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A ocupação medieval no Monte da Sª Do Castelo 187 A ocupação medieval no Monte da Sª Do Castelo, Urros, Torre de Moncorvo Carla Maria Braz Martins* * Bolseira da PRAXIS XXI. Doutoranda em arqueologia na FLUP [email protected] INTRODUÇÃO O castro de Sª do Castelo localiza-se na freguesia de Urros, concelho de Torre de Moncorvo, distrito de Bragança, à longitude de W 7º 2’ 19’’ e à latitude de n 41º 4’ 38’’, com uma altitude de 667m. Geologicamente tem depósitos de vertente, formados na época Quaternária (Holocénico), e uma formação quartzítica constituída por quartzitos inferiores e xistos intermédios, do período ordovícico (arenigiano) (Silva, 1991). É um castro com um fácil acesso a Este, através de um caminho de carreteiro, arranjado recentemente (permite o acesso de automóvel); a encosta Sul e Oeste são escarpadas, constituindo uma defesa natural, enquanto a vertente Norte tem um declive não muito acentuado, facilitando o seu acesso. Não obstante, verifica-se a presença de duas linhas de muralhas, para um reforço defensivo, estando-se portanto na presença de um castro fortificado. No topo, sobre um maciço rochoso, encontra-se uma bonita capela dedicada a Sª do Castelo, onde, aquando das obras no adro, foram encontradas moedas romanas. Na vertente Norte encontra-se uma gruta denominada Cova / Buraco dos Mouros, à qual estão associadas várias crenças fielmente guardadas pelos seus populares. Prospecções efectuadas neste monte revelam, a nível arqueológico, uma ocupação desde a época calcolítica à época medieval, associando-se o já referido Buraco dos Mouros a uma possível exploração mineira de época romana. Sande Lemos, no seu trabalho de investigação, Povoamento Romano de Trás-Os-Montes Oriental, inventaria o topo do monte de Sª do Castelo como um povoado calcolítico, castro da idade do ferro romanizado e castelo medieval; o Buraco dos Mouros como fruto de exploração mineira romana, provavelmente de ouro; e o sopé Noroeste deste monte como um povoado romano mineiro (Lemos, 1993, p. 366 nº 710, p. 367 nº 711 e p. 368 nº 712). E se se relacionar estes vestígios materiais, cerâmicos e estruturas, com a excelente localização geográfica sobre o rio Douro, visualizando-se outros montes importantes, como o do Poio (Urros) e o Monte Calabre (Almendra, Vª Nª de Foz Côa) alti-medieval, poder-se-á assumir que este castro teria tido na altura uma posição estratégica dominando a região circundante. Na base deste monte, existe uma capela dedicada a Stº. Apolinário, de estrutura românica, que nas suas imediações apresentou, a nível de prospecção, materiais atribuíveis ao período da romanização e medieval (Lemos, 1993, p. 368-369 nº 713). A época medieval em Urros está mais bem documentada e estudada, sabendo-se que teve um papel relevante integrado no plano reordenador da Monarquia, tendo tido portanto carta de foral em 1182 concedida por D. Afonso Henriques. ÉPOCA MEDIEVAL A partir do séc. IV é crescente a instabilidade política, a ruralização da sociedade e da economia, e os clássicos cânones até então vigentes, alteram-se adquirindo novos valores estéticos (Miranda; Silva, 1995, p. 21), expressivos de uma inquietação e espiritualidade reflectoras de uma mutação progressiva de mentalidade. Quando Constantino com o Édito da Tolerância ou Édito de Milão por volta do ano de 313, reconhece o cristianismo como uma forma de culto (Janson, 1989, p. 199), este passa de um ritual secreto, outrora realizado em catacumbas de forma ilícita, para um sistema organizado que pressupõe um espaço, no qual se reúnem os seus fiéis para juntos celebrarem as suas cerimónias religiosas. No espaço para tal efeito, construir-se-iam igrejas (Janson, 1989:199) que de certa forma são uma adaptação do espaço da basílica pagã; de facto, o altar é situado à frente da abside, que poderá estar na continuidade de um transepto virado para Este da nave longitudinal que atravessa o espaço, enquanto a entrada é colocada exactamente no seu oposto, isto é, virada a Oeste (Janson, 1989:200). Normalmente a entrada era precedida por um atrium ladeado de pórticos, que fazia a interligação com a igreja através de um vestíbulo – narthex (Janson, 1989:200). Inserido neste processo de cristianização rural, o cânone 5 do I Concílio de Toledo refere que é permitido proceder à construção de uma igreja nos castella, fora do âmbito urbano (López Quiroga, 2001:83).

