tangível, além do material, além do quantificável, fundamental na educação e também na Educação Ambiental [...]. Acho que essa dimensão ela tem que ser uma preocupação nossa, tem formas de ser trabalhada. E... a gente... eu gosto de buscar essas formas através de imagens, através de práticas, dinâmicas, música e sinto que isso enriquece o trabalho e cria uma... um sentido mais profundo no trabalho de Educação Ambiental (POLLY).
116
Além do olhar cuidadoso sobre os encontros de Educação Ambiental, a narrativa de
Polly parece nos conduzir à idéia da ecologia profunda (Deep Ecology), uma
concepção e tendência do ambientalismo que não separa os seres humanos da
natureza e cuja abordagem, segundo Marin (2003, p. 25), “[...] trata de valorizar as
dimensões espirituais”. A expressão foi criada por NAESS (1973), influenciada pelo
pensamento ecológico-filosófico de Henry Thoreau e com seus pressupostos de
igualdade entre as espécies e uma vida em simplicidade e harmonia com a natureza
e pretende contrapor-se ao paradigma hegemônico. O próprio ambientalismo, como
sugere Tristão (2004), questiona não apenas o modo de produção das sociedades,
mas o modo de vida, tentando recuperar valores não materialistas ou ecológicos.
Outro aspecto que emerge das palavras da entrevistada é o papel da arte no
processo de ambientação. Para ela, imagens e sons têm a capacidade de “[...] criar
um sentido mais profundo no trabalho de Educação Ambiental” (2004, p. 173). As
abordagens transculturais, nesse sentido, tendem a ampliar as fronteiras
perceptivas, superando dicotomias, conduzindo os sujeitos a novas visões de mundo
“[...] e quando a nossa perspectiva sobre o mundo muda, o mundo muda. Na visão
transdisciplinar, a Realidade não é só multidimensional, é também multireferencial”
(NICOLESCU, 2002, p. 55).
6.3 NA RECURSIVIDADE DAS EMOÇÕES A DIMENSÃO ESTÉTICA DO
SAGRADO
Para Juca, um educador engajado no movimento da Educação Ambiental e que
participou como facilitador de cursos de formação para educadores ambientais:
[...] o sagrado está nessa emoção das pessoas [...] é como eu tô percebendo isso, a gente vê que as pessoas se emocionam muito em muitos momentos, é eu sinto que [...] que tem um pouco de sagrado nisso.
Ele procura explicar o que está dizendo, como se explicasse pra si mesmo o que
percebe como sagrado e segue oferecendo detalhes da emoção que promove os
sentimentos de engajamento e pertencimento de um determinado grupo em relação
às ações de Educação Ambiental na região do Caparaó, no Espírito Santo. Do
117
encantamento das emoções ao engajamento nas ações. No engajamento das ações
o sentimento de pertencer e ser solidário. Na sua explicação, ele vai tecendo os fios
da emoção e da ação, numa recursividade entrópica.
Eu sinto que é sagrado porque [...] as pessoas continuam se colocando à disposição, continuam lutando contra a maré que é a pouca visibilidade, que é a pouca comunhão das pessoas no processo. A gente sabe que como está era pra parar tudo, todo mundo fazer a sua parte individual e coletiva, mas não é essa a realidade ainda, então eu sinto que [...] isso tem sagrado, e aí eu não consigo quantificar, mas na emoção das pessoas, na doação dessas pessoas, no prazer dessas pessoas em continuar o trabalho, na sua escola, nos seus pequenos projetos, em toda a região do Caparaó, eu sinto que tem isso, é o sagrado, é, as pessoas se doarem, estarem lá, doarem seu tempo, doarem o seu lixo, doarem seu... a não presença na família, pra esse momento de formação ou de voluntariado, eu sinto que tem sagrado nisso, porque é um despertar.
Esse “despertamento” pode se dar de diversas formas, mas notamos que em nossa
cultura de fragmentação, cultura, ciência e religião aparecem como saberes
desarticulados que desfavorecem esse “despertar”. Na fragmentação, estaria
escondida a perversa e paralisante ameaça do erro, a abominação da diversidade.
Contudo a emoção transpõe os muros da separação e, em alguns momentos,
emerge como expressão artística. A arte emociona e, como tal, pode ser percebida
como “aquilo que liga”, uma racionalidade estético expressiva, como diria
Boaventura (2000).
É assim em nossa cultura. Saindo do âmbito da unidade da nossa cultura e numa
objetividade sem parênteses, considerando também como nossa a cultura indígena,
passamos para outro nível de Realidade em que é possível notar que, nos troncos
culturais ancestrais dos povos indígenas, princípios e valores constituem, segundo
sua crença, o espírito dessa cultura, algo como uma entidade própria. Para esses
povos, essa fragmentação inexiste e “[...] toda diversidade gera riqueza e a riqueza
gera prosperidade. Tudo o que foge ao respeito à diversidade fere o valor”
(JECUPÉ, informação verbal). Também em um dos depoimentos, podemos perceber
o sentido atribuído a essa relação:
118
No mundo indígena ou no mundo de hoje, o meio ambiente e o sagrado vão de mãos dadas, quer dizer, as coisas da natureza, sobretudo as coisas vivas, os animais sempre foram considerados como algo que é útil ao homem, mas, ao mesmo tempo, como algo que tem uma vida própria e deve de ser respeitado e nesse sentido, por exemplo em minha casa, em minha formação nunca tivemos essa cultura de rejeição” (NILO).
Falar de diversidade é falar de integração, conexão das partes. “Enquanto o conceito
racional empenha-se em trazer de volta a unidade – reductio ad unum (Augusto
Comte) -, a intuição, aceitando o múltiplo e contentando-se em nomeá-lo, permite
pensar o diverso” (MAFFEZOLI, 1998, p. 135). Esse princípio de conjunção, em que
uno e o múltiplo se encontram em (comum) união, é igualmente percebido em
Bergson (1999) e Bateson e Bateson (1994) encontrando ressonância na concepção
de “unidade aberta” de Nicolescu (1999) e na idéia de unidade diversa, unitas
multiplex, de Morin (1997). Tal articulação de conceitos parece nos permitir uma
compreensão mais ampla do conhecimento. Há uma recursividade organizacional no
campo das idéias colocadas em ação por essas abordagens conceituais, e essa
recursividade nos remete à dimensão estética, porque a arte pode também surgir
como algo que liga, sendo ela mesma uma potência de ação capaz de criar novas
resistências ou pulverizá-las, como sugere o pensamento de Jane, expresso durante
o GF1:
[...] eu gosto muito de poesia, porque ela foge dessa fragmentação que a religião acaba fazendo, Mário Quintana, principalmente, eu leio muito, gosto dele e ele tem um poema que fala que: milagre não é transformar pão em peixe ou peixe em pão e água em vinho, mas é as pessoas acreditarem nisso e esse é o grande milagre.
O poema de Mário Quintana (1999, p.36) a que Jane se refere citamos na íntegra:
DOS MILAGRES
O milagre não é dar vida ao corpo extinto, Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto... Milagre é acreditarem nisso tudo!
O sentido atribuído à arte, no desenvolvimento do grupo focal, surge como um
caminho de aproximação, algo que religa, sem impor uma crítica ou abdicar da
119
diversidade de opiniões. A estetização é a grande tendência contemporânea. Nas
palavras de Maffesoli (1998. p. 120): “Isso quer dizer que ao lado de elementos
lógicos, racionais, utilitários, todas as relações sociais põem em jogo aspectos
lúdicos, oníricos, afetuais”. Jane continua:
[...] então eu gosto sempre, inclusive até a arte pra mim ela é um canal, ela é um fio que atravessa tudo e não fica... então deixa as pessoas mais à vontade... do que ficar assim... explicando... ‘Ah! Ele é o quê? É cristão, é não sei o quê’, aí vai alimentando essas religiões e os pensamentos também [...].
6.4 A DIMENSÃO POLÍTICA DO SAGRADO
Acreditando na falácia moderna da disjunção do conhecer, do saber, do fazer, da
vida, criamos a ilusão de haver uma distância entre as dimensões humanas. Esse
distanciamento que inventamos e que a educação ocidental reifica parece ter nos
conduzido à tendência em criar pontes, pontes que nos coloquem de volta em
contato com cada uma dessas dimensões, buscando religar as partes.
As pontes ligam duas margens separadas, mas não restituem centralidade ao que
está na periferia. Falar de pontes é evocar instituições políticas e religiosas que
fazem parte de nossa vida social. Aquilo que constitui a especificidade de cada
grupo social conta com as manifestações fenomênicas dos aspectos ligados à
expressão da vida em sociedade; e aquilo que foi criado para juntar perpetua a
separação.
Uma das entrevistadas, ao expressar sua percepção da presença do sagrado na
formação em Educação Ambiental, cita os sentimentos de reverência e de
pertencimento que emergem da observação das pranchas fotográficas apresentadas
pelo projeto GÊNESIS, algumas das quais utilizamos para ilustrar nossa fala sobre o
projeto e seus resultados.
Estas fotografias retratam elementos da natureza e/ou paisagens, demonstrando,
como sugerem Tristão e Nogueira (2007), que a linguagem imagética:
[...] pode ser mais do que um simples objeto estético, julgado de
120
modo simplificado, entre o belo ou agradável, o feio ou degradante. Mesmo o feio, dificilmente, torna-se feio na plasticidade de uma fotografia. Assim, a imagem do cotidiano coloca em jogo muito mais do que um simples juízo de valor, mas mexe com nosso imaginário, com nossos sentimentos, com a nossa existência e cria subjetividades.
Paulo Freire também é mencionado como um autor, cuja visão humanista contribui
com a fundamentação teórica da metodologia do projeto GÊNESIS e, segundo a
entrevistada, o olhar freiriano encontra-se permeado pelo sagrado. Sobre o
desenvolvimento dessa metodologia e do sagrado, Mirna diz:
[...] o que a gente percebe [...] é a construção de um olhar de reverência! Mara intervem: ahã... Mais do que respeito, reverência!]. E aí esse olhar de reverência implica assim, também, no estabelecimento de uma relação com as forças que te cercam, numa atitude de respeito, numa atitude de pertencimento. Eu também pertenço ao mundo daqueles elementos, numa atitude de defesa, de preservação.
A concepção de pertencimento presente na narrativa acima parece partir de uma
noção de identidade biológica. Portanto, ainda reduzida, disjunta, partida, desprovida
da complexidade inerente à condição humana. Por outro lado, a dimensão estética
parece ser a ponte que religa a razão e a emoção, a teoria e a prática, a objetividade
e a subjetividade do ser no mundo. E o sentimento de pertencimento iminentemente
político parece ganhar o sentido de algo que, por meio da arte, se encontra com-o-
sagrado.
[...] então o olhar de reverência em relação aos elementos que cercam a natureza, possibilita essa visão do sagrado, eu, na minha subjetividade, construindo esse sentido, quer dizer: Nossa! Eu também pertenço ao mundo dos macacos, os macacos têm a ver comigo! Cria uma relação de pertencimento, uma idéia de uma família mais planetária que tem a ver com o sagrado (MIRNA).
Nesse contexto, a noção de sagrado vincula-se à noção de pertencimento que, aqui,
parece estar impregnada por uma visão de mundo de um lado fundada nos valores
judaico-cristãos de sacralização da natureza e, do outro, apoiada na idéia do ser
biológico concebido numa lógica científica, o que, em alguns momentos ou
ambientes, parece gerar resistências. De fato, essa questão emergiu em uma das
entrevistas e vem na fala de Maria:
121
Eu acho que... uma coisa muito interessante, que eu nunca... eu já tinha percebido isso, mas ao discutir esse assunto ficou muito mais claro foi o problema da... de uma tendência religiosa, de um evangelismo que não aceita a teoria da evolução [...]. E umas pessoas; duas falaram: eu achei as fotos lindas, mas ‘Eu não concordo com a teoria evolucionista’.
Eu pergunto se isso impediu que esses professores trabalhassem com o projeto, ao
que ela respondeu:
Trabalham, mas não aceitam... é outra abordagem. Tudo bem trabalhar, a gente não tá querendo que trabalhe numa só. Mas ta emergindo essa posição, vamos dizer, da própria concepção da criação do homem. Isso eu acho que é uma coisa com o sagrado.
Tantos séculos levamos disjuntos e mudos diante das evidentes violências que a
racionalidade cognitivo-instrumental nos impôs que nos parece normal esse
estranhamento ao darmos início a um exercício de conjunção. Nesse sentido, com
aquilo que é sagrado-religioso alguns professores não se identificam com a visão de
mundo científica evolucionista e simplesmente excluem essa abordagem em favor
daquela com a qual se identificam e que dá sentido às suas vidas.
A proposta curricular prescreve uma abordagem científica e, apesar de, no Brasil, a
educação ser laica por lei, como cita o art. 19 da Constituição Federal de 1988:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público [...].
O ensino religioso é um componente curricular da escola pública brasileira,
determinado pelo art. 33 da LDB/1996, em seu art. 33 que orienta:
122
O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.
Mas será que as salas de aula vivem o prescrito? Ou o currículo se realiza na
vivência cotidiana? Quantas unidades de ensino dão cumprimento à orientação
legal, de uma educação laica, como menciona a Constituição Federal de 1988, em
seu art. 19? Todas essas questões nos remetem às inúmeras e pequeninas
transgressões individuais que vão se configurando diante dos estatutos legais.
Pudéssemos casar o estado de ordenamento legal ao estado da liberdade de
criação artística e talvez pudéssemos constituir uma sociedade menos hipócrita,
como convidam os belos versos de Thiago de Mello:
OS ESTATUTOS DO HOMEM (Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais
123
duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
124
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido, tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964
Acreditamos haver subversões da ordem, que acontecem no cotidiano da escola e
fora dela, reflexo de uma identidade societária de fragmentação e que parece se
tornar um obstáculo para a superação da nossa incapacidade política de
transformação da microrrealidade curricular e da ampliação do debate na
macrorrealidade social. Estagnamos na idéia de uma identidade humana reduzida
pelo paradigma da Modernidade às nossas origens biológicas e deixamos de
avançar na compreensão de nossas identidades culturais.
É nesse sentido que podemos afirmar: os humanos somos pertencentes ao mundo físico, parentes de todos os seres vivos, mas ao mesmo tempo distanciados e estranhos a eles; somos profundamente enraizados em nossos universos culturais que ao mesmo tempo nos abrem e nos fecham as portas de outros possíveis conhecimentos (SÁ, 2005, p. 252).
125
As questões de pertencimento são complexas por si mesmas, pois, ao articular
simultaneamente indivíduo e sociedade, tocamos na ferida da modernidade, na qual
produzimos e somos produzidos, desligados de nossas identidades. Comumente na
“modernidade liquída”, 36 as relações são fluidas e desprovidas de conectividade, daí
decorre a estratégia social de (re)organização em redes. Porém, “[...] uma ‘rede‘
serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível
imaginá-la sem as duas possibilidades” (BAUMAN, 2004, p. 12) e dessa dualidade
advém seu poder de sedução.
