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COGNITIO: Revista de Filosofia ISSN 1518-7187 Indexação: The Philosopher`s Index; Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (CLASE) Banco de Traduções Tradução de artigo publicado no Volume 4, Número 1, Janeiro – Junho de 2003 METAFÍSICA PRAGMATISTA: UM CAMINHO PARA O FUTURO Sandra Rosenthal Universidade de Loyola – EUA [email protected] Original em inglês. [Tradução para o português de João Máttar – Centro de Estudos do Pragmatismo – PUC/SP, [email protected] ] O pragmatismo americano clássico possui uma estrutura paradigmática singular, que oferece uma poderosa ferramenta para superar a confusão de alternativas e dilemas tradicionais incrustados na tradição filosófica, e que ainda hoje operam, implícita ou explicitamente, no que é em geral considerado filosofia de vanguarda. Este artigo explorará o modo como o pragmatismo propõe uma nova compreensão da natureza e do valor da metafísica, através de uma reorientação que possibilita conectar os insights da filosofia especulativa tradicional com alguns reconhecimentos contemporâneos de suas limitações. “A metafísica é possível?” é uma questão muito debatida atualmente. Anúncios da morte da metafísica surgem por parte de figuras importantes como Rorty e Derrida, et al, enquanto seus adversários proclamam que os próprios anúncios estão repletos de pressupostos metafísicos não examinados. O debate ocorre quase tão intensamente entre os defensores da importância da metafísica. Para muitos que aceitam alguma versão da metafísica tradicional, a rejeição da possibilidade da metafísica especulativa “na tradição nobre” aponta para a rejeição da própria metafísica. Seus

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Page 1: Ser e Estar No Mundo

COGNITIO: Revista de FilosofiaISSN 1518-7187

Indexação: The Philosopher`s Index; Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (CLASE)Banco de Traduções

Tradução de artigo publicado no Volume 4, Número 1, Janeiro – Junho de 2003

METAFÍSICA PRAGMATISTA: UM CAMINHO PARA O FUTURO

Sandra RosenthalUniversidade de Loyola – EUA

[email protected] Original em inglês.

[Tradução para o português de João Máttar – Centro de Estudos do

Pragmatismo – PUC/SP, [email protected] ]

O pragmatismo americano clássico possui uma estrutura paradigmática singular, que oferece uma poderosa ferramenta para superar a confusão de alternativas e dilemas tradicionais incrustados na tradição filosófica, e que ainda hoje operam, implícita ou explicitamente, no que é em geral considerado filosofia de vanguarda. Este artigo explorará o modo como o pragmatismo propõe uma nova compreensão da natureza e do valor da metafísica, através de uma reorientação que possibilita conectar os insights da filosofia especulativa tradicional com alguns reconhecimentos contemporâneos de suas limitações.

“A metafísica é possível?” é uma questão muito debatida atualmente. Anúncios da morte da metafísica surgem por parte de figuras importantes como Rorty e Derrida, et al, enquanto seus adversários proclamam que os próprios anúncios estão repletos de pressupostos metafísicos não examinados. O debate ocorre quase tão intensamente entre os defensores da importância da metafísica. Para muitos que aceitam alguma versão da metafísica tradicional, a rejeição da possibilidade da metafísica especulativa “na tradição nobre” aponta para a rejeição da própria metafísica. Seus adversários respondem inflexivelmente que a rejeição da metafísica, concebida tradicionalmente, ainda assim permite a concepção da metafísica como um empreendimento que, embora modificado em natureza, retém sua função vital. Essa nova função é ela mesma concebida de maneiras bastante distintas, limitando-se, em alguns casos, a uma descrição fenomenológica das características da existência humana concreta, e em outros casos incluindo algumas afirmações mais genéricas, com diversas justificativas. Nesse contexto contemporâneo do debate, muitos pragmatistas distanciam-se dos empreendimentos metafísicos especulativos, que para eles parecem embaraçosamente “fora de moda” e claramente não-pragmatistas. Entretanto, a filosofia pragmatista está intimamente entrelaçada com um novo paradigma para empreendimentos metafísicos especulativos, que oferece não um retrocesso para tempos passados, mas um novo caminho para o futuro.

O foco mais iluminador para desautorizar a concepção pragmatista contemporânea implícita sobre a natureza da metafísica, assim como para estabelecer o contexto para interpretar seu conteúdo, talvez possa ser encontrado em suas descrições da experiência vivida rudimentar, sob a perspectiva da concepção do significado como hábitos de resposta. Esse pode a princípio parecer

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um lugar estranho para iniciar a jornada metafísica, já que freqüentemente se considera que a teoria pragmatista do significado torna as questões metafísicas sem sentido. Mas, na verdade, ocorre o inverso.

Há um duplo sentido filosófico para o ‘significado’, entendido como hábitos de resposta, que percorre toda a posição pragmatista, um ontológico, o outro epistêmico, ambos cortando o nível do biológico em termos dos conteúdos da análise científica. A dependência do organismo em relação ao ambiente do qual ele e seus hábitos emergiram é causal e ontológica, mas isso não tem, de forma alguma, nada que ver com uma teoria causal, reducionista ou “naturalizada” da percepção, com a causalidade expressa em categorias científicas, ou com uma respectiva ontologia reducionista. Antes, refere-se ao fato de que há uma “dureza” ou “bruteza” independente no que está ‘aí’, que frustrará ou permitirá o progresso das ações intencionais do organismo. Nesse sentido, podemos falar da adequação dos significados em termos de categorias objetivas da conduta contínua do organismo biológico imerso em um mundo natural.