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A ocupação medieval no Monte da Sª Do Castelo

187

A ocupação medieval no Monte da Sª Do Castelo, Urros, Torre de Moncorvo

Carla Maria Braz Martins*

∗ Bolseira da PRAXIS XXI. Doutoranda em arqueologia na FLUP [email protected]

INTRODUÇÃO

O castro de Sª do Castelo localiza-se na freguesia de

Urros, concelho de Torre de Moncorvo, distrito de Bragança, à longitude de W 7º 2’ 19’’ e à latitude de n 41º 4’ 38’’, com uma altitude de 667m.

Geologicamente tem depósitos de vertente, formados na época Quaternária (Holocénico), e uma formação quartzítica constituída por quartzitos inferiores e xistos intermédios, do período ordovícico (arenigiano) (Silva, 1991).

É um castro com um fácil acesso a Este, através de um caminho de carreteiro, arranjado recentemente (permite o acesso de automóvel); a encosta Sul e Oeste são escarpadas, constituindo uma defesa natural, enquanto a vertente Norte tem um declive não muito acentuado, facilitando o seu acesso. Não obstante, verifica-se a presença de duas linhas de muralhas, para um reforço defensivo, estando-se portanto na presença de um castro fortificado.

No topo, sobre um maciço rochoso, encontra-se uma bonita capela dedicada a Sª do Castelo, onde, aquando das obras no adro, foram encontradas moedas romanas.

Na vertente Norte encontra-se uma gruta denominada Cova / Buraco dos Mouros, à qual estão associadas várias crenças fielmente guardadas pelos seus populares.

Prospecções efectuadas neste monte revelam, a nível arqueológico, uma ocupação desde a época calcolítica à época medieval, associando-se o já referido Buraco dos Mouros a uma possível exploração mineira de época romana.

Sande Lemos, no seu trabalho de investigação, Povoamento Romano de Trás-Os-Montes Oriental, inventaria o topo do monte de Sª do Castelo como um povoado calcolítico, castro da idade do ferro romanizado e castelo medieval; o Buraco dos Mouros como fruto de exploração mineira romana, provavelmente de ouro; e o sopé Noroeste deste monte como um povoado romano mineiro (Lemos, 1993, p. 366 nº 710, p. 367 nº 711 e p. 368 nº 712).

E se se relacionar estes vestígios materiais, cerâmicos e estruturas, com a excelente localização geográfica sobre o rio Douro, visualizando-se outros montes importantes, como o do Poio (Urros) e o Monte Calabre (Almendra, Vª Nª de Foz Côa) alti-medieval,

poder-se-á assumir que este castro teria tido na altura uma posição estratégica dominando a região circundante.

Na base deste monte, existe uma capela dedicada a Stº. Apolinário, de estrutura românica, que nas suas imediações apresentou, a nível de prospecção, materiais atribuíveis ao período da romanização e medieval (Lemos, 1993, p. 368-369 nº 713).

A época medieval em Urros está mais bem documentada e estudada, sabendo-se que teve um papel relevante integrado no plano reordenador da Monarquia, tendo tido portanto carta de foral em 1182 concedida por D. Afonso Henriques.

ÉPOCA MEDIEVAL

A partir do séc. IV é crescente a instabilidade política, a ruralização da sociedade e da economia, e os clássicos cânones até então vigentes, alteram-se adquirindo novos valores estéticos (Miranda; Silva, 1995, p. 21), expressivos de uma inquietação e espiritualidade reflectoras de uma mutação progressiva de mentalidade.

