a noção de ser no mundo

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 A Noção de Ser no Mundo em Heidegger e sua Aplicação na Psicopatologia Márcio F Barbosa Aluno  do  Mestrado  em Sociologia  d o  UFBa. A noção de ser  no mundo  difundiu-se amplamente pelas ciências humanas desde que foi formulada por Martin Heidegger. Essa noção é aqui revista e caracterizada em seu sentido próprio, de acordo com a obra de Heidegger, e é também anali sada sua utilização na psicopatologia existencial de L. Binswanger. A expressão  ser no mundo,  que fez e faz escola no conhecimento psicológico e social, é daquelas que facilmente se prestam à banalização e a empobrecimentos, talvez mesmo pela sua abrangência e aparente obviedade. De fato, quem se depara com essa expressão, empregada sem maiores explicações, não suspeita a intricada rede conceituai que motivou a sua formulação. Além disso, não raro a expressão é utilizada como uma espécie de palavra mágica, para além da qua l nada é preciso explicar. Por tudo isso,  em matéria de psicopatologia, onde a noção de ser no mundo foi largamente empregada, não deixa de ser conveniente que a mesma seja revisitada em seu sentido original. A noção de ser no mundo foi desenvolvida sistematicamente pelo filósofo alemão Martin Heidegger no tratado  Ser e Tempo (Sein und Zeit),  de 1927. Na obra Heidegger se impõe a tarefa de recolocar a questão do

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A Noção de Ser no M undo

em Heidegger e suaAplicação na Psicopatologia

Márcio F. BarbosaPsicólogo.

Aluno do Mestrado emSociologia do UFBa.

A noção de ser no mundo difundiu-se amplamente pelas ciências humanasdesde que foi form ulada por M artin Heidegger. Essa noção é aqu i revistae caracter izada em seu sent ido própr io, de acordo com a obra deHeidegger, e é tam bém analisada sua utilização na psicopatologia existencial

de L. Binswanger.

A expressão ser no mundo, qu e fez e faz escolano conhec imento ps ico lóg ico e soc ia l , édaque las que fac i lmen te s e p r es tam àbana l ização e a empobrec imentos , ta lvezmesmo pe la sua abrangênc ia e aparen teobviedad e. D e fato, quem se depara com essae x p r e s s ã o , e m p r e g a d a s e m m a i o r e sexplicações, não suspeita a intr icada redeconcei tuai que motivou a sua formulação.Além disso, não raro a expressão é uti l izadacomo uma espécie de palavra mágica, para

além da qua l nada é preciso explicar. Por tudoisso, em matér ia de ps icopatologia, onde anoção de ser no mundo fo i la rgamenteempregada, não deixa de ser conveniente q uea mesma seja rev is i tada em seu sent idooriginal.

A noção de ser no mundo fo i desenvolv idasistematicamente pelo fi lósofo alemão M artinHeidegger no tratado Ser e Tempo (Sein und

Zeit), de 1927 . N a ob r a H e idegge r s eim põe a ta re fa de reco loca r a ques tão do

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"sentido do ser", que para ele foi esquecidapela metafísica tradiciona l. Esse esquecimentose deu em v ir tude do fato de a tradiçãometafísica ter se convertido numa ontologia

da substância, aquela q ue visualiza o ser emgeral a partir da primazia da "coisa", ou, ditode ou t ro modo, que toma a "co isa" , comoparadigma de representação para tud o o qu e" é " . Todavia, essa rejeição da ontologia dacoisa que Heidegger julga necessário levar acabo, não implica para ele em considerar aquestão do ser como uma questão abstrata;do ponto de vista existencial, a questão doser é eminentemente concreta, porque "o seré sempre o ser de um ente". Resta, contudo,explicitar o qu e queremos dizer com a palavra

s er, c o m p r e e n d e r o f u n d a m e n t o e apossibilidade d o ser de alguma coisa. Por on dese deve, entã o, começar um a tal investigação?O ra , diz Heidegger, já possuimos, em nossav i d a c o t i d i a n a , u m c e r t o g r a u d ec onhec imen to do s e r , de ou t r o modo aquestão sequer p ode ria ser coloc ada . Por isso,para se alcançar uma compreensão do ser épreciso, em primeiro lugar, analisar o ser doente que coloca a questão do ser, isto é, oser do hom em , o dasein. Assim, toda a primeira

seção da obra é de votado à analítica do dasein(daseinsanalyse), isto é, à análise da estru turad o s e r n o m u n d o , c o m o h o r i z o n t efundamental de onde pode ser abordada aquestão do ser em geral.

A reflexão de Heidegger em Sere Tempo, sua"on to log ia fundamen ta l " , não apenas s ec o n v e r t e u n u m m a r c o d o p e n s a m e n t ofi losófico do século XX, mas causou grande

repercussão nas ciências humanas. No caso

da psiquiatr ia, a daseinsanalyse fo i apl icada,por L. Binswanger e E. Minkowski , entreoutros, na compreensão das doenças mentaisenquanto modo al terado de ser no mundo.

Segundo a afirmação de Binswanger (1977:46) , Ser e Tempo "se tomou indispensável ,entre outras coisas, tam bé m p ara a psiquiatriaenquanto c iênc ia."

Neste artigo procuraremos, primeiramente, enos valendo da recente tradução brasileira deSer e Tempo (Heidegger, 1995), fazer uma

exposição de alguns elementos essenciais danoção de ser no m und o ta l com o del ineadapor Heidegger. Depois , i lustraremos suaaplicação na psicopatologia, discutindo o seu

significado e importância.

