a onda rosa choque, de rodrigo savazoni

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  • 7/22/2019 A Onda Rosa Choque, de Rodrigo Savazoni

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    A ONDA

    ROSA-CHOQUE

    reflexessobre redes, cultura

    e polticacontempornea

    RODRIGO SAVAZONI

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    A ONDAROSA-CHOQUERODRIGO SAVAZONI

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    2013

    A ONDAROSA-CHOQUERODRIGO SAVAZONI

    reflexessobre redes, cultura

    e poltica

    contempornea

  • 7/22/2019 A Onda Rosa Choque, de Rodrigo Savazoni

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    [ 2013 ]beco do azougue editorial ltda.rua jardim botnico, 674 sala 605cep 22461-000 - rio de janeiro - rjtel/fax 55_21_2259-7712

    www.azougue.com.brazougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJS277o

    Savazoni, Rodrigo, 1980- A onda rosa-choque : reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea / RodrigoSavazoni. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2013.

    196 p. (Rede livre ; 1)

    ISBN 978-85-7920-133-2

    1. Movimentos sociais. 2. Desenvolvimento econmico. 3. Comunicao e cultura4. Sociedade da informao. I. Ttulo. II. Srie.

    13-03670 CDD: 303.4833 CDU: 316.422

    06/08/2013 07/08/2013

    Coleo Rede livre - Conselho EditorialGabriel Cohn, Giselle Beiguelman, Ivana Bentes e Srgio Amadeu da Silveira

    Coordenao da ColeoRodrigo Savazoni

    Projeto grfico e capaTiago Gonalves e Jlia Parente

    Assistncia editorialEvelyn Rocha

    RevisoBarbara Ribeiro e Evelyn Rocha

    Equipe Azougue

    Barbara Ribeiro, Evelyn Rocha, Jlia Parente, Luciana Fernandes,Tiago Gonalves e Welington Portella

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    CARTOGRAFIA

    APRESENTAO

    INTRODUO

    ROSA-CHOQUE

    AGRADECIMENTOS

    A ONDA ROSA-CHOQUE A DISPORA HACKER: AS REDES LIVRES DE PRODUO

    IMATERIAL E AO POLTICA

    AS POLTICAS DE CULTURA E O MOMENTO DIGITAL

    MARCHA PARA TRS: A REVIRAVOLTANAS POLTICAS PBLICAS DE CULTURADE LULA PARA DILMA

    DEMOCRACIA, INOVAO E CULTURA DIGITAL UMA CONVERSA COM DANIELA B. SILVA,

    SOBRE TRANSPARNCIA HACKER

    A ALIANA NECESSRIA:NOVOS E VELHOS MOVIMENTOS SOCIAIS

    O DUPLO-PERFIL DO FACEBOOK

    UMA REFLEXO SOBRE AS REDES

    REDES, OCUPAES, REVOLUES:O CAMINHO DA LIBERDADE A RUA

    A CULTURA MUITO MAIS QUE DIGITAL

    OTIMISMO: ATITUDE SUBVERSIVA

    SOBRE O AUTOR

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    Para Lia Rangel, meu amor, minha inspirao

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    APRESENTAOpor Srgio Amadeu da Silveira

    A onda rosa-choque um esforo de reflexo sobre a amplitude

    e a intensidade poltica que a cultura digital pode liberar na socie-dade brasileira. Trata-se de um conjunto de anlises do potencial

    transformador do compartilhamento de produtos e bens culturais

    a partir das redes de informao. Mas, os textos aqui reunidos no

    se limitam as tentativas de pensar o presente, eles querem disputar

    os caminhos para o futuro.

    Enquanto escrevo este prefcio, mobilizaes explodem neste

    Brasil de junho de 2013, como se inspiradas na lgica do hackati-vismo. Sem grandes lderes, sem carros de som, organizadas por

    microarticuladores, com o apoio de coletivos culturais, radicais,

    ambientais, nerds, hackers, rappers, jovens da periferia, entre tan-

    tos outros mobilizadores, os protestos desafiam a compreenso

    daqueles que debochavam dos militantes de sof, agitadores do

    Twitter. Pois ento, estamos assistindo um movimento distribudo

    em que os sofs desceram para as ruas.

    Os textos escritos pelo produtor cultural, pesquisador e ativistaRodrigo Savazoni fazem parte da antessala dessa emergncia das redes

    e da tomada das ruas que tanta falta fazia ao pas. A onda rosa-choque

    contra o poder careta, verticalizado, excessivamente burocratizado,

    tecnocrtico, insensvel e opaco parece estar ocorrendo agora, com

    novas cores alm do azul e vermelho, bem mais misturadas, remixa-

    das com as diversas tonalidade ideolgicas que assumiram as ruas.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    Savazoni j perguntava em suas reflexes sobre o que estaria em

    debate: Centralizao contra descentralizao? Formas de ao

    espontneas ou organizadas? Aes emergentes, construdas de

    baixo para cima, ou aes de impacto, construdas clandestinamentee compartilhadas de cima abaixo?. De certo modo, tudo est em

    disputa. O processo to importante quanto suas finalidades. Se

    os ativistas pela radicalizao da democracia no se dispersarem

    nas redes distribudas e no se envolverem na intensa conversao

    das plataformas de relacionamento, poderemos ver a onda rosa se

    quebrar diante de ondas conservadoras.

    Esperamos que o contgio da tica hacker, dos coletivos liber-

    trios, das ocupaes, dos festivais de cultura digital, dos pontos de

    cultura, sejam superiores em encantamento e convencimento social

    do que o reacionarismo dos novos capites do mato, da criminali-

    zao do compartilhamento de arquivos digitais e dos downloads,

    dos colonizadores genticos, dos fundamentalistas contrrios a

    diversidade cultural, religiosa, tnica e de orientao sexual.

    As multides esto ativas. Redes de opinio enfretam outras redes

    de opinio. A bipolaridade se desfaz em meio aos mltiplos conflitos.Agora, bem evidente que poder comunicacional cada vez mais est

    na capacidade de formar e reconfigurar redes, como bem relatou o

    socilogo Manuel Castells. Os textos que Rodrigo Savazoni discutem

    de modo instigante esse cenrio. So escritos mais otimistas que

    cautelosos. Tambm por isso, este livro vem em boa hora. Certa-

    mente, fruto da emergncia dos movimentos interconectados e da

    experincia efetiva de Rodrigo, principalmente na Casa de CulturaDigital. uma tentativa de influenciar e destacar que os ciberviventes

    precisam hipertrofiar a biopoltica das modulaes proibicionistas,

    mais do que o do-in antropolgico do Juca-Gil, preciso estimular

    o hackeamento, a inverso, a ocupao e outras linhas de fuga.

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    INTRODUO

    O livro que est em suas mos rene artigos, ensaios, entrevistas

    e textos acadmicos compilados nos ltimos trs anos e tem comotema a relao entre poltica e cultura digital. Resolvi organiz-los

    por entender que, em conjunto, apresentam coeso. Principalmente

    se levarmos em conta a centralidade que o assunto ganhou a partir

    dos levantes de 2011, como a Primavera rabe, o 15M, na Espanha,

    e o #OccupyWallStreet, nos Estados Unidos. Os artigos, muitos de-

    les, buscam refletir sobre esses acontecimentos, em comparao

    com a conjuntura nacional, e descrevem a conformao de novosmovimentos poltico-culturais que emergiram como um dado novo

    da realidade nacional, principalmente a partir dos efeitos do Go-

    verno Lula e do Ministrio da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira

    (2003-2010).

    notvel a ausncia de bibliografia qualificada, escrita em por-

    tugus, sobre o que estamos vivendo em nosso pas. Em contatos

    internacionais, comum toparmos com pares de ativismo que ficam

    estupefactos com a nossa pouca vaidade em relao relevncia eimportncia da cena brasileira, no s como modelo a perseguir

    uma vez que temos podido experimentar uma tensa, mas produtiva

    relao entre sociedade civil e Estado mas principalmente como

    matriz de formulao. Ou seja, temos uma compreenso frgil so-

    bre algo que nos distingue e no estamos dando a devida ateno a

    esses fenmenos, muito menos documentando-os como merecido.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    Diante dos aportes entusisticos sobre as redes poltico-culturais

    e o contexto brasileiro, fico a me perguntar: cad a nossa formula-

    o? Onde est a produo terica e crtica que subsidia o esforo

    cotidiano de muitos agentes que tm escrito uma histria inovadorano Brasil do Sculo 21?

    Muito do que os intelectuais e ativistas das redes poltico-

    -culturais produziram est disperso na internet. Isso no neces-

    sariamente ruim, pois vrios dos textos so para consumo imediato,

    escritos no calor de disputas internas ou de afirmao de pautas

    junto a sociedade. Foram feitos para ter vida efmera e incidir di-

    retamente sobre a conjuntura. bom que essa produo exista e

    continue a existir, demonstrando a dinmica fluda dos processos

    de construo rizomticos da internet. Entendo, no entanto, que

    fazem falta compilaes que possam ajudar a ampliar o debate,

    principalmente entre agentes que esto fora do processo veloz da

    poltica em contexto digital.

    A tarefa de reverter esse quadro de carncia bibliogrfica no

    exclusividade de um ou outro ativista. coletiva. Nesse sentido, no

    primeiro semestre de 2013, Henrique Parra e Pablo Ortellado lana-ram o livroMovimentos em marcha: ativismo, cultura e tecnologia,

    uma compilao essencial sobre um dos mais profcuos debates

    sobre o sentido da esquerda hoje, que teve lugar em blogs e sites a

    partir da realizao da Marcha da Liberdade, em 2011.

    Trata-se de debate inconcluso e que vem sendo estimulado, no

    entender de Parra e Ortellado, por quatro fatores: (1) o vento dos

    levantes internacionais de 2011, que se traduziram em protestos con-tra o aumento das tarifas de nibus nas grandes cidades e contra a

    construo da Usina de Belo Monte, no Xingu; (2) a descontinuidade

    das polticas de fomento s dissidncias que tiveram incio com o

    Ministrio da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira, materializada

    na nomeao de Ana de Hollanda ao posto de ministra; (3) o cresci-

    mento do Fora do Eixo, que se articula como circuito cultural e mo-

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    vimento poltico, constituindo-se numa fora nacional organizada

    no campo da cultura; (4) o surgimento da Casa da Cultura Digital,

    que, nos dizeres dos autores uma rede de empreendimentos

    empresariais e no empresariais que utilizam ferramentas digitais.Meu livro toma parte desse esforo, iniciado por Parra e Ortella-

    do, de sistematizar o pensamento sobre as redes poltico-culturais

    brasileiras.A onda rosa-choque um recorte especfico, produzido

    por algum que participa desse debate a partir de trs lugares

    complementares: como ativista da cultura livre, fundador da Casa

    da Cultura Digital; como pesquisador acadmico, que realizou um

    trabalho sobre o Fora do Eixo, buscando compreender sua origem

    e organizao; e como articulador de polticas pblicas, que atuou

    em parceria com o Ministrio da Cultura na construo das aes

    de cultura digital, em especial na organizao do Frum da Cultura

    Digital Brasileira e da rede CulturaDigital.Br.