Quando Constantino com o Édito da Tolerância ou Édito de Milão por volta do ano de 313, reconhece o cristianismo como uma forma de culto (Janson, 1989, p. 199), este passa de um ritual secreto, outrora realizado em catacumbas de forma ilícita, para um sistema organizado que pressupõe um espaço, no qual se reúnem os seus fiéis para juntos celebrarem as suas cerimónias religiosas.

No espaço para tal efeito, construir-se-iam igrejas (Janson, 1989:199) que de certa forma são uma adaptação do espaço da basílica pagã; de facto, o altar é situado à frente da abside, que poderá estar na continuidade de um transepto virado para Este da nave longitudinal que atravessa o espaço, enquanto a entrada é colocada exactamente no seu oposto, isto é, virada a Oeste (Janson, 1989:200). Normalmente a entrada era precedida por um atrium ladeado de pórticos, que fazia a interligação com a igreja através de um vestíbulo – narthex (Janson, 1989:200).

Inserido neste processo de cristianização rural, o cânone 5 do I Concílio de Toledo refere que é permitido proceder à construção de uma igreja nos castella, fora do âmbito urbano (López Quiroga, 2001:83).

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Os castella e castra, nos princípios do séc. V, mediante a instabilidade então vivida, atraem as populações por motivos geopolíticos, defensivos e hierárquicos (López Quiroga, 2001:84), surgindo assim como um reduto defensivo, que se poderá manter ao longo da idade média, fazendo parte integrante de um sistema estratégico de defesa (reconquista) (López Quiroga, 2001: 86).

Sendo assim, e uma vez que a povoação desde a época romana está estabelecida nas zonas de vale, é possível a edificação de um pequeno espaço sagrado no cimo do monte.

Paralelamente a estes novos espaços de culto, surgem também espaços definidos para o enterramento cristão (Barroca, 1987:12).

A morte, desde esta altura e ao longo de toda a idade média, é um tema fulcral na vida das pessoas. A crença na Ressurreição e na vida eterna, leva a que o processo de enterramento seja a inumação com uma orientação W – E (Barroca, 1987:7).

Os então chamados cemitérios, para procedimento de enterramentos, já que desde o I Concílio de Braga no ano de 561 se proíbe o enterramento no interior de um templo (Barroca, 1987:19), passam a efectuar-se em torno das igrejas (cerca do séc. IX) (Barroca, 1987:24).

Mas tal espaço também é hierarquizado, dado que o interior das igrejas se destinava à hierarquia religiosa e civil e o adro para a restante população (Barroca, 1987:26).

No caso do monte da Sª do Castelo, está-se perante uma necrópole, em que até ao momento foram detectados dezoito enterramentos, onze dos quais exumados, num total de doze indivíduos, cujo estudo antropológico foi efectuado em Dezembro de 2000 pela BioAnthropos, Lda:

Ent. I – sepultura aberta em terra, indivíduo com a cabeça amparada por lajes, orientada no sentido W-E; dimensões da sepultura: comprimento máximo – 2,04 m, largura máxima – 0,56 m, profundidade 0,21 m.

A análise antropológica revelou que se trata de um indivíduo de sexo masculino, com uma idade compreendida entre os 30-40 anos à morte, e com uma estatura que rondava os 1,68 m (mais ou menos 6,9 cm).

Os seus ossos mostraram a existência de artroses nas articulações, assim como uma infecção de origem desconhecida não activa na hora da morte.

Ent. II – sepultura escavada na rocha, orientada no sentido W-E, com as seguintes dimensões: comprimento máximo – 0,53 m, largura máxima – 0,13 m, profundidade – 0,05 m.

A análise antropológica revelou que se trata de um recém-nascido, que terá morrido com mais ou menos 2 meses.

Ent. III – sepultura escavada na rocha, orientada no sentido W-E, com as dimensões: comprimento máximo - 0,81 m, largura máxima – 0,15 m, profundidade – 0,07 m.

A análise antropológica revelou tratar-se de um indivíduo que teria morrido com cerca de 3 anos (mais ou menos 12 meses), com meningite tuberculosa.