O Ser no Mundo em Heidegger

A investigação fenomen ológica de Heideggeré de caráter onto lógico, is to é, busca asdeterminações essenciais do ser dos entes.Dessa maneira, pretende sempre situar-seaqué m do plano em pírico ou ôntic o (dos entes)e constituir-se na condição de possibil idadedo mesmo. Assim, as estruturas ontológicas

expl ic i tadas na anál ise do dasein ( c omoocupa ção, disposição, compreen são, discurso)não devem ser confun didas co m aqueles queseriam os seus correlatos ônticos o u emp íricos(afeto, desejo, conhecimento, l inguagem) -na v e r dade , ta i s es t r u tu r as s ão afundamentação existencial dos mesmos. Aanal í t ica ex is tenc ia l "está antes de todap s i c o l o g i a , a n t r o p o l o g i a e , s o b r e t u d o ,b io l og ia . " ( H e idegge r , 1995 : 81 ) \ Elacorresponde à aber tura de um a priori mas

sem que isso s igni f ique uma "construção

apriorístíca" ( ib id : 87), isto é, desvinculadade toda "empir ia" . Com efe i to, a pesquisacientífica e a pesquisa ontológica pod em atéconvergir, esta última te nde ndo sempre parauma m aior "pur i f icaç ão" e transparência d oque se descobriu onticam ente. A investigaçãocientífica realiza um a prim eira e tosca "fixaçãodos setores dos objetos", e só o faz a partirda abertura originária ao modo de ser dosentes pela qual a experiência ordinária dom u n d o é r e s p o n s á v e l . P a r a q u e oquestionamento científico possa abordar u madete rmin ada região dos entes, é preciso antesque essa região seja elevada do horizo nte daexperiência original - o horizonte da relaçãofundamental do ente que quest iona com omun do ques tionado.

Por isso o ser do ho me m , a pre-sença 2, possuiuma dimensão onto lógica fundamental . Na

verdade, no texto de Heidegger, o status dapre-sença é ambíguo. De um lado, ela é umente, o ente qu e cabe à analítica existencial

1-Paul Ricoeur (1994: 97),contudo, reconhece umadimensão antropológica dascategorias ontoiógico-existenciaide Ser e Tempo. Segundo afirma,a a nálise de Heidegger precisa

"ter um a certa consistência noplano de uma antropologiafilosófica para exercer a funçãode abertura ontológica que lhe éassinalada."

2 - O termo "dasein", comumentevertido para o português como"ser-aí", foi traduzido por Márciade Sá Cavalcante pela expressão"pre-sença". Cf.a justificação nanota explicativa n. 1, p. 309 daedição referida.

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investigar e que é o equivalente de hom em .Por outro lado, a pre-sença não deve ser

en tend ida como s inôn imo de "hom em ", po isela é uma determinação ontológica, já quecorresponde ao ser desse ente que coloca aquestão do ser. A resposta a esse dilemaenc on t r a - s e no fa to de que H e idegge r

considera que a pre-sença é um ente especial,um e nte que é, em s i mesm o, onto lógico, namedida em que é o único ente de cujo serfaz parte uma abertura originária ao mo do de

ser de todos os outros entes - is to é, éconstitutivo do ser do ho me m o desvelam entodo sent ido do "é ", a par t ir do qual o m und o

nos adv ém c omo s endo de de te r m inada

maneira. Essa característica da pre-sença setornará mais c lara com a expl ic i tação daestrutura do ser no m und o - o ser no m und o,aliás, é justamente a constituição ontológicada pre-sença.

O ser no mundo pode ser v is ive lmentedesmembrado em três partes, que são seus

mom entos const i tut ivos: o "ser", o " m u n d o "e o "em" . D i to de ou t ro modo e em ou t raordem: o mundo em que o ser é, o quemque é no mund o, e o m odo de ser-em em s i

mesmo. A cada um desses momentos éded icado um capí tu lo da obra (cap í tu losterceiro, quar to e quinto, respect ivamente).No e ntanto , o ser no m un do é uma estrutura

unitária, e só pode ser decomposta para efeitode anál ise. A própr ia anál ise, na verdade,d e m o n s t r a e s s a u n i d a d e , p o i s o"mundan idade " s ó s e de i x a c a r ac te r i z a rmediante um a compreensão do ser para quem

exis te um mu ndo , o ser que é-no-m undo, porsua vez, só se revela a partir de sua "m ora da "(o mundo), e a relação de ser-em pressupõea compreensão dos termos que se relacionamno modo do "em" . Em suma - e isso éfundam ental para se compreen der a idéia deser no m un do em toda sua profundidade - , aexplicitaçã o da e strutura da pre-sença já trazconsigo o desvelamento do mundo e v ice-versa.

Pode-se dizer que a aparente obviedade doser no mu nd o deriva da naturalidade com queesse "no" se nos aparece. Grande parte daimportânc ia do pensamento de Heideggerconsiste em ter ele problematizado o "ser-em"da existência humana. Para uma coisa, umobjeto (que a terminologia heidegger iana

designa por "ser s implesmente dado"), o" e m " corresponde ao "d entr o", a uma relaçãome ram ente espacial de inclusão. Mas de quemodo se pode dizer que o homem (um entedotado do modo de ser da pre-sença) está" e m " o m undo? N ão é suf ic iente d izer que apre-sença está "den tro" d o m und o, que estás implesmente "aí" , que o homem fo i umave z abandonado ao mu ndo. O "den t ro" nãopode se adequar a um ente que, em cer tosent ido, traz o mundo "dentro" de s i 3. Ohom em não "é" , pr imeiramente, para depois

cr iar re lações com um mu ndo , e le é home mna exata medida de seu ser-em, isto é, naexata medida em que possui um mundo ouabre o sent ido de um mundo. Não ex is teanterioridade entre esses dois movimentos."Assumir relações com o m un do só é possívelporque a pre-sença, sendo-no-m undo, é com oé." (Heidegger, 1985: 96) Por isso, paraHe idegger , d izer que o homem " tem ummundo" nada s igni f ica, do ponto de v is taonto lógico, enquanto não se esc larecer ocaráter desse "ter".

