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  • Nmero 14 maio/junho/julho - 2008 Salvador Bahia Brasil - ISSN 1981-1861 -

    A ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E OS LIMITES ATUAO ESTATAL NO CONTROLE DE PREOS

    Prof. Lus Roberto Barroso Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do estado e advogado no Rio de Janeiro.

    Sumrio: I. Nota prvia. Parte I. CONSTITUIO, ORDEM ECONMICA E INTERVENO ESTATAL. II. Fundamentos da ordem econmica: livre iniciativa e valorizao do trabalho humano. III. Princpios da ordem econmica. III.1. Princpios de funcionamento; III.2. Princpios-fins. IV. Agentes da ordem econmica. IV.1. Papel do Estado na ordem econmica; IV.2. Papel da iniciativa privada na ordem econmica. V. Interveno estatal na ordem econmica: disciplina. V.1. Modalidades de interveno estatal na ordem econmica; V.2. Limites e fundamentos legtimos da interveno disciplinadora; a) Limites da disciplina; b) Fundamentos da disciplina. Parte II. LIMITES CONSTITUCIONAIS DISCIPLINA DE PREOS POR PARTE DO ESTADO. VI. Competncia estatal em matria de preos privados. VI.1. A livre fixao de preos elemento fundamental da livre iniciativa. O controle prvio de preos como poltica pblica regular viola princpio constitucional; VI.2. Somente em situao de anormalidade do mercado, ausentes as condies regulares de livre concorrncia, o princpio da livre iniciativa poder sofrer ponderao para admitir o controle prvio de preos; VI.3. Pressupostos constitucionais para o controle prvio de preos. VII. Concluso.

    I. NOTA PRVIA

    (a) O estudo que se segue encontra-se dividido em duas partes. Na parte I, procura-se delinear doutrinariamente o papel econmico do Estado e seus limites legtimos. Na parte II, desenvolve-se o estudo das possibilidades e limites da ao estatal no que diz respeito a preos privados em geral. Doze anos aps a reconstitucionalizao, estes temas ainda suscitam perplexidades diversas e no foram pacificados na doutrina, na jurisprudncia e na prtica dos Poderes pblicos.

    (b) Doutrinadores eminentes sustentam o ponto de vista de que,

    no Brasil, aps a Constituio de 1988, no mais seria legtimo qualquer tipo de

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    atuao estatal no controle de preos, vista do princpio da livre concorrncia1. H um conjunto bem articulado de argumentos em favor dessa tese, sem embargo de existir pronunciamento jurisprudencial relevante em sentido diverso2. Cabe-me declinar, por dever de honestidade cientfica, que no esta a minha convico, consoante externei em artigo doutrinrio escrito ainda em 19933.

    De fato, no tendo o princpio carter absoluto, pode haver situaes excepcionais de interveno estatal legtima em matria de preos. Esta possibilidade, eventual e drstica, no se confunde com a idia que tem ganho curso em certos segmentos governamentais: a de que a livre iniciativa, deciso poltica fundamental do constituinte de 1988, deva ceder passo diante de todos os demais bens em alguma medida valorados pela Constituio. Ou pior: deve submeter-se s decises circunstanciais da convenincia poltica.

    A questo complexa e ser objeto de apreciao analtica, em um esforo para delimitar o espao prprio de irradiao de cada um dos princpios relevantes, bem como dos parmetros dentro dos quais os juzos de ponderao devero operar. A trajetria delineada inclui a anlise de aspectos jurdico-constitucionais da ordem econmica e do papel reservado iniciativa privada e ao Estado, com nfase nos fundamentos e limites da interveno disciplinadora do Poder Pblico sobre a atuao privada.

    1 Essa a posio, dentre outros autores, de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Ordem econmica e desenvolvimento na Constituio de 1988, 1989, p. 69/70; Celso Ribeiro Bastos, Comentrios Constituio do Brasil, 1990, p. 16/17; Miguel Reale Jnior, Casos de direito constitucional, 1992, p. 18/19; Marcos Juruena Villela Souto, Constituio econmica, Cadernos de direito tributrio 4, 1993, p. 250 e Dinor Adelaide Muselli Grotti, Interveno do estado na economia, Revista dos Tribunais Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica n 15, 1996, p. 74. 2 Trata-se da deciso do Supremo Tribunal Federal na ADIN n 319-DF que, por maioria, considerou constitucional a Lei n 8.039/90, que dispunha sobre critrios de reajustes das mensalidades escolares. Vale registrar que no se est integralmente de acordo com as premissas e concluses da referida deciso, que, excessivamente marcada pelas circunstncias do caso concreto, no produziu fundamentos de validade geral. 3 Lus Roberto Barroso, A crise econmica e o direito constitucional, in Revista Forense n 323/83, p. 92: A despeito do reconhecimento que merecem os autores citados ambos da maior suposio parece-me radical o ponto de vista de que o princpio da livre concorrncia veda, tout court, a possibilidade de o Governo controlar preos, inclusive por tabelamento ou congelamento. preciso ter em conta outros valores da ordem constitucional que atenuam a rigidez de tal colocao, como, v.g., a defesa do consumidor (art. 170, V) e a represso do abuso do poder econmico que vise dominao dos mercados, eliminao da concorrncia e o aumento arbitrrio de lucros (art. 173, 4).