O paradoxo mantém a unidade aberta, ou seja, nosso sentimento de pertencimento
vai até onde nos identificamos com a rede de relações em que nos inscrevemos e
com as quais nos comprometemos. Não havendo mais essa identificação,
trafegamos do coletivo ao individual numa liberdade que alimenta os movimentos de
retração e expansão das redes. Como demonstra o depoimento de uma
entrevistada:
[...] eu percebo essa construção desse olhar de reverência, na formação, primeiro a partir de uma experiência pessoal minha e depois quando eu compartilho, eu vou percebendo um consenso, aí se torna um rito do grupo mesmo; da construção de atitudes, de valores, de defesa, de projetos, necessidade de intervenção pra se manter aquelas concepções que eu estou naquele momento reverenciando (MIRNA).
Ao reconhecermos o desafio de enfrentar o paradoxo entre abertura e
fechamento, percebemos que existe uma potencialidade de (trans)formação
dessa relação sociedade-natureza, em outro tipo de relação, dessa vez
permeada por uma percepção mais ampla de pertencimento, ligada a um
diferente nível de Realidade. “O princípio do pertencimento parece, assim,
traduzir-se como uma diálogo entre semelhança e estranhamento” (SÁ, 2005, p.
253).
36 Expressão utilizada pelo sociólogo Zygmunt Bauman para designar o que pela maioria dos autores é denominado como pós-modernidade.
126
Continua Mirna:
[...] a visão humanista do Paulo Freire é totalmente transversalizada por uma concepção do sagrado ainda que ele não o diga. Então quando ele concebe, por exemplo, o homem como um cri-a-dor,37 a questão da criatividade tem um olhar do sagrado: eu sou capaz de transformar minha realidade, isso é um toque do sagrado, um toque de poder [...].
Poder e sagrado parecem se fundir, aqui, formando uma unidade aberta do
conhecimento, unidade que se constitui e configura como uma potência de ação.38
Espinosa afirma que a única forma de sermos livres e, portanto, felizes é
conhecendo” (SANTOS; COSTA-PINTO, 2005, p. 297).
[...] conceber o mundo como um texto também é uma concepção que tem a ver com o ritual sagrado, Paulo Freire faz leitura de mundo: nossa então o mundo pode ser lido? Essa percepção é que desencadeia todas as outras. A necessidade de uma relação dialógica, sair fora de você em relação ao outro, entre as pessoas e com a natureza, dialogicidade preconizada por Paulo Freire também, você sai do seu encontro e vai ao encontro (MIRNA).
Apesar de não ser uma especialista no pensamento de Paulo Freire e este trabalho
não estar fundamentado teoricamente no pensamento freiriano, vamos nos atrever a
tecer alguns comentários dos sentidos produzidos pela fala apaixonada e
apaixonante da entrevistada. Paulo Freire é um educador “vivo”. Em sua obra, a vida
pulsa e com isso desperta um sentido de acordar outras vidas, rompendo as
fronteiras do tempo e da morte. Freire é uma grande referência para os teóricos,
pensadores e militantes da Educação Ambiental crítica. O sentido de seu
pensamento é reforçado na máxima de tornar o político mais pedagógico e o
pedagógico mais político.
Novamente, num movimento recursivo, o sentido do encontro emerge na fala como
momento privilegiado de entrelaçar política e sagrado, sugerindo a impossibilidade
de disjunção dessas dimensões. Política, nesse caso, porque toca na educação
como oportunidade de promover a capacidade crítica do sujeito sócio-historicamente
construído. E sagrado porque, a partir da leitura concreta da realidade, há uma
37 Ênfase dada pela entrevistada, que acentuou a divisão silábica ao se expressar 38 O termo refere-se à capacidade de transformação da realidade em busca da liberdade e da felicidade e fundamenta-se na obra do filósofo holandês Baruch de Espinosa.
127
capacidade de (re)criar o novo e (trans)formar a realidade. Educar é um ato de
poder, na medida em que potencializa o sujeito a transformar realidades. Ou,
poderíamos dizer, noutro sentido, na medida em que possibilita ao sujeito transitar
entre diferentes níveis de Realidade. Nas palavras de Mara: “[...] a coisa é uma
mudança de paradigma mais profunda do que mudar comportamento político, social
e econômico [...]”.
A questão que colocamos no âmbito da Educação Ambiental é: o quanto estamos
conseguindo avançar da sensibilização para a ação? E se não estamos
efetivamente conseguindo efetivar transformações, é importante fazê-lo? Que
dimensões precisamos tocar para impulsionar a potência de ação humana? Como
conta Eva:
[...] a gente ver um menino de bairro, conseguir ir lá no prefeito reclamar por uma praça. Até ele chegar no prefeito, meu Deus! Se ele chegar, vai ser um momento tão assim... que... logo... se for festivo é só pra foto, se for [...] pra uma reclamação, pra manifestação na comunidade, normalmente não é o prefeito que aparece, é o assessor que dá uma resposta pra amenizar, mas a solução não busca, mas a gente faz. Coloca no papel, na sua carta, vamos encaminhar, vamos fazer o ato mesmo, a prática... é o correio... é protocolar... é acompanhar... é cobrar... porque é um processo, não pode parar.
6.5 NO ENTRELAÇAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO-SOCIAL-AMBIENTAL:
QUAL O LUGAR DO SAGRADO?
A participação emerge no GF2 como crítica à desarticulação do sagrado em relação
às dimensões político-sociais consideradas fundamentais no debate das questões
ambientais: “Eu acho que a gente, quando falar alguma coisa, deve se colocar no
processo [...]”.
Em seguida, Norma parece explicar o que entende por participar:
Estão poluindo, mas quem tá poluindo? Que que eu participo nessa poluição? [...]. Está tudo certo. Errado está a gente, que fica falando e mostrando casa, anunciando na televisão e não vamos lá discutir o orçamento, pedir prioridade para o nosso saneamento público ser saneado mesmo. Aí você pega uma boca de recolhimento de canal, é aquela [...] que mata e impossibilita a vida, não só vida, mas o próprio recurso hídrico, como água, que é sagrado e não é vida [...] são coisas que se conectam.
128
As noções de certo e errado presentes no repertório discursivo de Norma expõem a
dicotomização da dimensão dialógica. Há uma crítica tácita a algo que parece
incomodar profundamente. Esse incômodo pode, talvez, ter sua origem num
sentimento de impotência em frente ao imobilismo geral, à dificuldade de
engajamento da população em torno das questões ambientais e das respostas
lentas e fracas de transformação da realidade vivida.
Em todo caso, a maneira como esse sentimento se expressa, dentro de uma lógica
ternária, causou, segundo a nossa percepção, um estranhamento no grupo,
denunciado por uma tensão, um silêncio, que acabou por produzir uma zona de
resistência, uma descontinuidade no debate. Foram vários os momentos em que
notamos essa descontinuidade presente no debate durante o GF2. Continua a
narrativa:
[...] eu acho a gente muito fashion, assim, pra falar desse sagrado, isso tudo eu acho que a gente não tem esse cacife, num geral, a gente não é eu, você nem ela, eu acho que a classe média, de país ocidental, quer mais é imitar [...] a classe que está em cima, acha que ela vive melhor, é mais digna, é mais perto de Deus aí se cria um monte de religião... falar de prosperidade...bater palma... em quantidade, a humanidade está indo por esse caminho e num geral é um traço proeminente de evolução humana, a gente não está ainda tirando os brincos,39 então, dando olhar de carinho pros meninos pobres. Eu acho que há uma diferença [...].
Debater o sagrado, nesse caso, parece requerer condições especiais de
envolvimento, ou posturas pessoais, ou níveis de participação que credenciem o
sujeito para tal, no que discordamos. O tema é livre e a nosso ver não deve fazer
(pre)juízo sobre o que ou quem fala. A participação é livre se pretende ganhar um
sentido diverso da adesão e o princípio da autonomia confere aos sujeitos o direito
de manifestar-se dentro de sua visão de mundo. Concordamos na importância em
se desenvolver uma autocrítica ao bordar tais assuntos, para evitar uma retórica
vazia e sem sentido, porque desconectada do vivido. Nesse sentido, Norma alerta
para a necessidade de se debater a questão do sagrado com foco, também, na
realidade social, o que gera novo debate a partir da questão que ela propõe: “Você
acha possível, alguém que tem muito, que acumulou muito, mesmo que seja pelo
39 Refere-se à seguinte fala da Norma, anterior à citada: “[...] a classe média é muito macaquinha da classe rica [...] não tem nada pra dar, mas tem um brinco que só vale 40 mil reais e tem que falar logo do brinco, aí dá um olhar lindo pro garoto que tá com fome, tá com a barri... está vomitando lombriga”.
129
seu trabalho, ter um olhar, ou o sentimento de desigualdade do outro que não tem
nada?”
Um caminho preconizado pelas tradições religiosas é a compaixão. No caso da
Filosofia, o sentido da alteridade. O sentimento de compaixão permite um exercício
legítimo de “colocar-se no lugar do outro”, deixando-se impregnar por seus
sentimentos, olhar os acontecimentos pelas lentes de outro. O pensamento da
alteridade nos convida à escuta sensível, mas somente “[...] a boa vontade permite a
projeção de nossa inteligibilidade no Outro” (GRÜN, 2004, p. 24) sem o que
passamos a obter apenas confirmação de nossos próprios pensamentos sobre o
outro.
Morin (2005, p. 35), ao referir-se à ética complexa, corrobora afirmando que:
[...] as sociedades mais complexas comportam, ao mesmo tempo que a própria religação comunitária, antagonismos, rivalidades, desordens, todos inseparáveis das liberdades. Além disso, no espírito dos indivíduos, as religações acontecem a partir da responsabilidade, da inteligência, da iniciativa, da solidariedade, do amor.
Nessa mesma linha de pensamento e compreensão, Polly emite sua opinião
durante o debate do grupo esclarecendo:
[...] é claro que a experiência pessoal é única, a gente fala isso no sentido figurado, colocar-se no lugar do outro, porque os problemas não são só financeiros e materiais. Uma pessoa, por exemplo, que não tem condições, passou fome, ela pode não ter nunca tido depressão e uma pessoa que tem todas as condições tá num buraco, morrendo, se suicidando, então nem um, nem outro vão realmente poder dizer que estão se colocando no lugar, porque a vivência de uma pessoa é totalmente única, muita gente usa essa expressão nesse sentido que Amanda falou, de você se aproximar da situação do outro e tentar compreender essa situação, às vezes tentar interferir, mas se solidarizar numa atitude diferente de uma indiferença [...].
O trabalho com as práticas discursivas, de certa forma, cumpre esse papel, na
medida em que possibilita um mergulho na percepção do outro. Em várias ocasiões,
ao longo deste estudo, o sentido do sagrado pareceu estar ligado à questão da
alteridade ou outridade.
130
O depoimento de Jane, participante do GF1, remete-nos também a esse olhar,
quando fala:
[...] se eu entendo que o sagrado sou eu e o outro, e a natureza, o tempo inteiro, se eu entendo isso, e eu vivo isso. Eu venho fazendo o que propõe a pergunta ali, essa formação. Mas isso não acontece [ela pára de falar e a sala fica em silêncio por segundos] no dia a dia, porque a formação se dá é no cotidiano e na família e no trabalho e num ambiente como esse, em qualquer lugar, é... e eu digo que isso é sagrado, cada momentinho desses é sagrado e eu acho que é uma mentira a gente dizer que trata dessa dimensão [...] existem, sim, como linguagem, essas dimensões, mas a gente sabe que isso tá tudo coladinho e junto, que a gente é um pouco disso tudo, então... assim... é mentiroso, eu acho, quando a gente tá dizendo que tá formando, fazendo formação de educadores ambientais. [...] eu acho que o exercício tem que ser muito mais profundo, a reflexão, é no pequeno, no diário, no outro.
Recorremos a uma lenda africana que fala da criação do mundo, citada por Martins
(1984, p. 21) e da qual nos valemos para auxiliar na abordagem de sentido do
sagrado e da percepção de Jane que, aparentemente, encontra-se profundamente
associada a um sentido dualista entre o bem e o mal, de fundo moral religioso.
Conta a história que:
Olofi, o Senhor que criou tudo – o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro, o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo – criou também a Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela, luminosa, e fez a Mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentia inveja da Verdade e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começa a procurá-la tateando por volta. Apalpa um crâneo [sic] que supõe ser o seu. Com esforço agarra-o e o arrancando de onde estava coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era a cabeça da Mentira. Desde então, a Verdade anda por aí enganando a toda gente.
Na dinâmica do grupo focal essa abordagem provocou uma tomada de consciência
reflexiva: estaríamos no enfrentamento da tensão teoria-prática vivenciando
múltiplas verdades ou mentiras bem contadas? Esse questionamento nos remete a
diferentes realidades que se interpõem, como no caso da história de dominação da
cultura judaico-cristã sobre as comunidades indígenas, que deixou profundas
marcas, como sugere o pensamento de Soffiati (2002, p. 38), quando diz que “[...] a
linha predominante no pensamento contemporâneo volta-se para a tradição judaico-
131
cristã, entendendo-a como a raiz intelectual mais profunda do domínio da natureza
não humana pelo ser humano”.
Do ponto de vista da percepção merleaupontyana, podemos também tecer algum
comentário, pois, em seus estudos, esse autor faz uma análise, que podemos
chamar de complexa, da verdade, situando-a no tempo e lugar de um nível de
percepção e conferindo-lhe um sentido não encapsulado num conceito
determinístico, abrindo-se ao campo das incertezas. Identifica e diferencia um duplo
sentido da verdade procurando evidenciar a estreita ligação que verdade e mentira
guardam entre si.
[...] ainda não tratamos de uma verdade fora do tempo, mas, antes, da retomada de um tempo por outro como, no nível de percepção, nossa certeza de abordar uma coisa não nos põe a salvo de um desmentido da experiência nem nos dispensa de uma experiência mais ampla. Seria preciso naturalmente estabelecer aqui uma diferença entre verdade ideal e verdade percebida[...]. Busco somente fazer ver o laço por assim dizer orgânico entre a percepção e a intelecção (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 55).
O eminente fenomenólogo parece antever a orientação dos fluxos de informação
que atravessam os níveis de Realidade e o fluxo de consciência que atravessa os
níveis de percepção, originando a unidade aberta do conhecimento transdisciplinar.
Ainda sobre a verdade, Merleau-Ponty (1990, p. 55) questiona: “Posso seriamente e
pensando no que digo, afirmar que minhas idéias de agora são minhas idéias de
sempre?”.
6.6 DIMENSÃO ÉTICA E O SAGRADO: “A ÉTICA DEPENDE DE UMA
PERSPECTIVA DE HUMANIDADE”
A realidade histórica de dominação entre culturas encontra-se perpetuada nas
práticas assistencialistas atuais que intentam corromper, mediante oferta de
“presentes”, a cultura indígena, forçando a fragmentação de suas crenças e impondo
uma forma de cultura hegemônica, homogênea. No depoimento do nosso
entrevistado, Nilo, fica claro que há, diante dessas práticas, uma insatisfação,
contudo notemos que, nesse caso, a noção de sagrado parece ser confundida com
religião:
132
Acho importante, por exemplo, e uma aberração que existam grupos religiosos que se aproveitem dessa perspectiva sagrada, por exemplo, dentro do âmbito dos povos indígenas, ou que algumas pessoas tratem de se fundamentar no sagrado para promover uma consciência global. Não, para mim o fundamento não é o sagrado, o fundamento é uma ética humana.