3- Isso não significa, de modoalgum, que a presença está isentade qualquer determinação espacial.A questão do espaço e daespacialidade de pre-sença édiscutida por Heidegger no terceirocapítulo ("A mundanidade domundo"), seção C. Sobre o assunto,cf. Villela-Petit (1996).

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Os vários modos de ser-em da existência

humana carac te r izam, dessa mane i ra , a

essência do h om em , isto é, o fato de ele existir,

em sentido próp rio. Vejam os quais são esses

modos.

Nossa relação primeira com o m un do não se

dá por nenhuma forma de conhecimento. Dá-

se através do manuseio, do uso, do contato

com os entes "que vêm ao encontro dentro

do mun do " , c om instrumentos, e esse m odo

d e s e r - e m é d e n o m i n a d o ocupação

(Besorgen). O que He idegger chama de

instrumento não são apenas os objetos que

uti l izamos para fazer alguma coisa, mas tudo

com que nos deparamos em nosso mun do eassume um sentido dentro dele (a lua é

também um ins t r umen to pa r a nós ) . N a

verdade, fa lar em "coisa" aqui não ser ia

adequado onto logicamente, porque a coisa

já é derivada de uma atitude de conhecim ento

da p r e - s enç a , onde " j á s e r ec o r r e

i m p l i c i t a m e n t e a u m a c a r a c t e r iz a ç ã o

o n t o l ó g i c a p r é v i a . " ( i b i d : 1 0 9 ) N o

conhec imento, a lgo é posto com o tem a, e a

"coisa" é uma ent idade tematizada. Já os

instrumentos são para nós antes de qu alqu ervisão temática, antes de refletirmos sobre

eles, antes de os objetivarmos. A ocupação

é, por tanto, atemática. Não precisamos "ter

consciência" de alguma coisa para dela nos

o c u p a r m o s ; a n t e s , s ó p o d e m o s t e r

consciência de alguma coisa a partir de um

u n i v e r s o d e o c u p a ç õ e s . H e i d e g g e r

exempl i f ica a mult ip l ic idade dos modos de

ocupação: "ter o q ue fazer com alguma coisa,

produzir a lguma coisa, tratar e cuidar de

alguma coisa, apl icar a lguma coisa, fazerdesaparecer ou deixar perder-se alguma coisa,

empreender, impor, pesquisar , in terrogar ,

considerar, discutir , determ inar..." ( ib id : 95 )

Pertencem igualmente à ocupação "os mod os

deficientes de omitir , descuidar, renunciar,

descansar, todos os mod os de 'ainda apenas'

no tocante às possibil idades da ocup ação ." E,

p o d e m o s a c r e s c e n t a r , t a m b é m a

desocupação e o "não fazer nada" são

mane i r as , ex i s tenc ia lmen te fa l ando , de

ocupar-se.

Mas os instrumentos, as "coisas" de nossaocup ação , nunca "sã o" isolados, eles integramum to do instrumental (que em úl t ima análiseé o próp rio mun do). Os instrumentos referem-se

sempre a outros instrumentos, e o conjun tode todas essas referências é que constitui ome io or ig inal do nosso ser no m und o. O quepr imeiro vem ao encontro no mu ndo não sãoos objetos de um quarto, mas o quar to, enão como espaço geométrico, mascom o lugarde morada - só a partir deste último é quepod e existir o quarto e nqu anto espaço vazio.E o quarto se encontra numa casa, que seencontra numa c idade, e esta se opõe ao"c ampo" . A pa r t i r da mu l t i p l i c i dade der e fe r ênc ias do todo i ns t r umen ta l c adainstrumento se situa. Assim, dizemos coisas

mui to d i fe ren tes com "o m eu quar to " e "umqua r to de ho te l " , embo r a ambos s e jamquartos, porque a primeira expressão estáreferida à minha int imida de e ao meu " lugar"mais famil iar, enquanto a segunda evoca aimpessoalidade de um lugar onde se encontraa lguém que, ao menos mom entaneamente ,está sem "lar". Mesmo a natureza, antes deser a natureza "em s i" , que a posteriori ohomem tema t i z a c omo tudo que não éhumano, é a pr incíp io integrante do todoinstrum ental (a i lum inaçã o das ruas traz um ar e f e r ê n c i a i m p l í c i t a a o i n s t r u m e n t o"escur idão").

Assim, a pre-sença se "absorve", de modonão temát ico , no todo ins t rumenta l . Es tainserção é, existencialmente, a forma maispro funda de conhec imento ( lembremos aet imologia latina da palavra "conhe cimen to":co-nasc imento , nascer jun to com). Q uan to

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menos se olha "de fora " um ins trumen to maiss e s abe manus eá - l o , e é o us o quepr ime i ramente desve la o ins t rumento : "Opróprio martelar é que descobre o 'manuseio'

específico do ma rtelo." (ibid: 111) Não se devepensar, con tudo , que o m odo de l idar com osinstrumentos, por ser atemático, seja "cego"."Possui seu mod o p rópr io de ver que dir ige omanuse io e lhe con fe re uma segurançae s p e c í f i c a " ( i b i d : 11 ) - po r ex emp lo , asegurança característica de qu em dom ina uma"a r te " , seja o músico ou o marceneiro. Aocupação se "subo rdina" à mult ip l ic idade dereferências do todo instrume ntal, e seu mo dopróprio de ver é "a visão desse subordinar-se", deno minad a por Heidegger "circunvisão".E o que a circunvisão "v ê" , de m odo originárioe necessár io, é o seu mundo c ircundande(Umwel t ) . 4

