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1 A palavra escrita História do livro, da imprensa e da biblioteca Wilson Martins Cap. 1 (parte) Materiais e instrumentos primitivos empregados na escrita - O homem já empregou , e continua empregando, na escrita materiais provenientes dos três reinos da natureza. Reino mineral: (a pedra, onde segundo o Velho Testamento, foi gravada a primeira lei dos hebreus, revelada no Monte Sinai, e os mais “escreviam” seus admiráveis calendários, as reproduções dos gregos, dos seus feitos e fatos importantes, o mármore (inscrições tumulares e cívicas) a argila (esculpida e cozida, nas bibliotecas da Mesopotâmia). Ainda do reino mineral provieram e continuam provindo os metais aos quais se confiavam os textos importantes ou tocados de sacralidade (no bronze os romanos escreviam os seus tratados de paz, e, acima de tudo, a sua famosa Lei das Doze Tábuas.) Também o chumbo foi empregado na escrita, e deveria oferecer, em compensação da sua maleabilidade, pouca resistência ao trabalho do estilete. Os também chamados “metais nobres”, o ouro e a prata, também serviram excepcionalmente para a escrita, mas todos os metais parecem ter sido abandonados desde os primeiros tempos nas necessidades ordinárias. Mas conservam o seu emprego, até hoje, nas placas dos monumentos e das ruas, nas inscrições comemorativas, nas homenagens murais. Reino vegetal: a madeira, como espécie que já se apresentava por assim dizer pronta, foi a primeira a ser empregada na escrita. Os egípcios a usavam desde tempos imemoriais, e nós a empregamos ainda hoje, ainda que transformada em papel. Os judeus conheciam as tabletas de madeira no momento em que o Livro dos Reis foi redigido, mas o povo que as celebrizou, pelo largo emprego que delas fez, foi o romano. Recobertas ou não de uma leve camada de cera, sobre a qual se escrevia com o estilete, elas serviam para os mais variados fins: correspondência, cadernos de estudos, contas, anotações, e ofereciam a vantagem de servir indefinidamente, quando enceradas, bastando raspar a cera e substituí-la por outra. (essas tabletas foram utilizadas até na Idade Média) . Em geral, todos os produtos do reino vegetal, como todos os do reino mineral e todos os do reino animal, serviram ou servem para a escrita. Folhas de palmeiras ou de oliveiras, panos, papiro. Era em pedaços de pano que os romanos reproduziam os oráculos, alguns

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A palavra escrita

História do livro, da imprensa e da biblioteca

Wilson Martins

Cap. 1 (parte)

Materiais e instrumentos primitivos empregados na escrita

- O homem já empregou , e continua empregando, na escrita materiais provenientes dos três reinos da

natureza.

• Reino mineral: (a pedra, onde segundo o Velho Testamento, foi gravada a primeira lei dos

hebreus, revelada no Monte Sinai, e os mais “escreviam” seus admiráveis calendários, as

reproduções dos gregos, dos seus feitos e fatos importantes, o mármore (inscrições tumulares e

cívicas) a argila (esculpida e cozida, nas bibliotecas da Mesopotâmia). Ainda do reino mineral

provieram e continuam provindo os metais aos quais se confiavam os textos importantes ou

tocados de sacralidade (no bronze os romanos escreviam os seus tratados de paz, e, acima de

tudo, a sua famosa Lei das Doze Tábuas.) Também o chumbo foi empregado na escrita, e deveria

oferecer, em compensação da sua maleabilidade, pouca resistência ao trabalho do estilete. Os

também chamados “metais nobres”, o ouro e a prata, também serviram excepcionalmente para

a escrita, mas todos os metais parecem ter sido abandonados desde os primeiros tempos nas

necessidades ordinárias. Mas conservam o seu emprego, até hoje, nas placas dos monumentos e

das ruas, nas inscrições comemorativas, nas homenagens murais.

• Reino vegetal: a madeira, como espécie que já se apresentava por assim dizer pronta, foi a

primeira a ser empregada na escrita. Os egípcios a usavam desde tempos imemoriais, e nós a

empregamos ainda hoje, ainda que transformada em papel. Os judeus conheciam as tabletas de

madeira no momento em que o Livro dos Reis foi redigido, mas o povo que as celebrizou, pelo

largo emprego que delas fez, foi o romano. Recobertas ou não de uma leve camada de cera, sobre

a qual se escrevia com o estilete, elas serviam para os mais variados fins: correspondência,

cadernos de estudos, contas, anotações, e ofereciam a vantagem de servir indefinidamente,

quando enceradas, bastando raspar a cera e substituí-la por outra. (essas tabletas foram utilizadas

até na Idade Média) . Em geral, todos os produtos do reino vegetal, como todos os do reino

mineral e todos os do reino animal, serviram ou servem para a escrita. Folhas de palmeiras ou de

oliveiras, panos, papiro. Era em pedaços de pano que os romanos reproduziam os oráculos, alguns

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contratos particulares e até as leis. Na Pérsia e na China a seda foi um material muito empregado

na escrita: é mesmo daí que sairá a invenção do papel.

• O papiro : Sem dúvida, o mais célebre de todos os produtos vegetais empregados na escrita. De

grande importância histórica em si mesmo e pelos textos que conteve. As regiões onde a utilização

do papiro se fez de forma mais marcante foram o Nilo, o lago Tiberíades, na Síria e nas águas do

Eufrates. Nada se sabe do momento em que se transformou o papiro em material de escrita. O

Museu do Louvre possui um papiro que data de 237 a.C, escrito em hierógriflos demóticos (ultima

transformação da escrita egípcia). Supõe-se que os papiros mais velhos datem de 3.500 a.C.

Chartoe era o papiro preparado que podia ser utilizado na escrita. Sobre cada folha, o texto era

escrito em colunas e cada uma delas se colava, em seguida, pela extremidade à folha seguinte, de

forma que se obtinham fitas de papiro com, às vezes, 18m de comprimento. Enroladas em torno de

um bastonete chamado umbilicus, constituíam os primeiros rolos, antepassados dos de

pergaminho, e, por conseqüência, do próprio livro. Os papiros começaram a desaparecer a partir

do século VII. Na Itália, ainda se encontram papiros até o século XII, mas na França eles

desapareceram completamente no século VIII. Eis porque os escribas de Carlos Magno e seus

descendentes se viam obrigados a raspar papiros merovingianos, a corta-los e a coser os pedaços

ainda em branco, para atender às suas necessidades de papel. Dessa forma, existem palimpsestos

de papiro, ao contrário do que por tanto tempo se afirmou. À escassez natural do papiro, vieram

juntar-se as guerras, que impediam a sua importação. E como as invenções nascem da

necessidade, o homem teve de recorrer a qualquer outro material que substituísse o papiro. É

entretanto, a pele curtida que substituirá, em forma de pergaminho, o papiro raro e caro. Mas, a

pele de carneiro ou de terneiro foi apenas o material mais comum empregado no manuscrito.

Certos bibliófilos chegam ao ponto de afirmar que há livros feitos com pele humana.

• O pergaminho : o uso de peles como substratum da escrita é muito antigo na Ásia, e tudo o que

se pode ter feito em Pérgamo é melhorar-lhe a preparação. Os mais antigos monumentos em

pergaminho, atualmente existentes, datam do III século de nossa era: são uma República, de

Cícero, e um Virgílio, ambos da Biblioteca Vaticana. Do IV ao XVI séculos, o pergaminho foi o

material mais comumente empregado na escrita; na França, do IX ao XII séculos, é apenas o

pergaminho que se emprega nos livros e atos. O pergaminho foi sempre material de preço

elevado. Essa circunstância explicaria, segundo os autores, o fenômeno dos palimpsestos, isto é,

manuscritos em que o texto primitivo foi raspado, a fim de servir novamente para a escrita

(palimpsesto significa “raspado de novo”). Pensou-se durante muito tempo que esse hábito

resultava das intenções piedosas dos monges copistas, que apagavam textos pagãos para inscrever

em lugar deles orações e meditações religiosas. Mas, verificou-se posteriormente que não só o

palimpsesto existe desde a mais remota antiguidade, como ainda inúmeras orações e trechos

religiosos tinham sido raspados em benefício da literatura profana.... Em qualquer dos casos, é

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possível ler, com o auxílio de recursos modernos, o texto primitivo, que se destaca com maior ou

menor clareza sob a ação de reagentes químicos. É a mesma necessidade de economizar

pergaminho que dará nascimento ao que hoje constitui a tortura dos paleógrafos (antigas formas

de escrita) , isto é, o sistema de abreviações da Idade Média.

O pergaminho foi escrito, como o papiro, de um lado só, até que se descobriu ser perfeitamente

possível faze-lo nas duas faces. Enquanto a escrita era realizada apenas no reto, o pergaminho era

enrolado, como o papiro, para constituir o volumem. A escrita no reto e no verso vai dar

nascimento ao codex, isto é, ao antepassado imediato do livro. Com ele revoluciona-se o aspecto

da matéria escrita e o das bibliotecas. Códex (plural : códices) é o nome dado aos manuscritos

cujas folhas eram reunidas entre si pelo dorso e recobertas de uma capa semelhante à das

encadernações modernas. É, em suma, o livro quadrado e chato, tal como ainda hoje o possuímos.

A diferença é que o livro moderno apresenta-se em tamanhos reduzidos, graças ao corte das folhas

de impressão, ao passo que o pergaminho não era dobrado nem cortado em folhas pequenas, o que

significa que os códices são livros grandes, “in-fólio”, quer dizer, “em folha”, no tamanho da

folha. Embora escritas dos dois lados as folhas do pergaminho, conservou-se, até o fim da Idade

Média, o hábito de apenas numera-las no reto, o que significa que a noção de página somente

aparece no fim desse período.