    No se trata, portanto, de uma obra baseada em distanciamen-

    to crtico. Pelo contrrio. O que temos aqui fruto de uma praxis

    militante, em que teoria e prtica se retroalimentam. No tenho

    interesse que seja diferente. Pois minha inspirao so os intelec-tuais polemistas que jamais se furtaram do papel de interveno na

    sociedade, correndo riscos de errar e acertar.

    Espero, sinceramente, que outros trabalhos com essa temtica

    sejam publicados. Para que possamos dar conta da complexidade

    e grandeza do tema em questo.

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    ROSA-CHOQUE

    O ttulo deste livro uma referncia escolha feita pelos co-

    letivos organizadores do #ExisteAmoremSP, festival que durantea campanha eleitoral para a prefeitura de So Paulo reuniu 20 mil

    pessoas na Praa Roosevelt em um protesto pacfico e articulado

    por meio da internet. Tive o prazer de participar de algumas das

    reunies preparatrias, de convocar pessoas a tomarem parte desse

    processo com manifestos amorosos na rede, e tambm estive na

    Praa Roosevelt no dia marcado. Sou um articulador, como tantos

    outros o foram, deste belssimo momento. Escolhemos a cor rosapara o movimento em uma aluso como me explicou certa vez o

    artista e ativista Paulo Fvero (Paulinho InFluxus...) s cores azul

    e vermelha quando fundidas em um feixe de luz.

    Fvero autor da alegoria Tanq_ ROSA Choq_, que durante as

    ocupaes e manifestaes estudantis na Universidade de So Paulo,

    funciona como fora de conteno mantendo a polcia afastada dos

    manifestantes. Veste-se com adereos rosa-choque bem gritantes,

    portando armas de brinquedo e pilotando um carrinho de supermer-cado reinventado como tanque de guerra. Fvero foi uma espcie

    de precursor do Festival #ExisteAmoremSP e um de seus principais

    articuladores. No dia do festival, pendurado sobre as caixas de som

    ao lado do pequeno palco onde se apresentaram Criolo, Emicida e

    Gabi Amarantos, entre outros artistas, ele lanava fumaas e luzes

    cor-de-rosa no ar, forjando um clima fabuloso de liberdade.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    A ideia de fundir azul e vermelho numa aliana rosa surgiu

    do desconforto com os mapas eleitorais da cidade, que opem a

    periferia (vermelha) ao centro (azul), aludindo a petistas e tucanos.

    Esse mapa, explorado exausto pelos grandes veculos de comu-nicao, criou nos ltimos anos um estigma que impede a cidade

    de enxergar as nuances complexas de sua configurao poltica.

    Como se houvesse apenas um bloco slido branco e conservador, a

    ocupar os bairros centrais, e outro negro e progressista nas bordas

    da metrpole. Nada mais simplista. Combater essa dualidade taca-

    nha era um dos objetivos do #ExisteAmoremSP, que, longe de ser a

    proposio de uma terceira via, procurou vocalizar a necessidade de

    se construir, na cidade betaglobal, pactos alternativos, em torno de

    temas como a generalizada violncia policial que nos assola. Como

    tratava-se de um movimento de afirmao da diversidade e das li-

    berdades individuais, o uso do rosa-choque, cor estranha poltica,

    tambm se apresentou como forma de questionar o patriarcado e o

    comportamento sexualmente repressor.

    Cunhei, ento, a expresso Onda Rosa-Choque para dar

    ttulo a um artigo que escrevi sob encomenda para o SeminrioTramas da Rede, sobre cibercultura, organizado pelo Museu Vale

    em 2013. Esse ensaio abre o livro e resolvi ento utilizar a expresso

    novamente, neste novo ttulo. Na sequncia, A Dispora Hacker:

    as redes livres de produo imaterial e ao poltica um artigo

    acadmico produzido para o livro Tenses em Rede: os limites e

    possibilidades da cidadania na internet. resultado da ampliao

    de um outro trabalho apresentado em janeiro de 2012 no SeminrioMarxismo e Novas Mdias, na Universidade de Duke, Estados Uni-

    dos. O terceiro texto indito. Rene uma avaliao crtica dos oito

    anos de cultura digital durante as gestes de Gil e Juca. O quarto,

    escrito em parceria com o professor Srgio Amadeu da Silveira e o

    pesquisador Murilo Bansi Machado, integrantes comigo do Grupo

    de Pesquisa em Cultura Digital e Redes de Compartilhamento da

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    Universidade Federal do ABC, foi publicado originalmente em in-

    gls na revistaMedia, Culture & Society, uma das mais importantes

    de seu segmento em lngua inglesa. Esta verso em portugus

    indita. Trata-se de uma anlise comparativa das polticas pblicasde cultura entre os governos Lula e Dilma, em especfico as gestes

    Gil-Juca e Ana de Hollanda.

    O artigo Democracia, inovao e cultura digital foi publicado

    inicialmente no Le Monde Diplomatique, no Brasil, mas tambm

    possui verses em espanhol, ingls e catalo, publicadas pela revista

    Digithum, de Barcelona. Publiquei tambm no livro uma entrevista

    com a pesquisadora e ativista Daniela Silva, minha parceira de fun-

    dao da Casa da Cultura Digital, e criadora da rede Transparncia

    Hacker. Fiz essa entrevista por escrito com Daniela para o site do

    Festival CulturaDigital.Br, que organizei, e entendo que alguns dos

    pontos sobre os quais ela discorre so essenciais para entendermos o

    debate contemporneo. Os artigos A aliana necessria, O duplo-

    -perfil do Facebook e Redes, ocupaes, revolues: o caminho

    da liberdade a rua foram originalmente publicados nas revistas

    Frum e Reportagem, duas das mais importantes publicaes daesquerda brasileira, e Select, referncia na rea de cultura digital.

    As entrevistas foram para o catlogo do Festival Multiplicidade,

    realizado por Batman Zavarese na Oi Futuro, do Rio de Janeiro, e

    para a revistaA Rede. Fecha o livro uma conversa com o editor Sergio

    Cohn, com quem em 2009 realizei o livro CulturaDigital.Br, com

    entrevistas que abriram caminho para a discusso das implicaes

    polticas, econmicas e sociais da cultura digital.

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    AGRADECIMENTOS

    No teria realizado esse trabalho sem a fundamental parceria

    de inmeros companheiros que tm construdo comigo a mili-tncia por uma sociedade mais justa e livre. Em especial, destaco

    a colaborao com o professor Srgio Amadeu da Silveira, autor

    tambm do prefcio deste livro. Agradeo tambm a Lia Rangel,

    a quem o livro dedicado. Lia minha principal interlocutora e

    tem sido uma leitora implacvel h mais de uma dcada. Cludio

    Prado e Pablo Capil, em diferentes medidas, viveram cada uma

    dessas linhas comigo. Dr. Jaime, meu pai, e Solange, minha me,participaram ativamente desta construo fragmentada que sou

    eu. Jlia e Chico, meus filhos, pela pacincia com o pai que no

    sai do computador e/ou do telefone.

    Aos parceiros que construram comigo a Casa da Cultura

    Digital, todos vocs, em especial Gabriela Agustini, Georgia Ni-

    colau, Roberto Romano Taddei, Bianca Santana, Fbio Maleronka

    Ferron, Andr Deak, Dalva Santos, Daniela Silva, Pedro Markun,

    Thiago Carrapatoso, Caru Schwingel, VJ Pixel, Maira Begalli, PauloFehlauer, Rodrigo Marcondes, Leo Caobelli, Diego Casaes, Andressa

    Viana, Paula Alves, Rafael Frazo, Rafael Mantarro. Aos compa-

    nheiros de movimentos Alvaro Malaguti, Ccero Silva, Jos Murilo

    Jr., Fabiano Rangel, Felipe Fonseca e a galera da MetaReciclagem,

    Leo Germani, Oona Castro, Joo Brant, Diogo Moyses, Adriano de

    Angelis, Antonio Biondi e todos do Intervozes, Alfredo Manevy, Juca

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    Ferreira, Eliane Costa, Heloisa Buarque de Hollanda, Ivana Bentes,

    Giselle Beiguelman, Andr Lemos, Renato Rovai, Guilherme Varella,

    Jeferson Assuno, Felipe Altenfelder, Lenissa Lenza e todos os

    Fora do Eixo. Essa uma obra de interveno e espero que ajudena construo dos prximos passos da luta.

    Aos mestres amigos Celso Nucci, Eugnio Bucci, Marco Antonio

    Araujo e Srgio Gomes.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE1

    Olho para a foto da Praa Roosevelt no fim da tarde de 21 de outu-

    bro de 2012. Tenho certeza de que se trata de uma imagem histrica. possvel visualizar nela no apenas as cerca de 20 mil pessoas que

    participaram do festival auto-organizado #ExisteAmoremSP, mas o

    surgimento de algo muito forte, que reflexo do crescimento das

    redes poltico-culturais no Brasil.

    A foto me remete para a Praa Tahir, no Egito e para a Puerta del

    Sol, em Madrid. Trata-se, como nos habituamos a ver no infinito ano

    de 2011 que comeou com a Primavera rabe e terminou com asacampadas nos Estados Unidos de uma foto de uma praa tomada

    por uma multido que, por meio da internet, se organizou para estar

    ali. A Praa Rosa difere em proporo desses outros momentos, mas

    tem em comum com eles ser um grito muito potente por liberdade,

    igualdade e mais e melhor democracia.

    Essa foto histrica tambm pelo que h por trs de sua produ-

    o. Seu autor um fotgrafo vinculado ao Circuito Fora do Eixo, uma

    rede de produo cultural e ativismo digital que surgiu em 2005 e quehoje est organizada em todos os estados do pas. O Fora do Eixo 2

    um fenmeno em expanso, que esteve por trs da concepo,

    1 Artigo produzido para o Seminrio A Trama das Redes, do Museu Vale, ocorrido no pri-meiro semetre de 2013.2 Conclu em 2013 uma dissertao de mestrado sobre o Circuito Fora do Eixo no curso deCincias Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC, que ser tambm editadaem livro.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    organizao e logstica desse ato poltico da Praa Rosa. Seus ativis-

    tas no s trabalharam para aproximar os grupos que produziram

    o evento, como forneceram mo de obra, recursos e conhecimento

    para a execuo da atividade, alm de terem documentado o pro-cesso por meio de contedos multimdia e conversaes em rede.