A dependência do ambiente percebido em relação ao organismo é, entretanto, também noética ou epistêmica. Tal dependência noética/epistêmica não envolve nem as características excluídas anteriormente nem categorias objetivas, mas é antes uma relação mente-objeto intencional, que pode ser estudada epistemicamente de dentro. Nesse segundo sentido, podemos falar da adequação dos significados em termos da aparência do que é significado. A significação dos hábitos biológicos, não como categorias ontológicas, mas como categorias epistêmicas, é que tais disposições, tendências ou hábitos, enraizados ontologicamente, são experienciados imediatamente e permeiam o próprio tom e a própria estrutura do conteúdo captado imediatamente.

Esse foco dual aponta para nossa incrustação ontológico-epistêmica em uma realidade que não é exclusivamente fabricada por nós. Há uma relação inseparável entre o organismo biológico humano envolvido por um universo natural e o conhecedor humano que constitui um ambiente vivido através de significados. Do contexto da interação organismo-ambiente emergem significados irredutíveis que permitem que os objetos cheguem à percepção consciente. Tais significados são irredutíveis a condições causais físicas ou a atos e processos; mesmo assim, eles emergem do biológico, quando o biológico é apropriadamente compreendido, pois o conteúdo da percepção humana é inseparável da estrutura do comportamento humano em seu ambiente natural.

Tanto a dimensão ontológica do hábito quanto a fenomenológica referem-se a uma característica fundamental da filosofia pragmatista, a unidade criativa e interativa dos seres humanos com o independentemente aí. A experiência é essa unidade transacional contínua e rica, e apenas no contexto dos significados, que refletem tal unidade interacional, algo emerge para a percepção consciente. A experiência é sempre uma experiência em um mundo, e as coisas que chegam à percepção no mundo, assim como o próprio mundo, entendido como o horizonte mais amplo de relacionamento significativo com o independentemente real, como a moldura circundante de referência ou o campo de interesse da interação organismo-ambiente, refletem também essa unidade interacional.

Lewis percebe isso ao afirmar que “pode ser que entre um idealismo suficientemente crítico e um realismo suficientemente crítico não haja divergências, a não ser falsas questões que surgem das falácias insidiosas de uma teoria do conhecimento fundada na cópia.”1 Como Peirce tão bem resume, embora “tudo o que é presente para nós seja uma manifestação fenomenal de nós mesmos,” isso “não impede que seja um fenômeno de algo sem nós, assim como um arco-íris é ao mesmo tempo uma manifestação do sol e da chuva.”2 Para todos os pragmatistas, o fluxo da vida, como ocorre concretamente, já envolve uma dimensão fenomenológica do lançar-se humano para fora, para o universo, através de uma intencionalidade vital constitutiva da natureza da experiência

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como experimental. Dessa forma, o ser dos humanos no universo natural e o conhecer pelos humanos no universo natural estão inseparavelmente conectados com a estrutura da experiência.

Tal unidade transacional é mais do que um postulado do pensamento abstrato, pois tem dimensões fenomenológicas. A unidade ontológica interativa da transação organismo-ambiente é refletida nos aspectos da experiência captados fenomenologicamente. Aquilo que se intromete inexplicavelmente na experiência não é dado bruto, mas antes as próprias evidências, como a excessiva contrariedade de uma realidade espessa dada para minha atividade. Desse modo, Lewis afirma que a factualidade independente “não precisa ser assumida nem provada, mas apenas admitida”,3 enquanto Dewey observa que a experiência “penetra fundo na natureza; tem profundidade.”4 Essa descrição da dimensão ontológica da experiência está bem demonstrada na afirmação de Mead de que, tornando-se um objeto, algo tem o caráter de “efetivamente ou potencialmente atuar sobre o organismo de seu próprio interior.” Ele identifica essa característica como a de ‘ter um interior’.5 Tal atuação sobre o organismo não deve ser compreendida como uma resistência passiva, mas como resistência ativa, resistência a nossa atividade orgânica. Peirce capta essa dimensão ontológica da experiência em sua compreensão do Objeto Dinâmico, que é “a Realidade que por algum meio consegue determinar o Signo a sua Representação.”6 Dessa maneira, o hábito cria o objeto imediato sob as restrições do objeto dinâmico que é seu referente último, e fornece o elo vital e vivo entre os signos e o universo.

O pragmatismo, buscando unir significados livremente criados com a ‘qualidade de ser aí’ coercitiva da qual eles emergiram, tem às vezes enfatizado significados livremente produzidos, e outras vezes o exame especulativo daquilo que está aí coercitivo. O que deve ser enfatizado e distinguido é a unidade epistêmica e ontológica no âmago da experiência, provendo a passagem de um para o outro. Tal unidade interativa contém uma abertura de duas direções: a abertura primordial do caráter da própria experiência dá-se, em uma direção, para as características dos modos humanos de captar o independentemente real, e, na outra direção, para as características do independentemente real, pois o caráter da experiência emerge de uma interação entre esses dois pólos e reflete então características de cada um, embora não espelhe nenhum exatamente. Na unidade interacional que constitui nossa experiência mundana, os dois pólos estão portanto manifestos: a alteridade independentemente-aí, para a qual a experiência se abre, e a estrutura do modo humano de ser, de cuja atividade intencional a experiência mundana emerge.

