a origem da coca pelo vício do...

21
Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 1 A origem da coca pelo vício do Inca Alexandre C. Varella 1 Resumo A coca surge, na crônica-carta de Guaman Poma de Ayala ao rei da Espanha, a partir de peculiares eventos da história do Peru. Na visão do escritor indígena e cristão (entre os sécs. XVI e XVII), a planta psicoativa aparece num passado não muito distante, por meio dos índios da montaña (as serras orientais cobertas pela selva que vem da planície amazônica), numa história de idolatria do arbusto. Mas o vício de mastigar a folha da coca é inventado pelos incas na conquista dessa região (o Antisuyo). A história de Guaman Poma pode entreter, mas também demonstra a seriedade do cronista em apontar para a relação entre os vícios mundanos com um grande pecado, a idolatria de alguns índios – mas são exceções para o fato, segundo o cronista, da verdadeira cristandade desde muito tempo na serra (nas altitudes mais temperadas), que recebe de fora o “vício de comer coca”. É interessante notar que essas histórias de Guaman Poma também indicam códigos indígenas de compreensão e manipulação dos eventos, como será discutido abaixo, com apoio, ainda, da análise da crônica de outro indígena do Peru, e contemporâneo, Santa Cruz Pachacuti. Comunicação Este texto recupera assuntos trabalhados em capítulo de minha autoria na coletânea “Drogas e cultura: novas perspectivas”, recentemente publicada. 2 O tema do “vício de comer coca”, na expressão de Guaman Poma, foi aprofundado em virtude da redação do quarto capítulo de minha dissertação de mestrado, também recentemente defendida no programa de História Social da USP, com o título “Substâncias da idolatria; as medicinas que embriagam os índios do México e Peru 1 Doutorando no Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Email: [email protected] 2 VARELLA, Alexandre C. “Os vícios de ‘comer coca’ e da ‘borracheira’ no mundo andino do cronista indígena Guaman Poma” In: LABATE et al. (orgs.), Drogas e cultura: novas perspectivas, 2008, p. 345-368.

Upload: others

Post on 16-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

1

A origem da coca pelo vício do Inca

Alexandre C. Varella1

Resumo

A coca surge, na crônica-carta de Guaman Poma de Ayala ao rei da Espanha, a

partir de peculiares eventos da história do Peru. Na visão do escritor indígena e cristão

(entre os sécs. XVI e XVII), a planta psicoativa aparece num passado não muito

distante, por meio dos índios da montaña (as serras orientais cobertas pela selva que

vem da planície amazônica), numa história de idolatria do arbusto. Mas o vício de

mastigar a folha da coca é inventado pelos incas na conquista dessa região (o

Antisuyo). A história de Guaman Poma pode entreter, mas também demonstra a

seriedade do cronista em apontar para a relação entre os vícios mundanos com um

grande pecado, a idolatria de alguns índios – mas são exceções para o fato, segundo o

cronista, da verdadeira cristandade desde muito tempo na serra (nas altitudes mais

temperadas), que recebe de fora o “vício de comer coca”. É interessante notar que

essas histórias de Guaman Poma também indicam códigos indígenas de compreensão

e manipulação dos eventos, como será discutido abaixo, com apoio, ainda, da análise

da crônica de outro indígena do Peru, e contemporâneo, Santa Cruz Pachacuti.

Comunicação

Este texto recupera assuntos trabalhados em capítulo de minha autoria na

coletânea “Drogas e cultura: novas perspectivas”, recentemente publicada.2 O tema

do “vício de comer coca”, na expressão de Guaman Poma, foi aprofundado em

virtude da redação do quarto capítulo de minha dissertação de mestrado, também

recentemente defendida no programa de História Social da USP, com o título

“Substâncias da idolatria; as medicinas que embriagam os índios do México e Peru

1 Doutorando no Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Email: [email protected] 2 VARELLA, Alexandre C. “Os vícios de ‘comer coca’ e da ‘borracheira’ no mundo andino do cronista indígena Guaman Poma” In: LABATE et al. (orgs.), Drogas e cultura: novas perspectivas, 2008, p. 345-368.

Page 2: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

2

em histórias dos séculos XVI e XVII”.3 Antes de refletir sobre a história do cronista

indígena, vejamos, com temerária brevidade, algumas peculiaridades do polêmico

autor e sua obra.4

Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

buen gobierno provavelmente entre 1580 e 1615. O cronista só pode ser conhecido ou

caracterizado praticamente através da análise de um único mas extenso documento,

seu próprio manuscrito ilustrado, que tem quase mil e duzentos fólios, dos quais

quatrocentos com gravuras, obra que só foi descoberta no início do século XX nos

recônditos da Biblioteca Real da Dinamarca.5

A obra de Guaman Poma está dividida em duas partes. A Nueva corónica

relata a história humana a partir do evento da Criação de Adão e Eva, reforça que

pós-diluvianos povoaram o Peru, e caracteriza as eras ancestrais andinas até os

tempos do governo dos incas antes da vinda dos espanhóis. Ainda na Nueva corónica,

temos o capítulo da “conquista”, na recepção a Pizarro até a conclusão da chamada

“guerra civil” entre os espanhóis conquistadores, com a vitória final das tropas fiéis

ao império dos Habsburgos com sede na Espanha. A segunda parte do tratado, o Buen

gobierno, que descreve um deprimente e violento cotidiano do vice-reino do Peru,

traz informes sócio-econômicos e dá conselhos de Estado, faz denúncias e

provocações contra indivíduos, “castas” e “nações”, etc, terminando com uma

peregrinação do próprio autor Guaman Poma rumo a Lima, para despachar sua obra

ao rei da Espanha.6

Pelos dados que oferece, Guaman Poma deve ter nascido no conturbado

contexto após a conquista de Pizarro e Almagro, e ainda jovem foi educado na língua

3 VARELLA, Alexandre C. Substâncias da idolatria; as medicinas que embriagam os índios do México e Peru em histórias dos séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestrado – FFLCH/USP, 2008. 4 Fizemos o estudo pela seguinte edição: GUAMAN POMA de AYALA, Felipe. Nueva corónica y buen gobierno, 1993. Contudo, optamos por seguir as transcrições e traduções do manuscrito original de acordo com a versão digitalizada pela seguinte edição: GUAMAN POMA de AYALA, Felipe. Nueva crónica y buen gobierno, 1987 [versão eletrônica, 2004]. Para as próximas citações utilizamos a abreviatura GP (numeração dos fólios do manuscrito pelo que o autor indicara e pela contagem nas edições atuais). Ex.: GP 950[964]. 5 Aqui não nos detemos na análise das gravuras de Guaman Poma, mas sem dúvida, o estudo iconográfico de sua obra é o que mais consome os investigadores dentro das polêmicas sobre o caráter da produção do cronista indígena e sua maneira de pensar o mundo andino. Por outro lado, o escrito alfabético do mesmo pode indicar semelhante riqueza de conteúdos e de problemas para a investigação histórica. 6 ADORNO, Rolena. Guaman Poma; writing and resistance in colonial Peru, 1986, p. 09.