Com o se vê, embo ra os termos empregados(ocupação, instrumento) sejam típ icos do"homo faber " , o modo de ser no mundo daocupação refere-se a todas as instâncias daexistência hum ana , e a todas as "coisas" quea pre-sença encontra no m und o. Assim, apesarde Heidegger não fazer nenhuma referência

significativa à nossa existência corporal, acircunvisão que o corp o pr óprio d ir ige ao seuto do instrume ntal (espacial) está logicamenteimpl icad o na análise ac im a 5 . E é cer to que ohomem também s e "oc upa " c om ou t r os

hom ens, mas este ocupar-se possui um status

especia l em v ir tude de ser um modo derelação em que a pre-sença se relaciona comoutros entes dotados do modo de ser da

pre-sença. O homem "c a r r ega " s empr econsigo uma referência a outros homens, o"ser -com" (Mitsein) é um m od o de ser básicodo ser da pre-sença6 . De um modo geral , oser-em da ocupaçã o caracteriza uma relaçãohomem-mundo que não é s imp lesmente ade dois seres exteriores um ao outro, mas ade um entre laçamento onto lógico dotado desentido. Entretanto, o modo da ocupaçãoa inda não é su f ic ien te para carac te r iza rplenamente o ser no mundo. Outros modosd e s e r -e m a p r e e n d e m m e l h o r , o n t o log icamente , a reg ião do ser temat izadaempir icamente com o "ps ique " - mas que, po rser uma apreensão ontológica, e no m odo doser no m un do , corrige o caráter substancialistaque costuma acom panhar a tematização d o"psiquismo". Afinal de contas, a pre-sençanão é uma substância, mas um exercício deex is t i r . Ve jamos en tão a d ispos ição e acompreensão.

O "p re " da pre-sença representa sua abertura

ao mundo . Mas o s e r da p r e - s enç a éjustamente sua aber tura: "A presença é a sua

abertura. "M as de que mo do a pre-sença "se

abre" ao mundo? Em primeiro lugar, a partird a " d i s p o s i ç ã o " . " O q u e i n d i c a m o s

ontologicamente com o termo disposição é,onticamente, o mais conhecido e o maiscot id iano, a saber, o humor, o estado dehumor." (ibid: 188) Qualquer forma de humor,

a simples passagem de um estado de humorpara outro, a apatia no humor, todos esses

fenômenos que muitas vezes são tidos pelaprópria pre-sença com o insignificantes não são

"um nada ". Atestam a contínua existência dohumor. A disposição é o mo do de ser-em comque nos sent imos, nos encontramos, enf im ,com que nos dispomos no mu ndo. Mas não

se deve confundir a abertura do ser no m undo

n o h u m o r " c o m o q u e a p r e - s e n ç a' s i m u l t a n e a m e n t e ' a í c o n h e c e , s a b e eacredita." (ibid: 190) A abe rtura da disposiçãoé o solo or ig inár io de onde emerge e se

desenvolve o que é representado pela pre¬

4- Interessante notar que U m welt étambém o termo alemãocorresponden te ao conceito de "meiode comportamento", ormuladopo rKoffka nos seus Princípios dePsicologia da Gestalt (cf.Lyotard,

1986,p . 58)

5- Como se sabe, coube a Merleau-Ponty, na sua Fenomenologia daPercepção, de I945, a exploração

exaustiva e sistemática dacorporeidade do ser no mundo(Merteau-Ponty, 1996).

6- Heidegger, no entanto, apenaspressupôs o ser-com, quando naverdade é preciso explicitar comoele se dá (Lyotard, 1936, p. 80).Mais um a vez,coube sobretudo aMerleau-Ponty (1980; 1996) essatareia, fundando a coexistênciaoriginária não numa relação entreconsciências, mas numa relaçãoentre meu corpo e o corpo do outro.

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sença como emoção e afeto. E essa gênese,ev iden temen te , não é nec es s a r i amen teacompanhada (nem mesmo na maior partedas v ez es) po r um mo v im en to d e

"consciênc ia". Diz Heidegger: "Também afalta de humor contínua, regular e insípida,que não deve ser confundida com o mauhumor, não é um nada, pois, nela, a própriapre-sença se torna enfad onha para si mesm a.Nesse mau humor, o ser do pre mostra-sec o m o pes o . Po r qu e , não s e s abe . E apre-sença não pode saber, v is to que aspossibil idades de abertura do conhecimentosão restritas se comparadas com a aberturaoriginária dos humores em que a pre-sençase depara com seu ser enqu anto pre ." ( ib id:188) Aqui se mostra, acreditamos, a direçãoque deve seguir uma explicitação o ntológico -existencial do que é tematizado (talvez nav ia inversa da gênese do ser) como " inconsciente". Porque a própria abertura comque a pre-sença se depara se lhe aparecec omo "en igma i nex o r áv e l " , e qua lque r"vivência" que uma "reflexão imanente" possaapreender só se torna possível porque o prejá se abriu originariamente. "O 'mero-humor'abre o pre de modo mais originário, embora

t a m b é m o feche de modo a inda ma isobst inado do que qualquer nã o percepção."( ib id: 191)