Afirmações de conhecimento abstrato não constituem nosso principal acesso ao universo natural; a experiência concreta sim. Entretanto, as primeiras infiltrações de significados, incorporados na atividade humana, estão imediatamente presentes mesmo no captar mais rudimentar em nosso entalhe natural. Reciprocamente, as relações semióticas, incorporadas no significado pragmatista, não são produtos do livre jogo dos signos lingüísticos, mas antes são contornadas dentro de limites pelas forças dinâmicas historicamente enraizadas, operativas naquilo em que estamos incrustados. No próprio âmago do desenvolvimento temporal do comportamento humano antecipatório, encontramos uma criatividade, expressiva da natureza experimental da experiência, que é unificada com a presença ontológica mas torna impossível seu captar em termos de qualquer absoluto. A experiência, como uma unidade interacional dos dois pólos, reflete características de cada um mas não espelha nenhum exatamente.

A falta de reconhecimento de tal “reflexão” interacional no âmago de toda experiência, e, como resultado, a sua substituição por um espelhar, seja do ontologicamente real sozinho, seja de nossa atividade seletiva sozinha, leva às dicotomias contemporâneas do realismo-antirealismo, objetivismo-relativismo, fundacionalismo-antifundacionalismo, uma metafísica de absoluta presença ou a morte da metafísica. Todas essas alternativas fracassam em reconhecer um sentido da

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experiência primordial, que é inerentemente criativa embora ao mesmo tempo nos abra para o caráter da espessa realidade independente na qual estamos incrustados.

A apreensão da existência humana concreta, em sua incrustação ontológica natural, envolve a apreensão permeável da passagem temporal. Como Peirce defende, tal continuidade é dada na percepção; ou seja . . . parece que percebemos um genuíno fluxo do tempo.7

O movimento da temporalidade, repleta de experiência significativa, até a metafísica do processo como a base para compreender seu caráter ontológico, é operativo em todos os pragmatistas. É encontrado na afirmação de Lewis de que “o absolutamente dado é um presente ilusório, desaparecendo no passado e crescendo para o futuro sem fronteiras genuínas. A quebra disso . . . já marca a atividade de uma mente interessada.”8 Ou, como afirma Mead de uma maneira similar, “no limite futuro da experiência, as coisas passam, suas características mudam e elas se transformam em pedaços.”9 O papel da atividade constitutiva humana de transformar um universo processivo “independentemente aí” em coisas estruturadas, unificadas em termos de sua função em um mundo, está sucintamente indicado na afirmação de Dewey de que “a estrutura é a constância dos meios, das coisas usadas para conseqüências, não das coisas tomadas por elas mesmas absolutamente.”10 Além disso, o “isolamento da estrutura em relação às mudanças, cuja ordenação estável ela é, torna-a misteriosa — algo metafísico no sentido popular da palavra, um tipo de esquisitice fantasmagórica” 11

Para todos os pragmatistas, as estruturas das coisas captadas pela mente conhecedora não alcançam uma realidade mais suprema do que as interações processivas da experiência fundada temporalmente, mas, antes, o vivo captar da temporalidade sentida, abrindo-se para um universo processivo, é a própria fundação para a emergência da estrutura de significado na experiência. A abertura de duas direções da experiência carrega a temporalidade de um pólo para o outro, de uma fenomenologia da experiência mundana para uma metafísica do processo. Por isso, quando James pergunta: “até onde precisamos ir, no resto da natureza, para chegar totalmente além do” sobrefluxo da experiência,12 sua resposta é clara. Podemos “atingir o âmago da natureza”, podemos captar as texturas mais universais de seus aspectos mais característicos, mas não chegaremos além de seu sobrefluxo. Os humanos são seres naturais em interação com um universo natural, e, no âmago da natureza, está o processo. De outro lado, a metafísica do processo reforça a compreensão pragmatista do conhecimento, pois, como observa James, “quando todo o universo parece apenas. . . estar ainda incompleto (senão por que estaria ele mudando sem parar?), por que, de todas as coisas, deveria o conhecimento estar isento?”13

1 C. I. Lewis, Mind and the World Order (New York: Dover Publications, 1929), p. 194.2 Peirce, 5.283.3 Lewis, Mind and the World Order, Appendix D, pp. 425-426.4 Dewey, Experience and Nature, The Later Works, vol. 1, 1981, pp. 12-13.5 Mead, The Philosophy of the Present, ed. Arthur Murphy (La Salle, Illinois: Open Court, 1959), p. 137.6 Peirce, 4.536; Cf. também 8.3147 5.2058 Lewis, Mind and the World Order, p. 58.9 Mead, Philosophy of the Act, p. 34510 Dewey, Experience and Nature, pp. 64-65.11 Ibid., p. 65.