    Outro aspecto faz da foto histrica: ela expressa um dos mais fas-

    cinantes momentos das eleies municipais de 2012. O ato #ExisteA-

    moremSP a continuidade da atividade #AmorSIMRussomanoNo,

    que ocorreu no primeiro turno da eleio para prefeito de So Paulo.

    Diante do avano do candidato conservador Celso Russomano, que

    surgiu liderando pesquisas de opinio, grupos da cidade se organi-

    zaram para protestar nas redes e nas ruas. Essa mobilizao surtiu

    efeito e Russomano no foi sequer para o segundo turno.

    A mobilizao foi mais longe. Desvelou uma agenda positiva,

    um desejo dos cidados por uma cidade menos proibida, com

    mais espaos pblicos, menos violenta e intolerante. Essa agenda

    comum atraiu mais e mais gente para o processo, sensibilizou artis-

    tas independentes do porte de Gaby Amarantos, Emicida e Criolo,

    e construiu o argumento necessrio para a realizao do festival,consequentemente da foto. Ou seja, a foto o smbolo eloquente

    de uma vontade partilhada.

    Algo se discutiu sobre o carter partidrio do evento. Debate por

    vezes estril. Enxergo a Praa Rosa como um momento de afirmao

    da possibilidade de ao ps-partidria. O que seria isso? Uma for-

    ma de agir que no se recusa o dilogo com as foras e instituies

    existentes, mas que no segue as regras e padres estabelecidoshistoricamente por essas mesmas instituies.

    O #ExisteAmoremSP expressa, acima de tudo, a capacidade de

    tecer redes que os coletivos culturais e urbanos veem demonstrando

    nos ltimos anos. Como ocorreu no 15M espanhol ou no Occupy

    WallStreet estadunidense, foi a dinmica de associao em rede

    entre diferentes foras com alguns propsitos em comum sendo

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    o principal deles reinventar as formas de fazer poltica que criou

    as condies para essa exploso de afetos e colaborao. A Praa

    Rosa persistir, materializada na foto, como um smbolo desse

    momento matricial.Voltarei a esse tema no final do ensaio. Peo licena para uma

    digresso conceitual.

    ASREDESPOLTICO-CULTURAIS

    Falo em redes poltico-culturais na perspectiva de construir um

    conceito que nos permita comear a classificar alguns dos mais

    expressivos fenmenos contemporneos nos campos da cultura e

    da poltica. Recorro expresso poltico-culturalpor enxergar nela

    uma forma de expressar concentradamente trs caractersticas que

    observo nesses grupos que esto produzindo a histria do nosso

    tempo: (1) a organizao do campo da produo imaterial, ou sim-

    blica, ou cultural; (2) a formulao de uma nova cultura poltica,

    baseada na colaborao, no afeto e em dinmicas em rede (mais ou

    menos horizontais); e (3) a interferncia, a partir da comunicao e

    da cultura, nas dinmicas de poder tradicionais.Na concluso de seu livro Communication Power, o terico

    Manuel Castells afirma que o poder exercido na Sociedade da

    Informao programando redes ou dominando os mecanismos de

    trocas entre essas redes. Para ele, portanto, o contrapoder a forma

    de mudar as relaes de poder se exerce reprogramando redes em

    torno de valores e interesses alternativos. Ora, se assim , poderamos

    dizer que as redes poltico-culturais seriam, justamente, um modode contrapoder que age na disputa os modelos de produo cultural,

    de criao e de inovao?

    fato que nos ltimos anos vm crescendo, em todo o mundo,

    formas de resistncia no campo da cultura. Em um artigo chamado

    Sistemas y redes culturales: como y para qu?, George Yudice fala em

    ativismo reticulador. Recupero esse conceito, que todavia Yudice

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    no desenvolve em profundidade em seu texto, e trago-o para ela-

    borar um pouco sobre ele.

    Em minha opinio, o ativismo reticulador aquele que tece redes,

    que se incumbe de, como no delicado tecido reticular de nossoscrebros, desenvolver-se estabelecendo conexes entre diferentes

    elementos. Esse ativismo digital reticulador tem no ato de organizar

    redes um fim em si e um meio para atingir seus objetivos estrat-

    gicos, to amplos como confrontar os 1% do planeta que dirigem

    o capitalismo global, ou to especficos como reorganizar a vida

    comunitria em bairros perifricos, como o caso do Grupo Cultural

    AfroReggae, exemplo que Yudice utiliza no estudo supracitado. Esse

    texto tem o mrito de, ao final, sistematizar pioneiramente o que

    seriam as caractersticas das redes culturais. Tomo a liberdade de

    elaborar uma traduo livre do trecho, que um pouco longo, mas

    que, justamente por isso, nos ser til.

    As redes complexas tm a capacidade de obter informa-

    es que de outra maneira seria impossvel de se obter por

    meio de instituies oficiais, porque essas redes tm cone-xes com atores que se esquivam do contato com o estado

    e que o mercado ignora;

    Mais que gestores profissionais, seus agentes so atores

    envolvidos na produo, circulao, distribuio e prosumi-

    dores de artes e cultura. Tm o mrito de jogar um papel im-

    portante na oferta de educao informal, onde a educao

    cultural no existe ou insuficiente. Por outro lado, buscamlevar suas programaes para o espao formal das escolas;

    As redes culturais podem conectar processos novos com

    processos tradicionais. Por exemplo a produo cultural

    de bairro com a produo das indstrias culturais. [Neste

    ponto Yudice cita a parceria entre o Afroreggae e o dirigente

    da indstria da msica Andr Midani];

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    As redes so teis para articular criadores de setores

    cultos e tradicionais e dos novos meios (do mundo digital

    e da internet);

    As redes culturais tambm aportam seu dinamismo parao turismo cultural, pois aproveitam os vnculos com atores

    mltiplos da sociedade para estabelecer novos tipos de

    oferta e novos territrios de circulao. [Aqui Yudice cita o

    Centro Cultural do Afroreggae, que se tornou um lugar para

    ser visitado no meio da favela, antes do incio dos processos

    de pacificao no Rio de Janeiro];

    Para voltar analogia com a ecologia e a biodiversidade,

    as redes servem para manter vivo o bosque primrio per-

    mitem que se conectem atores, comunidades e processos

    que de outra forma se desarticulam. As redes permitem a

    criao de microssistemas que, por sua vez, se vinculam a

    sistemas maiores, mas sem perder essa conexo com esse

    manancial comunal;

    Um pouco mais adiante, Yudice conclui:

    Seguindo esta ltima analogia, poderamos dizer que as

    redes so maneiras de alavancar para cima o capital social

    e cultural. Essas redes criam sistemas de cooperao para

    atingir objetivos especficos que no definem a totalidade

    das atividades dos atores em reticulados.

    Tecer redes passa a ser, ento, a forma que as dissidncias pos-

    suem para estabelecer linhas de fuga, comportamentos alternativos,

    prticas desviantes. tambm uma forma de acumular capital so-

    cial e cultural, na anlise de Yudice. Ou seja, valor em torno de sua

    produo. Cada vez mais, essas formas de se organizar so reconhe-

    cidas como as principais prticas das novas geraes. No prlogo do

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    livroJvenes, culturas urbanas e redes digitais: prcticas emergentes

    em las artes, las editoriales y la msica, Nestor Garcia Canclini afirma

    que as noes de redes e commonsso a expresso para falar de ou-

    tra maneira sobre o que est acontecendo nas sociedades, porqueexpressam a transversalidade que marca a vida contempornea.

    Seu ensaio nesse livro, intitulado De la cultura postindustrial a las

    estrategias de los jvenes, busca atualizar o desafio do pesquisador

    de cultura no contexto da sociedade ps-industrial e visualiza nas

    redes culturais a principal forma de estratgia da juventude para

    se organizar, de forma hbrida, em arranjos poltico e econmicos

    distintos do que se vislumbrou at recentemente.

    Ns lemos Marx, Bourdieu, Durkhein, Geertz, antroplogos

    de vrios pases, escreve, no prlogo. E nos damos conta agora

    que essas ferramentas nos servem muito parcialmente. preciso

    completar a aprendizagem acompanhando os atores que se mo-

    vem hoje na sociedade. Acompanhando as foras que se movi-

    mentam, encontro um processo muito interessante que est em

    curso na Amrica Latina: trata-se do Cultura de Rede. Coletivos e

    articulaes brasileiras como o Fora do Eixo, Pontos de Cultura emovimentos de cultura digital esto participando dessa articulao

    continental. Esse processo j produziu trs encontros, o primeiro

    deles em Quito, Equador, o segundo em Braslia, Brasil, e o terceiro

    em Cochabamba, Bolvia.

    Entre os objetivos dessa articulao est justamente definir me-

    lhor o que seriam essas redes poltico-culturais. Na Carta de Quito,

    disponvel on-line, h uma tentativa de definio, ainda que ampla,de redes poltico-culturais3:

    As redes so formas de trabalho que se caracterizam por

    seu profundo compromisso pela transformao social

    3 Para uma apreciao mais detalhada das definies do Cultura de Rede, ver a carta na in-tegra em .Acesso em11/11/2012.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    da realidade, com base no trabalho horizontal, solidrio e

    colaborativo. Dada a flexibilidade de suas formas organiza-

    cionais, quando falamos de redes, o fazemos nos referindo

    tanto a organizaes locais que trabalham de maneiracoordenada, at formas organizacionais mais complexas e

    de mbitos de ao mais amplos. As redes se articulam em

    torno de objetivos comuns, que entendem a cultura como

    um direito coletivo adquirido e como resultado de processos

    histricos, cujo exerccio demanda dilogo democrtico

    entre Estado e cidadania.

    Poderamos dizer que a criao de mundos e a dominao de

    subjetividades por meio de redes tornou-se o centro de reproduo

    do capitalismo em sua etapa de permanente crise. Se isso verdade,

    tambm seria bom apreciarmos a possibilidade de criao de redes

    poltico-culturais cujo foco est justamente na fabricao de mundos

    alternativos. Neste momento, as prticas dissidentes devem ser o

    foco de nossa ateno.