Significa tudo isso que a pre-sença jam ais se

compreende em sua aber tu ra? De modoalgum. Para Heidegger, a "compreensão" éum mod o de ser-em tão or ig inário quanto ad i s pos i ç ão . Mas aqu i não s e t r a ta dacompreensão en tend ida como fo rma de

conhe cimen to; esta ú l t ima, na verdade, só é

possível a partir da compreen são em sentidoexistencial. O ser no mundo mantém-se nafami l iar idade da convivência ocupacional ,

s i t u a d o n u m c o n j u n t o d e r e m i s s õ e sr e f e r e n c i a i s q u e c o n s t i t u e m u m t o d osigni f icat ivo. "Na fami l iar idade com essasremissões, a pre-sença 'significa' para si

mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser para uma compreensão originária, notocante ao ser no mundo." ( ib id: 132) Aocompree nder o "em função de " da referência

o c u p a c i o n a l , a p r e - s e n ç a a b r e u m a

"significân cia" que d iz respeito a tod o ser nomundo e a e la própr ia. Além disso, a presença, por existir no modo de uma abertura,é o ún ico ente de cujo ser faz parte o que ela

ainda não é, de cujo ser atual faz parte suaspossibil idades, a pre-sença sempre é o queela pode ser. Pelo fato de " ve r" possibilidadesem função das quais ela é, a pre-sença se

"com preen de". "Com preende r é o ser dessepoder-ser. (....) A pre-sença é de tal maneiraq u e e l a s e m p r e c o m p r e e n d e u o u n ã ocom pree nde u ser dessa ou daque la ma neira.

Como uma ta l compreensão, e la "sabe" aquantas ela mesma anda, isto é, a quantasanda o seu poder-ser." ( ib id: 199-20) Não édemais enfatizarmos: esse saber "a quantasela mesma anda" não denota um processo

de consciência, pre-sença não é con sciência.

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Esse "saber " se p res ta mu i to bem, porex emp lo , ao en tend imen to da s i tuaç ãocomumente conhec ida em que o ind iv íduoignora consc ien temente o que se passa

consigo, mas o seu comportamento, v is tocomo um todo, possui sent ido, coerência eaparenta já saber desde sempre "aon de queriac hega r " . C om o tema da c ompr eens ãoH e idegge r não p r e tende c on t r ad i z e r odesconhecimento essencia l da d isposição.Compreensão e "saber", aqui , dizem respeitoao fato de a pre-sença constantemente sedeparar com sua aber tu ra . "E somen teporque a pre-sença é na compreen são de seu

pre é que ela pode-se perder e desconhecer.E na medida em que a compreensão está nadisposição e, nessa condição, está lançadaexistencialmente, a pre-sença já sempre seperdeu e desconheceu. Em seu poder-ser,por tan to , a p re -sença já se en t regou àpossib i l idade de se reencontrar em suaspossibil idades." ( ib id: 200)

Desnecessário dizer que a exposição acima élimitada e seletiva. Ela não aborda, nem delonge, todos os temas, desdobramentos e

insights da obra, e mesmo os temas abordados

tampouco sãoanalisados exaustivamente. Masessa breve notíc ia fornece uma idéia dosentido da noção de ser no mundo na obra

de Heidegger, suficiente para que se possacompreender o porquê de sua ut i l ização napsicopatologia.

O Ser no Mundo naPsicopatologia

A idéia de ser no mundo explicita então ofato de que o "ser que é" se constitui enquantoquem de uma ex is tênc ia humana no mesmomovimento em que um mundo se const i tu i

enquanto mundo, is to é, enquanto mundopara esse ser qu e nele é. Não há sent imento,compor tamento ou qua lquer ou t ro modo deser de uma pessoa que exista isoladamente,com o u m fen ôme no "em s i" . Essa af i rmação,que pode parecer bana l , nem sempre éassumida em suas conseqüências últimas.N e n h u m d e ss es f e n ô m e n o s p o d e , p o rexemplo, pretender ocupar o lugar de causapr imeira, pois a causa pr imeira é o m undo -o u , mais exatamente, o ser no mundo. Seolharmos de perto, veremos que a angústia

de uma pessoa, que nos parece "v i r dedentro", está também "fora", que em úl t imainstância não existe nem "de ntro" nem "fora",e qu e em seu ser alguém só se angustia porqueo mundo o arrasta em sua angústia. E por "omundo" não se quer aludir necessariamenteao mu ndo en qua nto "va stidão", mas à regiãodo m und o abarcada pelo fenôm eno em causa- "mundo" significa aqui o polo dessa uniãoind iscern íve l que o ser -no-mundo buscaevidenciar, e que pode ser, a depender daregião de "consciência" envolvida, um mu ndoex t remamente "pequeno" . A compreensãodessa unidade fundam ental do ser no m und ose revela de m uita valia para a psicologia, poisa atitude científica muitas vezes se debatep a r a e x p l i c a r o m o d o c o m p l e x o d erelacionamento entre certas "coisas" que elamesma cui dou de separar.

Exempl i f iquemos a apl icação do modelo doser no mundo na psicopatologia através dolivro de L.Binswanger, Três Formas da Existência

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Malograda, um a reun ião de três ensaios sobreas formas patológicas da "extravagâ ncia", da" e x c e n t r i c id a d e " e d o " a m a n e i r a m e n t o "(Binswanger, 1977). Partindo da ontologia

fundamen ta l de H e idegge r , B ins w ange rprocura reconhecer a enfermidade com o umesti lo ou modo par t icu lar de ser no mundo,como variação ou "distorsão" da estruturaontológica do ser no mu ndo . Compreender aen fe rmidade é iden t i f i ca r sua "essênc iaa n t r o p o l ó g i c a " , i s t o é , a s c o n d i ç õ e santropológicas de sua possibil idade (pois amodal idade ex is tenc ia l em que consis te aenferm idade, m esmo sendo uma distorsão daestrutura fundam ental d o ser no m und o, só épossível a partir desta estrutura, já que é umavariação da mesma). Uma antropologia, comefeito, em sentido amplo, deve evidenciar osmodos de ser básicos e as possibil idadesconcretas e gerais do ser humano . Para alcançaressa ev idê ncia ant ropoló gica, Binswangerlança mão de um método fenomenológicode reflexão, que busca atingir a essência daenferm idade c om base em suas manifestaçõesconcretas. Ele examina freqüentemente asignificação antropológica de expressões dafala cotidiana referentes aos fenômenos em

causa (que muitas vezes apreendem de m odoin tu i t i vo o ser da "doença" ) , e se va leocas iona lmente de in fo rmações sobre ocom portam ento hu man o em outras cul turas.