Ent. IV – sepultura que aproveitou o declive da rocha base, e assente em terra, com uma orientação no sentido

W-E, com as seguintes dimensões: comprimento máximo - 1,77 m, largura máxima – 0,39 m, profundidade – 0,10 m.

A análise antropológica revelou um indivíduo provavelmente de sexo masculino, que terá morrido com 18-21 anos, e com uma infecção não específica (de origem desconhecida) activa na altura da morte.

Ent. V – enterramento muito destruído e lateral sobre o ent. VI, com orientação no sentido W-E, com comprimento máximo de 0,70 m e largura máxima de 0,35 m.

A análise antropológica revelou um indivíduo que terá morrido com cerca de 3 anos (mais ou menos 12 meses).

Ent. VI – sepultura escavada na rocha, com uma orientação no sentido W-E, de dimensões: comprimento máximo – 1,45 m, largura máxima – 0,33 m, profundidade 0,21 m.

A análise antropológica revelou um indivíduo do sexo masculino que terá morrido com 40-50 anos. Teria uma estatura de 1,56 m (mais ou menos 6 cm). Os seus ossos mostram artroses e teria à hora da morte uma infecção activa.

Ent. VII – sepultura escavada na rocha, com uma orientação no sentido W-E, de dimensões: comprimento máximo – 0,82 m, largura máxima – 0,19 m, profundidade - 0,10 m.

A análise antropológica revelou um indivíduo que terá morrido com cerca de 2 anos (mais ou menos 2 meses).

Ent. VIII – sepultura constituída por lajes em xisto (S.1), com uma orientação no sentido W-E, de dimensões (interior): comprimento máximo – 0,78 m, largura máxima – 0,20 m, profundidade – 0,12 m.

A análise antropológica revelou uma criança que terá morrido com 18 meses (mais ou menos 6 meses) com meningite tuberculosa ou tuberculose.

Ent. IX – sepultura sobre terra ladeada por terra e argila compacta, com orientação no sentido W-E, de dimensões: comprimento máximo – 1,03 m, largura máxima – 0,40 m, profundidade 0,15 m.

Este enterramento continha dois esqueletos. A análise antropológica revelou duas crianças com 2

anos (mais ou menos 8 meses) e 3 anos (mais ou menos 12 meses), em que uma delas morreu com tuberculose.

Ent. X – sepultura sobre terra ladeada por terra e argila compacta, orientada no sentido W-E, com dimensões: comprimento máximo – 1,80 m, largura máxima 0,80 m, profundidade 0,20 m.

A análise antropológica revelou um indivíduo do sexo masculino que terá morrido com 40-50 anos, com tuberculose. A sua estatura rondava os 1,60 m (mais ou menos 6,9 cm).

Ent. XI – sepultura escavada na rocha e totalmente coberta por lajes de xisto (S.2), com uma orientação no sentido W-E, e de dimensões: comprimento máximo – 1,60 m, largura máxima – 0,44 m, profundidade – 0,25 m.

A análise antropológica revelou tratar-se de um indivíduo provavelmente do sexo masculino, que terá morrido com 15 anos (mais ou menos 36 meses) de uma doença infecciosa activa (eventualmente tuberculose).

Os dados apresentados pelo estudo revelam a presença de sete crianças, dois adolescentes, cujo

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provável sexo será o masculino, e três adultos de sexo masculino.

Apesar da amostra não ser significativa em nº de indivíduos, não se pode esquecer que se está perante uma sondagem de 4 X 4 m, o que dá logo uma indicação da ocupação do espaço.

O espaço da necrópole, ao que tudo indica até ao presente momento, ocupará toda a zona Sul do cimo do monte, não havendo uma distinção entre enterramentos de indivíduos adultos e crianças; ou seja, estamos perante um cemitério misto.

De facto, no mesmo local e de permeio, coexistem, deixando no entanto uma dúvida em relação aos adultos de sexo feminino, já que até agora ainda nenhum foi exumado. Supõe-se contudo, que tal se deve a uma intervenção arqueológica numa zona muito restrita.