Essa confusão conceitual entre sagrado e religião esteve presente também no grupo
focal, porém a dialogicidade da dinâmica do grupo permitiu uma abordagem
diferenciada da questão, conforme nos apresentam os trechos das narrativas que
seguem:
[...] parece que houve um momento que ficou complicado misturar religião com o restante dos campos do conhecimento, então, precisou haver essa separação e nesse retorno à preocupação com a natureza, retorno a tentar integrar, a tentar integrar as disciplinas, campos do conhecimento, essa inserção do sagrado ela vai se fazendo necessária, mas há um receio se misturar com religião porque é como se tivesse havido um avanço em separar religião de ciência e agora estivesse havendo um retrocesso em reunir. Não sei se vocês estão entendendo o que estou falando. Percebo isso. Particularmente pra mim, eu não consigo fazer distinção, entre religião, espiritualidade, sagrado[...](POLLY).
Interagindo com o discurso de Polly, Amanda e Norma, respectivamente, se
manifestam marcando um olhar distinto sobre a questão:
[...] Eu separo espiritualidade de religião, porque eu vejo a religião como um conjunto de dogmas, de normas, um estado político, constituído, instituído e a espitirualidade independe disso aí. Quer dizer, mesmo que eu não tenha nenhuma religião explícita, eu sou um ser espiritual.
Eu concordo.
A educadora Polly identifica, no espaço-tempo, um nível de Realidade gerado pelo
movimento de disjunção e conjunção da dimensão espiritual e acrescenta um
terceiro incluído engendrado pelas interações de seus níveis de percepção. Quando
afirma que não consegue fazer distinção, não nega a diferença formal entre o que
está institucionalizado e o que não está e afirma um novo sentido que atribui ao que
é denominado religião e sagrado. Voltando à questão das múltiplas verdades, o
contexto de significações e atribuição de sentidos na abordagem transdisciplinar
parece criar novas possibilidades conceituais.
133
Agregando à percepção de Polly mais alguns sentidos, em outro momento durante
uma entrevista, Iza, com muita clareza, analisa que:
[...] o sagrado está mal compreendido. Ele ficou fechado dentro das instituições religiosas. Todo mundo fala de sagrado e já pensa logo numa religião, numa instituição religiosa. Então não se pode falar de sagrado porque. “Ah! É uma crença, faz parte de uma crença [...]”. O sagrado eu acho que ele está malvisto, ele foi mal utilizado, ele ficou fechado dentro das instituições religiosas.
Essa percepção provoca um esvaziamento do problema, na medida em que situa no
tempo-espaço a confusão conceitual, colocando-a no passado e reconhece, no
presente, que há outros entendimentos, como no caso das danças circulares
sagradas. Talvez também por essa razão o movimento das danças circulares venha
ganhando tanta expressão nos encontros de Educação Ambiental. Iza continua
afirmando:
Não é isso que a dança circular traz [...] é estar em contato consigo mesmo, encontrar nos outros a mesma ressonância, fazer a conexão com a terra, com o céu, com o céu no sentido simbólico [...] Eu acredito que o sagrado está dentro de cada um de nós e é um pra todos. Então você tem aquele pontinho em comum que a dança circular [e] outros tantos sistemas, outras tantas maneiras de se trabalhar com as pessoas, também podem acessar, mas o que eu falo é da dança circular. Eu acredito que ela acessa realmente esse ponto em comum, esse ponto em comum é a verdade, é... difícil falar de verdade, mas é o sagrado, é esse pontinho em que todos têm o mesmo sentimento por ele.
E por falar em verdade, um outro fato relevante, por representar um aspecto da
verdade de determinados grupos religiosos e que tem interface com a realidade
vivida por educadores e educadoras nas suas práticas junto às comunidades, diz
respeito à tensão entre práticas afro-religiosas e preservação ambiental, pois
algumas dessas práticas consistem na realização de atividades com oferendas
depositadas em áreas naturais, em alguns casos em áreas legalmente protegidas, e
rituais realizados em favor da dieta alimentar de suas entidades espirituais, que
acabam por impactar ou provocar impactos ambientais. Sobre esse assunto
polêmico e controverso, Nilo acena com uma resposta em plena convergência com
o olhar transdisciplinar sobre a unidade aberta do conhecimento. Vejamos o que nos
diz:
134
[...] que cada um pratique o que tenha que praticar, mas no momento em que nós pensamos em ferir a vida, no momento em que pensamos em nome de uma divindade, destruir a natureza, o meio ambiente, então deveremos repensar se essa prática é boa ou se deve-se continuar com ela. Porque todas as religiões, todas as culturas sempre estão em um processo de desenvolvimento e não existe a cultura final, e nem existe a religião, nem o sagrado final, senão tudo isso faz parte de uma construção cultural e, nesse sentido, se aquilo é negativo para o meio ambiente, é negativo para a vida, gera dor, gera sofrimento, e quem pratica esse tipo de ritos, esse tipo de práticas deverá repensar e replanejar suas práticas e isso não implicará em renegar suas crenças, nem seus fundamentos de vida, senão, basicamente, serão eles que transformarão aquilo.
Essa visão de mundo é condizente com o princípio de inclusão da Educação
Ambiental, ao mesmo tempo em que não se omite diante da percepção e do
sentimento de profundo respeito pela vida. Aparece na narrativa a construção de um
olhar transcultural e transreligioso permeado por valores humanos de solidariedade,
cooperação e compreensão. Mas como e onde entram esses princípios no processo
de formação? Analu faz um recorte desse panorama segundo sua percepção:
[...] o maior problema que temos é que os alunos, seus valores não são firmes, como para falar de amor, de respeito, solidariedade. Então nos preocupamos, como fazer para que eles realmente... o conceito de solidariedade, por exemplo, como conduzi-los para que eles realmente se identifiquem com isso.
O respeito é a base para uma aprendizagem permanente e em constante
significação na proposta da Educação Ambiental, especialmente quando educadores
e educadoras atuam com o objetivo de contribuir para a realização de sociedades
sustentáveis. Assim referenciam os principais documentos da Educação Ambiental
brasileira, como o Tratado, a Carta da Terra, a Lei nº. 9.795/99 e até mesmo aqueles
documentos de orientação explicitamente pragmática, como a Agenda 21. Em outra
entrevista, também observamos uma postura que relaciona o sagrado com o
respeito. Diz Mara: “O sagrado é aquilo que merece respeito, aquilo que confere
dignidade”.
O educador Nilo também considera essa preocupação presente no debate da
Educação Ambiental, mas, em sua percepção, a resposta encontra-se além do
sagrado, como sustenta em um trecho do seu depoimento:
135
Creio que, dentro do âmbito da Educação Ambiental, se queremos difundir uma consciência ambiental planetária e global, mais do que do sagrado, deveríamos falar do ético. Porque é ético conservar a natureza, é parte de uma ética humana, é parte de uma ética humana respeitar o que vive contigo, é parte de uma ética humana guardar a identidade de outros, e o sagrado como já te disse é uma vivência privada.
No sentido de esclarecer ainda mais esse interessante ponto de vista, sugerimos
que ele detalhasse mais essa distinção entre ética e sagrado, o que resultou no
trecho que apresentamos a seguir:
A ética é distinta do sagrado, sim, a ética não depende de uma religião, a ética não depende de um Deus nem de uma divindade, a ética depende de uma perspectiva de humanidade. A ética, poder ter um ateu tão ético, pode ser alguém que não crê em nada do sagrado, e, nesse sentido, a ética é muito diferente ao que é o sagrado e, sobretudo quando se confunde o sagrado com o religioso, que também é algo muito diferente ao que pode ser sagrado. Religioso é muito distinto do que é sagrado, porque o religioso sistematiza o sagrado, o aprisiona, e o apresenta com uma etiqueta, como podia ser o sagrado católico, o sagrado guaiú, o sagrado kichwa.
Embora concordando com a distinção proposta pelo entrevistado, numa abordagem
complexa, não poderíamos deixar de considerar que as percepções do que é tocado
em nós pela sociedade, pela cultura e pela natureza não sofrem rupturas, mas,
antes, são constituídas por continuidades, prolongamentos e ramificações em
permanente transformação, como desvela Morin (2005, p. 19, grifo do autor) ao
afirmar:
[...] A ética manifesta-se para nós, de maneira imperativa como exigência moral. O seu imperativo origina-se numa fonte interior ao indivíduo, que o sente no espírito como a injunção de um dever. Mas ele provém também de uma fonte externa: a cultura, as crenças, as normas de uma comunidade. Há, certamente, também uma fonte anterior originária da organização viva, transmitida geneticamente. Essas três fontes são interligadas como se tivessem um lençol subterrâneo em comum.
136
7 (TRANS)CONCLUSÕES
[...] em vez de continuar pensando segundo um racionalismo puro e duro, em vez de ceder às sereias do irracionalismo, talvez seja melhor pôr em prática uma ‘deontologia’ que saiba reconhecer em cada situação a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o corpo e o espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda (MAFFESOLI, 1998, p. 19).
Indispensável é considerar, em nossas conclusões, que vivemos uma época de
deterioração das relações humanas com franco enfraquecimento do espírito coletivo
e fragmentação crescente das instituições sociais levando, em alguns casos, à
dissolução de seus pressupostos e princípios. A falta de comprometimento com a
vida tornou as relações fluidas e vazias e, enquanto cresce a população mundial,
avança o sentimento de solidão. Difícil encontrar pessoas dispostas às renúncias e
ao sacrifício do pessoal em favor do coletivo. A lei é a da vantagem, sendo difícil
encontrar pessoas altruístas.
As doutrinas e teorias parecem, muitas vezes, formar exércitos que se defendem
uns dos outros como se inimigos fossem. E, de certa forma – onde imperam o
fundamentalismo, e os dogmatismos exacerbam – o são. A herança da Modernidade
é muito mais profunda e penosa do que nos parecia num primeiro momento e o
desafio que está posto na atualidade é o de criar e acreditar num movimento de
religação. O complexo caminha, lado a lado, com o simples. Religar conhecimentos
é romper fronteiras para religar pessoas. Como afirma Morin (2005, p. 183):
[...] Teorias, doutrinas, filosofias, ideologias não podem ser julgadas somente como erros ou verdades na tradução que fazem da realidade; não têm de ser concebidas como produtos de uma cultura, de uma classe ou de uma sociedade. São também seres noológicos,40 alimentando-se de substância mental e cultural e algumas delas, carregadas de forte substância mítico-religiosa, podem desenvolver um extraordinário poder de subjugação e de posse.
40 A expressão refere-se ao conceito de noosfera cunhado por Teilhard de Chardin em 1925. O termo “Noosfera” deriva do grego noos, que significa mente – a fim de designar uma teia de informação e conhecimento em formação e que nos influencia de forma crescente e permanente.
137
Esse é o sentido que pensamos e sentimos para a Educação Ambiental. Não há
lugar para um fechamento teórico, doutrinário, filosófico ou ideológico da Educação
Ambiental. Não há lugar para o preconceito ou a discriminação. É tempo de
caminhar juntos, com respeito e solidariedade a si, ao outro e à natureza, na direção
do universalismo, entendido no sentido do desenvolvimento de idéias, sentimentos e
atitudes de inclusão, uma consciência universalista que não reconhece fronteiras e
vê o outro como legítimo outro na convivência.
Essa dimensão, que procuramos investigar, parece emergir com freqüência nos
processos da Educação Ambiental, recebe muitas e diferentes denominações e tem
a propriedade de nos reconectar. Apesar de estar presente, sua presença está fora
de foco, é periférica, em alguns casos, intencional. Em outros, casual. É uma
presença que ainda causa estranhamento, é algo invisível, pertencente à esfera da
subjetividade, mas está aí, na vida, e se manifesta onde há pessoas envolvidas na
dinâmica educativa. Não podemos e nem devemos mais negá-la por medo de não
saber como lidar com ela. Como falar em transformação da realidade sem
considerar os condicionamentos, anseios e idéias inerentes a essa dimensão?
O caminho percorrido nesta pesquisa suscitou descobertas e um reencantamento
pela presença do outro. Ao caminhar, atenta, na busca pelos sentidos do sagrado,
fomos desvendando a necessidade de valorizar as oportunidades de encontrar o
outro e, nesse sentido, sacralizar os encontros por meio do desenvolvimento de uma
escuta sensível que nos permita estabelecer atitudes transreligiosas, para tessitura
de um conhecimento sempre aberto a seu constante auto-refazimento.
O sentido do sagrado parece ocupar um entrelugar, é e não é, está e não está,
apresenta-se de forma difusa, ora como algo religioso, ora como um conjunto de
valores, ora como dimensão espiritual, imaterial, intangível, não quantificável. Na
verdade, são muitos os sentidos e essa pode ser, dentre muitas, uma das razões
para o estranhamento que sua presença causa. Dando voz a um sujeito da
pesquisa, exemplificamos nossa percepção:
138
[...] então um dos conhecimentos que eu trago pra discussão é o conhecimento religioso, o conhecimento religioso de mundo e aí o conhecimento religioso mais genérico, e que contempla o sagrado, então isso é uma coisa que sempre surge. Sempre surge na discussão essa questão também dessa relação com o sagrado, mas não é o foco, realmente não é o meu foco, mas isso sempre aparece (OTO).
Movimento contrário à sacralização da natureza, por considerar essa uma tendência
dissociativa. Hoje estamos em outro momento, em que a Educação Ambiental, a
sustentabilidade e a transdisciplinaridade podem/devem tratar a dimensão espiritual.
Na complexidade inerente a todo processo educativo, afirmamos sem receios, como
Random (2000, p. 42-43), que “[...]os ensinamentos das grandes sabedorias e das
tradições são essenciais para enriquecer e até mesmo iluminar o espírito científico
[e, por outro lado,] a física quântica mostra que a própria ciência tem valor de
símbolo”.
Acreditamos que, por seu posicionamento filosófico, Merleau-Ponty possa ser
considerado um precursor do pensamento transdisciplinar, deixando em sua teoria
inúmeras aberturas e formulações que, apesar de não compreendidas e/ou aceitas
na época, parecem ter continuidade, hoje, nas abordagens teóricas
contemporâneas, como sugere esse autor ao afirmar: “[...] não há dois saberes, mas
dois graus diferentes de explicitação do mesmo saber, a psicologia e a filosofia se
nutrem dos mesmos fenômenos, os problemas estão apenas mais formalizados no
nível da filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 62).
A atitude transreligiosa nos convida a reconciliar o conhecimento científico ao
conhecimento propagado pelas principais tradições religiosas. Não apenas
reconciliação entre pares antagônicos, mas uma reconciliação íntima, que
reconheça, aceite e coloque em sinergia os diferentes níveis de Realidade, que
compõem a subjetividade humana. Em sua obra, as idéias merleaupontianas
parecem transitar por entre os embriões do pensamento transdisciplinar, quando
buscam “[...] definir um método de aproximação que nos dê o ser presente e vivo e
que deverá ser aplicado em seguida às relações do homem com o homem na
linguagem, no conhecimento, na sociedade e na religião” (MERLEAU-PONTY, 1990,
p. 63).
139
Um sujeito que desenvolve uma consciência reflexiva e se põe a pensar sobre
valores, estabelecendo diálogo e escuta sensíveis não apenas com seus
semelhantes, mas também com idéias que lhe são antagônicas. A partir de uma
unidade aberta do conhecimento, encontra o novo e se renova e se faz e refaz como
novo educador a cada instante. “Mudanças de paradigma requerem mudanças de
atitude” (SOFFIATI, 2002). O sagrado, nesse sentido, torna-se um ponto de muitas
linhas na rede de saberes e fazeres da Educação Ambiental.