Page 3: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

3

espanhola e na doutrina cristã. Deve ter tido alguma autoridade e poder como

“cacique” ou “curaca”, embora queira se arvorar como “príncipe” indígena, além de

mostrar-se como grande devoto cristão. Transitou nas esferas eclesiásticas e civis do

vice-reino do Peru, convivendo com importantes religiosos espanhóis e com a

literatura que estes acessavam. O tratado de Guaman Poma pode ser a expressão

máxima da crônica indígena e cristã que floresce nos Andes Centrais na virada do

século XVI para o XVII, e conta com outras obras importantes, como a de de Santa

Cruz Pachacuti com sua Relación de antigüedades de este reino del Perú.7 É difícil,

entretanto, classificar a natureza do manuscrito ilustrado de Guaman Poma, porque se

tem a pretensão de um tratado formal, apresenta-se também, como adverte Adorno,

enquanto mera relação de um cidadão comum.8 O texto é extremamente híbrido.

Como destaca López-Baraut, mostra-se como “carta ao rei, memorial de petições e

remédios, tratado de direito, crônica de Índias ilustrada, manual para predicadores e

livro de conselho de príncipes, aparentado com a emblemática política européia”.9

Denominar Guaman Poma como “ladino”, isto é, como indígena que fala e

conhece vernáculos do quéchua, mas também, cristão que sabe falar espanhol (e que

sabe escrever em espanhol e quéchua), é tratar de uma combinação bastante

complexa. No discurso do cronista confluem esperança e desespero de um convicto

cristão e defensor da sociedade aborígine, mas ambos rótulos, de “cristão” e de

“índio”, devem ser balizados com extrema cautela, tanto em termos políticos quanto

culturais.

Note-se que o cronista fará voz intransigente contra a “idolatria”, inclusive,

comenta ter acompanhado o juiz eclesiástico Cristobal de Albornoz em visitações na

região de Lucanas por volta de 1580, onde se encontra Huamanga, a atual Ayacucho.

Guaman Poma deve ter vivido a maior parte de sua vida nessa região, que foi o foco

de um obscuro movimento que talvez tivera caráter messiânico e extático, denunciado

pelos clérigos Albornoz e Molina – trata-se do taki onqoy ou “dança da enfermidade”,

sublevação anticristã, propugnando a volta do culto às “huacas”, as entidades da 7 SANTA CRUZ PACHACUTI, Juan. Relación de antigüedades de este reino del Perú, 1995. 8 ADORNO, op. cit., 1986, p. 09. 9 LÓPEZ-BARALT, Mercedes. Icono y conquista: Guamán Poma de Ayala, 1988, p. 271. Advirto que as citações no corpo do texto da bibliografia crítica em língua estrangeira são traduções minhas, mantendo, entretanto, outras citações nas notas de rodapé e as citações de textos de época na forma das edições consultadas.

Page 4: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

4

chamada idolatria andina.10 Enfim, se Guaman Poma combate crenças, costumes e

ritos indígenas, por outro lado, será implacável contra o inaugurador da fase da

“extirpação da idolatria” no início do século XVII, o doutor Francisco de Avila, que

Guaman Poma expõe, é prócere de uma campanha de espoliação indecente e punição

gratuita das comunidades indígenas.

Pease destaca o caráter “heterodoxo” do cronista, entre outros aspectos, no

importante tema da “conquista”. Apesar de condenar o vice-rei Toledo pela execução

do último inca em resistência e refúgio nas florestas de Vilcabamba, abraçando em

termos gerais a perspectiva de Las Casas sobre a ilegalidade e violência desmedida da

conquista, ao mesmo tempo argumenta pela ilegitimidade da dinastia incaica, uma

escolha que vai de acordo com os interesses imperiais através do vice-rei Toledo.

Lembro que Guaman Poma defende certos aspectos do governo deste importante

vice-rei, mas ataca outros, e enfim, desautoriza a conquista espanhola que teria

justificativa para cumprir a Missão cristã, ao contemplar a história da vinda de um

apóstolo de Jesus nos Andes. Enfim, o cronista considera que os mais antigos índios

eram praticamente cristãos, pelas suas obras e por terem alguma luz de conhecimento

de Deus.11

Como abordar a mentalidade do indígena Guaman Poma? Para Cabos

Fontana, deve ser questionada a visão de que a estrutura mental dele seja “selvagem”,

isto é, essencialmente indígena, no ponto mesmo da sintaxe que governa suas

compreensões do mundo, perspectiva que vem com força desde Wachtel.12 A autora

procura demonstrar a forte influência européia nas profundezas da mente de Guaman

Poma.13 Mercedes López-Baralt procura acomodar o problema das influências e

formas de pensar do índio, dentro da idéia de uma “policulturalidade”.14

Talvez possamos nos aproximar do lugar de Guaman Poma ao observar sua

apreensão do cristianismo. “Cacique prencipal”, no desejo do cronista, “que sea muy

10 Cf. MILLONES, Luis. Historia y poder en los Andes centrales (desde los orígenes al siglo XVII), 1987. 11 PEASE, Franklin. Las crónicas y los Andes, 1995, p. 278-82. 12 Cf. WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus; les indiens du Peróu devant la conquête espagnole 1530-70, 1970. 13 CABOS FONTANA, Marie-Claude. Mémoire et acculturation dans les Andes; Guaman Poma de Ayala et les influences européennes, 2000, p. 11. 14 LÓPEZ-BARALT, op. cit., 1988.

Page 5: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

5

buen cristiano que sepa latín, leer, escriuir, contar y sepa hazer peticiones ellos como

su muger y hijos y hijas”. Aí, o cristianismo é praticamente sinônimo de cultura

letrada, e enfim, instrumento para a afirmação indígena. Por outro lado, ser cristão

significa evitar ser tal qual o ordinário cristão espanhol, que tem maus costumes e

atitudes, e nem mesmo é convicto na fé em Deus. Isto não significa, contudo, que o

cacique deva evitar ser como um espanhol, em aparência e maneiras que indiquem um

status superior – vemos um sentido de aculturação, mas também, de apropriação da

cultura alheia: que o cacique, afirma o cronista, “se trate como español en el comer y

en el dormir y baxillas y haziendas” – quando essa atitude tem importância nas

relações de poder, pois que seja o cacique como espanhol “y que no le estoruen los

corregidores ni padres ni comenderos”.15 Os índios comuns, por sua vez, não

deveriam se vestir como espanhóis, e nem vice-versa. Afinal, nenhuma “casta” ou

“nação” deveria se vestir como índio, mantendo-se o ideal da segregação da parcela

indígena da sociedade vice-real.16

O código civilizacional do cristianismo parece ser manipulado para atingir a

solução nativista para o vice-reino, embora isto seja bem relativo, pois Guaman Poma

apresenta a perspectiva geral dos missionários da Igreja, que procuram, de uma forma

ou de outra, integrar as hierarquias locais ao do império espanhol. Guaman Poma é

venenoso para com os “curas e padres de doutrina”, os párocos nos povoados, mas

defende a ação das ordens franciscana, jesuíta, e de outros missionários que considera

como “santos”.17 Enquanto Adorno assevera que o cronista é “sempre inequívoco: a

favor da ordem indígena e oposto ao colonialismo”, e que foi “anti-Inca e pró-andino,

anticlerical mas pró-católico”,18 outro autor, Jorge Zapata, conclui que Guaman Poma,

ainda que manipulando as formas do discurso e visão de mundo ocidental para um ato

de resistência aos exploradores, apresenta uma obra onde “se encontram as premissas

15 GP 742 [756]. 16 “Los dichos españoles, mestisos y señoras mestisas o negras, mulato, mulatas, que no se ponga áuito de yndio ni los yndios ni yndias no se ponga áuito de español. Por con color de ello hace muy gran ofensa a Dios y no ciruen a su Magestad y no tiene obedencia ni ley. Sea grauemente castigado por las justicias” GP 539[553]. 17 GP 950[964]. 18 ADORNO, op. cit., 1986, p. 05.