• Os instrumentos da escrita : cada instrumento diferia segundo a matéria empregada. Os caldeus

faziam uso de uma espécie de cinzel para gravar as tabletas de argila, os romanos empregavam o

graphium ou stylus nas tabuinhas enceradas. O estilete era uma haste de metal ou de osso,

pontuda de um lado, achatada de outro, o que permitia escrever e apagar, em caso de erro. São

Jerônimo afirma que o estilete escrevia sobre a cera e o caniço sobre o papiro ou sobre o

pergaminho. Esse caniço, chamado comumente calamus, foi, por conseguinte, o antepassado

direto de nossa pena. Os calami eram conservados em estojos apropriados, que muitas vezes se

carregavam pendurados na cintura, junto com os recipientes de tinta. Os romanos chegaram a

fabricar calami de bronze, que foram, assim, um prenúncio da pena metálica, dela separados pelo

reinado da pena propriamente dita, a pena das aves. O uso do calamus se prolongou até os

séculos VI/VII de nossa era. A pena de pato, em particular, prestou aos calígrafos e aos escritores

os mais assinalados serviços. Eram escolhidas as penas da asa, chamadas remígias, o que

provavelmente deveria facilitar os vôos da imaginação. Eram preparadas por meio de um

mergulho em cinzas quentes. Desde o século XIV começaram-se a fabricar as penas de ferro ou

de bronze, embora aceite-se que seu uso somente se generalizou no século XIX. O lápis, por sua

vez, seria um pouco mais velho ou um pouco mais moço que a pena metálica: sua invenção data

do fim da Idade Média, dos primeiros anos do século XV. A escrita, para Diderot (século XVIII) :

“sem a escrita, privilégio do homem, cada indivíduo, reduzido à sua própria experiência, seria

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forçado a recomeçar a carreira que seu antecessor teria percorrido, e a história dos conhecimentos

do homem seria quase a da ciência da humanidade.”

Capítulo 3 – Os manuscritos medievais

• A rigor, manuscrito é o texto escrito à mão, seja qual for o instrumento auxiliar, seja qual for a

matéria que o receba. Na significação direta da palavra, nenhuma distinção é feita além das raízes

de que se formou. Nessas condições, seriam manuscritos todas as “inscrições” feitas em papel ou

em pedra, marfim, bronze ou mármore. Mas, uma convenção por todos admitida reserva esse

nome aos “manuscritos” em papel, papiro ou pergaminho, e aos demais o nome de gravura ou de

escultura. Assim, a palavra “manuscrito” evoca sem dubiedade a idéia da folha de papel, de papiro

ou de pergaminho, escrita à mão, e até, visto que nem sempre são sincrônicos os progressos

técnicos e os progressos vocabulares, à folha de papel datilografada, quando ela representa o

“original” vindo das mãos do escritor. É assim que muitos escritores entregam à tipografia o

seu...”manuscrito”, isto é, a cópia datilografada de um texto que, com freqüência cada vez maior,

já foi inicialmente escrito também à máquina (ou digitado em computador). Então, o termo

manuscrito evoca sempre o texto escrito a mão, qualquer que seja o instrumento auxiliar, seja qual

for a matéria que o receba. O manuscrito medieval será, portanto, um texto escrito à mão em

papiro, pergaminho ou papel e que data do período da Idade Média.

• Mas o que significa Idade Média ? Adotemos um critério delimitador para o período em números

redondos : anos 500 até o ano de 1500, ou seja, os 10 séculos que vai dos primeiros conventos

com o seu trabalho de escrita até a invenção da imprensa. (os incunábulos foram os livros dos

primeiros anos da imprensa. – até o ano de 1500). O livro medieval conservou os conhecimentos,

guardou-os para a Renascença, hibernou-os nos conventos, e preparou, em consequência, sem o

saber e, em certo sentido, sem o querer, o movimento intelectual que substituiria a tábua medieval

de valores. A Renascença não teria sido possível, no que concerne às obras escritas, se a Idade

Média não tivesse possuído esses enormes silos que foram as suas bibliotecas monásticas,

universitárias e particulares. Eis porque os historiadores da cultura, vendo exclusivamente o que

foi conservado, se recusam a enxergar na Idade Média uma era de ignorância e obscurantismo, da

mesma forma porque os historiadores sociais, vendo exclusivamente o que não foi difundido,

acusam-na de todas as faltas de inteligência.

• Para que a Renascença, movimento laico por excelência, pudesse ocorrer, é necessário supor que

os profanos tivessem acesso, um acesso cada vez maior, às bibliotecas, ou, pelo menos, que

tivessem conhecimento dos manuscritos que somente nas bibliotecas existiam. Esse trabalho

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intelectual, ininterrompido em toda a Idade Média, explica que o humanismo medieval seja,

dentro de suas proporções, tão importante quanto o humanismo renascentista.

• Durante toda a Idade Média vê-se aumentar sem interrupção o conhecimento das obras antigas e

dos meios de que dispunham os sábios da Antiguidade. Se se pôde compreender de forma mais

íntima o espírito dos escritores antigos, primeiro na Itália do século XIV, depois em outras nações,

devemos atribuí-lo a causas mais profundas. No seio dos novos povos e mais particularmente nas

cidades constituíra-se uma nova ordem política e social que se assemelhava em muito à que

reinava nas cidades antigas. Disso resultou que o sentimento da vida, as disposições gerais do

espírito, os interesses, as representações, tomaram um aspecto mais pessoal, e é a sua afinidade

com a mentalidade dos povos antigos que tornou possível uma compreensão nova e o

revigoramento do pensamento antigo. (Não existe, assim, entre a Renascença e o período

medieval uma incontestável linha demarcatória. Coexistem uma na outra). Na história do livro,

essa linha poderia ser marcada pela invenção da imprensa. Seria, então, para os nossos fins, o

limite e a distinção. A “nossa” Idade Média não se divide em períodos de maior ou menor

adiantamento intelectual, a não ser na medida em que os progressos nesse domínio se vieram

refletir na técnica do livro, na sua encadernação, na sua ilustração.

• Durante a Idade Média o livro é indústria eminentemente e exclusivamente monástica. Mais do

que um simples trabalho de ordem material, a cópia de manuscritos assumia foros de exercício

espiritual, capaz de aprimorar as virtudes e de realçar os merecimentos sobrenaturais dos monges.

Os livros eram considerados “o eterno alimento das nossas almas” e a sua cópia era colocada entre

os primeiros deveres monásticos. Teodorico, abade de Ouche, repetia continuamente aos seus

monges: “Escrevei! Uma letra traçada neste mundo vos resgatará de um pecado no céu.” Contava

a história “de um monge culpado de numerosas infrações às regras monásticas, mas fervoroso e

assíduo copista. Depois de sua morte, ao comparecer perante o tribunal do Grande Julgamento,

enquanto os anjos maus expunham um a um os pecados que cometera, os anjos bons expunham

uma a uma as letras que tinham escrito. Afinal, uma única letra ultrapassou em número os pecados

cometidos pelo monge, e o Supremo Juiz, absolvendo o culpado, mandou que sua alma retornasse

ao corpo, concedendo-lhe de vida o tempo necessário para corrigir-se.”

• Apesar do zelo assim despendido pelos monges copistas, eram freqüentes os erros cometidos na

cópia ou no ditado (quando se desejava obter várias cópias simultâneas, um monge ditava a vários

copistas o texto original). Se isso acontecia com os textos latinos, mais freqüentes eram os

enganos cometidos nas citações gregas. Como o escriba ignorava frequentemente o grego, de duas

uma: ou decalcava penosamente os traços da escrita grega, ou confessava o seu embaraço,

suprimindo a citação e substituindo-a pelas duas letras gr., isto é, groecum, designação da

ignorância do grego.

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• Aspecto material : a Idade Média consagra a substituição do rolo pelo codex, da mesma forma

por que substitui o papiro pelo pergaminho, e já na transição para a Renascença, o pergaminho

pelo papel. O aspecto material dos manuscritos reflete, como é natural, as condições em que era

trabalhado. Todas as grandes abadias possuíam um scriptorium, oficina de copistas em que o

número de escribas variava, naturalmente, de acordo com a importância do convento. O trabalho

consistia na preparação material do pergaminho, isto é, na sua redução a um tamanho comum

(quadratio); em seguida, as folhas eram polidas ou acetinadas e marcadas as linhas, cujo intervalo

se obtinha exatamente igual por meio de buracos marcados nas bordas com um compasso. As

linhas eram assinaladas, nos primeiros tempos, com um estilete ou com tinta vermelha; mais tarde,

o lápis foi empregado. A escrita se fazia com pena de ganso ou cisne. A tarefa dos copistas era

examinada por corretores que reviam cuidadosamente o trabalho executado e colacionavam os

manuscritos. Em seguida, os rubricadores e miniaturistas se ocupavam da cópia dos títulos e das

iniciais em tinta vermelha. Os iluministas e os ornamentadores colaboravam igualmente na

ilustração do livro. Segundo parece, as palavras miniatura (de minium) e iluminura (de iluminare)

eram inicialmente sinônimas, e, na verdade, não deixam, ainda hoje, de ser, a rigor, sinônimas. Os

tipos de letras empregados eram os herdados da antiguidade, ao lado da carolina, criação da Idade

Média. Reinava a maior fantasia na ligação das letras: pedaços de palavras diferentes eram unidos

entre si, enquanto as letras da mesma palavra eram, com freqüência, desligadas. Quando, no

início da Renascença, os humanistas italianos se puseram à procura das obras literárias da

Antiguidade, os mais velhos manuscritos que encontraram eram, em geral, escritos em carolina.

Ao mesmo tempo que se deleitavam com o texto, adotaram-lhe o tipo de letra, que se tornou o

protótipo da escrita humanística. Os caracteres de imprensa “romanos” e “itálicos” são derivados

da carolina antiga, através dos humanistas.