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As estruturas temporais, que pertencem ao nosso processo interpretativo, pertencem também ao universo no qual elas emergem. Os hábitos humanos de resposta, que são para os pragmatistas o encorpamento vivo do significado, são precisamente tendências dinâmicas antecipatórias, “ontologicamente espessas” e temporalmente fundadas, estruturando atividades emergentes no contexto de possibilidades alternativas para efetivação contínua. A visão de uma “qualidade de ser aí” processiva, “espessa”, “densa” e não fabricada por nós, e de uma riqueza indefinida de potencialidades para ordenar, é obtida por uma elaboração sofisticada ou uma extrapolação da referência à experiência primitiva de potencialidades antecipatórias e possibilidades não efetivadas, da maneira como isso ocorre através do funcionamento efetivo do hábito como significado vivo e concreto no fluxo do tempo.

Uma disposição ou um hábito, como uma regra regulativa, é algo cujas possibilidades de determinação nenhuma multidão de instâncias efetivamente geradas pode exaurir. A apreensão primordial das potencialidades criativas do hábito não efetivadas, da maneira como são experienciadas na continuidade temporal efetiva do presente duracional, gera a sensação concreta de uma legalidade real que governa possibilidades não efetivadas, de potencialidades que nunca podem ser exauridas por nenhuma quantidade de efetivações. Adicionalmente, a apreensão de possibilidades não efetivadas, envolvidas em disposições ou hábitos, traz uma sensação de alternativas reais — o poderia fazer ou poderia ser de outra forma — à essência da consciência perceptiva, gerando uma sensação de liberdade, a que Lewis se refere como uma “sensação primordial de eventos prováveis.”14

Em função dessa sensação de potencialidade enraizada no significado como hábito, Peirce pode afirmar, sobre o pragmatista, “que ele não terá dificuldade com a Terceiridade é suficientemente claro porque ele defenderá que a conformidade da ação a intenções gerais é tão dada na percepção quanto o próprio elemento da ação, que não pode, na verdade, ser mentalmente desconectado de tal intencionalidade geral.”15 O funcionamento concreto do hábito fornece, epistemicamente, a contraparte conceitual da efetiva legalidade que se considera existir no mundo, e fornece, ontologicamente, um exemplo dessa legalidade real. Além disso, pareceria fornecer, para Peirce, uma base experiencial para a rejeição de hipóteses deterministas, não apresentada em “The Doctrine of Necessity Examined”. Pois a percepção de possibilidades não efetivadas, envolvidas em significado disposicional, gera uma sensação de alternativas reais, o “poderia fazer de outra forma”, à própria essência da consciência perceptiva, fornecendo uma base experiencialmente significativa para a rejeição de hipóteses deterministas, uma sensação de possibilidades diretamente percebidas e da espontaneidade de escolha entre elas. Essa sensação epistêmica primitiva de potencialidades e possibilidades alternativas, assim como a sensação de algo contra nossa atividade, que frustra ou abraça nossas antecipações, encontra seu lugar no conteúdo da derivação faneroscópica das categorias de Peirce e em sua metafísica. Embora a derivação das categorias de Peirce, vista seja no contexto de sua denominada dedução lógica, seja de sua faneroscopia “oficial”, tenha parecido a muitos artificial e forçada, ainda assim elas refletem características implicadas na percepção de nós mesmos como seres ativos, a percepção da existência humana concreta.

12 James, A Pluralistic Universe, The Works of William James, 1977, p. 129.13 James, Essays in Radical Empiricism, The Works of William James, 1976, p. 37.14 Lewis, An Analysis of Knowledge and Valuation, p. 32015 5.212

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No fluxo imediato dos humanos e no contexto mais amplo em que estão inseridos, esses traços fundados temporalmente não podem ser especificamente atribuídos a um ou ao outro. A apreensão primordial das pulsações da existência temporal abre-se, em uma direção, para as pulsações temporais da atividade cósmica, e, na outra direção, para a estrutura das pulsações temporais do modo humano de ser, em cuja atividade intencional a dinâmica temporal do universo manifesta-se como um todo em um nível emergente de atividade. A sensação do fluxo temporal embutida na atividade interpretativa é também uma sensação de dinâmica temporal de um universo processivo, com nossas próprias tendências disposicionais ou “significados vivos” sendo parte e parcela dela.

Essas dimensões não podem ser compreendidas pela moldura pragmatista, a não ser que a busca pelo totalmente determinado, o totalmente fixo, o totalmente discreto, renda-se à intuição pragmatista básica da continuidade e indeterminação que permeiam um universo radicalmente temporal em toda sua concretude espaço-temporal. Assim, tanto Peirce quanto James enfatizam o papel dos infinitesimais para livrar-nos das noções de discrição e determinação, sejam noções de bits experienciais, bits ontológicos ou bits temporais.16 Como Dewey enfatiza, a situação indeterminada e problemática é objetivamente indeterminada e problemática, independentemente da consciência17. Num sentido similar, Peirce, James e Lewis negam que os princípios da não-contradição e do termo médio excluído apliquem-se à realidade independente da mente organizadora18.