    UMAINCUBADORADEREDESPOLTICO-CULTURAISUma das expresses desse crescimento das redes poltico-culturais

    no pas a Casa da Cultura Digital, experincia que ajudei a desen-

    volver a partir de 2008. Naquele ano, comeamos a reunir pessoas em

    torno de projetos sociais e culturais aliados s novas tecnologias. A

    primeira gerao da CCD era formada por grupos j constitudos que

    se uniram para a construo dessa experincia de partilha. Talvez amelhor definio para o que construmos em quatro anos de histria

    seja laboratrio de vivncias, pois a vida que est no centro de tudo.

    Nosso foco so as relaes de investigao sobre possveis alternati-

    vas de viver nesse planeta dirigido pelo capitalismo interconectado.

    Por isso mesmo, no seria possvel definir a Casa da Cultura Digital

    exclusivamente como um espao de trabalho, ou de formao, ou de

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    articulao, ou para a expresso das manifestaes culturais de seus

    integrantes, ou de promoo de solues inovadoras para diferentes

    reas do conhecimento. A CCD tudo isso, porque justamente per-

    mite a construo de uma outra forma de viver, ou seja, de cada umse relacionar com o tempo especfico de sua existncia. Quase todos

    ns que estamos associados a essa experincia entramos nela para

    fazer uma coisa e mudamos completamente de plano. Ainda assim,

    seguimos conectados. Os que no entenderam essa dinmica fluida,

    partiram para novas jornadas. E acabam por se conectar rede de

    outras maneiras, mantendo-se prximos de alguma forma.

    Essa descrio pode parecer demasiado abstrata. Em parte . No

    entanto, se quisermos recorrer teoria j escrita, recupero questes

    abordadas por Andr Gorz no livro O Imaterial. Nessa obra seminal,

    o escritor francs se debrua sobre as formas contemporneas de

    produo, associao e luta poltica. Escreve Gorz: Esse colaborador

    tender a demonstrar que vale mais do que realiza profissionalmen-

    te, e investir sua dignidade no exerccio gratuito, fora do trabalho,

    das suas capacidades: jornalistas que escrevem livros, grficos do

    meio publicitrio que criam obras de arte, programadores de com-putadores que demonstram suas habilidades como hackers e como

    desenvolvedores de programas livres etc.; so muitas as maneiras

    de salvar sua honra e sua alma. Para subtrair uma parte de sua vida

    aplicao integral no trabalho, os trabalhadores do imaterial do

    as atividades ldicas, esportivas, culturais e associativas, nas quais

    a produo de si a prpria finalidade, uma importncia que enfim

    ultrapassa a do trabalho. (pg. 23)Foi para criar um espao associativo de pessoas com esse perfil

    descrito por Gorz que criamos a Casa da Cultura Digital. Partimos,

    singulares e conectados, de algumas questes: Por que, se queremos

    produzir livremente, devemos manter relaes com o ambiente

    esttico do mercado tradicional que no corresponde nossa ne-

    cessidade? Por que recorrer ao meio publicitrio se queremos ser

  • 7/22/2019 A Onda Rosa Choque, de Rodrigo Savazoni

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    artistas? Por que vender horas e horas de trabalho aos jornais se

    queremos contar nossas prprias histrias? Por que trabalhar para

    conglomerados do espetculo se queremos produzir uma cultura

    que seja conectada expresso autntica dos nossos afetos? Omercado, como o conhecemos, nos propicia algo que no possamos

    conseguir pela unio de nossas foras? E se criarmos um espao em

    que no faz distino entre viver e produzir? Esse espao pode ser

    sustentvel? Ou, ainda, melhor que sustentvel, ele pode, como

    reclama Viveiros de Castro, ser antropologicamente suficiente? No

    seria esse o salto radical a ser dado, do ponto de vista ambiental,

    para estabelecermos uma outra forma de nos relacionarmos com

    o planeta, massacrado por um desenvolvimento que o dilacera?

    Nenhuma dessas perguntas tm respostas fceis. Mas so ex-

    celentes provocaes para um incio de investigao. Disso surgiu

    a necessidade de construirmos um laboratrio, um espao para

    testar hipteses e situaes que possam desenhar novos caminhos

    para nossas vidas e, eventualmente, permitir que outras pessoas e

    organizaes se aproveitem dessas descobertas.

    Acredito que foi justamente a conjugao de desafios to flui-dos que nos permitiu desenvolver um arranjo inovador. A Casa da

    Cultura Digital composta por pequenas empresas, produtoras,

    organizaes sem fins lucrativos, redes que no dispem de pessoa

    jurdica prpria e indivduos adeptos do sevirismo (se virar para

    viver). Os custos de infraestrutura so compartilhados, como numa

    repblica estudantil, entre as instituies integrantes. No restante,

    vive-se dos projetos que so desenvolvidos, isoladamente ou emparceria. So muitas iniciativas que esto em curso atualmente,

    a maior parte delas com receitas prprias, que permitem no s

    remunerar seus idealizadores como as equipes que atuam nos

    processos. O que est baseado na troca de servios e em doaes

    por meio de cooperao totalmente vivel. J houve vrios pro-

    jetos aprovados por meio de crowdfunding(financiamento pelos

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    pares), e a CCD uma das organizaes que mantm uma pgina

    prpria no site Catarse.

    Para especificar melhor como funciona nossa sustentabilidade,

    peguemos o exemplo do Festival CulturaDigital.Br. Ele contou compatrocnios do Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio da

    Lei Estadual de Incentivo Cultura, e do Governo Federal, por meio

    da Lei Rouanet. Recebeu aportes das empresas Petrobras, Vale e

    Vivo Telefnica, das organizaes sem fins lucrativos Comit Gestor

    da Internet do Brasil, Mozilla Foundation, Fundao Ford, Centro

    Cultural de Espanha e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP),

    estabeleceu parcerias e permutas com o Museu de Arte Moderna

    (MAM), a PRODERJ, o Cine Odeon, sem contar no aporte em troca

    de trabalho e servios de uma gama enorme de aliados e parceiros.

    Como este, poderia citar o rol de apoiadores de outras iniciativas

    lideradas pela CCD, o que iria demonstrar nossa capacidade de man-

    ter relaes com governos e foras do Estado brasileiro, organismos

    multilaterais, instituies e fundaes de cooperao internacional,

    organizaes da sociedade civil e empresas.

    No seria exagero nem cabotino dizer que a Casa da CulturaDigital tornou-se, nesses poucos anos de existncia, uma referncia

    para jovens ativistas, hackers, comunicadores, desenvolvedores e

    produtores culturais que esto em busca de uma vida baseada em

    um compromisso profundo com a democracia e a liberdade. Isso

    pode ser medido pelo nmero de pessoas que nos procuram, pelo

    interesse dos meios de comunicao de massa e on-line nas nossas

    aes, pela presena e circulao das informaes produzidas pelae sobre a CCD nas redes sociais, pelo posicionamento das coisas

    que fazemos nos resultados de busca. Digitando no Google, em por-

    tugus, a expresso cultura digital, as quinze primeiras remisses

    apontam para trabalhos e aes da CCD ou nas quais estivemos

    envolvidos. como se, ao longo dos anos, tivssemos nos tornado

    sinnimo de quem pensa a cultura a partir das transformaes

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    ocasionadas pela tecnologia. Depois do ncleo de So Paulo, em

    2012 tiveram incio clulas autnomas da CCD em Santos, Porto

    Alegre e Florianpolis.

    De todas as dimenses que eventualmente a Casa da CulturaDigital possua, a que mais me agrada pens-la como uma espcie

    de incubadora de redes. Temos sido uma rede que conecta pessoas

    e projetos. Mas tambm um arranjo que produz e conecta outras

    redes, as quais possuem dinmicas e caractersticas especficas,

    como demonstra o quadro abaixo.

    Essa imagem descreve oito redes que surgiram das entranhas da Casa

    da Cultura Digital. A primeira que cito a rede CulturaDigital.Br, criada

    em 2008 com a finalidade de articular, em parceria com o Ministrioda Cultura, polticas pblicas para esse campo. Toda a inteligncia de

    rede e o trabalho de articulao concentrados em torno da Plata-

    forma CulturaDigital.Br (http://www.culturadigital.br), que tambm

    culminou na realizao de dois fruns de cultura digital, foi gestada

    dentro da CCD. Chegamos a mobilizar mais de oito mil pessoas nesse

    processo, alm de ter fomentado inmeras iniciativas poderosas

    HACKER

    REDE REA

    CULTURADIGITAL.BR

    JORNALISMODIGITAL

    BAIXOCENTRO

    PRODUO

    BRASIL

    OPEN VIDEOANIANCE

    HACKERSPACE

    CASA DA

    CULTURA

    DIGITAL

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    no Brasil e fora dele, como o caso da Universidade da Cultura, das

    redes de arte digital, do Movimento Cultura Digital, entre outros.

    Tambm foi nos corredores do Parque Savoia, onde territorial-

    mente nos estabelecemos, que surgiu, com a realizao dos Ha-ckDays, a rede Transparncia Hacker, que conforma uma experincia

    de hacktivismo voltado para a melhoria da democracia. Essa rede

    possui mais de mil membros em todo o Brasil, e de dentro dela sur-

    giram projetos como o nibus Hacker e o Clone do Blog do Planalto.

    A Transparncia Hacker surgiu na CCD, mas estabeleceu articulaes

    especficas, prprias, que no necessariamente envolvem todos os

    agentes que atuam na Casa da Cultura Digital.

    Outra rede que est citada na imagem e produz enorme ateno

    o Garoa Hacker Clube, que se constituiu como um hackerspace,

    um clube para aficcionados por tecnologias livres. Esse clube

    tambm tem como premissa estimular a criao de outros espa-

    os semelhantes no Brasil e no mundo. Destaca-se por ter sido o

    primeiro do Brasil.

    Por fim, para no me estender demais em uma descrio mui-

    to minuciosa, vale citar o caso do Movimento Baixo Centro. Esseprocesso tambm teve incio da Casa da Cultura Digital, e partia da

    inquietao de alguns dos integrantes de nossa rede, em especial

    dos produtores culturais, com o cerceamento s expresses livres

    nas ruas da cidade, em especial na regio central, onde se encontra

    nossa sede. Esse grupo props ento a criao de um festival nas

    imediaes do Minhoco, uma via elevada que corta alguns bairros

    centrais, e esse festival acabou se tornando uma rede de ativismopelo direito cidade, que inclusive pode ser considerada um dos

    embries e inspiradores do #ExisteAmoremSP.