A identificação de uma essência antropológicacorresponde, do ponto de v is ta anal í t ico-e x i s t e n c i a l , a o d e l i n e a m e n t o d e u m aes t r u tu r a . Só a pa r t i r das c ond i ç õesantropo lóg icas de poss ib i l idade se pode

c o m p r e e n d e r o s e n t i d o d e u m a

sintomatologia. Está de antemão fadada aofracasso qualquer tentativa de derivar a doençaa partir da relação entre hum ores fundam entais

e i n d e p e n d e n t e s , p o s t u l a n d o - s e , p o rexemplo , que um de te rminado sen t imentop o ss a d e s e n c a d e a r u m d e t e r m i n a d ocompor tamento ou s in toma. Mesmo que se

identifique esse sentimento como surgido apar t i r de uma cer ta s i tuação (s i tuando-oportanto num contexto comportamental) , oprob lem a residirá em estabelecer essa relação

termo a termo entre s i tuação causadora e

s intoma. Embora muitas vezes as coisaspareçam se dar dessa form a, pod e estar portrás dessa aparência uma estrutura geral damod alidade existencial do indivídu o que , não

se dispusesse ela dessa forma, talvez aquelaconexão causal não se estabelecesse. Omod elo do "d is túrb io pr imá r io" muitas vezesincorre nesse erro. Se a idéia de "distúrbioprimário" tem a vantagem de retirar da based a e n f e r m i d a d e q u a l q u e r e l e m e n t oi n t e n c i o n a l ( n o s e n t i d o d e i n t e n ç ã oc o n s c i e n t e ) , e l a n ã o é , c o n t u d o , ofundamento ú l t imo, pois não encerra seusentido em si me smo , já que só encontra suarazão de ser na estrutura do ser no mundo.

Assim, para Binswanger, a análise existencial

se posiciona aquém da dis t inção intenção-

dis túrb io pr imár io. Al iás, o ponto de v is ta

ex is tenc ia l também antecede à d is t inção"com sent ido-sem sent ido" (B inswanger ,

197 7: 3 2-33), porque u ma vez que o ser da

p r e - s e n ç a c o i n c i d e c o m a u n i d a d e

fundamental do ser no mundo, não pode

haver algo que diga respeito a esse ser e que

seja sem sentido.

A perspectiva antropológica compreende umsintoma ou uma síndrome não como umacoisa individual, mas como um esti lo de ser

no mundo, uma pos tu ra to ta l , e que c o mo

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tal pode ser encontrado em vários domíniosda atividade hum ana (para a compreensão doamaneiramento, por exemplo, Binswanger se

remete ao m aneir ismo en quanto manifestação

artística). O sintoma, enquanto estilo de ser,

encontra-se tamb ém n o norm al, ou no doe nten ã o a p e n a s e n q u a n t o d o e n t e , e e ss aconstatação permite compreender melhor osent ido da doença. "Quer se trate de uma' i d é i a ' e x t r a v a g a n t e , d e u m i d e a l o u'sent ime nto ' extravagante, de um desejo ouplano extravagante, de uma afirmação, m odode ver ou atitude extravagante, de uma mera'mania ' ou de uma ação ou de um cr imeextravagante, aquilo qu e aqui designamos com

a expressão 'extravagante' está co ndicio nad opelo fato de o ser-aí ter se atolado numade te r m inada ' ex - pe r i ênc ia ' " . ( i b i d : 15) Aabordagem existencial, portanto , opera a partirda compreensão do modo como o indiv íduose instalou na estrutura do ser no mundo.

Binswanger, citando Heidegger, define o serno mundo como um "absorver-se atemático -

caracterizado pela visão organizadora dosmeios - nos remetimentos constitutivos dadisponibil idade d o todo instrumental" (p. 47 ) 7 .

O exame c l ín ico, na daseinsanalyse, buscacompreender essa "absorção" própria de cadai n d i v í d u o . E a e n f e r m i d a d e , c o m o j ádissemos, se mostra como uma "distorsão"

da estrutura do ser no mundo - embora sejaev idente que o modo de ser "d is torc ido"t a m b é m f a z p a r t e d a s p o s s i b i l i d a d e sexistenciais da pre-sença. Tomemos, comoex emp lo des s a d i s to r s ão , o c as o dae x t r a v a g â n c i a e n q u a n t o m a n i f e s t a ç ã opatológica (Binswanger, 1977: 14 ss.). Ela sese t r a d u z , e x i s t e n c i a l m e n t e , p o r u m adesproporção antropológica entre dois modosde ser inerentes ao ser no mundo, a saber, aamplidão e a altura. Ass im Binswangercaracteriza esses modos de ser: "A 'atraçãoda amp l i dão ' , na d i r eç ão ho r i z on ta l das i g n i f i c a ç ã o , c o r r e s p o n d e m a i s à'discursividad e', ao experimen tar, à travessiae t o m a d a d e p o ss e d o ' m u n d o ' , a o'a largamento do hor izonte ' , ao a largamentodo d iscernimento, da v isão de conjunto e dac ircunvisão organizadora dos meios comrelação ao 'burbur inho' do 'mundo' exter iore interior. Já a atração da altura, o subir nadireção vertical da significação, correspondemais à aspiração de superar a 'gravidade da