• A raridade, e por conseqüência, o alto preço do pergaminho obrigará a um aproveitamento integral

da folha; as letras diminuem, tornam-se arredondadas, e, por volta dos séculos XI e XII, aparecem

as abreviações, que acabarão por obedecer a um código fixo. Enfim, é ainda nos meados do século

XII que surge a escrita chamada “gótica”, produto da substituição das curvas pelos ângulos. Ao

terminar a cópia, acrescentava-lhe o copista as linhas da “subscrição” ou do “colofão” , nas quais

mencionava o título do livro. Essas linhas começavam, em geral, com as palavras explicitus est, ou

explicit, reminiscência, ainda do rolo antigo: elas significavam que o manuscrito estava

“desenrolado”. Quando o título era colocado no começo do livro, o texto começava com as

palavras : hic incipit, isto é, “aqui começa”, explicando-se, em seguida, de que livro se tratava. É

ainda a penúria e o prelo do pergaminho que provocarão o fenômeno dos “palimpsestos”, embora

tal procedimento já se praticasse nos papiros.

• Tipos de ilustração: Com certa incorreção, podemos dizer que são dois os tipos de ilustração

praticados nos manuscritos medievais: a iluminura e a miniatura. Na verdade, esses dois tipos se

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reduzem a um só, visto que a ornamentação dos manuscritos (illuminatio) não compreende apenas

a aplicação minium nas letras e nas figuras: a miniatura é uma técnica mais pobre e mais restrita

que a iluminura, e só esta última merece propriamente o nome de “ilustração”, de “decoração” da

página. A miniatura seria, quando muito, a espécie de que a iluminura seria o gênero: ao passo que

os simples ornamentos, letras de fantasia e outros motivos de ornamentação recebem o nome de

miniaturas quando traçadas com linha vermelha composta de mínio (nome vulgar do óxido

natural de chumbo, também conhecido como vermelho-cinábrio ou zarcão;

dissolvido no óleo, o mínio dá uma mistura que é utilizada para proteger o ferro da

destruição pela ferrugem.) e cinábrio, (mineral sulfeto de mercúrio (HgS), o nome iluminura é

reservado para os desenhos ilustrativos propriamente ditos, em que a abundância e variedade de

cores são muito maiores. Havia o hábito de “ilustrar” a história do texto com a representação

gráfica dos episódios, ou de simplesmente “alegra-lo” com desenhos coloridos muitas vezes sem

nenhuma relação com o assunto do livro ou da página. Muitos livros piedosos apresentam

ilustrações profanas e até impudicas, sem que, segundo parece, isso chocasse de qualquer forma os

sentimentos dos leitores. (alguns monges, embora incentivados às cópias, eram proibidos de

pintura). Pouco a pouco, das grandes letras iniciais que se complicavam de arabescos e de cores, a

ilustração invadiu toda a página. No século VI a inicial ganha tamanho e beleza; um século mais

tarde, ela se prolonga pelas margens. Daí em diante é propriamente a história da ilustração

medieval que começa: o saltério que em 772 Carlos Magno ofereceu ao papa Adriano I é

apontado como um exemplo magnífico dos progressos alcançados pela iluminura. Houve, por

outro lado, uma espécie de “especialização” de cada uma das técnicas: a miniatura ficou

reservada, em geral, para as letras ornadas, muitas vezes formadas por figuras fantásticas de

animais mitológicos ou de homens, aves, peixes e flores, enquanto a iluminura correspondia à

ilustração propriamente dita. A história da iluminura pode ser dividida em duas fases: a fase

hierática e a fase naturalista. Na primeira (hierática) o ilustrador trabalha exclusivamente para

os clérigos. Os volumes decorados são os livros de igreja, sendo que o clero é praticamente a

única classe social que se entrega à leitura. Além disso, o próprio artista é, no mais das vezes, um

eclesiástico, e quase sempre, um monge. “Ele falará aos olhos dos seus irmãos a mesma linguagem que à sua

inteligência falam a teologia e a literatura sagrada, o que lhe é mais familiar à boca e aos ouvidos, isto é, a

linguagem simbólica. Mesmo no desenho, ele pretende tocar mais ao espírito que à vista; reproduzirá tipos

convencionais, emblemas seculares, que estará certo de ver apreciados e compreendidos; seguirá a tradição, e não a

natureza. (...) Sem dúvida, ele decorará cuidadosamente as iniciais, traçará desenhos de puro ornamento, e a

fantasia lhe inspirará, por vezes, encantadoras idéias; mas o cúmulo do seu talento, o supremo no gênero consistirá

em fazer com que as coisas mais simples digam o que elas não dizem aos ignorantes. Por exemplo, ao pintar um

Cristo crucificado, não se preocupará em fazer escorrer naturalmente o sangue das feridas, nem de representar a

cena do Calvário tal como se deve ter passado em realidade. Ele terá em vista, acima de tudo, o sentido místico da

cena; e fará escorrer o sangue divino num cálice sustentado por uma mulher: será a Igreja recolhendo os frutos da

paixão do Salvador. Uma mão significará Deus, um peixe, o cristão batizado.” Essa “maneira” durou da época

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merovíngiana até os meados do século XIII, e ela é hierática pelo simbolismo que a domina. A

iluminura, a ilustração, não são a cópia da realidade, são a sua interpretação, visto que a própria

realidade, impregnada de sobrenatural, é menos um fato que um reflexo. Como tudo, nessa

“primeira fase da Idade Média”, o trabalho do manuscrito é sagrado, e não profano. Mas a partir

dos séculos IX-X, inicia-se em todas as coisas um processo de “profanização”. São inúmeros os

sinais que um historiador da cultura poderia apontar como índice desse novo estado de espírito

que começa a se fazer sentir. Há como que uma expectativa da verdadeira revolução que os

séculos XIV-XV introduzirão na Europa com a vulgarização do papel, com as aplicações da

pólvora, com a invenção da imprensa. As artes e as letras começam a se secularizar; o mecenato

típico da segunda fase da Idade Média começa a se exercer, deslocando dos conventos para os

castelos uma parte dos trabalhos intelectuais. E seja para se fazer melhor compreender, seja pelo

decréscimo de sua “sacralidade” espiritual, o artista começa a representar os seus personagens

com os traços e as roupas dos seus contemporâneos: a “cor local” aparece e os pormenores típicos.

O simbolismo cede lugar ao realismo: daí a fase “naturalista”. Esta fase abre-se no século XIII,

ainda que experiências isoladas se possam encontrar anteriormente; ela alcança o seu apogeu no

século SV e se prolonga até o século XVI, época em que, à força de seu desenvolver no sentido

indicado, a miniatura se transformará na grande pintura. Além do vermelho originário, passaram-

se a empregar, mais tarde, nas miniaturas, o azul-claro e, nos manuscritos de luxo, caracteres

dourados ou prateados. Os artistas que trabalhavam as letras de ouro chamavam-se crisógrafos: a

utilização do ouro parece uma das mais evidentes influências bizantinas na arte da ilustração.

Lecoy de La Marche distinguia duas fases na arte de iluminar os livros: o período gótico

(arabescos, animais fantásticos ou verdadeiros, os personagens hieráticos, magros e alongados. As

cores são, a princípio biinárias ou ternárias – verde, vermelho ou marrom e amaralho. Tudo se

apresenta sem perspectiva, uma arte ainda rudimentar) e o período da Renascença (a técnica de

ilustração passa pelos aperfeiçoamentos que distinguem, em geral, toda a época: a iluminura se

transforma em verdadeira pintura e dá, mesmo, nascimento à pintura moderna. A miniatura e a

iluminura, artes essencialmente “manuais”, desaparecem com o manuscrito e pelos mesmos

motivos que determinaram o seu abandono, entre os quais, e antes de mais nada, se conta a

invenção da imprensa. Tanto o texto quanto as ilustrações passam a ser feitos mecanicamente,

ainda que os primeiros impressos reservassem o espaço necessário para as grandes iniciais

pintadas à mão e para a ilustração igualmente manual. A partir do século XV, pode-se dar como

terminado o período histórico dos manuscritos e da sua ilustração.

• A encadernação: na Idade Média, houve principalmente 2 tipos : couro e ourivesaria. Couro: liso,

gravado e estampado a frio. A ourivesaria, que respondia mais a intenções artísticas e de luxo que

ao desejo de proteger o livro, consistir em “placas de madeira ornadas de marfim esculpido, de

prata ou de ouro trabalhado e incrustado, ao mesmo tempo, de pedras preciosas, de pérolas e de

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esmalte pintado.” Esse tipo de encadernação era usado sobretudo para os livros de igreja e por

isso se conhecem igualmente pelo nome de “encadernações de altar”. A encadernação bizantina

caracterizava-se pelo abundante emprego de placas de ouro e de pedras preciosas, dentro das quais

se conservava o manuscrito. Entretanto, ess técnica de encadernação começa a se tornar rara a

partir do século XIV, e grande número de encadernações litúrgicas se executa, a partir dessa

época, em veludo ou couro, pregando-se nos vértices, para maior proteção, cantoneiras de metal. É

igualmente nessa época que o “estilo gótico” começa a influenciar a encadernação. Foram os

árabes que primeiro produziram encadernações de couro com gravuras douradas ou prateadas. A

encadernação com o couro liso era conhecida desde a Antiguidade. No decorrer dos séculos XIV

e XV , conhecem-se as encadernações de couro gravado: nesse caso, “desenhava-se sobre o couro

previamente umedecido um modelo que era em seguida gravado à faca. Esvaziava-se, em seguida,

o fundo, de forma a fazer com que o desenho ressaltasse em relevo”. Os ornamentos preferiso

eram os nossos já conhecidos animais fantásticos do período gótico (a encadernação em couro

gravado é sobretudo uma arte alemã), o que de resto, não excluía os anjos, os santos e os

cavaleiros com suas damas. A última técnica é a do couro estampado a frio: uma espécie de pré-

estado da encadernação moderna, porque a estampagem a frio não comporta nenhuma douração.