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    Parte I

    CONSTITUIO, ORDEM ECONMICA E INTERVENO ESTATAL

    II FUNDAMENTOS DA ORDEM ECONMICA: LIVRE INICIATIVA E VALORIZAO DO TRABALHO HUMANO

    A livre iniciativa e o valor do trabalho humano so dois dos princpios fundamentais do Estado brasileiro e os fundamentos da ordem econmica. Essa a dico expressa dos arts. 1, IV, e 170, caput, da Carta, in verbis:

    Art.1. A Repblica Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos:

    ........................................................

    IV os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

    Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa (...).

    Tais princpios correspondem a decises polticas fundamentais do constituinte originrio4 e, por essa razo, subordinam toda a ao no mbito do Estado, bem como a interpretao das normas constitucionais e infraconstitucionais. A ordem econmica, em particular, e cada um de seus agentes os da iniciativa privada e o prprio Estado esto vinculados a esses dois bens: a valorizao do trabalho [e, a fortiori, de quem trabalha,] e a livre iniciativa de todos que, afinal, tambm abriga a idia de trabalho , espcie do gnero liberdade humana.

    A Constituio de 1988 cuidou de concretizar o princpio da valorizao do trabalho em regras concentradas em seu art. 7, onde se pode encontrar um rol de direitos assegurados aos trabalhadores5. O elenco que ali figura no exclui outros direitos que visem melhoria de sua condio social, nos termos expressos do caput do mesmo artigo6. O constituinte prestigiou, nessa mesma linha,

    4 Sobre o conceito de decises polticas fundamentais, v. Carl Schmitt, Teora de la Constitucin, 1970. 5 Ainda que alguns permaneam paralisados pela inrcia do legislador. 6 CF, art. 7, caput: So direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem melhoria de sua condio social:.

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    o trabalho dos autores e inventores, atravs das garantias do direito autoral (art. 5, XXVII) e da proteo patentria (art. 5, XXIX), e daqueles profissionais que participam de espetculos pblicos ou de obras coletivas (art. 5, XXVIII). O fundamento da proteo ao trabalhador e da valorizao do trabalho encontra-se na prpria dignidade da pessoa humana (art. 1, III).

    O princpio da livre iniciativa, por sua vez, pode ser decomposto em alguns elementos que lhe do contedo, todos eles desdobrados no texto constitucional. Pressupe ele, em primeiro lugar, a existncia de propriedade privada, isto , de apropriao particular dos bens e dos meios de produo (CF, arts. 5, XXII e 170, II). De parte isto, integra, igualmente, o ncleo da idia de livre iniciativa a liberdade de empresa, conceito materializado no pargrafo nico do art. 170, que assegura a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao, salvo nos casos previstos em lei. Em terceiro lugar situa-se a livre concorrncia, lastro para a faculdade de o empreendedor estabelecer os seus preos, que ho de ser determinados pelo mercado, em ambiente competitivo (CF, art. 170, IV). Por fim, da essncia do regime de livre iniciativa a liberdade de contratar, decorrncia lgica do princpio da legalidade, fundamento das demais liberdades, pelo qual ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei (CF, art. 5, II).

    bem de ver que, embora a referncia livre iniciativa seja tradicional nos textos constitucionais brasileiros, a Carta de 1988 traz uma viso bem diversa da ordem econmica e do papel do Estado, em contraste com os modelos anteriores. J no se concede mais, como fazia a Carta de 1967/69, ampla competncia na matria ao legislador ordinrio, ao qual era reconhecida at mesmo a possibilidade de instituir monoplios estatais7. As excees ao princpio da livre iniciativa, portanto, havero de estar autorizadas pelo prprio texto da Constituio de 1988 que o consagra. No se admite que o legislador ordinrio possa livremente exclu-la, salvo se agir fundamentado em outra norma constitucional especfica.8

    Note-se desde logo que no h norma constitucional que autorize o estabelecimento de controle prvio de preos no mbito do mercado. Apenas a atuao repressiva do Poder Pblico est constitucionalmente prevista, nos termos do art. 173, 4 da Carta9, a ser desencadeada a partir da apurao da

    7 Esse era o teor do art. 163 da Constituio de 1967/69: "So facultados a interveno no domnio econmico e o monoplio de determinada indstria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensvel por motiv