terra', de se elevar acima da pressão e da'angústia das coisas terrenas', mas ao mesmotem po tam bém à aspiração de conquistar umpon to de vista 'supe rior ', um a 'visão superiordas coisas', com o d iz Ibsen, a partir da qual ohomem possa moldar, dominar, numa palavra,apropriar-se de tudo o que 'esper imentou ' . "( ib id : 17) Amplidão e altura são, portanto,possibilidades próprias da existência humana.O ser no mu nd o estravagante, con tudo , derivade u m descompasso e ntre o subir da altura ea extensão da ampl idão, e le impl ica que a

pre-sença "suba mais alto do que convém àsua am plidão, ao seu horizonte de experiênciase compreensão" , ( ib id: 15)

Nessa elevação precipitada o ser no mundose perde e xistencialmen te, ele "constrói mais

alto do que consegue subir" ( ib id: 18). Trata-se de uma "prepo nderânc ia desproporc ionalda altura da decisão sobre a amplidão da'exper iênc ia ' . " ( ib id : 19) A pre-sença que

e x t r a v a g a d e s c o n s i d e r a a " e s c a l a d a

7- Deve-se observar que "visãoorganizadora dos meios"corresponde ao que chamamosacima de circunvisão."Disponibilidade", por seu lado,nada tem a ver com o que chamamosde "disposição", mas diz respeitoao caráter do instrumento, e foitraduzido na edição de Ser e Tempoque indicamos por manualidade.

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prob lemát ica humana" e se enrasca nu mdete rmin ado "deg rau" dessa escalada, ao qu alse lançou em absoluto contraste com "aestre i teza e a imobi l idade do hor izonte da

exper iênc ia " ( ib id) E do mesmo modo que oalpinista que "se enrasca" num a escalada (porf a l t a r - l h e u m a v i s ã o d e c o n j u n t o d odespenhadeiro) precisa ser resgatado poroutrem, o ser no mundo extravagante (porfa l ta de "d iscern imento da es t ru tu ra da'hierarquia' das possibil idades da existênciahumana em gera l " - p . 21) p rec isa serresgatado desse "entalamento" através da"ajuda" dos outros. "O que chamamos detarap ia", diz Binswanger, "no fun do , consistetão-somente em levar o doente até um pon toem que e le c ons iga ' v e r ' c omo es táconst i tuída a estrutura tota l da ex is tênc iahumana ou do 'ser no mundo' e em quepon to d ela extravagou. O u seja: resgatá-lo d aextravagância, trazendo-o d e novo 'à terra ' ,que é o único ponto a par t i r do qual se podet e n t a r u m a n o v a partida e uma nov aescalada". ( ib id: 21 )

O essencia l a ser observado no exemploacima é que as imagens metafór icas da

"ampl idão" e da "a l tura" buscam dar contada mov imen taç ão p r óp r i a da ex i s tênc iahumana em seu mun do. Como tal , ao menosa princípio, essas imagens são irredut íveis. Elasdific i lmente poderiam ser transpostas, por

e x e m p l o , s e j a n u m a l i n g u a g e m d a s"tendências" da natureza huma na, seja nummo delo de var iáveis comportam entais - sobpena de deixaram de expressar aquilo que

pre tend iam . O tip o de realidade a que essasnoções pretendem refer i r é justamente o

m odo d e ser-em da existência human a. Nistoc o n s i s t e a p e s q u i sa d a " m o d a l i d a d eexis tenc ia l" . Enquanto ta l , ev identemente,

ela se presta não apenas à comp reensão defenômenos patológicos, mas da existênciahuma na em geral.

A perspectiva do ser-em é, acreditamos, otraço essencial da psicopatologia existe ncial,

t a l c o m o a e n c o n t r a m o s n a o b r a d eBinswanger. M as esse traço distintivo talvezseja ao mesmo te m po o fator responsável por

suas d i f i cu ldades . Em pr ime i ro lugar , opa r ad igma da ex i s tênc ia não pode s e r"opera cionaliza do" sem descaracterizar-se demodo s i gn i f i c a t i v o . A noç ão de s e r - em

viabiliza um a visão total da existênc ia, e dessemodo essa noção não é passível de sertematizada com o um a real idade c i rcunscri tae objetiva. Nisto consiste, possivelmente, adificulda de de sua "aplicaç ão". Algumas vezes,por exemplo, as anál ises de Binswangerparecem esbarrar num meio caminho entredois extremos, a saber, entre a fecundidadeda analítica heideggeriana do dasein (que é oseu ponto de par t ida) e a objet iv idade dapsicopatologia enquanto c iênc ia - tomando-se , por conseqüência, empobrecedoras emrelação à pr imeira e vagas em re lação àsegunda.