Em meio a uma mudança paradigmática, buscamos a reinvenção do mundo. Mas,
para isso, é preciso ter a coragem de ousar. Garcia (2000) aborda com segurança
um assunto comumente colocado à margem desse processo: o erro. Ela nos fala
das vantagens de vencer o medo de errar na sala de aula e fora dela, e considera o
erro como adubo da aprendizagem afirmando que, sem o erro, não nasce o novo. A
autora instiga a nos desapegar da segurança dos caminhos retilíneos, claros e bem
mapeados para adentrar os “[...] atalhos labirínticos onde não se podem ver
antecipadamente aonde nos levam, mutantes que são e, irrequietos, indisciplinados,
[...] cheios de surpresas onde a única bússola é a busca permanente e obstinada”
(p.118).
Esse foi o convite que aceitamos ao iniciar o presente trabalho. Paradoxalmente
assustador e atraente, o labirinto passou a desenhar-se à nossa frente, ganhando
contornos cada dia mais visíveis. Diante do conjunto de corredores entrecruzados,
salas e caminhos desconhecidos, interpretamos a presença desse labirinto como um
espaço afetivo e cognitivo não-linear a ser percorrido pelo sujeito encarnado. Para
nossa cultura ocidental, o labirinto é um lugar de diversão e prazer, cuja construção
reúne um conjunto de passagens, corredores entrecruzados, salas e caminhos de
difícil saída.
Para a mitologia grega, o labirinto era um objeto sagrado, existente no palácio de
Cnossos. Foi construído por Dédalo, sob as ordens do rei Minos. Nele foi
aprisionado o minotauro, monstro mitológico cujo corpo era de homem e a cabeça
de um touro. A fera alimentava-se de carne humana e Teseu, herói mitológico,
140
conseguiu atravessar aquele labirinto utilizando um simples e surpreendente
recurso.
O estudo histórico filosófico da metáfora mitológica revela um papel religioso nas
culturas primitivas (ABRÃO; COSCODAI, 2000). Nesse sentido, descer a uma
caverna ou gruta, adentrar um labirinto significa a passagem por experiências que
nos conduzam à morte ritual e metafórica do velho e ao encontro com as origens do
ser para ressignificá-lo no novo. “Numa visão simbólica, o labirinto, como as grutas e
cavernas [...] tratam de uma figuração de provas iniciáticas discriminatórias, que
antecedem à marcha para o centro oculto” (BRANDÃO, 2000).
Viver a experiência de uma pesquisa acadêmica dentro de uma outra lógica, que
não a cognitiva-instrumental, foi a realização de antigo sonho, compartilhado por
outro biólogo, amigo querido dos tempos de formação acadêmica na década de 80
do século passado. Na ocasião, nós já vivenciávamos a experiência acadêmica
como sujeitos encarnados, questionávamos os estudos de Biologia baseados na
manipulação de corpos sem vida, dissecados, etiquetados e classificados e, por
defendermos outras formas de conhecimento, éramos encarados como loucos,
radicais e românticos.
Concordamos com Najmanovich (2001 p. 23), quando afirma que “[...] só podemos
conhecer o que somos capazes de perceber e processar com nosso corpo. Um
sujeito encarnado paga com a incompletude a possibilidade de conhecer”.
Sendo assim, dentro do que nos foi possível, atravessamos o labirinto, enfrentamos
alguns minotauros e, após muitas tentativas e erros na busca obstinada e
permanente pela saída, fizemos descobertas sobre nós mesmos, sobre a vida,
sobre a Educação Ambiental e sobre o sagrado, que procuramos compartilhar com
todos. Queremos deixar registrada nossa profunda admiração e respeito pela
educação e pelo poder de transformação que ela engendra nos sujeitos. Assim
como Teseu, encontramos, com a cooperação e solidariedade de todos que, direta
e indiretamente, participaram deste trabalho, uma saída. E agora, vamos deixando
atrás de nós esse labirinto até que outro se desenhe à nossa frente.
141
8 REFERÊNCIAS
ABRÃO, Bernadette Siqueira; COSCODAI, Mirtes Ugeda. Dicionário de mitologia. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. ALBUQUERQUE Leila Marrach Basto de. As vias religiosas do ambientalismo. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL: práticas de pesquisa em educação ambiental, 3., 2005, Ribeirão Preto, SP. Anais... Ribeirão Preto: EPEA, 2005. 1 CD-ROM. ALVES, Rubem. Gaiolas e asas? Coleção pensamento vivo. ed. Nossa cultura. Curitiba: (PR). audiolivro. Faixa 2. 2005. v. 1 AMORIN FILHO, Oswaldo Bueno. Topofilia topofobia e topocídio em MG. In: DEL RIO, Vicente; OLIVEIRA, Lígia de (Org.). Percepção ambiental: a experiência brasileira. São Carlos: EDUFSCar, 1996. p. 139-152 ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. BACON Francis. Novum organum. Porto: Res Editora - Aforismos de 1 a 70. BATESON, Gregory; BATESON, Mary Catherine. El temor de los angelis: epistemologia de lo sagrado. Bercelona: Gedisa. 1994. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ______. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BOFF. Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2000. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Programa parâmetros em ação, meio ambiente na escola: guia do formador. Brasília: MEC; SEF, 2001. CANIATO, Rodolpho. Projeto de ciência integrada: textos e atividades. Campinas: Papirus, 1987. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 1996. ______. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo:
142
Editora Pensamento-Cultrix. 2002 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 1988. CARVALHO, Izabel Cristina de Moura. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2004. ______. A invenção ecológica: narrativas e trajetórias da educação ambiental no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. CARVALHO, Izabel Cristina de Moura. Análise do discurso e hermenêutica: reflexões sobre a relação estrutura-acontecimento e o conceito de interpretação. In: GALIAZZI, Maria do Carmo; FREITAS, José Vicente de, (Org). Metodologias emergentes de pesquisa em educação ambiental. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. CARVALHO, Izabel Cristina Moura; GRÜN, Mauro. Hermenêutica e educação ambiental: o educador como intérprete. In: FERRARO JUNIOR, Luiz Antonio (Org). Encontros e caminhos: formação de educadoras(es) ambientais e coletivos educadores. Brasília. MMA, Diretoria de Educação ambiental, 2005. p. 175-187. . CONEP. Cadernos de Ética em Pesquisa, ano I, n 1, jun. 1998. CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente. Revista Brasileira de Educação, Campinas (SP), n. 27, p.183-191, set./dez. 2004. D’ AMBROSIO, Ubiratan. Modernidade, pós-modernidade e educação. Educação nas Ciências, São Paulo (SP), ano 1, jan./jun. 2001. DEL RIO, Vicente; OLIVEIRA, Lígia de (Org.). Percepção ambiental: a experiência brasileira. São Carlos: EDUFSCar, 1996. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Lisboa: Dom Quixote, 1993. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, S.A.R.I., 1956. (Coleção Vida e Cultura n. 62). ______. História das crenças e das idéias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978. (Coleção Espírito e Matéria.) FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986. FERREIRA, Rodolfo. Entre o sagrado e o profano: o lugar social do professor. Rio de Janeiro: Quartet, 1998. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
143
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. 2. ed. São Paulo: Fundação Peirópolis, 2000.
GARCIA, Regina Leite. Da fronteira se pode alcançar um ângulo de visão muito mais amplo... embora nunca se veja tudo. In: Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. GATARRI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografia dos desejos. Petrópolis: Vozes, 1986. GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro Editora, 2005. GRÜN, Mauro. Compreensão e dominação: dois conceitos para trabalhar em educação ambiental In: TAGLIEBER, José Erno; GUERRA, Antonio Fernando Silveira. Pesquisa em educação ambiental: pensamentos e reflexões. I Colóquio de pesquisadores em Educação Ambiental. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2004. p. 21-29. GUEDES, Alberto de Castro (Beto); BASTOS, Ronaldo Ribeiro. Amor de índio. Emi-Odeon, 1978. GUIMARÂES, Mauro. A dimensão ambiental na educação. Campinas: Papirus, 2000. ______. A formação de educadores ambientais. Campinas: Papirus, 2004. GUTIÉRREZ, Francisco; ROJAS, Cruz Prado. Ecopedagogia e cidadania planetária. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2000. HELLERN, Victor. et al. O livro das religiões. São Paulo: Cia. das Letras. 2000. JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo, símbolo na psicologia de C. G. São Paulo: Editora Cultrix, 1986 LAYRARGUES, Philippe Pomier. Educação ambiental com responsabilidade social. Revista Senac e Educação Ambiental, Rio de Janeiro (RJ), ano 13, n. 3, 2004. LECHTE, John. Cinqüenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. Rio de Janeiro: Difel, 2003. LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. Educação, emancipação e sustentabilidade: em defesa de uma pedagogia libertadora para a educação ambiental. In: LAYRARGUES, Philippe Pomier. Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília (DF): MMA, 2004. p. 85-112. LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. São Paulo (SP): Cortez, 2004.
144
LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. O movimento ambientalista e o pensamento crítico: uma abordagem política. Rio de Janeiro: Quartet, 2003 LÜDKE, Hermengarda Alves; ANDRÈ, Marli Eliza D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998. MARTINS, Joel et al. Temas fundamentais de fenomenologia. São Paulo: Ed. Moraes, 1984. MARIN, Andréia Aparecida. Percepção ambiental e imaginário dos moradores do município de Jardim/MS. 2003. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 2003. MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. MELLO, Amadeu Thiago de. A criação do mundo. Gravadora Karmin. CD Faixa 17. 2006. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. ______. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Campinas: Papirus, 1990. MOREIRA, Gilberto Passos Gil. Tempo rei. CD Raça humana 4ª faixa. Warner music. 1984. MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Portugal: Publicações Europa-América Ltda., 1997. ______. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. ______. Articular os saberes. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite. O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ______. O método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina. 2005. NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001. NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.
145
NICOLESCU, Basarab. A evolução transdisciplinar da universidade, condição para o desenvolvimento sustentável. In: CONFERÊNCIA NO CONGRESSO INTERNACIONAL. ”A responsabilidade da universidade para com a sociedade”, 1997, Bangkok. Anais... Bangkok (Thailand): International Association of Universities, Chulalongkorn University, 1997. ______. Fundamentos metodológicos para o estudo transcultural e transreligioso. In: SOMMERMAN, Américo. Et al Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom, 2002. ______. PROJETO CIRET-UNESCO: Evolução transdisciplinar da Universidade. Síntese do documento. 1997. In: CONGRESSO MUNDIAL DE TRANSDISCIPLINARIDADE, 2., 2005, Vitória/Vila Velha. Anais... Vitória, 2005. 1 CD-ROM OKAMOTO, Jun. Percepção ambiental e comportamento. São Paulo: Plêiade, 1996. OLIVEIRA, Lívia de. Os estudos de percepção do meio ambiente no Brasil. I Encontro sobre percepção e conservação ambiental: a interdisciplinaridade no estudo da paisagem. Revista Olam Ciência & Tecnologia, São Paulo, ano IV, v. 4, n. 1, Abr. 2004. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Entrevista: Zygmunt Bauman defende a literatura como forma de compreensão da condição humana e ataca os ”muros da academia” e a alienação dos intelectuais. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 out. 2003. PASSOS, Luiz Augusto; SATO, Michele. Educação ambiental: o currículo nas sendas da fenomenologia merleau-pontyana. In: SATO, M. (Dir.). Sujets choisis en éducation relative à I’ environnement: d’ une Amérique à I’autre. Montreal: ERE – UQAM, t. I, 2002. p.120-135. PEROTA, Celso; DOXSEY, Jaime R.; BELING NETO, Roberto. A. As paneleiras de Goiabeiras. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 1997. QUINTANA, Mário. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1999. RAMOS, Renata Carvalho Lima. Danças circulares sagradas: uma proposta de educação e curta. São Paulo: TRIOM: Faculdade Anhembi Morumbi, 1998. RANDOM, Michel. O território do olhar. In: CETRANS. Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo (SP): Triom, 2002. p. 27-42 ______. O pensamento transdisciplinar e o real. São Paulo: TRIOM, 2000. REIGOTA, Marcos. O estado da arte da Pesquisa em Educação Ambiental no Brasil. In: GRUPO ENSINO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS. (UFSCar); Grupo Temática Ambiental e o
146
Processo Educativo (UNESP – Rio Claro) e Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências (USP – Ribeirão Preto) – v. 2, n. 1, jan/jun .2007. RUSCHEINSKY, Aloísio (Org.). Educação ambiental: Abordagens múltiplas. São Paulo: Artmed, 2002. ______. Sustentabilidade: uma paixão em movimento. Porto Alegre: Sulina, 2004. SÀ, Luiz Carlos Pereira de; GUARABYRA FILHO, Gutemberg Nery. Quem saberia perder. 7ª faixa do CD: O melhor de Sá e Guarabyra - ao vivo. 2005. SÁ, Laís Mourão. Pertencimento. In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antonio (Org.). Encontros e caminhos: formação de educadores (as) ambientais e coletivos educadores. Brasília: MMA, Diretoria de Educação ambiental, 2005. p. 245-256. SALGADO, Sebastião. Roteiros de viagem: manual do professor. Projeto Educacional Gênesis, 2006. SANTAELLA, Lúcia. A eloqüência das imagens dos vídeos de educação ambiental: uma análise semiótica. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Cláudia Coelho e COSTA-PINTO, Alessandra Buonavoglia. Potência de ação. In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antônio (Org.). Encontros e caminhos: formação de educadores(as) ambientais e coletivos educadores. Brasília: MMA, Diretoria de Educação Ambiental, 2005. P. 295-302. SATO, Michele; CARVALHO, Izabel Cristina de Moura (Org.). Educação ambiental: pesquisa e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2005. SATO, Michele; PASSOS, Luiz Augusto. Pelo prazer fenomenológico de um não-texto. In: GUIMARÃES, Mauro (Org.). Caminhos da educação ambiental: da forma à ação. São Paulo: Papirus, 2006. p. 17-30 ______. Notas desafinadas do poder e do saber: qual a rima necessária à educação ambiental? Itajaí: Contrapontos, n.3, 2003. v.1. SCHIMITT, Jair e MATHEUS, Carlos Eduardo. Considerações sobre o estudo da percepção ambiental. Revista Olam Ciência & Tecnologia, São Paulo, ano V, v. 5, n. 1, maio 2005. SILVA, Regina Aparecida da. Tecendo a educação ambiental com os fios amazônicos e linhas de dignidade. 2006. Dissertação (Mestrado em educação) – Universidade Federal do Mato Grosso. Cuiabá: UFMT/IE, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995.