    A reputao obtida pela Casa da Cultura Digital, no entanto, no

    tem sido explorada em benefcio prprio. Ela vista como potncia

    para fortalecer os movimentos sociais e as organizaes da sociedade

    civil que nos precederam; para aprofundar as disputar por trans-

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    parncia, abertura e radicalizao da democracia; para defender

    uma ideia de cultura que seja baseada na viso de que todos somos

    potenciais criadores e que o mercado no deve dirigir as relaes de

    produo simblica; para desenvolver tecnologias inovadoras quesirvam ao fortalecimento da cidadania e estejam conectadas com

    as reais necessidades da populao brasileira.

    Por isso mesmo, alm de operar como uma incubadora de re-

    des, a CCD tambm tem sido abrigo para articulaes e formao

    de redes em torno das causas polticas que se afirmaram na Praa

    Rosa. Causas que, podemos dizer, atualizam os desafios da luta social

    no pas. Produzi a imagem abaixo com a finalidade de evidenciar

    algumas das temticas com as quais viemos lidando nos ltimos

    anos, e como dessa sistematizao podemos comear a delinear

    uma agenda de lutas contemporneas que marcam os interesses

    da juventude urbana brasileira.

    SOFTWARELIVRE

    XINGUVIVO

    DIREITO COMUNICAO

    LEI DEACESSO

    INFORMAOPBLICA

    REFORMA DODIREITOAUTORAL

    REFORMAAGRRIA

    MOBILIDADEURBANA

    DIREITO CIDADE

    CASA DA

    CULTURA

    DIGITAL

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    So muitas as iniciativas da CCD associadas afirmao, pro-

    moo e defesa do software livre, que o movimento que constitui a

    essncia da cultura digital livre. Na Casa da Cultura Digital ocorrem

    articulaes e aes em parceria com organizaes como MozillaFoundation, Free Software Foundation, Open Knowledge Society,

    Eletronic Frontier Foundation (EFF), Wikimedia, Wikileaks, Festival

    Internacional de Software Livre (FISL), para citar alguns dos exem-

    plos mais eloquentes. No caso, por exemplo, da luta pela reforma

    da lei de direito autoral, funcionamos como um ponto de encontro

    para os grupos que se mobilizam pela aprovao de uma lei ade-

    quada s transformaes operadas pela internet e desenvolvemos

    uma plataforma de comunicao para essa campanha (http://www.

    reformadireitoautoral.org/). Na luta contra a construo da Usina de

    Belo Monte as organizaes da CCD produziram o site da campanha

    Xingu Vivo para Sempre e atuaram na mobilizao e gesto de redes

    em parceria com organizaes ambientais.

    Esses trabalhos, na maioria dos casos, foram desenvolvidos

    numa associao entre prestao de servios e militncia. H outras

    situaes reveladoras, como no caso da Lei de Acesso InformaoPblica, onde ativistas ligadas rede da casa da cultura digital atu-

    aram na redao de artigos da lei para que ela estivesse de acordo

    com os princpios da internet livre. Esse esforo foi recompensado

    com a aprovao de uma das mais avanadas leis de transparn-

    cia do mundo, que estabelece que os dados pblicos devem ser

    disponibilizados em formato legvel por mquinas, o que permite

    o processo e recombinao das informaes pela cidadania. Ouseja, no possvel ler a experincia da Casa da Cultura Digital sem

    entend-la como uma expresso poltica. Tampouco isso quer dizer

    que velhos conceitos de como a poltica se processa sirvam para nos

    analisar. O mesmo pode ser dito sobre o que ocorreu em So Paulo

    no dia 21 de outubro.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    DEVOLTAMULTIPLICIDADEROSA-CHOQUEPara a organizao do festival da Praa da Rosa consorciaram-se

    mltiplas foras que compem um enorme mosaico de coletivos da

    cidade de So Paulo. Registro isso porque esse um dos fenmenosmais fascinantes que est em curso na maior metrpole do sul do

    planeta. O historiador Pablo Ortelado, professor da USP Leste, fala

    em mais de cinco mil coletivos organizados na periferia da cidade.

    Algumas dessas foras j tm muitos anos de estrada. So iniciativas

    que abriram caminho para a renovao da msica jovem brasileira,

    como o Coletivo Instituto, de Daniel Ganjaman, que se fez indire-

    tamente presente no ato #ExisteAmoremSP.

    O Instituto, que surgiu na virada do sculo, teve papel prepon-

    derante na afirmao do hip-hop como cultura e do rap como lin-

    guagem artstica. Atualmente Ganja produtor de Criolo, autor do

    rap-cano No existe amor em SP, que, com a praa tomada, foi

    cantado em unssono, numa espcie de catarse coletivo que produziu

    uma leitura reversa da letra. No lugar do desencanto denunciado pela

    crnica do artista da periferia aqui ningum vai pro cu a pos-

    sibilidade latente de se desenhar solidariamente um novo destino.Esse consrcio de foras vivas forjou em poucos dias, uma festa

    sem a presena de seguranas mas com muitos palcos e interven-

    es poltico-culturais e produziu uma aglomerao de felicidade

    como poucas vezes vivenciei. Naquela tarde, naquele festival, na-

    quela Praa Rosa, juntaram-se cidados do centro e da periferia em

    torno de causas e objetivos comuns. Isso, por si s, j constitui um

    feito notvel. Mas h mais a dizer.Entre as caractersticas que vislumbro com a emergncia das

    redes poltico-culturais est a formatao de uma nova cultura

    poltica, baseada na colaborao e no compartilhamento do co-

    nhecimento. A palavra compartilhar talvez seja a mais importante

    desse processo, pois ela denuncia positivamente o surgimento de

    tecnologias sociais baseadas na ideia solidria de troca entre pares,

  • 7/22/2019 A Onda Rosa Choque, de Rodrigo Savazoni

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    na perspectiva de que juntos fazemos melhor. Isso mexe com valo-

    res muito slidos e que se cristalizaram nas ltimas dcadas, com o

    avano do pensamento neoliberal, entre elas a crena de que o ser

    humano essencialmente autointeressado. Essa ideia fortssima deque eu, para fazer o bem para os outros, preciso primeiro garantir

    o meu, reacendeu-se com o fim do bloco sovitico e a ideia de fim

    da histria. Nesse contexto, a regulao adviria naturalmente do

    choque dos vrios interesses individuais contrapostos. preciso

    ficar claro que essa ideia deu errado e levou o planeta a um colapso

    scio-ambiental.

    Com a popularizao da internet e o consequente fortalecimento

    do engajamento e do protagonismo juvenil temos uma chance de

    pr fim nessa hiperindividualizao que alguns povos ocidentais

    inventaram e impuseram ao mundo. Sem dvida, o movimento

    software livre, a ideia de cdigo aberto, de partilhar rpido e sempre,

    d outro sentido para nossa prtica. Esse valor do compartilhamen-

    to , como citei acima, um amlgama da nova cultura poltica que

    os coletivos em rede esto criando. Por baixo, portanto, do mar de

    pessoas que podemos vislumbrar na imagem que abre este ensaio,corria uma corrente de solidariedade produzindo essa enorme onda

    rosa-choque, que apenas comeou, mas j d mostras de que tem

    fora para irrigar o futuro.

  • 7/22/2019 A Onda Rosa Choque, de Rodrigo Savazoni

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    A DISPORA HACKER:AS REDES LIVRES DE PRODUO IMATERIALE AO POLTICA1

    Uma autntica economia do saber seria uma

    economia comunitria2

    As redes livres de produo imaterial e ao poltica so um fen-

    meno poltico mundial e tambm do Brasil contemporneo. Surgem

    aqui em um contexto que articula os sopros renovadores do Frum

    Social Mundial com o desenvolvimento do governo do presidente Luiz

    Incio Lula da Silva, e conformam um lugar destacado de construo

    de alternativas polticas, sociais, econmicas e culturais. Nesta anlise,

    iremos explorar como essas redes se desenvolvem a partir de umadispora no sentido de obteno de novos espaos dos valores das

    comunidades de software livre por diferentes agrupamentos jovens

    de nossa sociedade. Esses grupos esto transformando as ideias de

    liberdade presentes no movimento hacker em aspecto organizador de

    novas formas de produzir e agir em diferentes campos: da produo

    de shows luta por direitos humanos em favelas, passando pela exi-

    gncia de abertura dos gabinetes da poltica institucional chegandoat a reciclagem de equipamentos eletroeletrnicos.

    O foco deste trabalho fazer uma breve descrio dessas redes

    cooperativas e comunicativas de trabalho social, conforme po-

    1 Artigo elaborado sob orientao do Professor Doutor Srgio Amadeu da Silveira. Agradeoa colaborao e os comentrios do pesquisar Murilo B. Machado, integrante do grupo depesquisa em cultura digital e redes de compartilhamento da UFABC.2 Trecho do livro O Imaterial, de Andr Gorz, p. 59.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    demos defini-las a partir da conceituao feita por Michael Hardt

    e Antonio Negri em seu ensaio Multido. Para estes autores, so

    as redes que, do ponto de vista sociolgico, guardam consigo o

    poder constituinte da multido, que se configura como a principalfora de contestao do Imprio (HARDT & NEGRI: 2001). Neste

    trabalho, as redes so analisadas por sua potncia de enfrentamento

    do capitalismo, que, em sua etapa cultural, centrada na produo

    imaterial (GORZ: 2003), mobiliza no mais a produo, mas formas

    de viver. A hiptese aqui que, justamente por meio de articulaes

    baseadas na apropriao avanada das novas tecnologias, essas

    redes operam o enfrentamento, inventando colnias livres no seio

    da sociedade do controle (DELEUZE: 2010).

    Analisaremos quatro redes: (1) MetaReciclagem, (2) Circuito Fora

    do Eixo, (3) Transparncia Hacker e (4) Enraizados. Em um primeiro

    momento, essas redes sero descritas em suas especificidades, bus-

    cando no decorrer da elaborao apontar como se constituram e

    como se organizam atualmente. A escolha por essas redes se deve ao

    fato de possurem grande reputao entre seus pares e de operarem

    com alcance internacional. Nesta leitura, no temos o objetivo debuscar exemplos para encaixarmos em teorias pr-existentes, mas

    de articular o referencial terico de anlise adequado a um deter-

    minado fenmeno social dado. Sem o reforo da teoria, no entanto,

    ficaramos suspensos em interpretaes superficiais. Por isso, parte

    importante deste artigo dedicada tambm a dialogar com obras

    recentes que se debruam sobre a realidade poltica na perspectiva

    de apontar caminhos de transformao.Por fim, na concluso, o artigo se dedica a fazer algumas apro-

    ximaes entre essas redes. Extrair, das observaes e das leituras,

    caractersticas presentes em todas elas que permitem uma anlise

    em paralelo de seu desenvolvimento. No so aproximaes simples

    de serem feitas, uma vez que cada uma se dedica a um aspecto dis-

    tinto do mundo cotidiano em alguns casos essa articulao pode

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    at parecer muito distante. Ainda assim, possvel identificar vrias

    caractersticas semelhantes, seja no seu processo formativo, seja

    nas tticas do agir, seja na interpretao do processo poltico, que,

    analisadas em conjunto, nos permitiriam dizer que estamos diantede um movimento em construo, com potencial de reorganizar a

    ao poltica jovem no pas.