Page 6: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

6

de uma estética dependentista” que assola a cultura latino-americana desde os tempos

do encontro entre os dois mundos.19

Existe a plataforma de autonomia política para os “índios principais”

governarem o vice-reino quase sem intermediários – ou melhor, essa plataforma é

para aqueles líderes que Guaman Poma considera legítimos, pois muitos curacas são

citados como embusteiros, que se apropriam dos tributos gerados pelos índios comuns

para alimentar muitos e maus costumes, como o de usar a coca na boca.

Observe-se que as reformas são concebidas em torno de um amplo programa

morigerante cristão. Tomando assento numa retórica que emerge dos topoi de “vícios

e virtudes”,20 Guaman Poma impõe-se como conselheiro do rei numa linguagem de

protesto social, procurando diagnosticar os males causados pelo “pachakuti” da

conquista espanhola: o vice-reino é fruto de um pachacuti ou “mundo ao revés”,21 e

deve ser recolocado na ordem.

A denúncia de inúmeros “vícios” é dirigida contra todas as “castas e nações”,

inclusive, em direção aos índios tributários mais humildes. A denúncia não é apenas

artifício retórico para atacar certos elementos da estrutura do poder colonial, e certas

condições sociais que resultam disso, ou para denegrir certos desafetos do cronista,

pois representa, a meu ver, muito mais, é um projeto de mudança de hábitos tidos por

errôneos segundo o militante cristão, e efusivamente, por Guaman Poma. E entre os

costumes considerados viciosos pelo cronista indígena, está o de consumir as folhas

da coca, que descreve freqüentemente como ato de “comer coca”.

Para Guaman Poma, a comunhão pode ser oferecida ao indígena apenas se

19 ZAPATA, Jorge. Guamán Poma, indigenismo y estética de la dependencia en la cultura peruana, 1989, p. 19. 20 Em Aristóteles “el topos es un lugar imaginario al cual se acude en busca de argumentos que ayuden a probar un punto o a persuadir a un público. En la filosofía moral antigua, el topos más frecuente fue el de la denuncia de vicios y la alabanza de virtudes”. As principais fontes literárias dessa retórica estão na Ética de Aristóteles (IV a.C.), em obras de Cícero, Sêneca, e ainda, na Psychomachia de Prudêncio (séc. IV), hispano-latino preferido como modelo para o esquema cristianizado de vícios e virtudes posteriormente inscrito em obras de protesto social no medievo e nos séculos XVI e XVII (LÓPEZ-BARALT, op. cit., 1988, p. 297-8). 21 “pachakuti”, uma subversão cósmica, literalmente, um “mundo ao revés”. O último desses sismos vem através dessa conquista dos espanhóis, e a reviravolta dos costumes, das atitudes, está em todos os âmbitos da vida cotidiana. Para López-Baralt, “es curioso cómo (...) se conjugan la concepción nativa milenarista de mundo cíclico con el topos europeo de mundo al revés: en ambos casos el cataclismo se anuncia con una proliferación de vicios” (Ibid., p. 302). Salomon aprimora o significado da tradução: “pacha kuti, ‘turn of space/time’” (“Testimonies: the making and reading of native South American historical sources”, 2000, p. 48).

Page 7: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

7

pede “muy cristianamente o questé en la ora de la muerte arrepentido de sus

pecados”, e complementa: que não tenha provado na vida “chicha, uino”, e ainda, que

não tenha colocado “coca en la boca”.22 “Dios nos guarde”, que “no se le puede dar

sacramento al que vome (sic) coca”.23

O fato, para Guaman Poma, é que usando a erva e a poção embriagantes, será

o índio “ydulatra y peca mortalmente y se matan entre ellos”.24 Não é possível que

comungue o pão e o vinho, corpo e sangue de Cristo, se está comungando a folha de

coca e a chicha, substâncias que se relacionam a pecados em destaque entre as

interdições do Decálogo: a idolatria e o assassínio.

Os índios que escapam das comunidades a que pertencem por laços familiares

e étnicos, são bastante mal-vistos pelo cronista, pois o fato representa a debilitação da

“república” indígena no Peru vice-real. Os índios “guagamundo”25 vivem no caminho

do mal (como bandidos e jogadores), e nesse caminho, está a bebida e a coca. Eles

“andan como animales y saluages y andan ociosos y holgasanes, peresosos”; claro

impedimento para o bom governo, não conhecem Deus, não temem a justiça, não

respeitam os caciques, não pagam tributos nem trabalham nas minas ou noutros

serviços. Ao lado dessas faltas, “sólo dan a beuer y enborrachearse y comer coca”.26

Guaman Poma, na conversa por reformas, trata de caciques que não são

obedecidos ou respeitados nem por espanhóis, nem por índios tributários, porque “no

son señor uerdadero de linagi”. Também, “ni tiene buenas obras” – são os caciques

que tanto denigre. Uma lista de vícios (da tradição medieval cristã) é feita para

caracterizar estes personagens, como preguiça, soberbia, avareza, gula e inveja.27

Mais presente ainda o vício da embriaguez e do uso da coca: “son borrachos, que

todos los días están borrachos y comen coca”.28

“Borracho y coquero”. O binômio aparece em todo momento na escrita do

Buen gobierno, serve para maldizer muitos índios, principais ou comuns. Como

22 GP 839[853]. 23 Ibid., 278[280]. 24 Ibid., 839[853]. 25 “le llama guagamundo que ellos salieron de sus pueblos por ser ladrones y salteadores y jugadores, borrachos, peresosos, comedor de coca” (Ibid., 968[986]). 26 Ibid., 872[886]. 27 Ibid., 742[756] e ss. 28 Ibid., 768[782] e 769[783].

Page 8: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

8

sobreleva Adorno, o Buen gobierno é um texto “cansativamente repetitivo”29 – e sem

dúvida, a expressão “borracho y coquero” é um dos principais elementos da viciosa

escrita do cronista.