147
SOFFIATI, Arthur. As religiões diante da crise ambiental da atualidade. In: Programa de Comunicação Ambiental, CST, Instituições de Ensino Superior. Educação, ambiente e sociedade: idéias e práticas em debate/programa de Comunicação Ambiental, CST, Instituições de Ensino Superior. Serra: Companhia Siderúrgica de Tubarão. 2004. p. 97-118. SPINK, Mary Jane P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez. 1999. TRAJBER, Rachel; MANZOCHI, Lúcia Helena (Org.). Avaliando a educação ambiental no Brasil: materiais impressos. São Paulo: Gaia, 1996. TRISTÃO, Marta. A educação ambiental na formação de professores: redes de saberes. São Paulo: Annablume; Vitória: Facitec, 2004. ______. Os contextos da educação ambiental no cotidiano: racionalidades da/na escola. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 27., 2004, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2004b. 1 CD-ROM. ______. A educação ambiental e os contextos formativos na transição de paradigmas. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 30., 2007, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2007. 1 CD-ROM. ______. Tecendo os fios da complexidade da educação ambiental: entre o subjetivo e o coletivo, o pensado e o vivido. Educação e Pesquisa, São Paulo: FEUSP, v. 31, n. 2, maio/ago. 2005. TRISTÃO, Martha; NOGUEIRA, Vitor. Educação ambiental e sua relação com o universo da fotografia. In: SATO, Michele. (Org.). Eco-arte para reencantar a educação ambiental. São Carlos: Editora da UFScar, 2007 (no prelo). TRISTÃO, Marta; PINEL, Hiram. Sujeito, identidades e as relações com o meio ambiente. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL: práticas de pesquisa em educação ambiental, 3., 2005, Ribeirão Preto, SP. Anais... Ribeirão Preto: EPEA, 2005. 1 CD-ROM. TRISTÃO, Martha; FASSARELA, Roberta. Contextos de aprendizagem. In: Encontros e caminhos: formação de educadoras(es) ambientais e coletivos educadores, Brasília: MMA, 2007. v. 2. VELOSO, Caetano Emanuel Viana Teles. Fora de ordem. CD Circular, 1ª faixa. Gravadora universal. 1992.
149
ANEXO A – PROJETO CIRET- UNESCO
Evolução transdisciplinar da Universidade
1997
[síntese do documento]
Congresso Internacional DE LOCARNO
QUE UNIVERSIDADE PARA O AMANHÃ?
EM BUSCA DE UMA EVOLUÇÃO TRANSDISCIPLINAR DA UNIVERSIDADE
Locarno, Suíça, de 30 de abril a 02 de maio de 1997
I - Introdução
O presente projeto estratégico transversal Evolução transdisciplinar da Universidade
é elaborado pelo Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares
(CIRET), em colaboração com a UNESCO (contrato inscrito no programa 28 C5 da
UNESCO). Ele consiste em uma síntese do documento e em várias contribuições
escritas pelos membros do CIRET (ver Anexo). Este projeto é apresentado como
documento de trabalho para o congresso internacional Que Universidade para o
amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade (Locarno,
Suíça, de 30 de abril a 02 de maio de 1997), subsidiado pela UNESCO e pelo
governo do Tessin e organizado pelo CIRET, em colaboração com a Associação
Internacional para o Vídeo nas Artes e na Cultura (AIVAC).
Durante todo o tempo de sua elaboração, o projeto foi dirigido por Madeleine Gobeil,
Diretora da Divisão de Artes e da Vida Cultural da UNESCO (atualmente consultora
do Diretor Geral da UNESCO) e por Basarab Nicolescu, Presidente do CIRET. Na
primeira fase de elaboração do projeto (outubro de 1995 - setembro de 1996), foi
constituído um grupo de direção. Eis a composição desse grupo:
Coordenadores: Madeleine Gobeil (UNESCO), Basarab Nicolescu (CIRET);
Membros: René Berger, professor honorário da Universidade de Lausane,
presidente de honra da Associação Internacional dos Críticos de Arte e da AIVAC;
150
André Bouriguignon, professor honorário de psiquiatria da Faculdade de Medicina de
Créteil, co-diretor da publicação das obras completas de Freud em francês; Michel
Camus, vice-presidente do Comitê de Iniciativa do Instituto Internacional para a
Ópera e a Poesia de Verona, escritor, filósofo, diretor da Editora “Letras Vivas”,
produtor-delegado na França-Cultura; Ubiratan d’Ambrosio, matemático, professor
emérito da Universidade de Campinas, membro da Academia de Ciências de São
Paulo; Giuseppe Del Re, químico teórico e epistemólogo, professor da Universidade
de Nápoles; Marco António Dias, diretor da Divisão de Educação Superior da
UNESCO; Pablo Gonzalez Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma
do México, diretor do Centro de Estudos de Ciências Humanas; Pierre Karli,
Neurobiologista de comportamentos, professor emérito da Universidade de
Estrasburgo, membro da Academia de Ciências; Jacques Lafait, físico, diretor de
pesquisas no CNRS, Universidade Pierre e Marie Curie, Paris; Christine Meddeb,
escritora tunisiana, professora da Universidade de Nanterre, diretora da revista
“Dedale”; Edgar Morin, filósofo e sociólogo, diretor de pesquisas no CNRS; René
Passet, economista, professor da Universidade de Paris I (Panteão-Sorbone);
Philippe Quéau, diretor da Divisão de Informação e Informática da UNESCO; Andreù
Sole, especialista em circunspeção, professor do Grupo de Altos Estudos
Comerciais (HEC).
Ainda na primeira fase da elaboração do projeto, uma jornada de estudo foi
organizada pelo CIRET para a UNESCO em 29 de março de 1996, tendo como tema
principal a evolução transdisciplinar da Universidade.
II - Finalidade do projeto
Na elaboração do projeto, o CIRET teve como cuidado principal evitar qualquer
duplo emprego no que diz respeito à grande quantidade de projetos, congressos e
colóquios que ocorrem e ocorrerão sobre a educação, afirmando sua originalidade:
fazer o pensamento complexo e transdisciplinar penetrar nas estruturas, nos
programas e na irradiação da Universidade do amanhã. Assim, este projeto se
posiciona como o complemento transdisciplinar do Relatório Delors, elaborado pela
Comissão Internacional Sobre a Educação Para o Século XXI junto à UNESCO. O
projeto será apresentado, sob uma forma ou outra, na conferência Mundial sobre o
151
Ensino Superior de 1998, organizado por iniciativa da UNESCO.
O objetivo do projeto CIRET-UNESCO, a curto prazo, é fazer com que a
Universidade evolua para a sua missão, hoje esquecida, de estudo do universal, em
nosso mundo caracterizado por uma complexidade que cresce de maneira
incessante. O pensamento estilhaçado é incompatível com a busca da paz na Terra.
A idéia central do projeto é a de que há uma relação direta e não contornável entre
paz e transdisciplinaridade.
Um outro objetivo do projeto CIRET-UNESCO é convencer, também a curto prazo,
alguns reitores de universidades do mundo a aplicar as nossas proposições em
caráter experimental, considerando a Universidade não apenas como um lugar de
aprendizado de conhecimentos, mas também como um lugar de cultura, de arte, de
espiritualidade e de vida. Nesse sentido, o projeto optou por ter um andamento
experimental. No mesmo espírito, temos a intenção de propor este projeto aos
líderes - aos que têm o poder de decisão - do mundo inteiro nas diferentes áreas da
educação, da política, da economia, da ciência, da arte, da religião e da ação social,
sob forma de um livro, elaborado depois do Congresso de Locarno.
III - Pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade -
distinções necessárias
O crescimento sem precedentes dos saberes em nossa época torna legítima a
questão da adaptação das mentalidades a esses saberes. O desafio é de grande
porte, pois a contínua expansão da civilização de tipo ocidental para todo o planeta
tornaria sua queda equivalente a uma catástrofe planetária de proporções muito
maiores do que as das duas primeiras guerras mundiais.
A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupõe que esses saberes
sejam inteligíveis, compreensíveis. Porém, na era do Big-Bang disciplinar e da
especialização sem limites ainda pode haver compreensão?
Um Pico de la Mirandola é inconcebível em nosso tempo. Hoje, dois especialistas da
mesma disciplina encontram dificuldade para compreender seus próprios resultados
152
recíprocos. Isso nada tem de monstruoso, na medida em que é a inteligência
coletiva da comunidade ligada a essa disciplina que a faz progredir e não um único
cérebro que teria forçosamente de conhecer todos os resultados de todos os seus
colegas-cérebros, o que é impossível, pois hoje há centenas de disciplinas. Como
um físico teórico de partículas poderia dialogar verdadeiramente, e não sobre
generalidades mais ou menos banais, com um neurofisiologista; um matemático com
um poeta; um biólogo com um economista; um político com um especialista em
informática? E, no entanto, um verdadeiro homem de ação - um líder - deveria poder
dialogar com todos ao mesmo tempo. A linguagem disciplinar é uma barreira
aparentemente intransponível para um neófito, e todos nós somos neófitos em
relação aos outros. Então a Torre de Babel é inevitável?
Esse processo de “babelização” não pode continuar, sem colocar em perigo nossa
própria existência, pois ele faz com que um líder se torne cada vez mais
incompetente, apesar de ser o detentor da decisão. Os maiores desafios da nossa
época, como por exemplo, os desafios de ordem ética, clamam cada vez mais por
competências. No entanto, a soma dos melhores especialistas em suas respectivas
áreas só pode engendrar uma incompetência generalizada, pois a soma de
competências não é a competência: no plano técnico. A interseção entre os
diferentes campos do saber é um conjunto vazio. Ora, o que é um líder, individual ou
coletivo, senão aquele que é capaz de levar em conta todos os dados do problema
que ele examina?
A necessidade indispensável de vínculos entre as diferentes disciplinas se traduz
pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da
interdisciplinaridade.
A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma única disciplina
por diversas disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de Giotto pode
ser estudado pelo enfoque da história da arte cruzado com o da física, da química,
da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou a filosofia
marxista pode ser estudada pelo enfoque da filosofia entrecruzada com a física, a
economia, a psicanálise ou a literatura. O objeto em questão sairá, assim,
enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em
153
sua própria disciplina é aprofundado por um fecundo aporte pluridisciplinar. A
pesquisa pluridisciplinar enriquece a disciplina em questão (a história da arte ou a
filosofia, em nossos exemplos), porém esse enriquecimento está a serviço apenas
dessa disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as
disciplinas, mas sua finalidade permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar.
A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade.
Ela diz respeito à transferência dos métodos de uma disciplina à outra. É possível
distinguir três graus de interdisciplinaridade:
a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear
transferidos à medicina conduzem à aparição de novos tratamentos de câncer;
b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência dos métodos da
lógica formal ao campo do direito gera análises interessantes na epistemologia do
direito;
c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência
dos métodos da matemática ao campo da física gerou a física-matemática; da física
de partículas à astrofísica, a cosmologia-quântica; da matemática aos fenômenos
meteorológicos ou aos da bolsa, à teoria do caos; da informática à arte, a arte-
informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as
disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar.
Seu terceiro grau inclusive contribui para o big-bang disciplinar.
A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” o indica, diz respeito ao que está ao
mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos
imperativos para isso é a unidade do conhecimento.
Há algo entre, através e além das disciplinas? Do ponto de vista do pensamento
clássico, não há nada, absolutamente nada. O espaço em questão é vazio,
completamente vazio, como o vazio da física clássica. Mesmo quando se renuncia à
visão piramidal do conhecimento, o pensamento clássico considera que cada
154
fragmento da pirâmide, engendrado pelo big-bang disciplinar, é uma pirâmide inteira;
cada disciplina afirma que o campo de sua pertinência é inesgotável. Para o
pensamento clássico, a transdisciplinaridade é um absurdo, pois ela não tem objeto.
Por outro lado, para a transdisciplinaridade o pensamento clássico não é absurdo,
mas seu campo de aplicação é tido como restrito.
Diante de diversos níveis de realidade, o espaço entre e além das disciplinas é
cheio, como o vazio quântico é cheio de todas as potencialidades: da partícula
quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados, que condicionam a aparição
da vida no universo.
Os três pilares da transdisciplinaridade: os níveis de Realidade, a lógica do
terceiro incluído e a complexidade determinam a metodologia da pesquisa
transdisciplinar.
A estrutura descontínua dos níveis de Realidade determina a estrutura do espaço
transdisciplinar, que, por sua vez, explica por que a pesquisa transdisciplinar é
radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, embora sendo complementar a ela. A
pesquisa disciplinar diz respeito, no máximo, a um único nível de Realidade. Na
maioria dos casos, ela só diz respeito a fragmentos de um só nível de Realidade.
Por outro lado, a transdisciplinaridade interessa-se pela dinâmica gerada pela
ação de diversos níveis de Realidade ao mesmo tempo. A descoberta dessa
dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar. A
transdisciplinaridade, embora não sendo uma nova disciplina ou uma nova
hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar, que, por sua vez, é clareada de
uma maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, as
pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas
complementares.
Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar não é antagônica, mas
complementar da pesquisa pluri e interdisciplinar. A transdisciplinaridade, no
entanto, é radicalmente distinta da pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade
quanto à sua finalidade, pois a compreensão do mundo atual não pode ser inscrita
na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da interdisciplinaridade é sempre a
155
pesquisa disciplinar. Se a transdisciplinaridade é freqüentemente confundida com a
interdisciplinaridade e com a pluridisciplinaridade (como, aliás, a interdisciplinaridade
é freqüentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isso se explica em grande
parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as disciplinas. Essa confusão é
muito nociva, na medida em que ela oculta as diferentes finalidades dessas três
novas abordagens.
Embora reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade com
relação à disciplinaridade, à pluridisciplinaridade e à interdisciplinaridade, seria muito
perigoso considerar essa distinção como absoluta, pois com isso a
transdisciplinaridade seria esvaziada de todo o seu conteúdo e a eficácia de sua
ação seria reduzida a nada.
A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a
transdisciplinariade são as quatro flechas de um único arco: o do
conhecimento.
Se a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade entraram timidamente em certas
universidades, sobretudo a partir de 1950, a transdisciplinaridade, por sua vez, está
ausente das estruturas e programas da Universidade, salvo em algumas exceções
notáveis. Apesar de sua irrupção no mundo universitário, as experiências
pluridisciplinares e interdisciplinares não são consideradas em geral como muito
convincentes. Os poucos departamentos pluridisciplinares e interdisciplinares
criados em várias universidades, especialmente nos EUA, conduziram, na maioria
dos casos, a uma simples justaposição passiva, não interativa, dos professores ou
dos estudantes. Sob o ponto de vista desenvolvido no presente projeto, esse
impasse parcial é compreensível: é justamente a transdisciplinaridade a condição
sine qua non de uma interação fecunda e duradoura entre a disciplinaridade, a
pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Sua ausência equivale à ausência de
orientação, à falta de direção das abordagens que ultrapassam as fronteiras
disciplinares. Essa orientação está claramente explicitada na Carta da
Transdisciplinaridade, adotada no Primeiro Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade, ocorrido no Convento de Arrábida, em Portugal, de 02 a 06 de
novembro de 1994.
156
IV - Pontos de referência da evolução transdisciplinar da educação
O surgimento de uma cultura transdisciplinar, que poderia contribuir para eliminar as
tensões que ameaçam a vida em nosso planeta, é impossível sem um novo tipo de
educação que leve em conta todas as dimensões do ser humano.
As diferentes tensões econômicas, culturais, espirituais, são inevitavelmente
perpetuadas e aprofundadas por um sistema de educação fundado em valores de
outro século, em descompasso acelerado com as mudanças contemporâneas. A
guerra larvária entre as economias, as culturas e as civilizações não deixa de
conduzir à guerra fria aqui e acolá. No fundo, toda a nossa vida individual e social é
estruturada pela educação.