A tipologia das sepulturas revela quase invariavelmente sepulturas escavadas na rocha ou em terra e argila compacta, ladeadas por lajes de xisto de média e pequena dimensão, com cobertura de lajes de xisto. As sepulturas são de forma rectangular com cantos arredondados, ou ovaladas, onde no seu interior seria depositado o defunto, provavelmente envolto em alguma espécie de mortalha.

Esta tipologia é em tudo semelhante à existente na necrópole do Prazo, em Freixo de Numão. Sá Coixão refere o tipo 1A, datado dos séc.s V-VII, constituído por sepulturas escavadas na rocha; o tipo 1B, datado dos séc.s VII/VIII-IX, em que as sepulturas são constituídas por pedras alinhadas. De características idênticas o tipo 2A, já datado dos séc.s IX-XI e o tipo 3B (lajes de xisto alinhadas e dispostas na vertical) datado dos séc.s XII-XIII (Coixão, 1999:54).

É óbvio que a relação tipologia / datação é sempre problemática. Quanto à primeira, poderá estar relacionada com os próprios acidentes de terreno, como a seguir se expõe:

- todo o cimo do monte tem grandes desníveis, estando a superfície do cimo e plataforma envolvente, em muitos locais quase na rocha base;

- à medida que nos vamos afastando em direcção ao perímetro da primeira linha de muralhas, as cotas vão sendo menores, consequentemente a rocha base estará a uma cota inferior.

Sendo certo que a necrópole está praticamente implantada na rocha base (daí não se encontrarem os registos das ocupações anteriores e os materiais aparecerem todos misturados, em terras de revolvimento), como é o caso dos enterramentos II, III, XI, XII, XIII, XIV, XV e XVI, enterramentos há, em que para atenuar o desnível da rocha base aproveitam-na, mas também estão assentes em terra, sendo exemplo os ent. IV, VI e VII.

Estes enterramentos em rocha base implicam seguramente bons conhecimentos geológicos e trabalho da pedra, assim como a utilização de instrumentos metálicos (Barroca, 1987:119); como trabalho pesado que é, exigindo pelo menos dois dias de trabalho (Barroca, 1987:121), será eventualmente um serviço remunerado (Barroca, 1987:119), fruto de uma organização política e social consistente.

Tendo isto em conta, até que ponto se poderá fazer a associação com os enterramentos IX e X?

Estas duas sepulturas estão assentes em terra e argila compacta, com a rocha base somente a cerca de 0,20 m de profundidade.

Será que a necrópole se desenvolve para Sul aproveitando logicamente o desnível do terreno, e que a rocha base – xisto é mais fácil de ser trabalhada em certas zonas, devido à sua decomposição?

Pode-se facilmente verificar que a profundidade dos enterramentos efectuados na rocha base ronda os 0,05 e os 0,21 m em locais saibrentos, o que facilitou o trabalho de abertura.

No entanto, o ent. XI apresenta já uma profundidade de 0,25 m. Será que o trabalho terá sido mais dificultado, induzindo a que aquando dos ent. IX e X, na sua proximidade, em vez de se abrir a rocha base, fosse efectuada uma cama sobre terra?

Não parece lícito dissociar os ent. IX e X dos restantes apontados, considerando que todos eles fazem parte de um primeiro momento / fase de enterramentos.

Segundo Mário Barroca (Barroca, 1987.103) as sepulturas abertas na rocha correspondem já aos últimos séculos da Alta Idade Média, nomeadamente do séc. IX a fins do séc. XI.

Todavia, as tipologias sobrevivem ao longo dos tempos e só muito lentamente são transformadas / alteradas.

De facto, e apesar dos enterramentos na Sª do Castelo se assemelharem às tipologias referidas, os enterramentos são já da segunda metade do séc. XII / inícios do séc. XIII, denotando-se um certo antropomorfismo que se traduz na colocação de lajes na cabeceira amparando o crânio, e mesmo sob o queixo para evitar a deslocação do mesmo e poder manter o olhar no céu (Barroca, 1987:130).