O uso bucal da coca, que estigmatiza o índio como “coquero”, e o uso do

tabaco, principalmente pelo negro “tauaquero”, são “vícios” porque são consumidos

de forma gratuita: “aunque no lo a menester el cuerpo, lo toma”.30 Mas ao menos no

caso do tabaco, existe o elogio de suas qualidades medicinais.31 Mas a erva da coca

nunca será considerada como medicamento ou apresentando qualquer boa serventia.

Em Guaman Poma, a coca será notada, propriamente, como veneno. Será assim e de

forma exemplar, numa história contada por umas velhas, que o autor da crônica

comenta ter encontrado na sua peregrinação pelas serras andinas rumo à Ciudad de los

Reyes (Lima) para despachar seu tratado para Felipe III. O cronista coloca-se como

figura messiânica que observa as inúmeras injustiças contra os pobres índios. Nessa

caminhada de denúncias, as velhinhas que havia visto no trajeto lhe contam tenebrosa

cena, na qual “hechiceros” obrigam a adorar o “ dolo uaca” mediante um suplício.

Chicoteiam as costas do índio velho que está sentado sobre uma lhama branca, até que

seu sangue escorra pelo animal. Nesse momento, a vítima se nega a participar do

“tormento enjusto”, e para tanto, comete o suicídio. Morre pela ingestão de coca:

“tomó coca molido hecho polbo y lo tomó y se ahogó y morió con ella”.32

Este não é o único conto que mostra o teor de veneno mortal da coca. Num

momento da narrativa, Guaman Poma procura encontrar as causas da diminuição da

população indígena. O principal motivo foi a política de “reducción”, o traslado da

população nativa para novas povoações, por ordem do vice-rei Toledo, que teria

desconsiderado, segundo Guaman Poma, a previdência dos incas e de seus “sauios y

dotores, lesenciados, filósofos”, que haviam escolhido os bons sítios para multiplicar

as gentes. Agora, os deslocamentos trouxeram o contato com maus ares e más

influências astrais, causando as enfermidades mortais. Mas outra causa da

depopulação é “la borrachera, el mosto y uino, la chicha y la coca, el azogue

[mercúrio]”. Além da bebida, a coca e o mercúrio, em associação, matam os índios.

29 ADORNO, op. cit., 1986, p. 141. 30 GP 154[156]. 31 Ibid., 901[915] e 826[840]. 32 GP 1111[1121].

Page 9: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

9

Devendo se referir ao trabalho nas minas, Guaman Poma adverte que “teniendo en la

boca todo el día [a coca], traga el polbo con la coca. Y ací en el corasó[n] se detiene

este polbo y la coca y ancí muere azogado”.33 Ou seja, a morte é causada pela

presença, no órgão vital, tanto da substância do mercúrio como da coca.

Quando o índio está “borracho y gran comelón de coca”, aparecem diversos

problemas no corpo: sempre “hecho cuero”; ou com “buena barriga”; “cría gran

cuerpo y gran cabesa”; ou “barriga chupada, hecha como tabla”.34 O cronista vê

disparatados resultados, porém, a causa dos males é bem exata: a chicha (ou vinho) e

a coca.

Em resumo, o uso da erva, delimitado como hábito desviante, porque não é

para o proveito medicinal ou alimentar, também é tido por costume obsedante, e além

do mais, manifesta a intrusão de substância venenosa, que traz enfermidade ou má

disposição. Além disso tudo, o vício da coca, bem como o da bebida, reportam à

animalidade, a um estado inferior do “racional” humano. O costume de mascar coca é

vexado como ato de ruminação: “comer coca, yerua como cauallo”.35

O vício da bebida ou a “borrachera”, e de “comer coca”, são rapidamente

associados à idolatria. Ao “emborracharse y comer coca” os caciques “mochan

[reverenciam] guacas dolos, y con los demonios, estando borracho, se buelbe en su

antigua ley”.36 Guaman Poma está se referindo aos “dichos” caciques, ou seja,

àqueles que fingiriam ser autoridades locais.

Guaman Poma aponta que os antigos “hechiceros” dos tempos dos incas

adoravam as grutas onde dormem de passo, deixando coca e milho mascados

emplastados nas paredes. Guaman Poma expõe, inclusive, a expressão que utilizam

nesse hábito idolátrico.37 Como teria o cronista aprendido a fala que anuncia no texto?

33 Ibid., 951[965]. 34 Ibid., 797[811]. 35 Ibid., 774[788]. Importante ressaltar que “comer coca”, expressão corrente no relato do cronista, não é apropriada para definir o ato de mascar as folhas do arbusto, pois a pasta que se forma das folhas em contato com um preparado alcalino conhecido como lejía ou llipta, é acumulado entre a gengiva e a parede bucal e cuspida eventualmente, embora libere o suco psicoativo que é ingerido, e absorvido pela mucosa bucal. 36 Ibid., 774[788]. 37 “Machay mama, ama micuuanquicho allilla punochiuay” é a expressão que Guaman Poma traduz como “Cueua, no me comáys. Hasme dormir bien y guárdame esta noche”. Os editores traduzem a expressão de forma mais completa: “Madre cueva, no me comas; hazme dormir bien” (Ibid., 276[278]).

Page 10: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

10

Enquanto indica que o costume é particular dos “pontífices” do inca, também

contempla uma maior abrangência do hábito: “hasta este tienpo lo uzan los yndios”.38

Além da declarada participação de Guaman Poma na campanha do

“extirpador” Albornoz, que lhe dá justificativa para o conhecimento de alguns rituais,

parece haver convivência conflituosa com os costumes locais, ou conflito com gente

que pratica tais costumes, pois o cronista se queixa que é perseguido por praticantes

de certas cerimônias.39 Também, o cronista índio deve ter absorvido a tradição oral

nativa, como aponta Adorno.40

Num dos relatos de Guaman Poma, a coca serve como ingrediente numa

receita dos “pontífises hichezeros” dos incas. Junto com outras substâncias, como

massa de milho com sangue (sanco), penas, prata e ouro, queimavam a coca dentro de

uma panela. Daí “hablan” os “demonios del ynfierno”, para o “hechicero” saber das

coisas que se passam no mundo.41 Se Guaman Poma demoniza o ritual do oráculo, o

costume de adivinhar pela fumaça gerada num preparado com coca, era algo

recorrente, como destaca MacCormack, aparecendo em outros informes, como dos

religiosos agostinhos de meados do século XVI, quando “a fumaça da coca se eleva

em direção ao Criador Ataguju”.42

Guaman Poma interpreta qualquer rito ou hábito com coca como feitiçaria. O

uso da coca não é percebido pelo cronista como antigo hábito nos Andes, mas sim,

como excrescência de um período recente na história andina, quando surge a idolatria.

Os maus usos de ervas e poções têm uma história, têm origem num passado de

degeneração da humanidade – e da parcela andina dessa humanidade.

Concentremos o foco de análise na primeira parte do manuscrito de Guaman

Poma, a Nueva corónica. Na visão do tempo expressa nesse texto, a humanidade

passa por várias “idades”, o que recompõe uma tradição teleológica já inscrita na

profecia hebréia do Livro de Daniel, perspectiva comum nos séculos XVI e XVII.