Por outro lado, não se poderia exigir que a

daseinsanalyse explicasse por que ocor rem"dis torsões" na estrutura " no rm al" do ser no

mundo. Essas distorsões, de qualquer modo,são possibil idades inerentes ao ser da presença. E mesmo que se identif ique m "causas",sejam orgânicas ou não (e elas pod em de fato

ser identif icadas), e ainda que a abordagemexistencial possa tomá-las em consideração,ta l i den t i f i c aç ão n ão a fe ta sua v i s ão do

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fenômeno. É nesse sentido que se diz que a

noção d e existência está aquém do plano dosfatos objetivos observados pela ciência. Estan ã o é u m a l i m i t a ç ã o d o p e n s a m e n t o

exis tenc ia l , é ao contrár io o seu valor . A"idé ia" básica da fenomeno logia não consisteapenas em inserir um mundo de aparências(as coisas ta l como elas aparecem) nosmeandros de um mundo " real" . Essa idéia é

mui to ma is fundamenta l , e cons is te emaf i rmar que é o n íve l "do v iv ido ou dofenom ena l q ue se t ra ta p rec isamente de

just i f icar e reabi l i tar como fundamento donível objetivo." (Merleau-Ponty, 1992:195-6)D e ac o r do c om es s a i dé ia , o c ampofenomenal da experiência vivida, da inserção

em um mundo, é aquele que dá sent ido àexistência de certos fatos objetivos isolados.Nessa linha, Binswanger, após identificar a" e s s ê n c i a a n t r o p o l ó g i c a " d e u m ae n f e r m i d a d e , p a s s a a r e e x a m i n a r o sconhecimentos estabelecidos a respeito docomportamento anormal em estudo para, porassim dizer, corrig i-los.

U ma ou t r a d i f i c u ldade das aná l i s es de

B ins w ange r d i z r es pe i to ao mé todo

empregado. Ora, vimos, com Heidegger, que

o ser no mundo é um a priori existencial (isto

é, um a priori que não é "apriorístico" no

sentido de ser anter ior à exper iênc ia). E

dissemos ac ima que a enfermidade pode

sempre ser compree ndida no plano do ser no

mundo , no modo em que e la s e dá

existencialmente, sem que seja necessário

recorrer ao n ível das causas objetivas (mas sem

que seja pro ib ido fazê- lo). Com efe i to, é

interessante na perspect iva ex is tenc ia l a

visualização do comportamento como atitude

geral, com o m ovime ntação total da existênciaem um m un do . Essa visualização de m odo

algum é incompatível com o estudo objetivo

do comportamento e de sua gênese 8 . Mas

u m a c o n s e q ü ê n c i a d e s s e " r e c o r t e " d o

compor tamento ta lvez se ja a l inguagem

metafórica e imprecisa de que se lança mão

para apreendê-lo. Esse tipo de l inguagem,

con tudo , se justif ica (embora Binswanger não

o afirme expressamente) justamente por visar

o ser-em, e porq ue este não pode ser definido

e aval iado "segundo s inais objet ivos". Osf e n ô m e n o s p s i c o p a t o l ó g i c o s , e n q u a n t o

modal idades ex is tenc ia is , não podem ser

apreendidos como realidades substanciais e

incon fund íveis. É interessante a posição de

B ins w ange r quan to a ess e p r o b le m a :

"Naturalmente, é prec iso ter em mente aí

que, ao perguntarmos se um de terminado fato

'pertence' a uma essência, muitas vezes se

trata de uma questão puramente 'de tato',

ou seja, de uma questão do domínio da

experiência f enomeno lóg i c a , que não é

diferente da questão se determina da obra de

arte linguística pertence à essência artística

da poesia lír ica, épica ou dramática, não

im por tan do a nitide z co m que essas essências

possam ser contrastadas enquanto tais. (...)

Assim como no domínio da arte, também na

análise existencial, as definições rígidas devem

ser consideradas como obstáculos para a

p e s q u i s a " . ( B i n s w a n g e r , 1 9 7 7 : 9 7 - 8 ) .

8 - Essa compatibilidade pareceser, aliás, uma aptidão da fenomenologia enquanto método: "Parao filósofo, assim como para o

psicólogo, há sempre portanto umproblema da gênese, e o ún icométodo possível é acompanhar aexplicação causal em seudesenvolvimento científico, pataprecisar seu sentido e colocá-la emseu verdadeiro lugar no conjuntoda verdade . É por isso que não seencontrará aqui nenhumarefutação, mas um esforço paracompreender as dificuldadespróprias do pensamento causal."

(Merleau-Ponty, 1996:614)

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Desse modo, a l inguagem metafór ica e o

cará te r abrangente de mu i tos conce i tosutilizados po r Binswanger estão em correlaçãocom o tipo de fenô me no visado. A relevância

teó r i c a do pa r ad igma da ex i s tênc ia napsicopatologia e na psicologia, ao m enos emparte, deve ser avaliada de acordo com aimpo r tânc ia que pos s a te r , pa r a a

c ompreensão do c o mpo r tame n to hum ano ,

a n o ç ã o d e s e r - e m , e n t r e o u t r a s . A

importân cia da ab ordagem existencial reside,

a nosso ver, no alcance que pode trazer à

compreensão da exper iênc ia humana, etambém no fato de ser um paradigma de

investigação científica atento aos fundam entos

ontológicos da realidade.

Márcio Ferreira Barbosa

Rua Barros Falcão, 69, Apt°22-Ed. B. Falcão-Matatu deBrotas 40255-370-Salvador/BA (071)381-4489

Referênciasbibliográficas

Binswanger, L. (1977) Três formas da existência malograda -

extravagâcia, excentricidade,amaneiramento. Rio dea n e i r o , Zahar.

Heidegger, M . (1995) Sere Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes.

Lyotard,J-F. (1986) A  Fenomenologia. Lisboa: Edições 70.

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(1980) "O Filósofo e sua Sombra" Em Os Pensadores

pp.239-260). São Paulo: Abril Cultural.

(1992) O Visívele o Invisível. São Paulo: Perspectiva.

Ricoeur, P (1994) Tempo e Narrativa (tomo I). São Paulo: Papirus.

Villela-Petit, M. (1996) "Heidegger's conception of space" Em C.Macann, Critical Heidegger (pp. 134-157). London and New York,Routledge.