Nem a inteligibilidade nem a verdade requerem seja o ontologicamente discreto, seja o ontologicamente determinado. Nem o incessantemente “tornar-se outra” da realidade, nem sua indeterminação inerente, levam ao ininteligível e/ou ao fim da metafísica. A tendência pós-moderna de assim relacionar os dois deriva da recusa de separar a inteligibilidade da discrição e da fixidez. A realidade da continuidade de ‘tornar-se outra’, e a indeterminação que isso implica, possibilitam o discurso racional e a investigação contínua e fornecem conhecimento perspectivo sobre a realidade, desde que o conhecimento não seja compreendido como uma cisura direta e ininterrupta do que imediatamente “é”, e a verdade não seja compreendida como conformidade ou correspondência aos discretos fixos da uma realidade completamente determinada. Subjacente à escolha supostamente necessária entre a ‘falta de fundações’ de um jogo de Derrida ou de uma conversação de Rorty, de um lado, e o captar a realidade em sua “pureza prístina”, do outro lado, está a assunção de que, sem um “lugar” para o totalmente determinado, a alternativa do infundado prevalece.

16 James, A Pluralistic Universe, 153-154. Peirce, 6.109, 6.111, 6.87, 5.282, 6.138. Para uma integração dessas referências em função das questões anteriores cf. meu Time, Continuity, and Indeterminacy: A pragmatic Engagement With Contemporary Perspectives (Albany: State University of New York Press, 2000), Capítulos 8 e 9. 17 The Quest for Certainty, The Later Works, Vol. 4, 1984, p. 19418 James, A Pluralistic Universe, p. 117; C.I.Lewis, “A Pragmatic Conception of the A Priori”, Collected Papers of Clarence Irving Lewis, ed. John Goheen and John Mothershead,Jr.(Stanford: Stanford University Press, 1970), p. 232; Peirce afirma que o geral é aquilo a que a lei do termo médio não se aplica, enquanto o vago é aquilo a que o princípio de não-contradição não se aplica (5.448). Ele identifica então, explicitamente, a continuidade com a generalidade. Sobre a maneira como a continuidade permeira toda a realidade, cf. meu Charles Peirce’s Pragmatic Pluralism (Albany: State University of New York Press, 1994).

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Nosso mundo perceptivo, que fundamenta a emergência dos fatos e objetos, e fornece a fundação para outros mundos mais abstratos e mais imaginativos, é ontologicamente uno com o desdobrar espaço-temporal de uma realidade indeterminada. É, metafisicamente, esse independentemente real. Entretanto, um mundo é dependente do sistema de significado ou contexto interpretativo que capta a concretude completa da realidade espaço-temporal de uma maneira que ela não é, já que um mundo é aquela perspectiva da realidade indefinidamente rica que foi “fixada” ou “esculpida” por um sistema de significados. O conhecimento é abstrativo e seletivo. Um mundo, embora concreto, não deixa de ser seletivo no sentido de que um mundo, como o conteúdo concreto denotado por um sistema de significados, é uma maneira pela qual a concretude indeterminada da realidade pode ser delineada ou “fixada”. Um sistema, uma vez escolhido, limita as alternativas possíveis, mas sistemas alternativos podem ser possíveis. A riqueza indefinida da um universo processivo está aí. Onde os “cortes” conceituais são impostos é, em parte, nossa decisão. Um mundo é delineado por um sistema de fatos, mas fatos não são independentes de um processo de conhecimento seletivo, pois fatos são porções abstratas de continuidades que estão interagindo.

Um mundo é por definição consistente porque um mundo é o conteúdo concreto que é delineado por uma rede interrelacionada de significados consistentes. O mundo responde às leis do termo médio excluído e da não-contradição, e portanto representa o ideal do que pode ser conceitualmente articulado – e consequentemente tornado preciso – até seu limite ideal. Talvez possa ser dito, um tanto quanto metaforicamente, que enquanto a realidade é a infinidade de um processo contínuo, o mundo é a fixação lógica de um número infinito de cortes possíveis. O mundo é o contexto de significado em que todas as outras estruturas e todos os outros objetos podem ser articulados, no sentido de que o mundo é o conteúdo ou a armação envolvente de referência, ou o campo de interesse “mais amplos”, da interação organismo-ambiente, e consequentemente dos cortes conceituais que podem delinear a experiência consistentemente no contexto da relação significativa. Essa “fixação lógica” de cortes possíveis emerge das atitudes comportamentais prerefletidas regulativas e antecipatórias.

Tal mundo, assim, abre-se em uma direção para as estruturas de um universo rico e processivo e para as possibilidades que ele apresenta, e em outra direção para as estruturas de nossos modos de captá-lo e as possibilidades que tais modos de captar permitem. O que pode ocorrer no mundo deve conformar-se às possibilidades disponíveis no mundo que nós estruturamos – embora o mundo que nós estruturamos tenha surgido por interações bem sucedidas com as possibilidades oferecidas pelo desdobrar dinâmico da realidade espaço-temporal. Nossas interpretações estão, como Derrida defende, enraizadas no fluxo, mas o fluxo não é um “livre flutuar”; o fluxo é o fluxo de um universo temporalmente indeterminado em sua dinâmica contínua, um universo indeterminado que torna sem sentido, literalmente, o conceito de “espelhar” ao qual Rorty corretamente objeta, ou o suposto captar de fatos imediatos e descontextualizados ao que Derrida corretamente objeta.