Mas também, na ótica do cronista índio, como ainda sugere Salomon, as idades, elas

se sucedem a partir de cataclismas, os “pachacutis”, como já comentado, e que podem 38 Ibid., 276[278]. 39 Ibid. 40 ADORNO, op. cit., 1986, p. 16 e 47. 41 Ibid., 278[280]. 42 MacCORMACK, Sabine. Religion in the Andes; vision and imagination in early colonial Peru, 1991, p. 303.

Page 11: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

11

representar visões locais, tradições das elites nativas por conceber a história andina.43

Embora na crônica de Guaman Poma apareçam sentidos de degeneração moral ou

social na sucessão das quatro eras andinas, o traçado geral aponta para uma saudosa

época de bonança e retitude.44

Na visão de Guaman Poma, no passado longínquo havia uma cristandade

informal, mas verdadeira dos antigos, que superaria o estágio formal, mas vazio de

sentido, da cristandade atual no vice-reino: “cómo los yndios antigos fueron mucho

más cristianos. Aunque eran ynfieles, guardaron los mandamientos de Dios y las

buenas obras de misericordia”.45 Guaman Poma ainda empurra a detestada idolatria

como evento excepcional, ela surge na dinastia dos incas. Guaman Poma produz uma

relativa disputa contra os incas usurpadores do governo da legítima e ancestral

dinastia que teria governado o Peru, a linhagem “Yarovilca”, da qual se diz herdeiro.

Santa Cruz Pachacuti, também cronista indígena e contemporâneo de Guaman Poma,

como herdeiro dos senhores “collaga” (cultura aimará), mantém-se mais vacilante

ainda na relação dos incas com o pecado da idolatria – alguns incas seriam contrários

e outros mais acomodados com a idolatria.46 Se ambos cronistas pertenceram a etnias

ou linhagens que foram subjugadas pelos incas de Cuzco, eles também mantêm visões

de admiração da lei incaica.47 Lembremos que muitas idéias de Guaman Poma por um

“bom governo” se espelham em sua visão do domínio inca, inclusive no que diz

respeito ao controle da embriaguez, que seria bem administrada pela ação punitiva

dos incas. Mas esta é outra peculiar história...

Enfim, ao lado da admiração do governo incaico, Guaman Poma colocou o

nascimento da “idolatria”, que é o poder do diabo, justamente como conspiração dos 43 SALOMON, op. cit., 2000, p. 48. 44 MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 317. 45 GP 858[872]. 46 O manuscrito de Santa Cruz Pachacuti foi encontrado junto aos papéis do “extirpador” Dr. Francisco de Avila, o mesmo que coletou a crônica de Huarochirí no início da década de 1610. A data aproximada do texto de Santa Cruz Pachacuti é de 1613 (MILLONES, Luis. Los dioses de Santa Cruz, s.d., p. 03). Como aponta Millones: “Los elementos de su propuesta están perfectamente balanceados en el relato, así por ejemplo, a cada desliz de los Incas en su culto al Supremo Hacedor, corresponde el auge de las guacas (siempre equiparadas al demonio), a lo que sigue inmediatamente, una catástrofe personal o política del soberano pecador. En otras palabras, por encima de sus limitaciones, la crónica fue planeada como una argumentación en favor de las virtudes del cristianismo, cuya antesala sería el descubrimiento del Creador, límite al que, por razonamiento natural, podía alcanzar el pueblo de los Andes” (p. 06). 47 A respeito das semelhanças e diferenças entre as visões de Santa Cruz Pachacuti e Guaman Poma quanto à história dos incas e sua religião, cf. MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 320 e ss.

Page 12: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

12

incas de Cuzco, uma dinastia desviada dos antigos senhores de mesma dignitária

nomenclatura. Mas os últimos doze incas, vistos como usurpadores, são ramos de um

enxerto incestuoso que manchara a originária dinastia que foi sucessora natural dos

diluvianos e das quatro eras de gente andina, que tinha entendimento de Deus e obra

de cristão. Enfim, o despencar veio com Mama Uaco, que na visão de Guaman Poma,

teria sido a mãe e a própria esposa do primeiro inca idólatra, Manco Cápac.48 A nova

dinastia inca criara a idolatria por meio de uma “hechicera” que consumara grave

pecado antinatural (o incesto), escurecendo toda a descendência.49

Para Adorno, a história de Mama Uaco e Manco Cápac incorpora o mito do

pecado original.50 Cabos Fontana destaca como a intervenção do demônio se

manifesta, numa gravura, pela “forma de uma serpente e por meio de uma mulher, tal

como na Bíblia”.51 Além do mais, note-se que Mama Uaco encaixa-se no estereótipo

da feminina bruxaria, que condensa a grande conspiração diabólica desde fins da

época medieval.

Será justamente no meio da história dessa linhagem torta dos incas que surge o

vício de mascar a coca. O costume, desde o pioneiro relato do soldado Cieza de León,

poderia ter justificativa trivial: “preguntando a algunos indios por qué causa traen

siempre ocupada la boca con aquesta hierba [da coca] (la cual no comen ni hacen

más de traerla en los dientes), dicen que sienten poco la hambre que se hallan en

gran vigor y fuerza”.52 Las Casas, na Apologética historia, insistira pelo mesmo

princípio de simples hábito por um proveito “natural”, ainda que o costume fosse

“bárbaro”, mas apenas no sentido de que era estranho para o europeu.53 Outro autor

paradigmático, o jesuíta Acosta, embora notasse destinações idolátricas, e bastante

superstição em torno da planta, também aponta para o excepcional mas natural poder

48 GP 80[80]. 49 Note-se que Santa Cruz Pachacuti, embora confirme uma história de incesto, assevera que se trata de um casamento entre irmãos. Mas o ato teria uma boa justificativa, apesar de ser tabu para a cultura cristã. O resultado não foi a desgraça da linhagem, foi para seu bem e do “buen gobierno” nos Andes: “Este casamiento lo hizo por no haber hallado su igual, lo uno [Manco cápac]. Y por no perder la casta. A los demás no les consintieron por ningún modo, que antes lo prohibieron. Y comenzó a poner leyes morales para el buen gobierno de su gente, conquistando a los desobedientes” (SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 19). 50 ADORNO, op. cit., 1986, p. 75. 51 CABOS FONTANA, op. cit., 2000, p. 35. 52 CIEZA de LEÓN, Pedro de. La crónica del Perú, 1962, p. 249. 53 LAS CASAS, Bartolomé de. Apologetica historia sumaria, 1992.