Tal cronologia é confirmada pelas datações de radiocarbono efectuadas no Instituto Tecnológico e Nuclear, Sacavém:

- enterramento I (Sac-1818): 1118-1140 cal AD; 1153-1276 cal AD;

- enterramento VI (Sac-1819): 1036-1144 cal AD; 1147-1279 cal AD;

- enterramento X (Sac-1820): 1118-1140 cal AD; 1154-1283 cal AD.

Mário Barroca aponta uma cronologia em torno dos séc.s XI-XIII, para este tipo de “sepulturas populares” (Barroca, 1987:130), que sem dúvida reflectem o caso da Sª do Castelo.

Já numa segunda fase de enterramentos, pode-se considerar os ent. I, V e VIII, construídos por cima dos ent. IX e XI, VI, e XI, respectivamente.

O ent. VIII é o único que apresenta uma estrutura rectangular constituída por lajes de xisto e coberta por lajes de xisto e fragmentos de imbrex.

Contudo, pode-se afirmar que a primeira e segunda fase de enterramentos são contemporâneas.

Um outro fenómeno inerente a todo este processo, é o motivo ou razão que leva a que sejam construídas sepulturas sobre sepulturas, o que poderá ser justificado pela falta de espaço.

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Este factor associado a um possível elevado custo na realização de um sepulcro, conduzirá à reutilização de sepulturas, estando portanto adjacentes razões económicas e afectivas (se se tratar de membros da mesma família) (Barroca, 1987:121).

O enterramento XI apresenta um esqueleto que foi totalmente remexido, presumindo-se a sua abertura após a morte, provavelmente para uma nova utilização; não estando o corpo decomposto, o sepulcro foi novamente selado, havendo aqui uma grande preocupação.

Este caso foi o único onde se recolheu alguns fragmentos de cerâmica e escória, resultantes do já referido revolvimento.

Dado que os enterramentos não apresentam lápide sepulcral, conduzindo portanto ao “anonimato das sepulturas” e consequentemente à “despersonalização dos cemitérios” (Barroca, 1987:120), é pertinente a insinuação de que quem tivesse ao seu cargo o serviço fúnebre, tivesse obrigatoriamente que conhecer muito bem toda a orgânica dos cemitérios, já que se supõe também que as sepulturas fossem cobertas com uma camada de terra, até mesmo porque o espaço de permeio entre sepulcros que se sobrepõem terá de ser preenchido.

Os indivíduos exumados apresentam um quadro clínico consideravelmente interessante (Tabela 1 – resultados do estudo antropológico efectuado pela BioAnthropos).

Como se poderá facilmente verificar, a elevada taxa de mortalidade infantil não é de todo estranha neste período, principalmente dos 1 aos 3 anos de idade.

De facto, nesta altura, “o fardo da gravidez e dos partos só em metade dos casos gera uma esperança de que a criança atinja a idade adulta” (Le Goff, 1990, p. 204).

Numa paisagem agrária em que todo o sistema se baseava numa agricultura sujeita aos caprichos da natureza e numa constante carestia de produtos essenciais – pão (Le Goff, 1990, p. 83), os jovens seriam sem dúvida quem mais padeciam; aliás, os finais do séc. XII, desde 1191 a 1197, e 1199 a 1200, são pautados por maus anos agrícolas, fomes, acrescidas da guerra com Leão e em 1202 pela peste (Tavares, 1992:88).

Os indivíduos do ent. VIII e do III, revelam um quadro clínico que estará associado a um stress fisiológico – anemia, stress nutricional ou anemia de origem genética, consequências das privações sofridas.

De igual forma, nos indivíduos dos ent. XI, IV, I e VI verifica-se que passaram pela mesma situação aquando os 2,5 e 6 anos de idade (ent. XI e IV) ou possivelmente mais tarde (ent. I e VI).

Se um indivíduo está enfraquecido nutricionalmente fica sem defesas para enfrentar infecções de parasitas ou doenças pulmonares muito frequentes, principalmente nos fins da Primavera e Verão (Barroca, 1987:124).