Os motivos ornamentais são uma série de enquadramentos entrelaçados e compostos de pequenas

figuras quadrangulares, triangulares, redondas, ou em forma de coração. Em geral, os quadros do

exterior diferem dos do centro; no meio, os ferros são dispostos seja em pequenos losangos

formados pelas linhas que se cruzam em diagonal, seja disposto mais livremente.

CÓDICE

Livro manuscrito organizado em cadernos cosidos ao longo da dobra e protegidos por uma encadernação

(codex). Esta forma de livro sucedeu à do rolo (volumen) e começou a ser adoptada em Roma no século I

da era cristã. A partir do século XV o livro manuscrito foi gradualmente rendido pelo livro impresso,

sobrevivendo mais alguns séculos como veículo de textos de circulação restrita (a literatura clandestina,

por exemplo) ou de carácter provisório (versões manuscritas de textos a imprimir).

O códice diz-se membranáceo quando os fólios são em pergaminho, se bem que até ao século V

tenha havido códices de papiro e, depois do século XII, códices em papel. Na elaboração de um códice

intervinham um ou mais copistas e um encadernador, para além de poderem estar envolvidos outros

especialistas (um rubricador, um iluminista, um revisor), ligados todos eles a centros de produção

codicológica: mosteiros e, a partir de finais do século XII, também a universidade. O material

indispensável para a fabricação do códice envolvia instrumentos de regramento, escrita, decoração e

encadernação (como o estilete, o compasso, a régua, a férula, a pluma, o cálamo, o pincel) bem como as

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correspondentes matérias-primas (giz, plumbagina, tinta, pigmento, cola, resina, nervo de boi, pele,

madeira, metal). Sobre a superfície do suporte era distribuída, geralmente a duas colunas, a mancha

gráfica, obedecendo este trabalho de empaginação a normas destinadas a manter uma proporção

geométrica entre largura e altura, margens, intercolúnio e linhas do texto. Estas proporções tornam-se

tradicionais e passam a fazer parte da expectativa do leitor, de modo que a imprensa começará por

respeitá-las nos incunábulos e tardará em introduzir uma proposta alternativa de empaginação.

O trabalho de cópia do códice exigia ora a leitura de um modelo (o exemplar) por parte do copista

isolado, que assim se convertia no elo de uma "transmissão em cadeia", ora a leitura em voz alta,

destinando-se o texto oral a vários copistas que trabalhavam simultaneamente e protagonizavam uma

"transmissão em leque", ora ainda o desmembramento do exemplar, distribuindo-se os seus cadernos por

diferentes copistas (transmissão pelo sistema da pecia). Os dois primeiros sistemas eram seguidos nos

scriptoria dos mosteiros, e o último nas tendas de livreiros ligados às universidades. Tanto a cópia pelo

sistema em leque como, e sobretudo, pela pecia permitiam uma multiplicação do exemplar segundo

números próximos já das tiragens da imprensa tipográfica.

COLOFÃO ou CÓLOFON

Dístico final de um livro que contém informações sobre o autor, o tipo de edição, o lugar e a data da

publicação da obra. Diz-se também da informação fornecida pelos tipógrafos sobre o lugar e adata da

impressão e que, regra geral, aparece no final da obra. O colofão funciona, portanto, como emblema de

um editor, também conhecido por imprint, quando aparece na capa de um livro. O colofão aparece no

século XV, após a invenção da imprensa, e já então representava uma marca de prestígio do editor. As

palavras “fim” ou “finis”, e também “Laus Deos” (“Deus seja louvado”), após a conclusão de um texto,

podem também ser consideradas colofões.

O livro de Vitorino Nemésio Nem Toda a Noite e a Vida (2ªed., rev., 1973) termina com um

poema com o título “Cólofon”, que pretende ser uma espécie de testamento poético de Nemésio, que quis

deixar a sua marca “tipográfica”, em forma de versos finais.

Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/codice.htm

Capítulo 4 : O papel

• Fabricação na Antiguidade: “papel” vem, etimologicamente, de “papiro”, que era papyrus em

latim e papurs em grego. Mas, ainda uma vez, o nome poucas relações tem com a coisa, e o papel

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não é um derivado do papiro: é o seu rival vitorioso. A sua história é antiga, embora muito menos

que a do papiro; e como o papiro, o papel veio do Oriente: da China. Há uma imprecisão em

relação às origens do papel. (alguns falam em 213 a.C). Os chineses fabricavam o “papel de seda”:

cortava-se ou rasgava-se a seda em tiras e pedaços miúdos, logo postos de molho numa cuba cheia

de água. O tecido apodrecia e fermentava, as fibras pouco a pouco se desintegravam e formavam

uma pasta que, posta a secar, se transformava em papel. Já era, como se vê, o embrião da

fabricação moderna, da qual só se distingue quantitativamente. Os chineses, que o soubessem ou

não, isolavam, por conseqüência, a celulose para formar o que se chama a pasta de papel.

• Introdução na Europa: É nos albores da Idade Média que o papel faz a sua aparição na Europa:

foram necessários mais de mil anos para que a invenção chinesa chegasse ao Ocidente, o que teria

ocorrido com o estabelecimento de uma fábrica na Espanha, em 1144 e depois nos “moinhos de

papel”, na Itália em 1276. Esses moinhos “eram acionados por força hidráulica; a roda punha

em movimento alguns pesados pilões que, sob a ação contínua da água, fragmentavam as

matérias-primas (panos, trapos de algodão, fibras diversas) e as reduziam a um mingau claro, a

pasta de papel, em seguida derramada numa cuba. Mergulhava-se nesta última uma fôrma

constituída de fios de latão emoldurados de madeira e nela se recolhia certa quantidade de pasta,

que viria a constituir, depois de seca, uma folha de papel. Com o emprego de feltros,

comprimiam-se as diversas folhas, eliminando-se o excesso de água; cientemente firme para

poder receber a escrita. Assim, pode-se dizer que se criou desde o primeiro dia a técnica de

fabricação do papel. O operário que colhia uma a uma, nas suas fôrmas, as folhas de papel, foi

substituído pelas máquinas gigantescas que fabricam o papel aos quilômetros; e a própria fôrma se

perpetua, ainda hoje, para as exigências da filigrana. Também desde o primeiro dia se sentiu

necessidade de acrescentar cola ao papel: isso torna ainda mais estranho que não se tenha criado

antes do papel comum o papel mata-borrão, inventado por acaso, segundo se diz, por um operário

que certo dia esqueceu de juntar cola à sua pasta. Isso, porém, nos conduz à criação do mundo

moderno, ao fim da Idade Média com a substituição total do nobre pergaminho pelo papel, esse

primeiro burguês da civilização ocidental. (Os 3 períodos da civilização ocidental: argila e papiro;

papiro e pergaminho; pergaminho e papel.) A expansão do islamismo reduzira as exportações

egípcias do papiro, substituído pelo pergaminho, na corte merovingiana entre 659 e 679,

desaparecendo praticamente depois de 716. Outra conseqüência profunda, acrescenta ele, foi a

crescente importância das línguas vernaculares, assim se alargando o hiato entre as tradições oral e

escrita, na medida mesmo em que a Igreja e os mosteiros privilegiavam o latim. A primeira etapa

da introdução do papel na Europa é marcada pelo ano de 751, quando diversos prisioneiros

chineses, trazidos para Samarcande, cidade de Ásia Central, nela introduziram a indústria do

papel. É pois, aos chineses que se deve, além da invenção, o primeiro impulso na direção do

Ocidente. Essa etapa durou seis séculos e meio. O passo seguinte é mais rápido: em menos de

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cinqüenta anos, em 794, encontram-se fábricas de papel em Bagdá e em Damasco. Entrava o

papel na rota das caravanas: o caminho do Ocidente estava aberto. Com efeito, junto com outras

preciosidades, os árabes colocaram o papel no ciclo das suas atividades comerciais com o mundo

cristão. Com a parada tradicional na África, o papel passa para a Espanha, onde já o encontramos

em 1144. Mais dois séculos, e o “manuscrito em papel” substitui o “manuscrito em pergaminho”.

É que, entre a introdução e a divulgação, um período que hoje nos parece longo teve de se escoar.

O emprego do papel só se revelaria em todas as suas possibilidades quando novas condições

espirituais começassem a modificar a cultura medieval. Juntamente com a pólvora, essa outra

invenção chinesa, o papel é o grande aríete do mundo renascentista que se anunciava, contra o

mundo medieval que sucumbia. A transformação seria feita, em grande parte, através do livro e da

palavra escrita: o papel é que se ia revelar, na verdade, a grande arma, a arma mais perigosa, mais

potente e de maior alcance já inventada pelo homem. Nesses dois séculos de hibernação européia,

o papel aguardava, apenas o seu momento. Da Espanha para a Itália, da Itália para a França, a

Inglaterra e a Holanda, fechou o papel o seu circuito europeu: a história da civilização moderna foi

escrita, em grande parte, não “sobre” papel, mas “pelo” papel. Na França, há moinhos de papel

funcionando em Troye e em Essones, no século XIV; desde o século anterior na havia moinhos na

Alemanha. O papel encontraria o seu grande destino, até aos fins do século XVIII e, mesmo, aos

começos do século XIX, na Holanda, país de liberdade espiritual, onde o livro e o pensamento se

acolheram durante os longos períodos de censura vigorantes na Europa. A Holanda será, por isso,

durante uns dois séculos, a “oficina tipográfica” e editorial do mundo inteiro. Daí o seu prestígio e

a glória das suas prensas. A introdução e a vulgarização do papel na Europa decidiu dos destinos

da nossa civilização porque ele vinha responder às necessidades que todos sentiam de um material

barato, praticamente inesgotável, capaz de substituir com infinitas vantagens o precioso

pergaminho. A “democratização” da cultura é, antes de mais nada, o resultado dessa substituição:

pode-se dizer que, sem o papel, o humanismo não teria exercido a sua enorme influência. Toda a

fisionomia de um mundo estaria, então, completamente mudada.