Apesar da enorme diferença entre os sistemas de educação de um país para outro,
a mundialização dos desafios da nossa época leva à mundialização dos problemas
da educação. Os abalos que sacodem o campo da educação em um ou outro país
são apenas os sintomas da fissura entre os valores e as realidades de uma vida
planetária em mutação. Se não há, por certo, nenhuma receita milagrosa, há, no
entanto, um centro comum de interrogação que convém não ocultar, se desejamos
verdadeiramente viver em um mundo mais harmonioso.
O Relatório Delors elaborado pela Comissão Internacional Sobre a Educação para
o Século XXI, ligada à UNESCO e presidida por Jacques Delors, ressalta
nitidamente os quatro pilares de um novo tipo de educação: aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser.
Nesse contexto, a abordagem transdisciplinar pode dar uma importante contribuição
para o surgimento desse novo tipo de educação.
Aprender a conhecer significa, antes de mais nada, o aprendizado dos métodos
que nos ajudam a distinguir o que é real do que é ilusório e ter assim acesso aos
fabulosos saberes de nossa época. Nesse contexto, o espírito científico, uma das
mais altas aquisições da aventura humana, é indispensável. A iniciação precoce na
157
ciência é salutar, pois ela dá acesso, desde o início da vida humana, à inesgotável
riqueza do espírito científico, fundado no questionamento, na não-aceitação de
qualquer resposta pré-fabricada e de qualquer certeza que esteja em contradição
com os fatos. No entanto, espírito científico não quer dizer um aumento
desmesurado do ensino de matérias científicas e a construção de um mundo interior
fundado na abstração e na formalização. Um tal excesso, infelizmente corrente, só
poderia conduzir ao extremo oposto do espírito científico: as respostas prontas de
antigamente seriam substituídas por outras respostas prontas (que por sua vez,
ganhariam uma espécie de brilho “científico”) e, afinal de contas, um dogmatismo
seria substituído por outro. Não é pela assimilação de uma enorme massa de
conhecimentos científicos que se tem acesso ao espírito científico, mas pela
qualidade do que é ensinado. E “qualidade” quer dizer fazer com que a criança, o
adolescente ou o adulto penetrem no próprio coração da abordagem científica, que é
o permanente questionamento relacionado com a resistência dos fatos, das
imagens, das representações e das formalizações.
Aprender a conhecer também quer dizer ser capaz de estabelecer pontes entre os
diferentes saberes, entre esses saberes e suas significações na nossa vida
cotidiana, entre esses saberes e significados e nossas capacidades interiores. A
abordagem transdisciplinar será o complemento indispensável da abordagem
disciplinar, pois ela conduzirá a um ser continuamente unificado, capaz de adaptar-
se às exigências mutáveis da vida profissional e dotado de uma grande flexibilidade,
embora permanecendo sempre orientado para a atualização de suas
potencialidades interiores.
Aprender a fazer significa, certamente, a aquisição de uma profissão, bem como
dos conhecimentos e das práticas associadas a ela. A aquisição de uma profissão
passa necessariamente por uma especialização.
No entanto, em nosso mundo em ebulição, no qual o terremoto “informática” é
anunciador de outros terremotos futuros, fixar-se por toda a vida em uma única
profissão pode ser perigoso, pois corre-se o risco da condução do ser humano ao
desemprego, à exclusão, ao sofrimento desintegrador do ser. A especialização
excessiva e precoce deve ser banida em um mundo que vive transformações muito
158
rápidas. Quando se quer verdadeiramente conciliar a exigência da competição e a
preocupação com a igualdade de oportunidades para todos os seres humanos,
qualquer profissão no futuro deveria ser uma profissão a ser tecida, uma profissão
que estaria ligada, no interior do ser humano, com os fios de outras profissões. É
evidente que não se trata de aprender diversas profissões ao mesmo tempo, mas de
edificar interiormente um núcleo flexível capaz de permitir um rápido acesso a outra
profissão.
Nesse caso, a abordagem transdisciplinar também pode ser preciosa. Afinal de
contas, “aprender a fazer” é um aprendizado da criatividade. “Fazer” também
significa criar algo novo, trazer à luz as próprias potencialidades criativas. É esse
aspecto do “fazer”, que é o contrário do tédio sentido, infelizmente, por tantos seres
humanos, que são obrigados, para suprir as suas necessidades, a exercer uma
profissão que não está em conformidade com suas predisposições interiores.
“Igualdade de oportunidades” também quer dizer realização de potencialidades
criativas diferentes das dos outros seres humanos. “Competição” também pode
significar harmonia das atividades criadoras no seio de uma única coletividade. O
tédio, causador da violência, do conflito, da desordem, da abdicação moral e social,
pode ser substituído pela alegria da realização pessoal, qualquer que seja o lugar
em que essa realização se dê, pois para cada pessoa, a cada momento, esse lugar
só pode ser único.
Edificar uma verdadeira pessoa também quer dizer assegurar-lhe condições
máximas de realização de suas potencialidades criadoras. A hierarquia social, tão
freqüentemente arbitrária e artificial, poderia ser assim substituída pela cooperação
dos níveis estruturados, em função da criatividade pessoal. Esses níveis serão
níveis de ser e não níveis impostos por uma competição que não leva de modo
algum em conta a essência do homem. A abordagem transdisciplinar está
fundamentada no equilíbrio entre o homem exterior e o homem interior. Sem esse
equilíbrio, “fazer” não significa nada mais do que “sofrer a ação”, “submeter-se”.
Aprender a viver junto significa, em primeiro lugar, respeitar as normas que
regulamentam as relações entre os seres que compõem uma coletividade. Porém,
essas normas devem ser verdadeiramente compreendidas, admitidas interiormente
159
por cada ser e não sofridas como imposições exteriores. “Viver junto” não quer dizer
simplesmente tolerar o outro com suas diferenças de opinião, de cor de pele e de
crenças; submeter-se às exigências dos poderosos; navegar entre os meandros de
incontáveis conflitos; separar definitivamente a vida interior da vida exterior; fingir
escutar o outro embora permanecendo convencido da justeza absoluta das próprias
posições; assim, “viver junto” transforma-se inevitavelmente em seu contrário: lutar
uns contra os outros.
A atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional pode ser
aprendida. Ela é inata na medida em que há em cada ser um núcleo sagrado,
intangível. No entanto, essa atitude inata é apenas potencial e pode permanecer
para sempre não atualizada, permanecer ausente na vida e na ação. Para que as
normas de uma coletividade sejam respeitadas, devem ser validadas pela
experiência interior de cada ser.
Há um aspecto capital da evolução transdisciplinar da educação: reconhecer a si
mesmo na face do outro. Trata-se de um aprendizado permanente, que deve
começar na mais tenra infância e continuar por toda a vida. A atitude transcultural,
transreligiosa, transpolítica e transnacional permitir-nos-á, então, aprofundar mais a
nossa própria cultura, defender melhor nossos interesses nacionais, respeitar mais
nossas próprias convicções religiosas ou políticas. A unidade aberta e a pluralidade
complexa, como em todos os outros campos da Natureza e do conhecimento, não
são antagônicas.
Aprender a ser parece, a princípio, um enigma insondável. Sabemos que existimos,
mas como aprender a ser? Podemos começar aprendendo que a palavra “existir”
quer dizer, para nós, descobrir os nossos condicionamentos, descobrir a harmonia
ou a desarmonia entre nossa vida individual e social, sondar as fundações de
nossas convicções para descobrir o que está por baixo delas. Em uma edificação, a
etapa da escavação precede a das fundações. Para fundamentar o ser, é preciso
antes escavar as nossas incertezas, as nossas crenças, os nossos
condicionamentos. Questionar, questionar sempre. O espírito científico também é
para nós um precioso guia. Isso é aprendido tanto pelos educadores como pelos
educandos.
160
É evidente que os diferentes lugares e as diferentes idades da vida pedem métodos
transdisciplinares extremamente diversificados. Mesmo que a educação
transdisciplinar seja um processo global e de grande fôlego, é importante encontrar
e criar lugares que poderão iniciar esse processo e assegurar seu desenvolvimento.
A Universidade é o lugar privilegiado para uma formação apropriada às exigências
de nosso tempo; além disso, é o pivô da educação destinada às crianças e aos
adolescentes. A Universidade poderá, portanto, tornar-se o lugar ideal para o
aprendizado da atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional,
para o diálogo entre a arte e a ciência, eixo da reunificação entre a cultura científica
e a cultura artística. A Universidade renovada será o lugar de um novo tipo de
humanismo.
V - Mudar de sistema de referência
Diante da imensa diversidade dos problemas com que são confrontadas as
universidades em diferentes países, seria presunçoso tentar estabelecer um
catálogo de receitas, inevitavelmente ilusórias e inoperantes. Além do mais, a
própria noção de receita é contrária ao espírito transdisciplinar.
Com efeito, na medida em que a transdisciplinaridade corresponde a um novo
modo de conhecimento, não redutível ao conhecimento disciplinar, gera uma nova
teoria e uma nova prática da decisão. Na abordagem transdisciplinar não há mais
condições iniciais bem definidas do problema a resolver. Mais precisamente,
conseqüência imediata da complexidade intrínseca do mundo em que vivemos,
essas condições “iniciais” mudam continuamente. Em nossa vida universitária,
deparamo-nos com isso todos os dias e, no entanto, ainda não perdemos a ilusão de
uma “reforma”, de um milagre capaz de eliminar todos os males que atingem as
universidades. Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudarem
incessantemente e se uma reforma milagrosa for simplesmente impossível, estamos,
então, condenados a assistir, impotentes, à decadência progressiva, mas certa das
universidades? A resposta será certamente “não”, se aceitarmos mudar de sistema
de referência, isto é:
161
1. considerar cada problema não mais a partir de um único nível de
Realidade, mas situando-o simultaneamente no campo de vários níveis de
Realidade;
2. não mais esperar encontrar a solução de um problema nos termos de
“verdadeiro” ou “falso” da lógica binária, mas recorrer a novas lógicas,
particularmente à lógica do terceiro incluído: a solução de um problema só pode
ser encontrada pela conciliação temporária dos contraditórios, ligando-os a um nível
de Realidade diferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam;
3. reconhecer a complexidade intrínseca do problema, isto é, a
impossibilidade da decomposição desse problema em partes simples, fundamentais.
Na ausência de fundamentos, ausência que caracteriza o mundo atual, “mudar de
sistema de referência” também quer dizer tomar como fundamento precisamente a
ausência de fundamentos. Em outras palavras, substituir a noção de “fundamento”
pela coerência deste mundo multidimensional e multireferencial.
A consideração simultânea desses três pilares metodológicos da
transdisciplinaridade em cada ato da nossa vida universitária pode parecer de uma
extrema exigência e, portanto, irrealizável. Além disso, ela pode desencadear todo
tipo de fantasmas e de medos: o apagamento de territórios disciplinares, a
dissolução do local na globalidade, a aniquilação da eficácia em um mundo em que
a competitividade reina soberana etc. Por isso, essa metodologia só deve ser
aplicada gradualmente, de maneira pragmática, com grande prudência e rigor,
tomando como finalidade imediata a formação de formadores. Com efeito, a
inexistência de educadores animados de/ por uma atitude transdisciplinar faz com
que não possa haver evolução transdisciplinar e nem mesmo evolução da
Universidade.
Apesar das dificuldades metodológicas que acabamos de salientar, é possível, no
entanto, identificar os eixos da evolução transdisciplinar da Universidade:
1. Educação intercultural e transcultural, visando a edificar o fundamento
da paz e da compreensão internacional e transnacional.
162
2. Considerar o diálogo arte/ciência como um dos maiores eixos da nova
educação, visando à reunificação das duas culturas artificialmente antagônicas: a
cultura científica e a cultura artística, pela sua ultrapassagem mediante uma nova
cultura multidimensional, condição prévia para uma transformação das
mentalidades.
3. Integração da revolução informática na educação universitária.
4. Educação inter-religiosa e transreligiosa, tendo em vista o ensino do
conhecer e do apreciar a especificidade das tradições religiosas e não-religiosas que
nos são estranhas, para perceber melhor as estruturas comuns que as
fundamentam, para chegar, assim, a uma visão transreligiosa do mundo. Esse eixo
concerne não só aos crentes e aos ateus, como também aos agnósticos.
5. Educação transdisciplinar, tendo em vista alcançar a flexibilidade da
formação dos jovens e a abertura de espírito, em um mundo em que estão
presentes a exclusão, a não-realização das aspirações dos jovens, a desigualdade
de oportunidades de auto-realização e a ruptura entre a vida individual e a vida
social.
6. Educação transpolítica tendo em vista o respeito dos interesses dos
estados e das nações em um mundo caracterizado por uma globalização cada vez
maior.
7. Tomar as medidas institucionais concretas em vista de uma
transdisciplinaridade vivida na relação entre educadores e educandos.
Outra dificuldade surge com isso, pois é evidente que há uma forte correlação entre
todos esses eixos, uma interdependência, um condicionamento recíproco.
Essa dificuldade também pode ser vencida, se mudarmos de sistema de referência,
isto é, se identificarmos a mutação contemporânea do espaço e do tempo em que
vivemos e, portanto, das relações de causalidade que regem nossa vida e nossas
ações.
163
O espaço territorial de antigamente foi substituído pelo espaço informal, de
natureza quântica e planetária. O tempo local de antigamente, por sua vez, foi
substituído por um tempo mundial, cada vez mais estudado pelos sociólogos e
filósofos, tempo esse que está ligado ao mesmo tempo à natureza e ao imaginário e
que determina o encadeamento de fenômenos aparentemente desconectados. O
espaço informal e o tempo mundial podem ser unificados pela visão transdisciplinar.
Esse espaço-tempo transdisciplinar está ligado a um novo tipo de causalidade que
transcende o local e o global, unificando-os em um outro nível de realidade.
Compreende-se assim por que qualquer solução local, específica a um ou outro
país, que não leve em conta a dimensão planetária, está destinada de saída ao
impasse. Uma verdadeira evolução da Universidade requer a recusa de se deixar
encerrar na oposição binária mundialização/fechar-se em si. No fundo, a
Universidade de hoje pode reencontrar sua dimensão universal (na ausência da qual
“Universidade” não passaria de um nome abusivo e enganador) se souber pôr em
movimento a dinâmica transdisciplinar da unidade na diversidade e da diversidade
pela unidade, recusando seja o extremismo de um pragmatísmo auto-destrutor, seja
o extremismo de uma utopia sem eficácia alguma.
Enfim, uma última dificuldade que queremos sublinhar nessa revisão metodológica
está ligada à própria natureza deste documento. Enquanto documento sobre a
evolução transdisciplinar da Universidade, ele mesmo deve ser transdisciplinar em
sua estrutura e seu conteúdo e propor que o leitor tenha ele próprio uma atitude
transdisciplinar. Em outras palavras, este documento pressupõe um acordo prévio
sobre a linguagem utilizada, condição que não pode ser cumprida automaticamente,
pois ela pede uma mudança de sistema de referencia na própria linguagem. Esta
última dificuldade pode ser ultrapassada pela consulta dos Anexos ao presente
documento e da bibliografia que está incluída neles.