Page 13: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

13

estimulante da coca.54 Guaman Poma, embora fortemente influenciado pelo

pensamento do dominicano e do jesuíta em muitos aspectos, nunca teve qualquer

tolerância com relação ao costume de colocar a folha da coca na boca, desmerecendo

qualquer serventia ao hábito: “no lo dexan el uicio y mal custumbre cin prouecho,

porque quien lo toma lo tiene sólo en la boca ni traga ni lo come”.55 Vimos que a

substância será puro veneno para Guaman Poma, e o costume de mascá-la terá apenas

sentido pejorativo, como asqueroso vício de embriaguez. Também será substância da

idolatria: “todos los que comen coca son hicheseros que hablan con los demonios,

estando borracho o no lo estando y se tornan locos lo que comen coca”.56

Guaman Poma terá ainda ocasião de contemplar perfeita união entre usos

idolátricos e o costume de mascar a erva, quando descreve os “ídolo[s] i uacas de los

Andi Suyos”. Nesse relato, o autor reflete sobre o culto ao “otorongo” [onça], no qual

se dedicavam os povos da “montaña”, isto é, aqueles que vivem nos contrafortes

orientais das serras andinas que submergem na densa floresta amazônica. Lá, segundo

o cronista, sacrificavam gordura de cobra queimada, milho, coca e penachos de

pássaros silvestres aos “otorongos”. Além do mais, também adoravam o arbusto da

coca.57 Chamam a folha de “coca mama y lo bezen”. Da adoração ao consumo: “luego

lo mete en la boca”.58

Estas manifestações de uso da coca, vinculadas ao “culto do jaguar”, se acaso

aparentam ser autóctones da “montaña”, contraditoriamente, refletiriam costumes fora

de lugar. Vejamos: foi o “filho” ou “capitão”59 do sexto inca (inca Roca), quem

conquistou “Ande Suyo, Chuncho, toda la montaña”. Para tal proeza de guerreiros, os

incas se tornam onças. Guaman Poma ainda comenta que devido a este artifício –

“dizen” – o “Ynga” impõe o culto ao animal para os índios da selvática região do

Antisuyo.60 Ou seja, o culto ao jaguar não seria nativo da “montaña”, mas importado

54 ACOSTA, Joseph de. Historia natural y moral de las Indias, 1962. 55 GP 154[56]. 56 Ibid., 278[280]. 57 “Acimismo adoran los árboles de la coca que comen ellos y ací les llaman coca mama” (Ibid., 269[71]. 58 Ibid. 59 Pease propõe que as histórias dos “capitães”, às vezes chamados de “filhos” dos incas, podem representar biografias dos “incas urin”, pois na estrutura de poder teria havido uma diarquia hanan/hurin dos grandes senhores andinos (op. cit., 1995, p. 279). 60 GP 269[71].

Page 14: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

14

desde a conquista pelos bravos incas “onças”.

“El sesto capitán, otorongo achachi apo camac inga / Ande Suyo /” (gravura digitalizada a partir da edição:

GUAMAN POMA de AYALA, Nueva crónica y buen gobierno, 1987, fl. 155 [155])

O costume de “comer coca” também aparece como responsabilidade dos incas

durante o evento da conquista da “montaña”: a coca, “lo comieron y ací se enseñaron

los demás yndios en este reyno”.61 O costume de mastigar a coca aparece

repentinamente. A conquista do inca impõe o culto ao jaguar entre os índios da selva e

também inaugura o costume de mastigar a coca entre os serranos. Numa passagem da

narrativa, Guaman Poma parece até se esquecer dessa história e imputa a invenção do

costume de “comer coca” ao último inca antes da vinda dos espanhóis, Huayna

Cápac, tornando mais recente ainda o surgimento do vício.62 Mas o uso pan-andino da

61 Ibid., 154[56]. Cf. fólio 103[103]. 62 Advirta-se que Guaman Poma, numa passagem de seus repetitivos mas às vezes contraditórios pareceres, transfere para Huayna Cápac o surgir do costume: “cómo el Ynga enuentó y les enseñó a comer coca. Juntamente le enseñó con la ydúlatra y dizen que le sustenta, no creo” (GP 332[334]).

Page 15: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

15

coca perde-se na dimensão do tempo arqueológico, independente da questão do

cultivo da coca ter guarida, e muito provavelmente, sua origem na região andina

oriental de selva tropical, tal como Guaman Poma ambienta sua história.63

Na versão desse cronista, o costume de mascar coca surge, portanto, através

dos líderes guerreiros que apresentam também a marca de hechiceros, não só porque

se transformam em jaguares.64 O “filho” do inca Roca ainda “hablaua con trueno”.65

Estes relatos podem ser sinais daquilo que atualmente se interpreta como práticas

xamânicas em uso de plantas psicoativas.

O cronista índio contemporâneo de Guaman Poma, Santa Cruz Pachacuti,

também relata uma origem recente de costume com a coca. Os dois escritores, na

opinião de Salomon, além de apresentarem “aspirações andinas reconcebidas no

disfarce da história teleológica renascentista” oferecem a ocasião “de escrever imensa

quantidade do que aparenta ser memória transmitida oralmente”.66 Assim, talvez

estejamos diante de tradições orais sobre origens de uso da coca – ou melhor, diante

de relatos reformulados por estes índios ladinos, devido a suas intenções, numa

retórica bem cristã e de denúncia da idolatria.

A coca, em Santa Cruz Pachacuti, surge num relato em torno das apachitas,

63 Se a relação entre a conquista do Antisuyo e o surgimento do costume de mascar a coca entre os incas apresenta certa coerência ou plausibilidade, se notamos que os relatos apresentam a coca como iguaria restrita aos líderes governantes pré-hispânicos, por outro lado, através de achados arqueológicos como cerâmicas com formas que aludem a bolas de coca entre as gengivas e a membrana bucal, de utensílios relacionados com o uso da planta, tal como as chuspas, que são bolsas para carregar folhas de coca (e utilizadas até hoje), percebe-se quão remoto no tempo é o costume de mascá-la, e em várias partes dos Andes Centrais (HENMAN, Anthony. Mama Coca; un estudio completo de la coca, 2005, p. 89-90). De outro lado, o mais provável é que a coca tenha se originado de fato nas selvas que margeiam o lado oriental dos altiplanos andinos, como Guaman Poma faz bem considerar – ainda que haja polêmica a respeito da história da domesticação e das adaptações ecológicas que propiciaram o surgimento de variedades genéticas desde a região do litoral norte peruano até o oeste da bacia amazônica (ibid., p. 93-95). 64 Instigante associação que faz Guaman Poma entre a coca e o líder que se transforma em jaguar. Há vários trabalhos históricos e etnográficos que debatem o assunto do consumo de alucinógenos por “xamãs” que se transformam em onça, situação que poderia ser interpretada como metáfora da alteração da consciência, um “êxtase” dos guerreiros (Cf. REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el jaguar; estudio de Ias drogas narcóticas entre los Indios de Colombia, 1978). 65 GP 103[103]. Lembremos da relação entre os incas e Illapa, a entidade relacionada ao trovão e outras manifestações climáticas. Através de avaliação de alguns pesquisadores, MacCormack realça que “the lightning (...) articulated (...) Inca’s central position in the cosmic order (...) as expressed in nature and as replicated in politics and ritual. (...) Inca Roca’s mummy, the illapa on the ground (...) called forth the illapa in the sky. Lightning and the accompanying atmospheric phenomena, rain, hail, storms, whirlwinds, and the rainbow, represented cosmic forces of meteorological imbalance and war” (MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 292). 66 SALOMON, op. cit., 2000, p. 48.