• Fabricação moderna : Até os fins do século XVIII, a fabricação do papel era puramente manual.

Os moinhos de papel eram oficinas primitivas, onde se faziam as folhas uma a uma, em

quantidades que ainda não chegavam para caracterizar uma indústria. Esta última aparece quando

é possível combinar o máximo de produção no mínimo de tempo, o que equivale a dizer que ela é

inseparável da máquina. A utilização do papel em larga escala dependia, assim, de um

aperfeiçoamento na técnica. A primeira máquina de fazer papel data de 1798 (inventor Louis

Robert), dois anos antes do fim do século XVIII. E notem a singularidade: como o papel aparece

na Europa para encerrar um período histórico, permitindo a substituição da Idade Média pela

Renascença, a máquina de papel aparece, da mesma forma, para encerrar outro período

histórico, permitindo a substituição da monarquia absoluta pelos sistemas democráticos de

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governo. É difícil imaginar a Renascença e o movimento humanista sem o papel; é igualmente

difícil imaginar todo o desenvolvimento democrático da cultura ocidental, a partir da Revolução

Francesa, sem o papel. A máquina de Louis Robert poucas relações terá com as grandes máquinas

modernas, a não ser, naturalmente, as do mesmo princípio em que todas se fundam. É que nesse

caso, como no de todas as outras grandes invenções técnicas, o “inventor” inventa apenas o

princípio: é toda uma série posterior de “técnicos” que aperfeiçoa e corrige o seu trabalho. O

trabalho do inventor é um trabalho de imaginação; o trabalho dos técnicos é um trabalho de

realização. Assim, as primeiras máquinas são sempre “esquemáticas”, enquanto as suas formas

definitivas são sempre “enciclopédicas”: a história das máquinas é a história da simplicidade

para a complexidade e da disformidade para a elegância, como é também a da marcha para uma

produtividade cada vez maior.

• Fontes da celulose; transformação da celulose em pasta de papel; transformação da celulose

em pasta de papel: Originalmente, os trapos de seda, linho e de algodão forneciam quase

exclusivamente a matéria-prima do papel. Em nossos dias, entretanto, a fonte principal da celulose

é a madeira, restando os tecidos como fonte de celulose para a fabricação dos papeis de luxo. Na

escolha das madeiras, guiam-se, naturalmente, os fabricantes pela respectiva riqueza em celulose,

que varia de uma espécie para outra. A espécie mais rica de todas, que permite um aproveitamento

de quase cinqüenta por cento, é o pinheiro, de que existem dois tipos: o “pinheiro europeu”

(Finlândia, Noruega, Suécia, Canadá) e o pinheiro do hemisfério sul, este um pouco mais duro que

aquele e, por isso, inferior na fabricação do papel. Outro material que se tem revelado de um

emprego cada vez mais amplo, é a palha de cereais. De uma forma geral, qualquer substância que

contenha celulose serve para a fabricação do papel; o único limite é o da riqueza maior ou menor,

que governa, como é claro, maior ou menor rentabilidade industrial. A transformação da celulose

em pasta de papel depende de processos diferentes, segundo se trate de trapos, de madeira ou de

palha, sendo as operações para a produção basicamente as mesmas, obviamente consideradas as

inovações mecânicas e tecnológicas. A pasta, que é naturalmente amarelada, se branqueia, neste

como nos demais casos, como o emprego de oxidantes. A madeira encontrou o seu emprego na

indústria o papel na segunda metade do século XIX. Há dois tratamentos diferentes, segundo se

pretenda obter a celulose pura, também chamada de pasta química ou pasta de bissulfito, com a

eliminação de todas as outras matérias-primas de madeira, ou a pasta mecânica, na qual tudo é

utilizado. O primeiro tipo é chamado de pasta química porque são empregadas substâncias

químicas no tratamento da matéria-prima, em geral, o hipossulfito de cálcio; a outra pasta tirou

seu nome dos processos exclusivamente mecânicos empregados na sua fabricação. A diferença

entre ambas é que a pasta mecânica produz um papel mais barato e menos sólido, sensivelmente

mais grosseiro. Para obter melhor qualidade sem alterar enormemente o preço, costuma-se

misturar um pouco de pasta fibrosa à pasta mecânica: isso produz um papel mais sólido. Assim, se

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obtem uma variedade imensa de papéis, conforme as proporções da mistura. Pra a obtenção do

papel, a pasta é mergulhada em água e, por meio de um movimento giratório, desintegrada pela

passagem obrigatória entre lâminas móveis que trabalham conjugadas com lâminas fixas. O

espaço entre as lâminas determinará o comprimento das fibras, cujas extremidades são, por sua

vez, abertas e divididas em fibrilhas. Esse tratamento determina, juntamente com a espécie de

fibra empregada, as diversas qualidades de papel, que variam segundo a sua intensidade e duração.

É também nessa fase que se acrescentam à pasta a quantidade de cola necessária para a

impermeabilização que se deseja, e, ainda, as anilinas apropriadas, quando se trata de obter papel

colorido. A noção de formato da folha tipográfica de papel e, por conseqüência, a do formato do

livro é, em nossos dias, “absolutamente factícia”. Efetivamente, com o desaparecimento das

fôrmas manuais, que produziam folha por folha com um formato, isto é, com dimensões

determinadas, desapareceu, igualmente, a folha, no seu sentido tradicional. As grandes máquinas

transformaram por completo não apenas a quantidade horária, mas ainda a própria apresentação

material do papel: hoje a “folha” é obtida pelo corte, em dimensões convencionais, quando isso se

torna necessário, da longa fita de papel produzida pela máquina. Em geral, a “bobina” não

segmentada se adapta à máquina de impressão e aí, então, já não se pode mais, a rigor, falar em

folha, nem por conseqüência, em formato. Mas as idéias representadas por essas duas palavras

têm, na prática, uma grande utilidade, de maneira que a noção convencional de formato continua a

vigorar em bibliotecologia, embora modernamente se procurem substituir as denominações

clássicas pelas medidas correspondentes. O formato do livro depende, em certa medida, do

formato da página tipográfica, ou, pelo menos, existe entre ambos tal relação recíproca que se

torna conveniente estuda-los em conjunto. Na verdade, o que se chama de formato do livro é pura

e simplesmente a dimensão desse livro, “dimensão determinada pelo número de páginas contido

em cada folha”. Ou, em outras palavras: “o formato bibliográfico compreende a dimensão da folha

de papel impressa, depois que ela foi dobrada segundo o número de páginas que contém.” Assim,

o formato do livro não se relaciona, a rigor, com o tamanho da folha de papel, mas pode, em

circunstâncias determinadas, depender dele, no sentido de que certas folhas permitem ou não obter

alguns formatos convencionais. Retenhamos, desde logo, a recomendação de Albert Cim, a fim de

não confundir o formato com a espessura do livro: o formato é a medida da superfície e não

indica senão a altura e a largura do volume. É fácil compreender as denominações correntes dos

formatos: o in-plano, também chamado formato atlas ou atlântico, resulta da folha não dobrada e

compreende, em conseqüência, apenas duas páginas, reto e verso; o in-fólio resulta da folha

dobrada em dois e contém quatro páginas; o in-quarto resulta da folha dobrada em quatro e

contém 8 páginas; o in-octavo resulta da folha dobrada oito vezes e contém 16 páginas; o in-doze

resulta da folha dobrada doze vezes e contém 24 páginas. Atualmente consideramos grande

formato os volumes que ultrapassam 35 cm; formato médio aqueles volumes que têm entre 25 e

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35 cm e pequeno formato os volumes abaixo de 25 cm. Os bibliotecários brasileiros guardam

ainda, entretanto, o nome de “in-fólio”, por comodidade e para os simples efeitos de arrumação

nas estantes, para os livros cuja altura, ultrapassando de muito as médias comuns, os obriga a

serem deitados nas prateleiras.

Capítulo 5 – A imprensa antes de Gutemberg

• O livro xilográfico : (xiloglifia : arte de esculpir caracteres em madeira) – É necessário

distinguir a arte de imprimir da tipografia, que se prende, ao contrário daquela, à história do

livro e da imprensa, no sentido correto da expressão. Segundo tudo se indica, as técnicas

tipográficas eram praticadas na China desde o segundo século da nossa era e na Europa desde a

segunda metade no século XIII, surgiram de outras preocupações, de um estado de espírito

diferente do que provocara, na Antiguidade, a produção de selos, anéis, medalhas e moedas. Com

efeito, é impossível confundir simples inscrições em metal, e mesmo em argila (como as que

constituíam os livros das bibliotecas mesopotâmicas), que pertencem, sem dúvida, à arte de

imprimir no seu sentido lato, com o processo de imprensa, inventados independentemente das

primeiras e visando finalidades completamente diferentes: “a imprensa não consiste somente num

sinal qualquer sobre o papiro, pergaminho ou papel, mas também e sobretudo na reprodução

rápida e ilimitada da escrita ou da palavra.” Da mesma forma que não devemos recorrer a

fantasias da antiguidade, confundindo-as com a arte de imprimir, também devemos evitar o erro

de supor que ocorra alguma relação entre a imprensa chinesa e a que começa a praticar na Europa,

antes de Gutemberg, a partir do século XIII. É inegável a existência de uma tradição segundo a

China possuiria, desde o segundo século da nossa era, um processo litográfico de impressão1 ,

que teria, mesmo, precedido a impressão xilográfica . Mas a verdade é que nenhum exemplar nos

resta dessas primeiras impressões e não se sabe até que ponto a imaginação chinesa terá

contribuído para esta história maravilhosa da palavra impressa. Tudo o que se pode afirmar com

segurança é que o impresso xilográfico chinês mais antigo que se possui data, segundo Svend