    Vale destacar que, neste trabalho, entendemos a cultura hacker

    como a cultura daqueles que compartilham uma tica baseada na

    liberdade do conhecimento e do compartilhamento dos cdigos

    (SILVEIRA: 2007, p. 24). Essa cultura teve incio com os expertsem

    programao e em segurana de sistemas informacionais, mas no

    correr dos anos foi apropriada por diferentes agentes sociais, num

    processo que aqui denominamos de dispora hacker e iremos de-

    senvolver na concluso do artigo.

    A REDEEAPOLTICAO papel da internet para a construo de alternativas polticas

    central j no de hoje. Em seu livro,Sem Logoa tirania das marcas

    em um planeta vendido, a ativista canadense Naomi Klein, analisa,no posfcio Adeus ao fim da histria, o movimento altermundista3

    que se desenvolveu no final dos anos 1990 do sculo passado. Para

    ela, mais que um instrumento para a organizao, a internet j se

    revelava, naquele momento, como um elemento de moldagem do

    movimento sua prpria imagem (KLEIN: 2002).

    Graas net, as mobilizaes so capazes de se desdobrarcom pouca burocracia e hierarquia mnima; o consenso

    forado e manifestos elaborados desaparecem ao fundo,

    3 O altermundismo um amplo conjunto de movimentos sociais que surgiu no final dosanos 1990, que se reuniu em torno dos dias de Ao Global e do processo do Frum SocialMundial, que teve incio em Porto Alegre, RS, Brasil. Esse movimento, formado por ativistasde diferentes correntes polticas, propunha uma outra globalizao e realizava a crtica socialdo pensamento nico neoliberal e do processo de mundializao capitalista.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    substitudos por uma poltica de troca de informaes

    constante, frouxamente estruturada e s vezes compulsiva.

    (KLEIN: 2002, p. 479)

    Para a autora, surge nesta idade do processo de lutas polticas

    um modelo de militncia que espelha as vias orgnicas, descentra-

    lizadas e interligadas da internet (KLEIN: 2002, p. 480).

    No Brasil, um conjunto de agentes tomou parte desse processo

    de construo poltica altermundista, em especial porque um dos

    momentos cruciais dessa era de mobilizaes globais teve lugar em

    Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, cidade que recebeu as

    primeiras edies do Frum Social Mundial. Klein afirma que o FSM

    aponta para a passagem do perodo de contestao marcado por

    aes em contraposio aos encontros dos principais organismos

    polticos multilaterais, como as que ocorreram em Seattle, Praga e

    Gnova para uma poca de proposio de alternativas. A ausncia,

    no entanto, de respostas gerais e de um programa unificado levou

    o movimento a se diluir em diferentes linhas de ao.

    Analisando esse movimento altermundista, Andr Gorz localizaque so essas redes livres a matriz comum das mobilizaes na virada

    do sculo 20 para o 21, baseadas em estrutura no hierrquica, em

    redes horizontais descentradas em vias de se autoproduzir e de se

    auto-organizar, fundadas no princpio da democracia consensual

    (GORZ: 2003).

    No ano da segunda edio do Frum Social Mundial, realizado

    em janeiro de 2002, o torneiro mecnico Luiz Incio Lula da Silva eleito Presidente da Repblica do Brasil, levando pela primeira vez na

    histria do pas o Partido dos Trabalhadores (PT) ao posto mais alto

    da Repblica. Esse fato histrico promove a atrao de um conjunto

    de ativistas e militantes do altermundismopara dentro do governo

    Lula. Muitos desses ativistas seriam responsveis pela elaborao e

    gesto de importantes polticas pblicas, s quais se pode atribuir

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    o importante fomento s dissidncias (GORZ: 2002), por meio

    do reconhecimento institucional e do repasse de recursos para o

    desenvolvimento de aes sociais e poltico-culturais.

    Para compreender essa importante induo, que se constituiucomo um dos aspectos centrais para o fortalecimento das redes

    de produo imaterial, precisamos retornar a 2003, quando dois

    vetores se articulam no interior do governo Lula: a poltica de

    utilizao e fomento do software livre, capitaneada pelo socilogo

    Srgio Amadeu da Silveira, ento recm-empossado presidente do

    Instituto Nacional de Tecnologia da Informao (ITI), da Casa Civil

    da Presidncia da Repblica, e o redirecionamento estratgico das

    polticas culturais no Ministrio da Cultura, que, com a chegada do

    msico Gilberto Gil pasta, passam a ter foco nas foras vivas da

    cultura brasileira (GIL: 2003). Esses dois acontecimentos, como

    narrado pela pesquisadora Eliane Costa no livro Jangada Digital,

    culminariam no desenvolvimento de polticas pblicas de cultura

    digital que colocaram o Brasil em evidncia internacional.

    Durante os oito anos seguintes, os articuladores dessas redes de

    produo imaterial se tornaram cogestores de polticas em vriasesferas do governo. Aes que foram desenvolvidas por setores

    responsveis pela incluso digital, pelos programas de fomento

    conectividade da populao e pelo compartilhamento da cultura

    popular, como o Programa Cultura Viva (responsvel pela rede de

    Pontos de Cultura). Essas redes tambm foram parceiras de primeira

    hora na elaborao de projetos de lei cujo foco era fortalecer as li-

    berdades na era digital, como o projeto de reforma da Lei de DireitosAutorais (LDA), o projeto da Lei de Informao Pblica, e o Marco

    Civil de direitos digitais dos cidados redigido pelo Ministrio da

    Justia em parceria com a sociedade, por meio de uma plataforma

    web aberta e voltada ao compartilhamento.

    Em um artigo chamado Polticas da Tropiclia, publicado no

    catlogo da exposio Tropiclia, que produziu um balano da guer-

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    rilha esttico-poltica dos anos 1960, o antroplogo Hermano Vianna

    faz uma anlise do Ministrio da Cultura liderado por Gilberto Gil,

    destacando-o como elemento dissonante no cenrio da poltica

    tradicional justamente por dedicar-se ao fomento dos agentes liga-dos ao software livre, os quais para Negri e Hardt so exemplos de

    articuladores da democracia da multido:

    Seguindo essa trilha natural tambm que Gil tenha se

    transformado, entre os ministros brasileiros do governo Lula

    (e talvez entre os ministros da Cultura de qualquer pas, hoje

    to temerosos diante do debate sobre a pirataria das artes

    digitais ou digitalizadas), no principal militante na defesa

    do software livre e de seus cdigos abertos, entendida como

    a principal batalha que est sendo hoje travada nos campos

    polticos, econmicos e culturais. (ViANNA: 2007, p. 141)

    Na sequncia desse artigo, Vianna cita a passagem no discurso de

    Gil proferido em aula magna na Universidade de So Paulo, quando

    ele se assume inspirado pela tica hacker.Esse exerccio de reflexo sobre o curto-circuito antropolgico

    (GIL: 2003) ocorrido nos ltimos anos no se completa se deixarmos

    de lado o processo de distribuio das tecnologias de informao

    e comunicao (TICs), no pas, nos ltimos dez anos. Desde 2008,

    a venda de computadores maior que a de televisores no pas, se-

    gundo dados colhidos pela Escola de Administrao de Empresas da

    Fundao Getlio Vargas (FGV)4

    . Atualmente, cerca de 80 milhesde brasileiros acessam a internet e o pas segue, de acordo com le-

    vantamento do Ibope/NetRatingstendo o usurio que mais tempo

    permanece conectado5. Em 2002, quando estavam nascendo a rede

    4 Dados em . Acesso em 12/11/2011.5 Para um detalhamento completo do perfil de navegao atual do brasileiro, vale a visita aolink .

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    MetaReciclagem e o Cubo Mgico, coletivo pioneiro do Circuito

    Fora do Eixo, o Brasil tinha menos de 15 milhes de internautas6.

    Gorz, em O Imaterial, atribui aos artesos dos programas de

    computador e das redes livres o papel de enfrentamento do capita-lismo contemporneo por se oporem ao cercamento do saber. Para

    ele, esses grupos se constituem em uma dissidncia social e cultu-

    ral (GORZ: 2003, p. 63) que prope outra concepo de sociedade.

    Ser a partir dessa perspectiva, que orientou as polticas culturais

    brasileiras durante o governo Lula, como vimos, que iremos analisar

    os agentes integrantes das redes de produo imaterial e ao pol-

    tica brasileiras articulados em torno do MetaReciclagem, do Fora do

    Eixo, do Transparncia Hacker e do Enraizados. Antes, no entanto,

    faz-se necessrio um aprofundamento terico.

    A PRODUOIMATERIALEABIOPOLTICAGorz, em seu estudo sobre a produo imaterial, cita uma pro-

    posio de Patrick Viveret, para quem preciso:

    detectar as pessoas e os grupos portadores de vises cul-turais e espirituais que tm ou tero um papel essencial

    para dar vida ideia de que a humanidade est centrada

    numa nova era, necessitando de novos quadros conceituais,

    culturais e ticos para acompanhar essa grande mutao.

    (GORZ: 2003, p. 63)

    exatamente este o fito desta nota: localizar novos quadrosconceituais, culturais e ticos desta grande mutao. As ideias cen-

    trais da comunidade virtual, virtualmente universal, dos usurios-

    -produtores de programas de computador e de redes livres (GORZ:

    2003, p. 66) foram apropriadas e deram origem, no Brasil, a grupos

    6 Dado publicado em tabela comparativa do CIA World Factbook, tambm disponvel em:.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    polticos que partilham de vises e mtodos dessa fora matricial,

    aplicando-a em diferentes reas do fazer, em especial na produo

    de comunicao e cultura (imaterial).