Na realidade, a tuberculose como doença infecciosa crónica, causada pelo bacilo Mycobacterium tuberculosis, facilmente propagável, por exemplo através de inalação, foi o motivo da morte de alguns indivíduos na Sª do Castelo, nomeadamente:

- a criança do ent. VIII com infecção crónica de tuberculose ou meningite tuberculosa;

- uma das crianças do ent. IX, com tuberculose; - a criança do ent. III, com meningite tuberculosa; - o adolescente do ent. XI poderá eventualmente deter

uma doença de ordem pulmonar; - o adulto do ent. X com HOA que poderá estar

associado a infecções pulmonares. Consequentemente, crianças e pessoas idosas, com

um sistema imunitário mais fragilizado, são as mais facilmente atingidas, elevando os índices de mortalidade.

Todos estes enterramentos são obviamente cristãos, com uma orientação W-E, não se verificando desvios decorrentes da altura da cerimónia fúnebre e consequente posição solar (Barroca, 1987:123).

O facto da existência de uma necrópole cristã no cimo do monte, levanta a questão da possibilidade de existência de um pequeno templo que a ela estaria associado.

Será comum, a partir do séc. XI a presença de cemitérios em torno de templos paroquiais situados em lugares proeminentes (Barroca, 1987:129).

E na realidade, a estrutura detectada em frente à capela de Nª Sª dos Prazeres aponta para tal facto.

A nave longitudinal entronca na capela actual que tem uma abside circular na parte posterior virada a W.

A actual capela tem uma planta fora do comum, mas que se poderá justificar pelo reaproveitamento de alicerces que anteriormente ali terão existido; ela assenta interiormente e exteriormente em rocha base, estando os seus muros totalmente rebocados, o que não permite a confirmação de estruturas primitivas, ao que se junta o facto desta capela estar em culto.

A estrutura revelada, apesar de uma orientação não muito ortodoxa tem semelhanças com a primitiva igreja do Prazo, Freixo de Numão, também ela com orientação W-E (Coixão, 1999:53 e 60-61).

Sendo assim, a dita capela associada à necrópole, poderá ser datada do séc. XII (meados), inserindo-se no período arquitectónico românico e relacionando-se com uma época instável que é a reconquista. Toda esta estrutura terá sido rebocada interiormente, sendo uma das finalidades do reboco o suporte de pintura ou fresco. Tal facto confirma-se com análises efectuadas a fragmentos de reboco que apresentam o elemento químico ouro; não sendo este elemento constitutivo da argamassa, terá obrigatoriamente de ser constitutivo das pinturas.

A necessidade da população se refugiar neste templo justifica-se, já que o monte situado numa área fronteiriça e controlo do Douro, e dada a sua posição estratégica, foi palco de vários confrontos políticos.

Neste mesmo sentido, D. Afonso Henriques (1112-1185) concede várias cartas de foral com intuito de povoamento e também de defesa das zonas fronteiriças. Assim sendo, Urros recebe carta de foral em 1182, tendo como senhor da vila um bisneto de Egas Moniz – Fernão Veilaz.

Após a sua morte, D. Sancho I (1185-1211) envolve-se em diversas guerras contra Leão, nomeadamente entre 1196-97 e 1199-1200 (Moreno, 1992, p. 25),

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obrigando a que D. Afonso IX de Leão invada quase toda a província de Trás-os-Montes. Neste propósito, são enviados os infantes Pedro Sanches e Pedro Fernandes de Castro, que atravessando a fronteira, ocupam Melgaço, Freixo, Urros, Mós, entre outras (Mattoso, 1992, v. II:118).

Justifica-se assim o aparecimento no cimo da Sª do Castelo de um dinheiro de D. Afonso IX (1155-1188) e uma ponta de virote em ferro.

Os confrontos com o reino leonino nesta altura, e o clima de insegurança política em inícios do séc. XIII, poderão ter levado à necessidade urgente de amuralhar o recinto da Sª do Castelo.

De facto, a 1ª linha de muralhas muito bem estruturada, com cerca de 2,5 m de largura, é constituída por pedras de tamanho médio e grande, dispostas de leito e apresenta uma disposição horizontal e perpendicular, para um melhor suporte da mesma, existindo argamassa entre as diferentes fiadas não muito regulares.