Em muitos níveis, a verdade é ao mesmo tempo construída e encontrada. As ditas tensões entre a verdade construída e encontrada, entre a verdade em mutação e a verdade fixa, resultam da fixação em dimensões distintas, que operam no entrelaçamento da atividade humana interpretativa com o desdobrar temporal do universo concreto processivo. Nós criamos as molduras interpretativas em que as crenças podem emergir e ser consideradas verdadeiras ou falsas, e em que a investigação pode tender para o acordo. A inteligência criativa, envolvida em mudanças radicais e mudanças de estruturas interpretativas, é influenciada por condições socioculturais, mas está fundada não em um historicismo relativista e perspectivamente fechado, mas em um temporalismo

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perspectivamente aberto e ontologicamente estabelecido. O critério para cortar adequadamente a rica matriz de possibilidades da experiência, oferecida pela dinâmica de um universo concreto indeterminadamente rico, é a praticabilidade, mas a praticabilidade só pode ser estabelecida em relação a alguma rede significativa pela qual a experiência possa ser “captada”. A realidade responde nossas questões e determina a praticabilidade de nossos significados, mas que respostas ela fornece dependente parcialmente de que questões nós perguntamos, e que estruturas de significados funcionam dependente parcialmente das estruturas que nós carregamos.

Portanto, subjacente à própria possibilidade de conhecimento empírico há uma relação intencional entre os humanos e seu mundo; e quais fatos nosso mundo revela dependente parcialmente das estruturas interrelacionadas de significados que nós conduzimos. A densa e concreta riqueza, dada para possível discriminação de uniformidades, uma riqueza concreta constituída pela continuidade de um universo processivo indefinidamente rico que, como Peirce afirma, “nada na indeterminação”19, é independente de nossas conceitualizações e das possibilidades que elas permitem. Mas a maneira pela qual uniformidades são delineadas encontra-se parcialmente determinada pela faixa das inter-relações em que fatos percebidos podem emergir.

O sistema ontológico de tendências disposicionais entrelaçadas, compreendidas como indefinidamente concretas, é revelável de diversas maneiras, através de várias estruturas de significado, e é universalizável e “inteligível” através da rede dessas estruturas, embora “em si mesmo” não contenha nenhuma ordem inteligível. Entretanto, como Dewey nota cuidadosamente, isso “não significa que a natureza perdeu inteligibilidade. Antes significa que estamos na posição de compreender que o termo inteligível deve ser entendido literalmente . . . A natureza é capaz de ser entendida . . . A devoção que mostramos ao ideal de inteligência determina a extensão” pela qual o universo “é congenial à mente.”20

O exame pragmatista da existência humana concreta fornece não apenas o foco para uma concepção das categorias como fenomenológicas e então metafísicas, mas também fornece a direção para a compreensão da natureza do empreendimento metafísico que as utiliza. Como todo sistema de significados, o sistema categorial de significados que constitui uma interpretação metafísica conforma-se à concepção pragmatista do conhecimento ligada à dinâmica do método experimental. Ele surge da riqueza da experiência, fornece uma perspectiva organizadora que dirige o modo como abordamos a experiência, e pode ser verificado pela inteligibilidade que introduz no curso contínuo da experiência. Como Peirce afirma, o empreendimento metafísico é como “aquele das ciências especiais”, exceto que ele “está baseado em tipos de fenômenos com os quais a experiência de todo ser humano está tão saturada que ele usualmente não presta atenção particular a eles.”21 Assim, James concebe o método da ciência e da metafísica como sistemas ideais do pensamento, embora admita uma disparidade do conteúdo,22 enquanto Dewey afirma que a filosofia, assim como a ciência, legitimamente teoriza sobre a experiência, mas não pode começar com o conteúdo da ciência, e sim com a “integridade da experiência.”23

Os pragmatistas, como metafísicos do processo, são levados, de acordo com o modelo experimental de adquirir conhecimento e através de uma extrapolação especulativa da experiência, a uma “descrição especulativa e interpretativa” daquilo que a realidade independente precisa ser,

19 Peirce, 1.171-1.17220 Dewey, The Quest for Certainty, p. 215.21 Peirce, 1.282; 6.2.22 James, Principles of Psychology, The Works of William James, 2 vols., 1981, p. 671.23 Dewey, Experience and Nature, p. 37, 19.

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em seu caráter independente, para dar origem ao nível primordial da experiência e para “responder” aos significados pelos quais ela se revela para nós. E deve-se notar que há aqui uma grande diferença entre a reificação ilícita por parte de antigas filosofias do senso comum ou de significados científicos, e a extrapolação especulativa, de dentro da experiência, dos tons e texturas permeáveis da “qualidade de ser aí” processiva e espessa que entra em toda a experiência. As categorias metafísicas fornecem a iluminação pela qual traços do “que está aí” podem vir a foco. Tais categorias representam a tentativa persistente de iluminar e articular, através de um esquema criativo ou uma estrutura explanatória, os processos e as texturas presentes em toda experiência.