Dahl, do ano de 932 da nossa era: é o mais antigo existente, o que permite concluir, da sua própria

existência, que o processo já era praticado algum tempo antes. Pelo menos, a tradição japonesa

menciona impressões em madeira desde o século XIII: como o Japão tomou da China todas as

técnicas de impressão, tal fato contribui para afirmar a existência de uma “tipografia xilográfica”

chinesa anterior ao exemplar que se salvou da destruição. Tanto na China quanto na Europa as

impressões xilográficas foram feitas inicialmente em planchas únicas, com todo o texto de cada

1 Litografia : arte de reprodução por impressão, de desenho ou escrito gravado numa pedra (também chapas de zinco ou alumínio)

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página gravado na madeira de uma vez só. Na Europa, esse processo representa, por um lado, uma

espécie de projeção do manuscrito na técnica de impressão e, por outro lado, uma transição entre

o manuscrito e a imprensa propriamente dita. Com efeito, é sabido que durante alguns anos o

livro impresso imitou conscientemente o aspecto material do manuscrito. Os países orientais

contam a invenção da imprensa do tempo em que começaram as impressões tabelares e

consideram os tipos móveis quase como uma criação tardia e sem importância. Tal distinção

repousa na diferença entre a escrita ideográfica e o alfabeto: “Nas línguas européias, a escrita se

baseia no alfabeto: para elas, a invenção da tipografia é a invenção da imprensa. No extremo

Oriente, a escrita se baseia em cerca de 40 mil símbolos independentes: nesse caso, e até à

grande venda de caracteres por atacado nos últimos anos, o uso de tipos móveis raramente era

prático ou econômico. Em qualquer país, a invenção da tipografia corresponde à invenção da

forma de impressão que transforma a sua educação e cultura.” (mas mesmo assim, na China do

século XI, já eram fabricados caracteres móveis de argila cozida e, mais tarde de cobre e de

chumbo. Se esse processo não se desenvolveu na China foi porque os chineses empregavam um

número muito grande de sinais).

• As impressões tabelares: Na Europa, aquela projeção do manuscrito sobre o impresso, da página

sobre a letra, aparece de maneira ainda mais sugestiva nas primeiras impressões xilográficas, que

receberam o nome de impressões tabelares ou tabulares justamente por serem feitas com o

emprego de tabuinhas: é que, em flagrante contradição com o espírito mesmo da tipografia, essas

impressões eram feitas em folha única, tal como a cópia manuscrita. Esses impressos, dos quais se

conhecem mais de três mil, datando do século XV, reproduzem coisas aparentemente

contraditórias, como imagens de santos e baralhos, além de calendários. Mas, a contradição

desaparece como tal se nos lembrarmos que toda a Idade Média foi uma idade de contradições e

que nela a piedade e o deboche conviviam lado a lado, assim como o sentimento religioso e a

crueldade, as virtudes e os vícios: o jogo de cartas, em particular, “fazia furor” nos séculos XIV e

XV. (Segundo pesquisas mais recentes, isso teria mais relações com o trabalho de Gutemberg do

que pensamos.) O mais antigo dos impressos tabelares hoje existente data de 1418 e representa a

Virgem de pé, com o Menino Jesus nos braços. Outro tipo de impressão tabular, este não

xilográfico, é o dos impressos “à pasta”, processo de invenção alemã: “consistia em imprimir,

contra o papel recoberto de uma pasta mole, mas de rápido endurecimento, a placa metálica que

se desejava reproduzir, gravada e untada de tinta preta. Colorindo-se a pasta, aumentava-se

ainda o efeito produzido pelas imagens, que representavam sempre cenas de piedade.

Conservaram-se mais ou menos 150 desses impressos, todos infelizmente em muito mal estado.”

Não tardou a surgir a idéia de reunir essas impressões tabulares em livros: datam da metade do

século XV os primeiros livros tabelares, executados segundo se acredita, na Holanda. Eram livros

destinados não ao povo, mas ao baixo clero, encarregado da predicação popular, e ao qual serviam

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de manuais. Sabe-se que era total o analfabetismo das classes populares na Idade Média: isso

elimina desde logo a idéia de que se imprimissem livros que lhes fossem destinados. Essa

destinação era apenas indireta, tanto que os textos, aliás reduzidos, dos livros tabelares eram

escritos em latim: deduz-se, por conseqüência, que o clérigo neles encontrava o tema da

predicação e o ilustrava com as imagens piedosas ali impressas. Os primeiros livros de imagens

foram impressos na Holanda: esse fato parece ser o primeiro sinal do papel importante que os

Países Baixos teriam, durante alguns séculos, na vida do livro impresso e na manutenção da

liberdade de pensamento. A impressão xilográfica constitui o primeiro passo no sentido da

descoberta da impressão em caracteres móveis: com efeito, o mesmo simples raciocínio que

conduziu da folha tabelar para o livro tabelar deveria conduzir da plancha xilográfica para os

caracteres móveis. O caminho para o incunábulo estava aberto. Foi, efetivamente, a vista de

uma plancha xilográfica que deu a Gutemberg a idéia de separar individualmente os diversos

caracteres: do tipo móvel de madeira para o tipo móvel de metal a passagem é igualmente

inevitável, desde que o primeiro levanta os problemas da simetria, da durabilidade e do

alinhamento que somente o segundo pode resolver.

• Os caracteres móveis e a imprensa : Aqui abordamos um aspecto paradoxal da história do

livro: o de que o uso de caracteres móveis é anterior à própria invenção da imprensa ! Esta

última, costuma-se data-la convencionalmente de 1455, ano em que Gutemberg imprimiu a

famosa Bíblia de 42 linhas2: ora, muito antes disso, em 1260, os fundidores europeus tinham

licença para fabricar letras isoladas. E, embora não haja ligação nenhuma entre a “imprensa”

oriental e a ocidental, não é menos certo que livros impressos com caracteres móveis, datando das

primeiras décadas do século XV, foram descobertos na Coréia. Assim, temos que retificar os dois

lugares-comuns que atribuem a Gutemberg seja a invenção da imprensa, seja a invenção de

caracteres móveis: uma coisa como outra já existiam na Europa quando ele começou a trabalhar

em tipografia. Foi outra a invenção de Gutemberg: ele abriu, na verdade, o caminho para a

grande imprensa, e o seu mérito em nada fica diminuído porque, mais do que na invenção

2 A obra suprema de Gutenberg e desses primórdios da imprensa é essa Bíblia de 42 linhas, que leva o seu nome e também de Bíblia Mazarina, por ter pertencido à biblioteca do cardeal Mazarino o primeiro exemplar. O que chamou a atenção dos bibliófilos foi “a força e a beleza do velino, e do papel dos exemplares que nele foram impressos, o brilho da tinta, a regularidade da tiragem, fazendo desse volume um monumento admirável do grau de perfeição que, desde a sua origem a arte tipográfica atingiu.” São palavras de Rouveyre, que exprimem a opinião unânime dos historiadores. Svend Dahl descreve-a da seguinte maneira: “Cada página – e são 1200- é dividida em duas colunas, sendo o tipo exatamente o da escrita gótica do último período, tal como a conhecemos pelos grandes manuscritos de luxo, com os seus caracteres vigorosos e fortemente angulares. Para as subscrições, as iniciais, as rubricas e os desenhos marginais, o impressor deixou espaço livre a fim de que fossem traçados; mas, em alguns exemplares, há subscrições impressas a tinta vermelha. Existem ainda 41 exemplares da Bíblia de Gutemberg, dos quais doze impressos em pergaminho. É provável que a edição tenha sido de apenas cem exemplares.” A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui dois exemplares da Bíblia de Mogúncia (de 1462), que não é a de Gutemberg, mas de Fust e Schoeffer. Pesquisas confirmaram as estimativas do cardeal Piccolomini (futuro Papa Pio II), segundo as quais foram impressos cerca de 180 exemplares da Bíblia de 42 linhas, mas acrescentaram dados interessantes a respeito da tinta de impressão aperfeiçoada por Gutenberg, assim resolvendo um dos seus mais árduos problemas. Utilizando-se do cicloton (o mesmo empregado no desenvolvimento da bomba atômica), pesquisadores da Biblioteca Pierpont Morgan, de NY, e da Universidade da Califórnia, identificaram-lhe a composição: Gutenberg acrescentou chumbo e cobre às fórumulas conhecidas, assim obtendo uma tinta que conserva até hoje o seu brilho e frescor, além de não haver perdido coloração.

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material, ele consiste em “ter visto” o que se poderia tirar de uma idéia que “estava no ar” e que

apenas aguardava os seus meios práticos de realização. A tipografia representa menos uma

invenção do que um aperfeiçoamento da arte de imprimir, mas é apenas com Gutemberg que ela

adquire a sua realidade técnica, a sua possibilidade de existir. A própria palavra “tipografia” é

raramente empregada durante o século XV, isto é, durante todo o período em que o incunábulo,

sendo embora um livro impresso, prolongava artificialmente a vida do manuscrito, ou pelo menos,

a sua aparência. É apenas a partir da segunda metade do século XVI, quando o livro impresso

corta definitivamente todas as suas ligações com o manuscrito que o termo se torna de um

emprego freqüente.