Page 16: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

16

montes de pedra construídos nos caminhos, encruzilhadas, cimas de montanhas. Os

índios tratam de deixar a massa de coca mascada como oferenda nesses amontoados

de pedra. Teria sido no governo do segundo inca, Sinchi Roca, a inauguração do

“rito” de deixar pedras e coca em peculiares paragens. Segundo Santa Cruz Pachacuti,

como o governante Sinchi Roca não era afeito às coisas da guerra, mandava os

capitães e sua gente para as frentes de batalha, quando, certa vez, aparece um “indio

encantador” entre os guerreiros de Sinchi Roca, os quais deixavam “en cada

quebrada (...) piedras para hacer fortalezas”. Este “encantador” sugere que chamem

de “apachitas” aos montões de pedra,

y les puso un rito (...) le había dicho el encantador al capitán del inca que todos los soldados echasen cocahachos (cocas mascadas) al cerro por donde pasaren (...) Y muchas veces aconteció que los apachitas o cerros (y dentro de ellas) les respondían: ‘¡En hora buena!’. Con esto fueron creídos por aquella pobre gente de los tiempos pasados.67

Pode-se notar alguns paralelos importantes entre essas histórias de Guaman

Poma e de Santa Cruz Pachacuti. Claramente, a planta da coca aparece em meio a

eventos considerados idolátricos: o “culto ao jaguar” e a “oferenda” nas apachitas.

Também, por serem idolátricos, tais costumes vêm (naturalmente) pela iniciativa de

hechiceros. Podem entrar no estereótipo de “hechiceros” tanto os incas guerreiros da

história de Guaman Poma que se tornam onças, como o encantador que atravessa o

caminho dos guerreiros do inca, na história de Santa Cruz Pachacuti.

Em ambas crônicas, por fim, os costumes com a coca têm origem dentro da

história da linhagem dos incas. Se os personagens dinásticos são diferentes, têm

bastante similitude quanto a um aspecto fulcral: tais lideranças, o inca Roca e seu

capitão (sextos na linhagem dos incas, para Guaman Poma), e Sinchi Roca (segundo

inca na linhagem, para Santa Cruz Pachacuti), apresentam alguns desvios morais que

denigrem fatalmente suas notáveis figuras. O inca Roca de Guaman Poma é “gran

xugador [jogador] y putaniero, amigo de quitar hazienda de los pobres”,68 além, é

claro, de iniciar o vício de “coquero”. O Sinchi Roca de Santa Cruz Pachacuti, por sua

67 SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 23. Comentários entre parênteses são acréscimos do editor. 68 GP 103[103].

Page 17: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

17

vez, é um dos incas mal-vistos pelo cronista, um daqueles que comete pecados e é

conivente com a idolatria. Pois “este desventurado sinchi Roca dicen que siempre

entendió en regalarse (...) en las fornicaciones”. O filho dele (Lloque Yupanqui), por

outro lado, “muy ayunador (...) había prohibido las fornicaciones y las

borracheras”,69 enquanto que o pai (Manco Cápac, o primeiro inca), elegera bons

homens para conhecer “el hacedor del cielo y tierra” – esta expressão acomoda

alguma idéia de paralelo entre a entidade Pachacámac com o deus dos cristãos. O

primeiro inca montou um grupo de sábios “porque había visto y hallado la poca

devoción de su hijo sinchi Roca”.70 Este Sinchi Roca não entendia que as relações

com as huacas “eran cosas del Enemigo antiguo”, ou seja, do demônio, e foi, afinal,

no reinado deste inca que “habían comenzado a sacrificar con sangre humana y con

corderos blancos y conejos, cocas y mollos y con sebo y sanco”.71 Nesta última

citação (pelo signo do sacrifício), há o surgimento da idolatria dentro do período da

dinastia dos incas, um paralelo com Guaman Poma, como se estes dois escritores

pertencessem a uma política comum de cristãos ladinos, retirando a chamada idolatria

do seio da cultura indígena e colocando-a como invento de alguns poucos pecadores.

Se para Santa Cruz Pachacuti certos incas são contrários à idolatria, e retos,

para Guaman Poma, toda a linhagem incaica, a partir de Manco Cápac, é idólatra e

receptora dos vícios. Este último cronista, na descrição das figuras dinásticas, associa

alguns pecados ao ato de usar a coca. O inca Huáscar é pintado por Guaman Poma

sempre como um ser fraco e detestável. Ademais, “de puro auariento comía media

noche y por la mañana manecía con la coca en la boca”.72 O cronista relaciona

69 SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 29-31. 70 Ibid., p. 27. 71 Ibid., p. 29. 72 GP 143[143]. Forte indício de aproximação entre os cronistas índios Guaman Poma e Santa Cruz Pachacuti, em termos de tradição oral compartilhada, está no relato sobre a humilhação que sofrera este inca Huáscar antes de ser executado pelo inca Atahualpa, em relato sobre o uso da coca. Expliquemos, antes de tudo, que Huáscar foi vencido por Atahualpa na guerra pela sucessão dinástica do senhorio dos incas, enquanto Pizarro com seus quase duzentos homens, invadia o Peru em 1532. Os espanhóis logo seqüestram Atahualpa no primeiro encontro em Cajamarca. Mesmo assim, Atahualpa mandou matar seu meio irmão Huáscar, que havia sido preso por seus homens em Cuzco, pois temia que Huáscar assumisse o poder enquanto estava nas mãos dos espanhóis – mas logo em seguida, Atahualpa também seria executado pelos conquistadores. Enfim, durante o episódio da execução de Huáscar pelo “ermano uastardo Atagualpa Ynga”, segundo Guaman Poma, ocorrem muitas humilhações, tais como: “por chicha le dieron de ueuer meados de carnero y de personas. Y por coca le presentaron petaquillas de hoja de chillca [um mato] y por llipta [cinza para mascar a coca] le dieron suciedad de persona majado” (116[116]). Na versão de Santa Cruz Pachacuti, a tortura se dá de maneira bem parecida: “Al

Page 18: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

18

diretamente o consumo da coca à gula da coya [senhora, mulher] do oitavo inca:

“comía muchos manjares y más comía coca por uicio; dormiendo tenía en la boca”.73

A coca está imersa na saca de idolatrias e maus costumes. Quanto às eras

anteriores à sinistra saga idolátrica dos incas, não há sinal de uso das folhas ou do pó

de coca. E se nos tempos do vice-reino do Peru, muitos índios, de principais a

tributários, são caracterizados como “coqueros”, é porque adotaram o vício pelo

exemplo dos incas, os quais, como pondera Henman, se optaram por segregar e

controlar o uso da substância para a elite e para eventos e ritos especiais, isto não

apaga uma antiqüíssima cultura do uso da coca na enorme extensão das serras

andinas, e enfim, o relativo domínio dos incas durante um curto período da história

pré-hispânica não pôde ter impedido o uso da coca por diversas etnias andinas.74

Entrementes, é interessante notar que para Guaman Poma a coca não deveria

ser eliminada das plantações. O cronista faz uma pergunta para si mesmo, no pretenso

diálogo com o rei da Espanha, como se, ainda que de tão longe, estivesse D. Felipe III

realmente pedindo os conselhos e ouvindo atentamente D. Felipe Guaman Poma de

Ayala:

Dime, autor, ¿cómo se hará rrico los yndios? A de sauer vuestra Magestad que an de tener hazienda de comunidad que ellos les llama sapci, de sementeras de ma s y trigo, papas, agí, magno [verdura seca], algodón, uiña, obrage [oficina], teñiría, coca, frutales...75

Surpreende que justamente a coca, planta sempre maldita no discurso do

escritor, agora, em franco conselho ao rei, deva ter “aumentación” na comunidade dos

índios.76 Se a retórica de Guaman Poma fecha o caminho do consumo da coca em

forte tom de extirpação do vício, o juízo final livraria a substância da eterna danação.