A visão de uma “qualidade de ser aí” processiva, “espessa” e “densa”, e não fabricada por nós, e de uma riqueza indefinida de potencialidades para ordenar, em seu interior, é obtida por uma elaboração sofisticada (ou extrapolação) da referência à experiência primitiva de potencialidades antecipatórias e possibilidades não efetivadas, como isso ocorre através do funcionamento efetivo do significado vivo concreto no fluxo do tempo. Tal universo processivo, que se revela nas texturas permeáveis da experiência, é o lar do todo do sensório, com sua riqueza e espontaneidade, o lar das alteridades brutas do independentemente real com o qual eu interajo e para o qual eu respondo; o lar das continuidades e regularidades que se misturam por comércio com ele e permitem que eu antecipe o tipo de presença a estar contida no momento da abordagem. Assim, todos os pragmatistas, através de suas respectivas terminologias, convergem em direção a uma metafísica processiva da natureza que pode ser caracterizada em termos das categorias da riqueza qualitativa, diversidade, espontaneidade, possibilidade; interação, contrariedade, choque, presentidade; tendências disposicionais, potencialidades, modos legais de comportamento. Essas categorias são compreendidas e interrelacionadas em termos dos modos como uma realidade espessa, natural e dinâmica funciona.

Essa metafísica emergente, portanto, pressente um universo em que os humanos estão em casa e com os qual suas atividades são contínuas; um universo em que a sua experiência vivida qualitativa pode captar características qualitativas realmente emergentes da realidade, e em que seus significados criativos, envolvendo potencialidades noéticas geradas disposicionalmente, podem captar as tendências realmente dinâmicas da realidade para produzir operações de um certo tipo e com uma certa regularidade. Um universo, em resumo, que é tanto captado quanto refletido pelas texturas permeáveis no âmago de toda experiência e na fundação de todo significado.

Vimos que os conteúdos categoriais de tal metafísica não se pretendem, de forma alguma, ser compreendidos como um captar do ser através de alguma visão de espectador. Mas eles também não são apenas hipoteticamente supostos no começo, sem termos nenhuma consciência experiencial deles. As reflexões de segundo nível da filosofia devem estar fundadas na experiência vivida, e ser constantemente alimentadas por essa experiência. Tal sistema aberto é a explanação enraizada na experiência vivida e respondendo a ela, não o captar direto do “ser em si mesmo”. Embora enraizado no nível vivido, ele não está jamais totalmente adequado ao nível do vivido. Está aberto a mudanças e desenvolvimento, assim como todas as afirmações estão abertas à mudança e ao desenvolvimento. O pragmatismo dá origem a uma nova compreensão do sistema metafísico como um sistema aberto ou uma estrutura explanatória, e a uma visão da explicação enraizada na história da mudança evolutiva, mais do que oposta a ela.

Aqui se pode objetar que a concepção de um sistema metafísico perspectivamente e temporalmente enraizado envolva relativismo e historicismo, tanto para afirmações metafísicas quanto para o conhecimento de modo geral, do qual ele é um tipo. Entretanto, tais objeções novamente separam a experiência de sua unidade interativa e criativa (de sua abertura para) com o que está independentemente aí. Como indicado anteriormente, a unidade nega a arbitrariedade do

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antifundacionalismo, antirealismo, relativismo, um historicismo de circunstância casual presente e o fim da metafísica. A criatividade temporalmente fundada nega a incondicionalidade do fundacionalismo, realismo, objetivismo, do captar absoluto e da metafísica da pura presença.

Em vez do auto-enclausuramento estultificante de um relativismo de esquemas conceituais arbitrários, essa visão pragmatista abriga um perspectivismo aberto, no qual perspectivas abrem-se para o fundamento concreto comum de sua possibilidade. Em vez de um historicismo de ocorrências presentes, envolve um temporalismo em que o enraizamento histórico é enraizado ontologicamente, e em que o enraizamento ontológico da perspectiva emerge do contexto de um passado que se apresenta na riqueza das potencialidades e possibilidades de um presente processivo, orientado para um futuro novo e indefinido. Como todas as afirmações de conhecimento, as afirmações de conhecimento da filosofia pragmatista são falibilísticas, perspectivas e temporais, não obstante ontologicamente fundamentadas.

Tal compreensão da natureza do empreendimento metafísico oferece um caminho positivo para a reconstrução da metafísica, que evita os paradigmas tradicionais e as falsas dicotomias às quais eles dão origem. Dessa forma, é mais contemporâneo do que muito do que está contido nos debates contemporâneos, já que boa parte da crítica metafísica contemporânea, embora operando no aparentemente novo paradigma da linguagem, ou em outros aparentemente novos paradigmas radicalmente restritivos da natureza e dos limites das buscas metafísicas, ainda não conseguiu desvencilhar-se das alternativas oferecidas (e consequentemente das possíveis soluções permitidas) por uma longa tradição filosófica,

Embora as soluções alternativas e possíveis possam tomar direções distintivamente novas, e surjam então alternativas e limitações aparentemente novas, elas podem com muita freqüência ser consideradas guinadas de novos paradigmas para ofertas de velhos paradigmas. Pois, com muita freqüência o colapso de espectadores absolutos, de sistemas fechados, de fundações indubitáveis, leva às afirmações do fim da metafísica, e uma mudança relativista e anti-fundacionalista à conversação ou ao jogo da diferença. A posição pragmatista tem suas fundações na unidade interacional da criatividade noética dos humanos e na presença ontológica que “penetra” na experiência de uma maneira que invalida as alternativas fundacionalismo-anti-fundacionalismo, objetivismo-relativismo ou realismo-antirealismo, fornecendo em seu lugar um perspectivismo objetivamente fundado.