VI - Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade
A evolução transdisciplinar da Universidade é um processo de grande fôlego e,
conseqüentemente, para não destruir o imenso potencial dessa evolução, é
desejável e mesmo necessário começar com pequenos passos, levando em conta, a
cada instante, a sua finalidade. Neste capítulo, iremos esboçar algumas propostas,
164
que se encontram desenvolvidas nas contribuições ao presente documento (ver
Anexos):
1. Criação de ateliês de pesquisa transdisciplinar (ART) nas universidades
Como a transdisciplinaridade não é uma nova disciplina, não se trata de criar novas
cadeiras “transdisciplinares”. Por outro lado, é muito desejável criar, em algumas
universidades pilotos, verdadeiros pólos de excelência: ateliês de pesquisa
transdisciplinar. Esses ateliês terão como missão fazer eclodir o espírito
transdisciplinar através de propostas concretas sobre a coordenação transversal de
programas e as medidas institucionais internas a serem tomadas a fim de favorecer
a interação transdisciplinar entre os educadores e os educandos. Os ateliês
assumirão o papel de um verdadeiro terceiro termo entre os educadores e os
educandos. Na ausência de um verdadeiro terceiro termo, a interação entre os
educadores e os educandos se tornará, inevitavelmente, cada vez mais mecânica,
limitando-se a uma transmissão de um saber cada vez mais evasivo e sem nenhuma
ação sobre a vida individual e social.
Os ateliês devem ser estruturas abertas que integrem os pesquisadores exteriores à
Universidade (músicos, poetas, artistas), os representantes do mundo das
associações e dos municípios. Assim, com o tempo, os ateliês poderiam tornar-se
lugares de reflexão e proposição transdisciplinares a respeito do desemprego, da
exclusão, da fratura social, do trabalho, da integração das minorias.
A composição desses ateliês deve ser variável no tempo, em função das
necessidades do momento, embora mantendo sempre uma rigorosa orientação
transdisciplinar. Assim, a hierarquia não será mais pessoal, mas distributiva e
fundamentada exclusivamente na autoridade ontológica e não na administrativa. A
responsabilidade desses ateliês poderia ser confiada a uma estrutura ternária: um
representante das ciências exatas, um representante das ciências humanas e um
representante dos estudantes. Para manter uma estatura propícia à reflexão e à
pesquisa, a admissão nesses ateliês poderia ser feita por meio de cooptação.
Os ateliês de pesquisa transdisciplinar poderão com isso ser o lugar criativo da arte
165
de viver e aprender junto, em todos os níveis. Esses ateliês poderiam constituir
verdadeiros modelos, estimulando a criação de outros ateliês similares em qualquer
outra coletividade: empresa, instituição nacional ou instituição internacional.
2. Criação de unidades de formação e pesquisa transdisciplinar (UFRT)
Num nível mais formal, certas universidades poderiam sentir a necessidade de criar
uma unidade de formação e de pesquisa transdisciplinar, tendo autoridade de
decisão no plano universitário e encarregada de conceber, disseminar e coordenar o
conjunto de cursos, seminários e conferências de abertura transdisciplinar.
As UFRT terão como missão harmonizar os ensinos de caráter disciplinar,
multidisciplinar e interdisciplinar. Elas poderão decidir pela criação de ensinos de
sensibilização para os desafios sociais, culturais e éticos, pelo desenvolvimento de
cursos abordando os fundamentos históricos e epistemológicos das diversas
disciplinas, embora evitando cuidadosamente todo desgarramento ideológico ou
reducionista.
Numa etapa mais avançada, é possível supor que uma ou outra Universidade,
através de sua UFRT, decida que a habilitação para dirigir pesquisas seja
condicionada pelo comparecimento num seminário ou curso de história, filosofia ou
sociologia das ciências, coroado por uma dissertação sancionada pela decisão de
um júri transdisciplinar.
3. Criação de um fórum transdisciplinar permanente de história, filosofia e
sociologia das ciências (FPT)
A ART (no plano da reflexão e da pesquisa) e as UFRT (no plano da atividade
universitária concreta e de decisão) poderão constituir os dois pólos
complementares capazes de permitir o surgimento de um fórum permanente de
história, filosofia e sociologia das ciências, no qual duas direções privilegiadas
poderão ser o estudo da filosofia da Natureza e o estudo dos aspectos
antropológicos. Esse fórum poderia ter um campo muito amplo de atividade, indo
desde cursos e trabalhos dirigidos até debates públicos destinados à população da
166
cidade em que a Universidade estiver instalada.
As três novas estruturas que propomos, as ART, os UFRT e os FPT, poderiam ter, a
longo prazo, um impacto considerável sobre a sociedade de hoje, tratando de frente
a crise de representação que atravessamos. Nossos meios de representar o mundo
estão, de fato, ultrapassados e esse descompasso pode ter um efeito destrutivo
incalculável. O fim dos dogmas, o reinado absoluto do mercado, as guerras tribais,
as poluições globais e a desorientação genética são signos maiores dessa crise de
representação. O pensamento transdisciplinar é capaz de avaliar toda a dimensão
dessa crise radical e inventar os meios de ultrapassá-la. Nesse contexto, a
Universidade é um lugar privilegiado do desenvolvimento do pensamento e da
experiência transdisciplinares.
4. A criação de centros de orientação transdisciplinares (COT)
Com relação aos estudantes, esses centros transdisciplinares de orientação (COT)
terão uma função complementar em relação aos centros tradicionais de orientação.
Se a aquisição dos saberes de uma disciplina continua sendo uma prioridade
indiscutível, também é importante levar em conta a vida da pessoa lançada num
mundo que parece ter como único critério de valor a eficácia a qualquer preço. A
transdisciplinaridade tenta levar em conta simultaneamente as duas pontas do
bastão, o homem interior e o homem exterior, unidos por um terceiro termo que ela
se esforça por decifrar. Os COT poderão aconselhar os estudantes na direção de
uma flexibilidade interior e de um auto-aprendizado que poderiam permitir-lhes
mudar de profissão em qualquer momento de sua vida, não só para suprir as
necessidades da vida material, mas também para atualizar suas potencialidades.
Os COT também poderão assumir o papel de orientação dos educadores, uma vez
que eles devem igualmente se adaptar a um mundo em plena mutação, a fim de
evitar a esterilização intelectual e espiritual. Esses COT poderiam desempenhar a
função de verdadeiros observatórios, especialmente no que concerne à evolução do
sistema educativo sob a influência da revolução informática.
Os COT poderão criar não só um espaço de despertar e de renascimento dos
diferentes níveis de inteligência e de espírito criativo, como também um espaço de
167
relação entre uma democracia cognitiva e o espírito vivo.
5. Criação de lugares de silêncio e de meditação transreligiosa e transcultural
À imagem das monstruosas megalópoles, certas universidades são, do ponto de
vista arquitetural e de distribuição de espaços, gigantescos supermercados do
saber, desprezando qualquer sentido estético e poético, tão necessários a uma vida
real. Em tais espaços, o espírito de exclusão, de desprezo, de ignorância do outro,
de indiferença para com tudo o que é diferente de si mesmo só pode acentuar-se e
propagar-se na vida do adulto ativo que o estudante irá tornar-se ao fim de seus
estudos.
Nesse contexto, a criação de lugares destinados exclusivamente ao silêncio e à
meditação poderá desempenhar um importante papel na geração do espírito de
tolerância. Evidentemente devem ser, de acordo com o espírito laico da
Universidade, lugares transreligiosos e transculturais, onde cada um poderá
comungar com o outro no silêncio nutrido por sua própria religião e sua própria
cultura. Na perspectiva transdisciplinar, o silêncio põe em jogo um nível
extremamente rico de informação, a partir do qual uma comunicação e mesmo uma
comunhão podem se estabelecer.
6. Em busca da partilha universal dos conhecimentos: religar a Universidade
da área pública do ciber-espaço-tempo
O surgimento do ciber-espaço-tempo representa, mais que uma queda do muro de
Berlim, uma fabulosa oportunidade para a democracia, para o desenvolvimento
individual e social e para a partilha universal dos conhecimentos. Com a
condição, é claro, de que esse ciber-espaço-tempo não seja pervertido numa imensa
pompa financeira. O suporte das criações difundidas no ciber-espaço-tempo é da
textura das profundezas da matéria, está na proximidade do mundo quântico. Em
outras palavras, do ponto de vista científico, o espaço cibernético é de uma natureza
radicalmente diferente do nosso espaço habitual. Se a terra pode ser dividida em
territórios, cujas fronteiras separam os diversos estados-nações e os diversos povos
do mundo, uma tal divisão do espaço cibernético seria simplesmente contra a
168
natureza. Esse é o fundamento científico da necessidade de uma visão
resolutamente nova sobre a evolução da área pública, quanto a seus fins, sua
extensão e sua qualidade. No ciber-espaço-tempo, a área pública é de natureza
planetária e não nacional.
Se as organizações nacionais e internacionais tiverem coragem e inteligência de
fazer emergir uma nova visão do domínio público, o ciber-espaço-tempo poderia
tornar-se um fabuloso reservatório energético e dinâmico de desenvolvimento das
universidades do mundo inteiro. Uma Universidade de qualquer país, desenvolvido
ou em desenvolvimento, deveria ter a possibilidade de conectar-se com todas as
bases de dados do ciber-espaço-tempo. Poder-se-ia com isso transferir ao ciber-
espaço-tempo todas as funções mecânicas do ensino, operando assim uma
verdadeira liberação dos educadores, permitindo que eles se concentrassem na
criatividade, no diálogo e na interação com os estudantes. Aprender a aprender
poderia ser a missão do educador de amanhã: aprender a pensar, aprender a criar,
aprender a reunir o que está disperso e a eliminar o que é contingente. Substituir
assim o saber pela compreensão, a possessão rígida dos saberes pela capacidade
de religação e de invenção, o curriculum mortis pelo curriculum vitae.
A liberação dos educadores também significa a liberação dos estudantes; eles serão
livres para buscar seu justo lugar na sociedade e no interior deles mesmos, em vez
de permanecerem escravos de um sistema econômico indiferente a seu ser real.
O impacto social de tal metamorfose da Universidade é considerável, pois com isso
um novo laço social também pode estabelecer-se. Os conceitos novos como os de
transcultura, transreligião, transpolítica ou transnacionalidade, forjados pelos
pesquisadores transdisciplinares do CIRET e de outros lugares, poderiam assim
germinar no mundo da educação universitária e em seguida encarnar-se e propagar-
se numa escala planetária.
Uma nova solidariedade está perto de nascer. As universidades do mundo inteiro,
através de sua conexão com o ciber-espaço-tempo, tornar-se-ão os elos de uma
gigantesca e virtual Universidade das universidades, verdadeiro lugar do universal.
Graças à nova educação universitária, o perigoso e explosivo fosso entre os info-
169
ricos e os info-pobres (ricos e pobres em informática) também poderia reduzir-se
progressivamente.
Além do mais, esse processo é um processo circular; ele se auto-alimenta e se auto-
organiza. A criação dos fóruns de discussão sobre a evolução transdisciplinar da
universidade na Internet, que preconizamos, é muito desejável. O Observatório para
o Estudo da Universidade do Futuro (OEUF), criado pela Escola Politécnica Federal
de Lausane, em colaboração com o CIRET (http://www-uf.epfl.ch/UF/), é o lugar
virtual capaz de mediar tal fórum. E de um tal OEUF talvez saia o que invocamos
com todo nosso coração e nossos esforços a Universidade do Futuro.
Enfim, o ciber-espaço-tempo permitiria a germinação virtual das universidades em
busca de sua evolução transdisciplinar.
7. Conclusões
Rigor, tolerância e abertura são três conceitos colocados em destaque pela Carta de
Transdisciplinaridade (ver Anexos). No presente documento, tentamos pôr esses
três conceitos “na vida”.
Neste documento, limitamo-nos voluntariamente a algumas referências da evolução
transdisciplinar da Universidade. As propostas que apresentamos foram concebidas
longe de todo espírito de “metodolatria”, deixando cada um fazer seu próprio
caminho.
Certo, a transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido. Uma
educação neutra e objetiva não passa de um fantasma que nos foi legado pela
ideologia cientificista. A transdisciplianaridade tem como ambição a unificação, em
suas diferenças, do Objeto e do Sujeito: o sujeito-conhecedor faz parte integrante da
Natureza e do conhecimento.
A evolução transdisciplinar da Universidade não é nem um luxo, nem um arranjo
cosmético de uma instituição ameaçada, nem uma decoração agradável, mas
supérflua num velho e verdadeiro edifício, e sim uma necessidade. A vocação
170
transdisciplinar da Universidade está inscrita na sua própria natureza: o estudo do
universal é inseparável da relação entre os campos disciplinares, buscando o que se
encontra entre, através e além de todos os campos disciplinares.
Basarab Nicolescu
Presidente do CIRET
171
ANEXO B – CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE
(Elaborada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, Convento
de Arrábida, Portugal, 2-6 novembro 1994)
Preâmbulo
Considerando que a proliferação atual das disciplinas acadêmicas conduz a um
crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer olhar global do ser
humano;
Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão
planetária dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e
ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;
Considerando que a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante
que obedece apenas à lógica assustadora da eficácia pela eficácia;
Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais
acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um
novo obscurantismo, cujas conseqüências sobre o plano individual e social são
incalculáveis;
Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, aumenta a
desigualdade entre seus detentores e os que são desprovidos dele, engendrando
assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta;
Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados possuem sua
contrapartida de esperança e que o crescimento extraordinário do saber pode
conduzir a uma mutação comparável à evolução dos hominídeos à espécie humana;
Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994)
adotaram o presente Protocolo entendido como um conjunto de princípios
172
fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, constituindo um
contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz consigo mesmo, sem
qualquer pressão jurídica e institucional.
Artigo 1:
Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo
nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão
transdisciplinar.
Artigo 2:
O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por
lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir
a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da
transdisciplinaridade.
Artigo 3:
A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da
confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma
nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o
domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que
as atravessa e as ultrapassa.
Artigo 4:
O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e
operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma
racionalidade aberta, mediante um novo olhar sobre a relatividade das noções de
“definição” e de “objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o
absolutismo da objetividade, comportando a exclusão do sujeito, levam ao
empobrecimento.
Artigo 5:
A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o
campo das ciências exatas devido ao seu diálogo e sua reconciliação não somente
com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a
173
experiência espiritual.
Artigo 6:
Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a
transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional. Embora levando em
conta os conceitos de tempo e de história, a transdisciplinaridade não exclui a
existência de um horizonte transhistórico.
Artigo 7:
A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova religião, nem uma nova filosofia,
nem uma nova metafísica, nem uma ciência das ciências.
Artigo 8:
A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica e planetária. O surgimento
do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O
reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade.
Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da
Terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional. O reconhecimento pelo direito
internacional de uma dupla cidadania – referente a uma nação e a Terra - constitui
um dos objetivos da pesquisa transdisciplinar.
Artigo 9:
A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos, às
religiões e àqueles que os respeitam num espírito transdisciplinar.
Artigo 10:
Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras
culturas. A abordagem transdisciplinar é ela própria transcultural.
Artigo 11:
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve
ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar
reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na
transmissão dos conhecimentos.
174
Artigo 12:
A elaboração de uma economia transdisciplinar está baseada no postulado de que a
economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso.