    A utilizao de autores de origem marxista, que se debruamsobre esse deslocamento ocasionado pela passagem do capitalismo

    de sua fase industrial para a sua fase ps-industrial, nos ajuda a per-

    ceber tambm quais so as foras que trazem consigo a possibilidade

    de realizar um enfrentamento no centro da nova disputa mobilizada

    pelo capital. Para Gorz, as redes livres instauram relaes sociais

    que esboam uma negao prtica das relaes sociais capitalistas.

    (GORZ: 2003, p. 66) Podemos estender essa concluso para as redes

    surgidas no Brasil no incio do sculo 21?

    Anlise semelhante de Gorz, autor com o qual mantm profcuo

    dilogo intelectual, fazem Michael Hardt e Antonio Negri, autores

    da trilogia Imprio, Multidoe Commonwealth, obras de filosofia

    poltica que procuram traar uma viso do capitalismo contempo-

    rneo bem como apontar formas de enfrent-lo.

    Falamos anteriormente das novas formas hegemnicas detrabalho imaterial que dependem de redes comunicativas

    e colaborativas que compartilhamos e que, por sua vez,

    tambm produzem novas redes de relaes intelectuais,

    afetivas e sociais. Essas novas formas de trabalho, como

    explicamos, apresentam novas possibilidades de autogesto

    econmica, pois os mecanismos de cooperao necessrios

    para a produo esto contidos no prprio trabalho. (HAR-DT & NEGRI: 2005, p. 421)

    No interior das redes livres de produo imaterial e ao poltica

    novas redes de relaes intelectuais, afetivas e sociais reside

    a possibilidade de autogesto econmica, justamente porque os

    mecanismos de cooperao necessrios para a produo partem

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    do trabalho cuja forma reificada, na viso de Gorz est virtualmente

    abolida. O terico radicado na Frana, recentemente falecido, afirma

    que os meios de produo se tornaram apropriveis e suscetveis

    de serem partilhados. (GORZ: p. 21) O computador, ento, revela-secomo instrumento universal, universalmente acessvel, por meio

    do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princpio,

    ser partilhados. (GORZ: p. 21)

    o computador, e sua interconexo em rede, aliado s demais

    tecnologias digitais apropriveis e recombinveis, o instrumento do

    trabalho das redes aqui analisadas. Trazem elas, consigo, portanto, a

    potncia de produzir de forma no alienada, transformando-se em

    laboratrios de alternativas sociais e econmicas. Outro aspecto que

    precisa ser considerado que, ao falarmos de produo imaterial,

    estamos falando da produo de saber, conhecimento e cultura, que

    no se constituem como uma mercadoria qualquer (GORZ: p. 59),

    porque possuem valor (monetrio) indeterminvel. Uma vez digi-

    talizados, esses produtos podem se multiplicar infinitamente, sem

    perda de qualidade e sem que sejam necessrios custos adicionais

    para produzir essa multiplicao.O objetivo deste texto no forar a mo para encaixar os movi-

    mentos em anlise nas teorias supracitadas, mas observar o quanto

    esse raciocnio til para compreender esse fenmeno, abrindo-se

    para demonstrar sua potncia poltica.

    Na realidade, quando produtos do trabalho no so bens ma-

    teriais, mas relaes sociais, redes de comunicao e formasde vida, torna-se claro que a produo econmica implica

    imediatamente uma forma de produo poltica, ou a pro-

    duo da prpria sociedade. (HARDT & NEGRI: 2005, p. 421)

    Produo imaterial e ao poltica, portanto, nesse contexto, so

    indissociveis. Afinal, o poder tomou de assalto a vida (PELBART:

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    2007), fazendo da vida e das relaes sociais o motor do capitalismo

    contemporneo. Com isso, as formas de luta biopoltica so as que

    podem apresentar alternativas (biopotncia), nos termos do que

    nos explicam os autores do movimento da autonomia italiana7

    .

    Poderamos resumir este movimento do seguinte modo: ao

    poder sobre a vida responde a potncia da vida. Mas esse

    responder no significa uma reao, j que o que se vai

    constatando cada vez mais que essa potncia de vida j

    estava l e por toda a parte, desde o incio. A vitalidade social,

    quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampiri-

    zar, aparece subitamente na sua primazia ontolgica. Aquilo

    que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido

    a mera passividade, isto , a vida, aparece agora como um

    reservatrio inesgotvel de sentido, como um manancial

    de formas de existncia, como um germe de direes que

    extrapolam, e muito, as estruturas de comando e os clculos

    dos poderes constitudos. (PELBART: 2007, p. 57-65)

    Para Hardt e Negri:

    A produo econmica torna-se cada vez mais biopoltica,

    voltada no s para a produo de bens, mas em ltima

    anlise para a produo de informao, comunicao,

    cooperao em suma, a produo de relaes sociais e de

    ordem social. (HARDT & NEGRI: 2005, p. 419)

    Por isso, afirmam, que cultura vem a ser diretamente um

    elemento tanto da ordem poltica quanto da produo econmica

    (HARDT & NEGRI: 2005).

    7 A autonomia italiana tem como representantes autores como Paolo Virno, Giuseppe Cocco(radicado no Brasil), Maurcio Lazaratto e Antonio Negri, entre outros.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    ASREDESGANHAMASREDESPercorrido o aprofundamento terico, hora de descrever as

    redes livres de produo imaterial e ao poltica que surgiram na

    ltima dcada no Brasil. Essa descrio, ainda que superficialmente posto que cada uma delas poderia ser objeto de um estudo

    especfico nos ajudar a perceber o que h nelas que as distingue

    e permite a anlise que estamos buscando estruturar.

    1. METARECICLAGEMA rede MetaReciclagem, articulada em torno da plataforma

    , teve incio a partir da lista de

    discusso do projeto Met:Fora, que reuniu, a partir do ano de

    2002, articuladores de aes ligadas s novas tecnologias e que

    tinham como interesse entender e propor aplicaes para uma

    realidade em que passaremos do on-line/off-line para uma cultura

    permanentemente conectada8. Nesse mesmo ano, em conversaes

    na lista de discusso, surge o termo MetaReciclagem, conforme est

    descrito no site oficial:

    A MetaReciclagem uma rede distribuda que atua desde

    2002 no desenvolvimento de aes de apropriao de

    tecnologia, de maneira descentralizada e aberta. A rede

    comeou em So Paulo em parceria com a ONG Agente

    Cidado, como um projeto de captao e remanufatura

    de computadores usados que posteriormente eram dis-

    tribudos para projetos sociais de base. A MetaReciclagemsempre teve por base a desconstruo do hardware, o uso

    de software livre e de licenas abertas, a ao em rede e a

    busca por transformao social.9

    8 Disponvel em: .9 Disponvel em: . Acesso em22/11/2011.

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    Muitos dos agentes dessa rede teriam papel fundamental na

    estruturao das polticas pblicas de incluso digital do governo

    Lula, em especial no Programa Cultura Viva, cuja ao principal so

    os Pontos de Cultura. Durante os anos de 2003 e 2004, uma rede dejovens articuladores proporia ao Ministrio da Cultura a criao dos

    kits multimdia, utilizando-se de software livre, que seriam distribu-

    dos aos Pontos de Cultura, organizaes da sociedade civil premiadas

    por meio de edital pblico por sua reconhecida contribuio para

    a cultura brasileira, em especial a cultura popular.

    A participao da rede MetaReciclagem destacada por Cludio

    Prado, coordenador da ao cultura digital no Ministrio da Cultura,

    em entrevista no livro CulturaDigital.Br:

    [...] eram vrios grupos. O Arca, que era mais ligado ao

    software livre propriamente dito, o Met:Fora, j estava

    trabalhando a ideia do MetaReciclagem. MetaReciclagem

    reciclar dentro de uma percepo quntica e no puramente

    material. Houve uma enorme confuso justamente com essa

    questo de qual o limite do hardware e do software. Essascoisas se confundem de uma forma fantstica. O hardware

    se submete ao software em um determinado momento,

    depois inverte, e nesse ping-pong de hardware e software

    foi que aconteceu a revoluo toda. (PRADO: 2009, p. 48)

    A partir de 2009, com a dissoluo das aes vinculadas ao

    Ministrio da Cultura e com o aprofundamento da cooperaointernacional, o grupo passa a se entender essencialmente como

    uma rede aberta que promovia a desconstruo e apropriao de

    tecnologias10com a finalidade de promover transformao social.

    Como afirma Fonseca em seu livro Laboratrios do Ps-Digital,

    a MetaReciclagem foi concebida genuinamente em rede, e imple-

    10 Ibidem.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    mentada de forma distribuda e totalmente livre. (FONSECA: 2011,

    p. 18). Nesse mesmo texto, o ativista faz cinco afirmaes sobre os

    primrdios da Metarec, como conhecida por parte de seus agentes,

    entre os quais, a compreenso do carter cultural das redes livresconectadas, a emergncia de novas formas de relacionamento social

    e de inovao a partir delas. (FONSECA: 2011, p. 18)

    Atualmente, a rede MetaReciclagem conta com cerca de 500

    membros em sua lista aberta de discusso, e possui em funciona-

    mento 10 pontos locais de articulao, conhecidos como Esporos11.

    Essa dimenso afirmada de busca pela transformao social afir-

    ma a perspectiva eminentemente poltica da rede, cujas decises

    so tomadas internamente por meio de consensos e em encontros

    autogestionados.

    2. FORADOEIXOO Fora do Eixo () uma rede de coleti-

    vos de produo cultural que est presente em todos os estados do

    Brasil. Sua histria remonta criao, em Cuiab, do coletivo Cubo

    Mgico, em 2002. Seria por meio das lideranas ligadas ao Cubo, cujagrande inovao foi a criao de uma moeda social, o Cubo Card,

    para organizar a cena local de msica jovem na capital do Mato

    Grosso, que o Circuito Fora do Eixo teria incio. A rede ser articula

    em 2005, por meio de uma parceria entre produtores matogrossenses

    e seus pares de Rio Branco (AC), Uberlndia (MG) e Londrina (PR).

    Conforme registra Pablo Capil, ativista que o principal porta-voz

    da rede, em entrevista no livro Produo Cultural no Brasil.