Capítulo 7 – A difusão da imprensa

• Os incunábulos: (do latim incunabulum, berço): expressão técnica que designa os livros

impressos até o ano de 1500 (no norte Europeu até 1550). O interesse pelos incunábulos começa

no século XVIII, mas é no XIX e no XX que se publicam as grandes bibliografias referentes ao

assunto (inventário e descrição de todos os incunábulos conhecidos). Estima-se que há mais de 30

mil incunábulos, o que nos instrui, ao mesmo tempo, sobre o desenvolvimento atingido pela

tipografia antes mesmo do fim do século XV. A maior parte dos incunábulos é impressa em

pergaminho. Como reconhecer um incunábulo: 1) a espessura, a densidade e a cor amarelada

do papel; 2) a irregularidade e a imperfeição dos caracteres tipográficos, muito evidentes,

principalmente nos tipos romanos provindos das oficinas italianas; 3) a ausência de assinaturas,

de réclames, de paginação e, nos mais antigos, de registro, isto é, do quadro indicativo dos

cadernos que compõem a obra: esses cadernos eram indicados pelas primeiras palavras da sua

primeira página3; 4) a ausência de título separado ou frontispício: o título, ou, antes, o assunto do

livro, era enunciado no começo do texto, no que se denominava sobrescrito ou incipit. É por essa

última palavra que o texto frequentemente começava. É por volta de 1476 ou 1478 que se

começam a imprimir os títulos dos livros numa página separada; 5) ausência do nome do

impressor, do lugar e da data de impressão: essas indicações não tardarão a figurar na última

página dos volumes, num parágrafo final chamado subscrição (também tem o nome de adresse

(endereço) e de colofão; 6) a quantidade de abreviações; 7) a raridade de alíneas e de capítulos; 8)

ausência de letras capitais no começo dos capítulos ou divisões: nos primeiros tempos os

3 Cada primeira página de uma folha de impressão ostenta, no canto inferior direito, debaixo da última linha, um algarismo chamado assinatura, que indica o número dessa folha e, por conseqüência, o do “caderno” tipográfico. Em lugar de algarismos, empregavam-se outrora, com essa finalidade, as letras do alfabeto. Ainda para facilitar a classificação das folhas, costumava-se antigamente colocar no canto inferior direito da última página de cada caderno a primeira palavra do caderno seguinte: é a essa palavra, assim destacada, que se dava o nome de réclame. Esse costume caiu em desuso porque a finalidade do réclame já se encontrava satisfeita com a existência das assinaturas. É provavelmente desses hábitos puramente empíricos da primitiva tipografia, herdados, aliás, dos manuscritos , que se originou o costume forense, já hoje inadmissível, mas ainda assim, persistente, de repetir a última palavra de cada página no começo da página seguinte.

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impressores deixavam em branco o lugar dessa grandes letras, que eram postas à mão pelos

calígrafos e rubricadores; 9) ausência de sinais de pontuação; 10) traços oblíquos em lugar de

pontos sobre os i.

• As edições princeps: Na sua exata conceituação, as edições princeps são quase sempre

incunábulos. Reouveyre afirma que a palavra deve ser “reservada exclusivamente aos clássicos

impressos no segundo período do século XV”. Se assim é, todas as edições princeps são

incunábulos, embora nem todos os incunábulos sejam edições princeps. A qualificação de

Princeps se dá ordinariamente às edições dos clássicos tidas como primeiras, isto é, às edições

que, sem o auxilio de nenhum livro já impresso, foram feitas por manuscritos mais ou menos

antigos, anteriores à “descoberta” da imprensa. Essas primeiras edições, sobretudo as que

apareceram antes de 1480, são, em sua maioria, verdadeiros calques de manuscritos preciosos:

porque os primeiros tipos de imprensa, seja esculpidos, seja fundidos, não podendo ter outro

modelo senão a letra de forma ou a cursiva, então em uso, imitavam de tal maneira a escrita que as

primeiras obras impressas eram encaradas, e, segundo se diz, até adquiridas como manuscritos. O

alto valor alcançado pelas edições princeps se deve mais à sua raridade que aos seus méritos

textuais, já que estão longe de merecer a cega confiança que durante muito tempo se lhes atribuiu

e isso porque não apenas repetiam os erros constantes dos próprios manuscritos, mas ainda porque

lhes acrescentavam outros.

• O milagre se torna cotidiano: É sabido que os primeiros tipógrafos, em parte por interesse

comercial, em parte por simples espanto, procuraram manter o maior segredo em torno da nova

invenção. A tipografia foi, em seus primeiros tempos, uma verdadeira sociedade secreta, na qual

os iniciados eram admitidos sob juramento de sigilo. A arte de imprimir passou, durante algum

tempo, por ser uma obra sobrenatural: era a “arte de escrever sem mão e sem pena”. Muitos

pensavam que os impressores trabalhavam por meios cabalísticos: a imprensa passava por ser uma

espécie de pedra filosofal de novo tipo: os tipógrafos, longe de serem considerados modestos

operários, eram tidos como alquimistas soturnos e terríveis; as oficinas, laboratórios de horrendas

missas negras. Essas velhas superstições explicam, talvez, por uma parte, que ao livro, à palavra

escrita, sempre tenham sido atribuídas, mais ou menos, pelos ignorantes e pelos interessados de

todos os tempos, as mais íntimas relações com o Diabo. A censura, qualquer que seja ela, mas,

em particular, a censura eclesiástica (quando armada do “braço secular”) encontra a sua origem

nessa profunda, inconsciente e imortal hostilidade contra a palavra escrita. Apesar da venerável

tradição dos “livros santos”, ou talvez por isso mesmo, sempre se admitiu tacitamente que o livro,

ao contrário dos réus de direito comum, era culpado até prova em contrário, devendo-se, em caso

de dúvida, queima-lo, se possível junto com o autor, para extirpar o mal de uma vez para sempre.

O livro impresso somente afirma definitivamente os seus direitos com a Renascença, que foi,

antes de mais nada, a “civilização da liberdade”, que nasceu, é inegável, com um sentido evidente

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de reação contra a estrita dominação da Igreja nos domínios propriamente intelectuais. O livro

segue, assim, por sua vez (e é coincidência que merece a nossa atenção) a mesma trajetória de

todos os conhecimentos teóricos, evoluindo nitidamente de uma natureza religiosa e limitada para

uma natureza cada vez mais profana e universal. O milagre se torna cotidiano e banal; a alquimia,

ainda aqui, se transforma em química; o feiticeiro em operário. O que não quer dizer que o

operário deixasse imediatamente de ser considerado feiticeiro e alquimista, profanador e não

profano. É que o livro impresso vinha invadir os domínios tradicionais do livro manuscrito, o

reprodutor mecânico vinha substituir o copista eclesiástico, e não apenas substituí-lo, mas rivalizar

com ele, disputar-lhe algumas das suas prerrogativas mais essenciais: com efeito, o livro

facilmente e abundantemente reproduzido significava a possibilidade, desde então irrefreável e

infinita, do livre exame, do espírito científico e objetivo da discussão inesgotável de todos os

problemas, da vida individual então possível para cada um. O mundo moderno começava.

• O impresso imita o manuscrito: O livro impresso não surgiu imediatamente com sua

personalidade própria. Ele procurou instintivamente continuar o livro manuscrito, em lugar de

substituí-lo, como devia ser, forçosamente, o seu destino: não apenas a imprensa, nos seus

primeiros tempos, imita o mais fielmente possível o manuscrito (ao ponto de ser preciso grande

atenção para verificar que a Bíblia de Gutemberg, por exemplo, é um livro impresso), mas, ainda,

reservou-lhe uma parte do seu texto, tentou uma conciliação ou uma convivência impossível com

o copista manual. No século XV, sobretudo, em certos livros, como os litúrgicos e de literatura

popular, os tipógrafos ainda sofrem a influência do manuscrito e da caligrafia. Aos calígrafos,

eles tomam emprestado as grandes iniciais em traços de pena, a paginação, muitas vezes em duas

colunas, com título corrente e subtítulos nas margens; aos miniaturistas, as cercaduras repletas

de folhagens e de animais fantásticos, as vinhetas de variadas dimensões, semeadas pelo texto

com a maior liberdade. Tais analogias com a página manuscrita tornam-se ainda mais evidentes

quando as gravuras em madeira são coloridas ou recobertas de tinta, como é freqüente verificar

nos incunábulos, em particular nos exemplares destinados às altas personalidades. O próprio tipo

de impressão era fundido em moldes que imitavam os caracteres manuscritos, embora

alcançassem uma regularidade natural que permite distingui-los das letras traçadas à mão. Mais

ainda: as letras iniciais eram deixadas em branco, bem como os grandes espaços necessários para

que, depois de impresso o texto, fossem desenhadas à mão pelos copistas; estes continuavam a

entrelaça-las de arabescos e desenhos, o que mais concorria para aproximar a página impressa da

página manuscrita. É por esse motivo que ainda se encontram muitos impressos dessa época sem

as letras iniciais:é que, vindos demasiado tarde, ou produzidos em grande quantidade, ou não mais

se revelou interessante desenhar as letras que faltavam, ou os copistas que pouco a pouco

desapareciam, não chegaram a vencer o volume de trabalho. Até as abreviações, tão necessárias

ao manuscrito medieval, tiveram continuidade nos impressos do século XV, quando o processo

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mecânico de reprodução e a utilização do papel não mais as justificavam. Ainda por esse lado,

pois, o impresso continuou a imitar o manuscrito. A imitação dos manuscritos, por parte dos

primeiros impressos, estende-se, entretanto, a outros pormenores. Assim, p.ex., por um espaço de

mais ou menos trinta anos após a invenção da imprensa, os títulos das obras não eram impressos

separadamente: juntamente com a imprenta, o nome do lugar da impressão e o nome do tipógrafo

constituíam o colofão, geralmente constante da última folha impressa. É um hábito que, com

algumas modificações, se perpetua até os nossos dias, com exceção, naturalmente, do título, que

passou a ser impresso em folha própria. Mas os primeiros livros impressos não traziam o título em

folha separada. Embora haja discordâncias entre autores quanto ao início da impressão de títulos

em páginas separadas, podemos considerar como entre 1470 e 1500, o que nos leva a concluir que

a maior parte dos incunábulos têm esta característica. Coisa ainda mais curiosa, e bem pouco

conhecida, é a influência dos tipos de imprensa sobre o formato da letra manuscrita. Essa

influência se manifestou em pelo menos dois casos: um deles é o da chamada “escrita

humanística”, surgida na Itália já no primeiro quarto do século XV, não passando de uma

renovação da minúscula. Essa letra desempenhou papel preponderante no desenvolvimento da

escrita na Europa, tendo sido sobretudo empregada pelos humanistas; o outro caso se refere à

maior legibilidade dos manuscritos, já no século XVII, por influência da letra impressa. É sabido

que, a partir do século XVI, a imprensa se propaga com grande rapidez e substitui o manuscrito no

que se refere aos livros comuns. Mas, as obras destinadas, por exemplo, às grandes

personalidades, como presente, ainda eram executadas à mão, bem como alguns antifonários em

uso nas igrejas. Esses manuscritos invadem o século XVII, sem falar, naturalmente, nos atos

oficiais e notariais, forçosamente, feitos à mão. A própria encadernação ainda se esforça, nos

primeiros tempos da imprensa, por obter a maior semelhança possível com os tipos de

encadernação usados na Idade Média.