Foi também detectada uma das portas, virada a Sudoeste.

O que de particular revela esta muralha, é o facto da sua vala cortar o estrato de enchimento e regularização que envolve as sepulturas, assentando os seus alicerces sobre uma camada de terra que envolve duas sepulturas – sepultura VI e sepultura VII.

Esta última, correspondendo ao enterramento XVIII, é uma sepultura de adulto, a avaliar pelo tamanho das costelas (postas a descoberto), coberta de lajes de xisto e que passa por baixo da muralha.

Consequentemente, a muralha terá de ser posterior aos inícios do séc. XIII, o que nos coloca uma problematização curiosa, visto que pressupõe que este espaço, em tempos religioso ou sagrado, perdeu essa sua função, tornando-se um espaço defensivo, dando origem ao topónimo de Sª do Castelo.

Na verdade, ou passou um período de tempo considerável para que o espaço sagrado se tenha perdido algures da memória, ou algo tornou imperiosa a sua construção.

É razoável um período de 100 anos a ter em conta (o que não justifica o total esquecimento do espaço religioso) associado à necessidade de fortificação, ao que muito provavelmente se poderá juntar uma destruição, pelo menos parcial, do possível templo religioso.

É de assinalar, que quer a muralha, quer a estrutura que eventualmente poderá ser de um pequeno templo apresentam na sua constituição grandes blocos de quartzo. Poder-se-á ter dado o caso de aproveitamento dos blocos resultantes da extracção mineira da época romana, que abundam pelas encostas e sopé do monte, ou mesmo o caso de em época alti-medieval/medieval, tal actividade económica ter sido utilizada, embora não de forma sistemática.

Tal suposição poderá ser comprovada já que o ouro de filão ou de aluvião está presente nas lâminas de revestimento de um fusilhão (s. B1, U.E. 06, nº reg. 8) e prego encontrado em prospecção datadas dos séc. XII-XIII e que têm as seguintes características: -um fuzilhão em cobre decorado geometricamente com gravação a buril, que outrora teria

comportado uma fina lâmina de ouro aplicada através da martelagem (peso: 1,78 g.), na S. B1, U.E. 06, nº reg. 8; -um prego de cabeça quadrangular, em cobre, com uma lâmina de ouro, encontrado em prospecção; peso de 5,77 g., altura máxima 25,65 mm., espessura máxima do pé 4,33 mm., largura da cabeça 18,57 mm; este objecto teria a sua aplicação em mobiliário.

As hostilidades posteriores, entre D. Afonso II (1211-1223) e suas irmãs que detinham o apoio de D. Sancho I de Leão, prolongaram os conflitos nesta área, podendo mesmo ter conduzido a um certo despovoamento, facto que levou D. Sancho II (1223-1245) a integrar Urros no termo de Freixo, receando que um local fortificado pudesse ser ocupado pelo inimigo (Dórdio, P. In Estrela Côa 1998:17).

Todavia em 1376, do recinto fortificado já não restavam senão as suas ruínas, dado que D. Fernando nessa mesma data refere: «Urros era terra chãa e de pouca campanha e que non auya nem huma fortalleza» (Dórdio, P. In Estrela Côa 1998:17).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Castro de ocupação desde a época pré-histórica, o monte da Sª do Castelo apresenta em plena idade média uma necrópole à qual estaria associado um pequeno templo religioso.

A necessidade de defender este local, levou posteriormente à sua fortificação, algures em meados ou finais do séc. XIII.

Após destruição do seu sistema defensivo, o monte permanece em ruínas até cerca da 2ª metade do séc. XVIII, sendo entretanto aí edificada a capela de Nª Sª dos Prazeres.

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FIGURA 1. Localização do monte da Sª do Castelo na Carta Militar 1/25000 f. 141.

FIGURA 2. Aspecto da necrópole.

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FIGURA 3. Aspecto da estrutura correspondente à capela medieval.

FIGURA 4. Correspondência entre a estrutura da capela medieval e da capela actual.