    O Fora do Eixo surge como movimento social, sem natu-

    reza jurdica clara, mas que j estava muito mais disposto

    a debater comportamento do que propriamente a cadeia

    11 Um esporo um espao autogestionado de referncia, desenvolvimentoe replicaodaMetaReciclagem., trecho retirado de .

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    produtiva da msica. Era uma forma de a gente tentar visu-

    alizar como aquela moeda complementar poderia interferir

    no comportamento do agente produtivo. Buscamos, em

    vez de produtoras, coletivos que quisessem debater comesse movimento social. O Circuito Fora do Eixo trabalhava

    para organizar o terceiro setor, j entendendo que, a partir

    do movimento ligado musica, a gente poderia entender

    melhor o sentido antropolgico de cultura, que no fosse s

    mercado, mas que fosse comportamental. O circuito surge

    no meio disso. (CAPIL: 201012)

    O Fora do Eixo hoje uma expresso poltico-cultural brasileira

    de dimenso nacional e grande reputao. Rene, em sua articula-

    o, cerca de 2 mil integrantes, que participam dos coletivos locais

    e da organizao nacional13. Sua conformao como rede de produ-

    o imaterial transcende inclusive o que costuma ser considerado

    cultura pelos poderes pblicos e pelo mercado, centrados em geral

    nas artes reconhecidas e no patrimnio edificado.

    O principal ponto de avano a gente ter conseguido defi-

    nitivamente sair da perspectiva de ser coletivos de msica

    para a perspectiva de coletivos de tecnologia social.A galera

    conseguiu deixar de entender cultura como nica e exclusi-

    vamente linguagem artstica. O que a gente tenta estabelecer

    uma transformao comportamental, em que cada um dos

    agentes desses coletivos pode ser construtor de um alicercepara uma srie de linguagens, mas no necessariamente

    dentro da arte. (CAPIL: 2010)

    12 Disponvel em: .13 Estabelecendo um comparativo, o movimento poltico-cultural Centro Popular de Cultura(CPC), que teve origem no Rio de Janeiro na dcada de 1960 e at hoje considerado uma gran-de referncia desse tipo de articulao no pas no chegou a reunir 500 membros em seu auge.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    Destaque-se a afirmao de Capil sobre o circuito Fora do Eixo

    como uma rede de produo de tecnologia social e tambm a n-

    fase dada pelo ativista no papel de movimento poltico que se est

    buscando. No toa, foi a partir das articulaes lideradas por essemesmo grupo que surgiram outras iniciativas de grande importn-

    cia no cenrio cultural contemporneo, como o fortalecimento da

    Associao Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), a criao

    do Partido da Cultura, que vem buscando interlocuo com a classe

    poltica tradicional sobre questes de interesse das novas geraes14,

    a reunio da Universidade da Cultura15, que tem elaborado mode-

    los abertos de formao, e as Marchas da Liberdade16, que levaram

    milhares de pessoas s ruas em vrias cidades do pas.

    Em 2011, o Fora do Eixo assumiu uma ao permanente em So

    Paulo, onde alugaram uma casa no bairro do Cambuci que serve

    como sede operacional para o comando nacional. Nesse mesmo

    ano, casas semelhantes foram criadas em Porto Alegre, Fortaleza,

    Belo Horizonte, Manaus, So Carlos, ampliando ainda mais a fora

    aglutinadora do circuito. Importante destacar que, conforme apon-

    tam os relatrios de produtividade publicamente compartilhadospela organizao, a maior parte do valor produzido17internamente

    segue sendo trocado por meio do uso de moeda social, o que faz

    do Fora do Eixo pioneiro no uso da economia solidria para a arti-

    culao de circuitos de produo imaterial. Nas casas Fora do Eixo

    os moradores partilham todos os seus bens por meio de um caixa

    coletivo, utilizado para os gastos correntes e as necessidades bsicas

    de seus habitantes.No discurso de construo do circuito, Capil atribui democra-

    tizao do acesso internet de alta velocidade importncia central.

    Para o porta-voz, foi por meio da rede que ele pde articular as

    14 Disponvel em: .15 Disponvel em: .16 Disponvel em: .17 Disponvel em: .

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    primeiras aes com seus pares e por meio das novas tecnologias

    que segue tecendo as associaes.

    A internet to veloz quanto o que a gente est construin-do. Essa a plataforma poltica que consegue olhar para a

    gente de igual para igual. A gente parceiro. Velozes iguais.

    a ferramenta ideal para que essa histria pudesse acon-

    tecer. No fosse isso, dificilmente conseguiramos com

    tanta agilidade chegar onde chegamos, no desterritrio,

    na zona de contaminao, nas trocas de tecnologia e na

    inteligncia colaborativa. 18

    3. TRANSPARNCIAHACKER

    A comunidade Transparncia Hacker a rede mais nova em

    anlise neste trabalho. Por esse fator, h pouca documentao

    publicada sobre o que vem sendo desenvolvido por essa articulao,

    formada eminentemente por desenvolvedores, jornalistas e

    gestores pblicos interessados em promover a transparncia na

    poltica. Daniela Silva, uma das principais articuladoras da rede,explica:

    A Transparncia Hacker uma comunidade de hackers e ati-

    vistas das novas formas de fazer poltica na rede. Isso passa

    pela questo da informao pblica, dos dados abertos, das

    tecnologias livres, mas tambm corresponde a uma causa

    maior que tem a ver com reverter a ordem como trata-mos de assuntos coletivos, com engajar grupos que antes

    no participavam da ao e do discurso pblico (por falta

    de espao no debate ou por falta de interesse em formatos

    muito antigos), com fazer mudana usando os recursos que

    18 Afirmao feita por Capil em entrevista a Rodrigo Savazoni, publicada parcialmente nareportagem A reinveno da poltica, na revista Frum, edio 99, junho de 2011: .

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    temos, simplesmente porque possvel. Eu gosto de pensar

    que somos ativistas do direito de fazer. bizarro perceber a

    quantidade de impossibilidades a que grupos e indivduos

    so submetidos quando querem provocar mudanas. (...)Por isso os ativistas do direito de fazer ou do direito de

    agir publica e coletivamente em prol do que acreditamos

    ser importante so necessrios.19

    O grupo ganhou notoriedade quando clonou o blog do Planalto,

    que fora lanado pelo ento presidente Luiz Incio Lula da Silva

    sem permitir aos usurios interao por meio de comentrios. Os

    ativistas hackers criaram uma pgina semelhante oficial, a qual

    reproduzia integralmente os contedos originais, com o diferencial

    de permitirem interao sem qualquer moderao.

    A partir da, passaram a realizar encontros para raquear20dados

    pblicos e criar aplicativos polticos. Atualmente, a lista aberta de

    discusso do THacker, como tambm so conhecidos, j superou a

    marca de 800 participantes. Daniela Silva avalia as caractersticas

    polticas especficas da rede que ajudou a articular:

    Olhando pra esses dois anos de comunidade, percebo que

    a THacker manifesta alguns princpios na sua prtica. No

    temos carta de tica, nem regras de uso. O que quero dizer

    que, de acordo com o que essas mais de 800 pessoas

    praticam, d pra perceber quais so os princpios que nos

    agregam na mesma rede. Para citar alguns deles: colabo-rao, liberdade, autonomia, tica hacker, abertura pra

    formas novas de agir e de pensar sobre o mundo, valores

    19 Entrevista de Daniela Silva, uma das principais articuladoras da comunidade Transparn-cia Hacker, a Rodrigo Savazoni, publicada no site do Festival CulturaDigital.Br20 A expresso raquear um abrasileiramento, a criao de um verbo em portugus para oato de realizar um hack(hackear). Essa expresso vem sendo adotada j h alguns anos pelosativistas da liberdade do conhecimento.

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    A ONDA ROSA-CHOQUE

    polticos emergentes e mutveis (ou mutantes) e um certo

    gostinho pela provocao. Todas essas so coisas altamente

    poderosas na poltica.21

    Uma das recentes iniciativas articuladas pela comunidade

    o projeto Queremos Saber22, um portal voltado para o envio

    de perguntas abertas para os canais de fale conosco dos rgos

    pblicos. Tambm h o SACSP, que raqueou os dados do servio de

    atendimento ao cidado da prefeitura de So Paulo, e o Deputado

    Analytics23, que utiliza dados pblicos para criar um ranking de

    comportamento dos congressistas. Essas iniciativas so construdas

    com grande celeridade pelos ativistas do Thacker, na perspectiva

    do faa voc mesmo. Essa forma de agir uma das caractersticas

    centrais dessa rede, mas no a nica, como detalha Daniela Silva:

    Falando sobre referncias e sobre nossas interaes com

    movimentos contemporneos, acho que vale reparar que

    nos inspiramos muito na forma independente e ao mesmo

    tempo coesa como funcionam as comunidades de softwarelivre, mas no nos identificamos quase em nada com o jeito

    engessado e restritivo dos movimentos sociais tradicionais.

    Muitos de ns militam em diversos outros grupos ligados

    liberdade a abertura cultura livre, recursos educacionais

    abertos, software livre, por exemplo, o que faz absoluto

    sentido, uma ligao orgnica e natural. 24

    A ativista, durante a entrevista, tambm destacou o fato de que

    as redes articulam processos bottom up25, em que a capacidade de

    21 Idem.22 Disponvel em: .23 Disponvel em: .24 Ibidem.25 De baixo para cima.

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    reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea

    criar e inventar novos caminhos importa mais do que a reproduo

    de procedimentos consagrados.

    Ningum sozinho teria sido criativo suficiente para criar aslan houses. Nenhum governo, movimento social ou ONG

    teria feito um projeto de empreendedorismo baseado em

    pouqussimos recursos prprios, sevirismo, experincia e

    marketologia local. A emergncia dessa ideia garante que

    a gente continue vislumbrando os potenciais de transfor-

    mao da rede e ainda por cima implementada de forma

    autnoma, por pessoas que esto na periferia da poltica e da

    sociedade, colocando seus pares pra dentro dos processos

    de comunicao. um processo revolucionrio no apenas

    no contedo, mas no formato e na vocao.

    4. ENRAIZADOSO Movimento Enraizados teve incio em 2000, em Nova Iguau, Rio

    de Janeiro, por iniciativa do rapper Dudu de Morro Agudo (DMA), que

    tambm programador de computador. poca, como ele relata emseu livro Enraizados os hbridos glocais26, uma narrativa em primeira

    pessoa do processo de construo da rede, DMA queria entrar em

    contato com outros jovens das periferias que tivessem interesse em

    dialogar sobre a cultura hip hop. Valendo-se de um velho computa-

    dor, conhecimentos bsicos de linguagem web, e disposio acima

    da mdia, ele colocou no ar um site de rede social ainda que sem

    todos os recursos que viriam a consagrar esse tipo de mdia. Com essetrabalho, conseguiu contatar pessoas do Brasil e do exterior e forjar o

    embrio de uma ampla rede de mobilizao de jovens das periferias.

    No artigo Hbrido glocal, ciberativismo e tecnologias da infor-