Lembremos que a coca já propiciava, desde meados do século XVI, grandes

lucros aos que controlavam as plantações e o transporte para abastecer os índios

fin, con la lanza le atraviesan los gaznates y le dan de beber orines. Y en lugar de coca un poco de chilca (o sus hojas)” (SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 125). 73 GP 135[135]. 74 Cf. HENMAN, op. cit., 2005. 75 GP 963[977]. Segundo Adorno, o esquema de perguntas e respostas que se inscreve na parte final da obra, quando Guaman Poma se posiciona abertamente como conselheiro do rei, “mimics the formula of the relación typified in the Relaciones geográficas de Indias (1586)” (op. cit., 1986, p. 07). 76 Ibid., 892[906].

Page 19: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

19

mineiros, pois era excelente estimulante e também servia para anestesiar as agruras do

labor inumano. Por isso que a condenação moral da coca como instrumento da

idolatria indígena, já pronunciada com tanta energia desde o Primeiro Conselho

Eclesiástico de Lima, em 1551, não coibira a proliferação dos cultivos e nem frearia a

intensificação do consumo. Independente do juízo sobre a coca, o que parece ter sido

regra geral é a demanda movendo, sem cessar, a história de consumo da substância.

Guaman Poma, rendendo-se a este caminho irresistível, procura ao menos reverter o

sentido da exploração da erva, em projeto de “bom governo” indígena.

Mas as chácaras de cultivo da erva serviriam para promover o “vício” de

“comer coca”? Interroguemos Guaman Poma: a idéia é que os índios vendessem a

coca para a “mala casta”?77 A coca é para os perversos negros?

Sem deixar para Guaman Poma a resposta que já não pode nos oferecer,

especulemos que a coca deveria ser consumida, principalmente, pelos espanhóis,

pelos detestáveis encomenderos, corregidores, e muitos curas que desgraçariam a

comunidade indígena no vice-reino do Peru.

77 Guaman Poma denomina de “mala casta” aos mestiços no vice-reino do Peru.

Page 20: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

20

“Ortelano, Pachacacvna [hortelanos] / ‘Cayllata acullicuy, pana’. [‘Hermana, masca esta coca.’] / ‘Apomoy, tura’ [‘Tráela, hermano.’] / coquero /”

(Versão de W. R. Pitta Jr. da gravura digitalizada na edição: Guaman Poma, Nueva crónica y buen gobierno, 1987, fl. 862 [876])

Referências bibliográficas

ACOSTA, Joseph de. Historia natural y moral de las Indias. Edición de Edmundo

O’Gorman. México: Fondo de Cultura Económica, 1962.

ADORNO, Rolena. Guaman Poma; writing and resistance in colonial Peru. Austin:

University of Texas Press, 1986.

CABOS FONTANA, Marie-Claude. Mémoire et acculturation dans les Andes;

Guaman Poma de Ayala et les influences européennes. Paris: L’Harmattan, 2000.

CIEZA de LEÓN, Pedro de. La crónica del Perú. Madri: Espasa/Calpe, 1962.

GUAMAN POMA de AYALA, Felipe. Nueva corónica y buen gobierno. Edición de

Franklin Pease G. Y. / Vocabulario y traducciones de Jan Szemi ski (tomos I, II e

III). México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

__________. Nueva crónica y buen gobierno. Edición de John Murra, Rolena Adorno

e Jorge Urioste. Madri: História-16, 1987 – versão digitalizada www.kb.dk [2004].

HENMAN, Anthony. Mama Coca; un estudio completo de la coca. Lima: Juan

Gutemberg, 2005.

LAS CASAS, Fray Bartolomé de. Apologetica historia sumaria. Edición de Vidal

Abril Castelló, Jesús A. Barreda, Berta Ares Queija y Miguel J. Abril Stoffels

(tomos I, II e III). Madrid: Alianza Editorial, 1992.

LÓPEZ-BARALT, Mercedes. Icono y conquista: Guamán Poma de Ayala. Madrid:

Hiperión, 1988.

MacCORMACK, Sabine. Religion in the Andes; vision and imagination in early

colonial Peru. Princeton: Princeton University Press, 1991.

MILLONES, Luis. Historia y poder en los Andes centrales (desde los orígenes al

siglo XVII). Madrid: Alianza Editorial, 1987.

__________. Los dioses de Santa Cruz; comentarios a la crónica de Juan de Santa

Page 21: A origem da coca pelo vício do Incapaineira.usp.br/cema/images/ProducaoCEMA/AlexandreCameravarell… · Guaman Poma nasceu após a conquista do Peru e produz a Nueva corónica y

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

21

Cruz Pachacuti Yamqui. Lima: Pontifícia Universidad Catolica del Perú, s.d.

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: Pontifícia Universidad

Catolica del Perú; Fondo de Cultura Económica, 1995.

REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el jaguar; estudio de Ias drogas narcóticas

entre los Indios de Colombia. México: Siglo XXI, 1978.

SALOMON, Frank. “Testimonies: the making and reading of native South American

historical sources” In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart B. (ed.) The

Cambridge History of the native peoples of the Americas. Volume III: South

America (part 1). Cambridge: Cambridge University Press, 2000, pp. 19-95.

SANTA CRUZ PACHACUTI, Juan. Relación de antigüedades de este reino del

Perú. Edición de Carlos Araníbar. Lima: Fondo de Cultura Económica, 1995.

VARELLA, Alexandre C. “Os vícios de comer coca e da borracheira no mundo

andino do cronista indígena Guaman Poma” In: LABATE et al. (orgs.). Drogas e

cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008, p. 345-368.

__________. Substâncias da idolatria; as medicinas que embriagam os índios do

México e Peru em histórias dos séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestrado –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2008.

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus; les indiens du Peróu devant la conquête

espagnole 1530-70. Paris: Gallimard, 1970.

ZAPATA, Jorge. Guamán Poma, indigenismo y estética de la dependencia en la

cultura peruana. Minneapolis: Institute for the Study of Ideologies and Literatures,

1989.