Artigo 13:
A ética transdisciplinar recusa toda atitude que se negue ao diálogo e à discussão,
seja qual for sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica,
política ou filosófica. O saber compartilhado deveria conduzir a uma compreensão
compartilhada, baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos
pela vida comum sobre uma única e mesma Terra.
Artigo 14:
Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão
transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a
melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do
desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do
direito às idéias e verdades contrárias às nossas.
Artigo final:
A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos participantes do Primeiro
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que não reivindicam nenhuma outra
autoridade exceto a do seu próprio trabalho e da sua própria atividade.
Segundo os procedimentos que serão definidos de acordo com as mentes
transdisciplinares de todos os países, esta Carta está aberta à assinatura de
qualquer ser humano interessado em promover nacional, internacional e
transnacionalmente as medidas progressivas para a aplicação destes artigos na vida
cotidiana.
Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994
175
ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO
Pelo presente termo eu, ....................................................................., residente à
rua.....................................................................................................RG:..................
......., CPF: .............................................................concedo e concordo com a
utilização das informações oferecidas em entrevista com fins de pesquisa
acadêmica desenvolvida pela Srª Maria da Penha Martins de Oliveira.
____________________, ____ de ______________ de 2006
176
CONSENTIMIENTO PARA PARTICIPACIÓN EN
PROYECTO DE PESQUISA.
Estoy de acuerdo en participar Del proyecto de pesquisa abajo mencionado:
PROYECTO: A Percepção do Sagrado na formação em Educação Ambiental *
Uma abordagem complexa e transdisciplinar
RESPONSABLE: Maria da Penha Martins de Oliveira
Prof. Drª Martha Ferreira Tristão - orientadora
INTITUICIÓN: Universidade Federal do Espírito Santo
OBJETIVO DE LA PESQUISA: Identificar que sentidos e significados adquire o
sagrado nos processos de formação em EA de
acordo com os níveis de percepção individuais e
coletivos
BENEFICIOS ESPERADOS: Contribuição teórica para o campo da Educação
Ambiental
IDENTIFICACIÓN DEL PARTICIPANTE:
NOMBRE:_________________________________________________________.
APELLIDOS: ______________________________________________________.
NACIONALIDAD: ______________ NR. DE PASAPORTE:__________________.
Estando así de acuerdo, firmo el presente documento de consentimiento.
_______________________________ _____________________________
Maria da Penha Martins de Oliveira
Participante Responsable
___________: ______ de _____________ de 2006.
177
ANEXO D – TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS E RESPONSABILIDADE GLOBAL
Este Tratado, assim como a educação, é um processo dinâmico em permanente
construção. Deve, portanto, propiciar a reflexão, o debate e a sua própria
modificação.
Nós, signatários, pessoas de todas as partes do mundo, comprometidos com a
proteção da vida na Terra, reconhecemos o papel central da educação na formação
de valores e na ação social. Comprometemo-nos com o processo educativo
transformador através de envolvimento pessoal, de nossas comunidades e nações
para criar sociedades sustentáveis e eqüitativas. Assim, tentamos trazer novas
esperanças e vida para nosso pequeno, tumultuado, mas ainda assim belo planeta.
Introdução
Consideramos que a educação ambiental para uma sustentabilidade eqüitativa é um
processo de aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de
vida. Tal educação afirma valores e ações que contribuem para a transformação
humana e social e para a preservação ecológica. Ela estimula a formação de
sociedades socialmente justas e ecologicamente equilibradas, que conservam entre
si relação de interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidade individual
e coletiva em nível local, nacional e planetário.
Consideramos que a preparação para as mudanças necessárias depende da
compreensão coletiva da natureza sistêmica das crises que ameaçam o futuro do
planeta. As causas primárias de problemas como o aumento da pobreza, da
degradação humana e ambiental e da violência podem ser identificadas no modelo
de civilização dominante, que se baseia em superprodução e superprodução e
superconsumo para uns e em subconsumo e falta de condições para produzir por
parte da grande maioria.
Consideramos que são inerentes à crise a erosão dos valores básicos e a alienação
e a não-participação da quase totalidade dos indivíduos na construção de seu futuro.
É fundamental que as comunidades planejem e implementem sua próprias
alternativas às políticas vigentes. Dentre essas alternativas está a necessidade de
178
abolição dos programas de desenvolvimento, ajustes e reformas econômicas que
mantêm o atual modelo de crescimento, com seus terríveis efeitos sobre o ambiente
e a diversidade de espécies, incluindo a humana.
Consideramos que a educação ambiental deve gerar, com urgência, mudanças na
qualidade de vida e maior consciência de conduta pessoal, assim como harmonia
entre os seres humanos e destes com outras formas de vida.
Princípios da Educação para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade
Global
1. A educação é um direito de todos; somos todos aprendizes e educadores.
2. A educação ambiental deve Ter como base o pensamento crítico e inovador,
em qualquer tempo ou lugar, em seus modos formal, não-formal e informal,
promovendo a transformação e a construção da sociedade.
3. A educação ambiental é individual e coletiva. Tem o propósito de formar
cidadãos com consciência local e planetária, que respeitem a autodeterminação
dos povos e a soberania das nações.
4. A educação ambiental não é neutra, mas ideológica. É um ato político.
5. A educação ambiental deve envolver uma perspectiva holística, enfocando a
relação entre o ser humano, a natureza e o universo de forma interdisciplinar.
6. A educação ambiental deve estimular a solidariedade, a igualdade e o respeito
aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e da interação
entre as culturas.
7. A educação ambiental deve tratar as questões globais críticas, suas causas e
inter-relações em uma perspectiva sistêmica, em seu contexto social e
histórico. Aspectos primordiais relacionados ao desenvolvimento e ao meio
ambiente, tais como população, saúde, paz, direitos humanos, democracia,
fome, degradação da flora e fauna, devem se abordados dessa maneira.
8. A educação ambiental deve facilitar a cooperação mútua e eqüitativa nos
processos de decisão, em todos os níveis e etapas.
9. A educação ambiental deve recuperar, reconhecer, respeitar, refletir e utilizar a
história indígena e culturas locais, assim como, promover a diversidade cultural,
lingüística e ecológica. Isto implica uma visão da história dos povos nativos
179
para modificar os enfoques etnocêntricos, além de estimular a educação
bilíngüe.
10. A educação ambiental deve estimular e potencializar o poder das diversas
populações, promovendo oportunidades para as mudanças democráticas de
base que estimulem os setores populares da sociedade. Isto implica que as
comunidades devem retomar a condução de seus próprios destinos.
11. A educação ambiental valoriza as diferentes formas de conhecimento. Este é
diversificado, acumulado e produzido socialmente, não devendo ser patenteado
ou monopolizado.
12. A educação ambiental deve ser planejada para capacitar as pessoas a
trabalharem conflitos de maneira justa e humana.
13. A educação ambiental deve promover a cooperação e o diálogo entre
indivíduos e instituições, com a finalidade de criar novos modos de vida,
baseados em atender às necessidades básicas de todos, sem distinções
étnicas, físicas, de gênero, idade, religião ou classe.
14. A educação ambiental requer a democratização dos meios de comunicação de
massa e seu comprometimento com os interesses de todos os setores da
sociedade. A comunicação é um direito inalienável e os meios de comunicação
de massa devem ser transformados em um canal privilegiado de educação, não
somente disseminado informações em bases igualitárias, mas também
promovendo intercâmbio de experiências, métodos e valores.
15. A educação ambiental deve integrar conhecimentos, aptidões, valores, atitudes
e ações. Deve converter cada oportunidade em experiências educativas de
sociedades sustentáveis.
16. A educação ambiental deve ajudar a desenvolver uma consciência ética sobre
todas as formas de vida com as quais compartilhamos este planeta, respeitar
seus ciclos vitais e impor limites à exploração dessas formas de vida pelos
seres humanos.
Plano de Ação
As organizações que assinam este Tratado se propõem a implementar as seguintes
diretrizes:
1. Transformar as declarações deste Tratado e dos demais produzidos pela
Conferência da Sociedade Civil durante o processo da Rio-92 em documentos a
180
serem utilizados na rede formal de ensino e em programas educativos dos
movimentos sociais e suas organizações.
2. Trabalhar a dimensão da educação ambiental para sociedades sustentáveis em
conjunto com os grupos que elaboram os demais tratados aprovados durante a
Rio-92.
3. Realizar estudos comparativos entre os tratados da sociedade civil e os
produzidos pelas Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento – UNCED; utilizar as conclusões em ações educativas.
4. Trabalhar os princípios deste Tratado a partir das realidades locais,
estabelecendo as devidas conexões com a realidade planetária, objetivando a
conscientização para a transformação.
5. Incentivar a produção de conhecimentos, políticas, metodologias e práticas de
educação ambiental em todos os espaços de educação formal, informal e não-
formal, para todas as faixas etárias.
6. Promover e apoiar a capacitação de recursos humanos para preservar,
conservar e gerenciar o ambiente, como parte do exercício da cidadania local e
planetária.
7. Estimular posturas individuais e coletivas, bem como políticas institucionais que
revisem permanentemente a coerência entre o que se diz e o que se faz, os
valores de nossas culturas, tradições, história. As organizações que assinam
este Tratado se propõem a implementar as seguintes diretrizes:
8. Fazer circular informações sobre o saber e a memória populares; e sobre
iniciativas e tecnologias apropriadas ao uso dos recursos naturais.
9. Promover a co-responsabilidade dos gêneros feminino e masculino sobre a
produção, reprodução e manutenção da vida.
10. Estimular e apoiar a criação e o fortalecimento de associações de produtores e
consumidores e de redes de comercialização ecologicamente responsáveis.
11. Sensibilizar as populações para que constituam Conselhos populares de Ação
Ecológica e Gestão do Ambiente visando investigar, informar, debater e decidir
sobre problemas e políticas ambientais.
12. Criar condições educativas, jurídicas, organizacionais e políticas para exigir que
os governos destinem parte significativa de seu orçamento à educação e meio
ambiente.
181
13. Promover relações de parceria e cooperação entre as ONGs e movimentos
sociais movimentos sociais e as agências da ONU (UNESCO, PNUMA, FAO,
entre outras), em nível nacional, regional e internacional, a fim de estabelecer em
conjunto as prioridades de ação para a educação e meio ambiente e
desenvolvimento.
14. Promover a criação e o fortalecimento de redes nacionais, regionais e mundiais
para realização de ações conjuntas entre organizações do Norte, Sul, Leste e
Oeste com perspectiva planetária (exemplos: dívida externa, direitos humanos,
paz, aquecimento global, população, produtos contaminados)
15. Garantir que os meios de comunicação se transformem em instrumentos
educacionais para preservação e conservação de recursos naturais,
apresentando a pluralidade de versões com fidedignidade e contextualizando as
informações. Estimular transmissões de programas gerados por comunidades
locais.
16. Promover a compreensão das causas dos hábitos consumistas e agir para
transformação dos sistemas que os sustentam, assim como para a
transformação de nossa próprias práticas.
17. Buscar alternativas de produção autogestionária apropriadas econômicas e
ecologicamente, que contribuam para uma melhoria da qualidade de vida.
18. Atuar para erradicar o racismo, o sexismo e outros preconceitos; e contribuir para
um processo de reconhecimento da diversidade cultural, dos direitos territoriais e
da autodeterminação dos povos.
19. Mobilizar instituições formais e não-formais de educação superior para o apoio
ao ensino, pesquisa e extensão em educação ambiental e a criação em cada
universidade, de centros interdisciplinares para o meio ambiente.
20. Fortalecer as organizações movimentos sociais como espaços privilegiados para
o exercício da cidadania e melhoria da qualidade de vida e do ambiente.
21. Assegurar que os grupos de ecologistas popularizem suas atividades e que as
comunidades incorporem em seu cotidiano a questão ecológica.
22. Estabelecer critérios para a aprovação de projetos de educação para sociedades
sustentáveis, discutindo prioridades sociais junto às agências financiadoras.
Sistemas de Coordenação Monitoramento e Avaliação
Todos os que assinam este Tratado concordam em:
182
1. Difundir e promover em todos os países o Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, através de campanhas
individuais e coletivas promovidas por ONGs, movimentos sociais e outros.
2. Estimular e criar organizações, grupos de ONGs e movimentos sociais para
implantar, implementar, acompanhar e avaliar os elementos deste Tratado.
3. Produzir materiais de divulgação deste Tratado e de seus desdobramentos em
ações educativas, sob a forma de textos, cartilhas, cursos, pesquisas, eventos
culturais, programas na mídia, feiras de criatividade popular, correio eletrônico e
outros.
4. Estabelecer um grupo de coordenação internacional para dar continuidade às
propostas deste Tratado.
5. Estimular, criar e desenvolver redes de educadores ambientais.
6. Garantir a realização, nos próximos três anos, do 1º Encontro Planetário de
Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis.
7. Coordenar ações de apoio aos movimentos sociais em defesa da melhoria da
qualidade de vida, exercendo assim uma efetiva solidariedade internacional.
8. Estimular articulações de ONGs e movimentos sociais para rever suas
estratégias e seus programas relativos ao meio ambiente e educação.
Grupos a serem envolvidos
Este Tratado é dirigido para:
1. Organizações dos movimentos sociais – ecologistas, mulheres, jovens, grupos
étnicos, artistas, agricultores, sindicalistas, associações de bairro e outros.
2. ONGs comprometidas com os movimentos sociais de caráter popular.
3. Profissionais de educação interessados em implantar e implementar programas
voltados à questão ambiental tanto nas redes formais de ensino como em outros
espaços educacionais.
4. Responsáveis pelos meios de comunicação capazes de aceitar o desafio de um
trabalho transparente e democrático, iniciando uma nova política de comunicação
de massas.
5. Cientistas e instituições científicas com postura ética e sensíveis ao trabalho
conjunto com as organizações dos movimentos sociais.
6. Grupos religiosos interessados em atuar junto às organizações dos movimentos
sociais.
183
7. Governos locais e nacionais capazes de atuar em sintonia/parceria com as
propostas deste Tratado.
8. Empresários comprometidos em atuar dentro de uma lógica de recuperação e
conservação do meio ambiente e de melhoria da qualidade de vida humana.
9. Comunidades alternativas que experimentam novos estilos de vida condizentes
com os princípios e propostas deste Tratado.
Recursos:
Todas as organizações que assinam o presente Tratado se comprometem a:
1. Reservar uma parte significativa de seus recursos para o desenvolvimento de
programas educativos relacionados com a melhora do ambiente de vida.
2. Reivindicar dos governos que destinem um percentual significativo do Produto
Nacional Bruto para a implantação de programas de educação ambiental em
todos os setores da administração pública, com a participação direta de ONGs e
movimentos sociais.
3. Propor políticas econômicas que estimulem empresas a desenvolverem e
aplicarem tecnologias apropriadas e a criarem programas de educação ambiental
para o treinamento de pessoal e para a comunidade em geral.
4. Incentivar as agências financiadoras e alocarem recursos significativos a projetos
dedicados à educação ambiental; além de garantir sua presença em outros
projetos a serem aprovados, sempre que possível.
5. Contribuir para a formação de um sistema bancário planetário das ONGs e
movimentos sociais, cooperativo e descentralizado, que se proponha a destinar
uma parte de seus recursos para programas de educação e seja ao mesmo
tempo um exercício educativo de utilização de recursos financeiros.