• Um paradoxo: Essa imitação tão estreita explica-se por duas circunstâncias diferentes: a primeira,

de ordem psicológica , consiste no fato de que dificilmente o homem inventa qualquer coisa de

inteiramente novo. Bem examinadas, as invenções, mesmo as mais revolucionárias, são apenas

transformações ou aperfeiçoamentos de coisas anteriormente conhecidas, ou de pedaços de

invenções anteriormente testadas. Há igualmente uma circunstância de ordem econômica: é que os

manuscritos, longe de desaparecerem imediatamente do mercado diante da invenção da imprensa,

ganharam, ao contrário, nos primeiros tempos, um extraordinário prestígio, passaram a gozar da

mesma consideração de que tinham usufruído os rolos de papiro em face dos primeiros livros de

pergaminho, ou, nos tempos modernos, os livros feitos em prensa manual diante dos que são

compostos à máquina. Essa valorização paradoxal e inesperada fez com que os primeiros

impressores tentassem, se não fazer passar os seus impressos por manuscritos, pelo menos

alcançar a mesma “perfeição” desse último. (A Teoria do Valor – Ricardo e Marx : o manuscrito

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representava, com relação ao impresso, muito mais “trabalho humano cristalizado”). Os

manuscritos satisfaziam, nos primórdios da imprensa, a um desejo ou a uma necessidade de

situação social, sua posse “qualificava” socialmente o possuidor, distinguia-o do número cada vez

maior dos que podiam possuir o livro impresso (grande número de exemplares, mais ordinário que

o manuscrito, que não existia senão em exemplar único, mesmo que dele se pudessem tirar cópias;

muitos colecionadores na época eram hostis ao livro impresso e não o admitiam em suas

bibliotecas). Entretanto, o livro impresso vinha satisfazer melhor que o manuscrito às suas

finalidades materiais e devia, forçosamente, vencer nessa luta subterrânea de prestígio – não

quanto ao valor em si mesmo, mas quanto à sua infinita capacidade de responder ao critério de

utilidade. É que o próprio livro pôde, em pouco tempo, corresponder aos desejos de diferenciação

social antes satisfeitos pelo manuscrito: melhorando a sua qualidade, o volume impresso veio a

constituir, tal como o manuscrito, um objeto de beleza, completado pela perfeição técnica.

Quando essa técnica alcançou o seu ponto mais alto de desenvolvimento, isto é, quando, de novo,

ela se pôs ao alcance de todos, o mesmo desejo de diferenciação voltou a influir, e os livros mais

caros são os feitos à mão, são os que se tiram em papel especial e em pequeno número de

exemplares, são os que trazem desenhos originais, são os que se imprimem, paradoxalmente, em

velhas prensas manuais, são, enfim, os que concorrem, por qualquer maneira, de marcar um

status. Entre os fins do século XV e os começos do XVI, a tipografia marcou definitivamente a

sua vitória: não somente aumenta o número de adeptos do livro impresso, mas, consequentemente,

verifica-se um declínio na própria arte do copista, do miniaturista. O valor do manuscrito

medieval continuou a crescer, mas agora por motivos diferentes: é hoje a sua raridade que o

determina, não mais o seu conteúdo, nem qualquer idéia de sua superioridade intrínseca sobre o

impresso. O manuscrito está agora definitivamente reduzido a mercadoria, a objeto. A tipografia

será a grande arma, a arma fundamental dessa batalha chamada “Humanismo”. O homem tinha,

enfim, encontrado o instrumento específico do seu espírito.

• Um novo mundo começa e uma encruzilhada decisiva: Assim se revelava aos olhos do homem

quatrocentista um novo mundo, que escondia e riquezas ainda mais impressionantes do que as

novas terras descobertas que surgiriam do nada pela mesma época. O homem adquire, através da

imprensa, a plena consciência de sua força espiritual e se atira ao livro como o sedento se atira na

água. As tiragens fabulosas atingidas nessa época demonstram que o livro vinha responder a uma

necessidade, necessidade obscura e inconsciente que o seu aparecimento tornou consciente e

lúcida. Por paradoxal que pareça, havia nessas populações que não conheciam o livro uma

extraordinária fome de leitura: nenhuma invenção terá surgido mais do que a imprensa no seu

momento próprio. Com efeito, é difícil explicar a coincidência que determinou o esplendor da

Renascença no momento das grandes descobertas, da introdução da pólvora e do papel na Europa

e da invenção da imprensa. Ao mesmo tempo, repugna ao espírito explicar essa simultaneidade

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como uma simples coincidência. O RENASCIMENTO – surgindo na Itália na segunda metade do

século XIV, a Renascença foi um fenômeno italiano, isto é, puramente local, até à sua introdução

na França, que lhe garantiu a universalidade e seu destino revolucionário. Suas ligações históricas

com a Idade Média não nos devem fazer esquecer que, ideologicamente, a Renascença foi uma

ruptura, foi uma revolução, a mais séria, a mais grave, a mais profunda de todas as mudanças que

se verificaram na história da cultura. É inegável que os fatores a que se deve o declínio e a

decadência da Idade Média favoreceram a expansão da Renascença. Isto não quer dizer que a

tenham criado. (crítica à concepção de que a Idade Média teria “preparado” o Renascimento).

Que a Renascença tenha surgido no seu momento próprio e tomado o lugar do grande vazio então

aberto, é fato que não encontra as suas origens, nem a sua necessidade, no anterior. A introdução

da pólvora na Europa, apressando o fim do feudalismo e o conceito medieval do heroísmo; a

aplicação crescente da bússola, revelando mundos desconhecidos e lançando uma suspeita sobre

os próprios livros sagrados, que não os haviam mencionado; o conhecimento do papel coincidindo

com a invenção da imprensa e ambos concorrendo para o aparecimento do espírito de crítica e de

livre exame – são fenômenos que determinariam, com toda a certeza, o desaparecimento da Idade

Média. Nada indica que por si mesmos, tivessem produzido a Renascença. Pensemos um pouco

no que significou a invenção da imprensa nesse momento: Se a imprensa tivesse sido descoberta

duzentos anos mais cedo ou duzentos anos mais tarde, não teria causado tanto mal à Idade

Média. Descoberta em 1300, teria impresso e divulgado a filosofia cristã e a literatura dos

séculos XI, XII e XIII; e a Antiguidade, irrompendo mais tarde, apenas teria juntado seus livros

aos que a Idade Média teria deixado...Descoberta em 1700, esgotado o primeiro fervor pela

Antiguidade, teria impresso ao mesmo tempo os livros antigos e os livros da Idade Média,

igualmente ou quase igualmente espalhados até então pelos copistas. Ela foi inventada no

momento exato em que os livros antigos, tendo, sem falar no seu incomparável valor, o prestígio

vitorioso da novidade, impunham-se a todas as atenções e monopolizavam todas as preferências,

de tal forma que durante um século quase não se imprimiu outra coisa. A partir de então, com

exceção dos livros essenciais, como a Bíblia, a Imitação e alguns outros, uma nítida separação se

estabelece: de um lado o livro antigo e o livro do século XVI, impressos, portáteis, facilmente

lisíveis, incrivelmente multiplicados; de outro lado, o livro da Idade Média, manuscrito, pouco

manejável, frágil, pouco legível e raro. Pode-se dizer que a imprensa suprimiu a Idade Média; e,

além disso, apresentando a Antiguidade e o século XVI aos olhos e aos espíritos sob as mesmas

formas, nos mesmos formatos, na mesma escrita e como que na mesma língua, exprimia e

acusava fortemente essa continuação da Antiguidade pelo século XVI, sentida mais ou menos

confusamente por todo o mundo e lançava na sombra, como se não tivesse existido, por toda a

Idade Média. Também na Renascença, propugnar por uma língua nacional era o primeiro passo

para a universalidade, era a destruição dos particularismos dialetais. Na impossibilidade de

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estender o latim ao grosso das populações, que ao menos estas últimas abrissem, através de uma

só língua nacional, janelas mais amplas para a cultura. Isso tornava mais fácil, tornava possível, a

tarefa de democratização cultural que foi a obra eminente da revolução renascentista. O “espírito

de livre exame” , sendo condição essencial de toda vida intelectual, é também um fator de

primeira importância no desenvolvimento do livro. Ele repousa na consulta pessoal, no manuseio

direto das fontes; ele pressupõe a existência da circulação dos impressos, a sua fácil obtenção, e os

multiplica, por assim dizer, por sim mesmos. Ler e não mais ouvir torna-se o gesto essencial da

inteligência; surge então a cultura, porque ler será a atividade de um número cada vez maior de

homens, e, em todo caso, atividade indistintamente acessível a todos eles. A Renascença teve, a

princípio, um sentido tão nitidamente antimedieval, que essa liberdade de leitura e de crítica só foi

empregada na luta religiosa: há um momento da história em que “Reforma” e “Humanismo” são

sinônimos, em que o liberalismo da vida espiritual só se emprega para a emancipação dos dogmas

e dos intermediários. Ou melhor: de então por diante, só um intermediário será admitido – o livro.

A civilização moderna, no que ela tem de mais característico e de mais imprescindível (porque

mesmo os seus aspectos mecânicos , tão censurados, repousam sobre o livro, sobre os

conhecimentos que o livro transmite e multiplica) – a civilização moderna nascia. E com ela

também o livro, em sua história propriamente dita.