Ao acessarmos o valor positivo da metafísica hoje, freqüentemente afirma-se que a metafísica fornece mais verdade que significação, e que é mais interpretativa que cognitiva. Mas tanto as afirmações do senso comum quanto metafísicas fornecem significação, uma maneira de nos orientarmos para o mundo, antes que a questão da verdade possa emergir. Se não confinamos a verdade à conformidade ou correspondência com (ou um captar não-perspectivo de) uma realidade imutável e totalmente estruturada, que meramente “encontramos”, então a orientação criativa e significativa do mundo e a verdade andam de mãos dadas. Na verdade, embora diferentes filosofias apresentem diferentes posições, refletindo a influência de diferentes condições culturais e sócio-históricas e envolvidas por elas, mesmo assim elas o podem fazer apenas porque estão mais profundamente enraizadas nas condições que tornam possível a emergência de qualquer reflexão, e porque o filósofo está enraizado na riqueza concreta dessas condições que fundam as possibilidades alternativas de articulações formalizadas.

Podemos considerar o mal-estar contemporâneo com a noção tradicional de metafísica especulativa envolvido pela própria estrutura do pragmatismo como um sistema filosófico. A história da especulação metafísica, incorporada em sistema filosófico, é uma história que evidencia posições que sistematicamente negaram ou rejeitaram a percepção da temporalidade, criatividade,

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novidade, do falibilismo, pluralismo, perspectivismo, da vagueza, indeterminação e abertura – em resumo, as dimensões principais da filosofia pragmatista – em favor do eterno, fixo, final, certo, absoluto captar, da última conclusão, do todo perfeito, do totalmente determinado. As supostas fundações filosóficas então afirmadas eram, de acordo com essa visão pragmatista, criações refletidas fundamentadas em uma riqueza fundacional ignorada pelo pensamento filosófico. O pragmatismo não procura nem criar livremente nem se livrar de compromissos ontológicos, mas antes revelar o caminho em que há um compromisso ou enraizamento ontológico, no próprio âmago da experiência, que fundamenta tais tentativas alternativas.

No pragmatismo, portanto, as categorias da metafísica especulativa procuram nos levar a uma consciência da abertura interativa, no âmago da experiência, entre os humanos e o que está independentemente aí, e dessa forma fornecer o caminho para livrar o pensamento de afirmações ontológicas prematuras, de reificações ilícitas e de uma tradição filosófica que, em sua busca por supostas fundações, perdeu as fundações ontológico-experienciais, ilusórias mas universais, de sua busca. Estas últimas tendências do pensamento metafísico, assim como as tentativas contemporâneas de se desfazer do bebê metafísico com a questionável água do banho, ignoram a unidade interativa epistêmica e metafísica fundamental, criativa e indefinidamente rica, no âmago da experiência vivida. A linguagem da filosofia nasce de uma tradição que ignora essa unidade interativa, e então reforça problemas e soluções alternativas que a posição atual frustra.

Enquanto as doutrinas pragmatistas são compreendidas ou desenvolvidas em termos de alguma das próprias alternativas que elas rejeitaram, então embora aspectos específicos de sua posição possam ser posteriormente desenvolvidos para propósitos específicos, a significação e a singularidade de sua visão sistemática se perde. O pragmatismo, ao iluminar a unidade interativa criativa no próprio âmago da experiência, através de seu foco em significados enraizados biologicamente e em atividade experimental, desenvolve uma posição que frustra as falsas alternativas e dicotomias mal posicionadas que ainda hoje assombram a filosofia, e que tendem a formar o pano de fundo para questões relativas ao fim da metafísica. Ele rejeita elementos essenciais da tradição que herdou, não por destruir o empreendimento da metafísica criativa, mas por reconstruir o caminho para seu desenvolvimento contínuo. Embora em alguns sentidos esse empenho pragmatista manifeste o fim, como morte, da metafísica no sentido tradicional, também representa seu fim como um propósito renovadamente focado. Tomando uma afirmação típica de Dewey fora de seu contexto, nenhum fim é absoluto, mas antes todo final é ao mesmo tempo um novo começo.

Como conclusão, e como um tipo de pós-escrito, seguem algumas considerações gerais e inadequadamente breves, considerando não a justificativa dos sistemas compreendidos nessa estrutura pragmatista, mas antes a justificativa de toda essa estrutura pragmatista, embora mesmo esse desejo de necessidade derive de sua própria perspectiva. Ela não pode obviamente ser auto justificativa; nenhum sistema pode se auto justificar. Toda tentativa de auto-justificação já pressupõe características daquilo que está tentando justificar. Entretanto, a tradição filosófica, que articulou a si mesma através de uma história de incomensuráveis sistemas em conflito, parece, como a história da ciência, apontar na direção de um sentido avaliativo não-formal da adequação de concepções formais, pois mostrou habilidade para chegar a um consenso frouxo, embora contingente, sobre a perda de vitalidade dos sistemas mais profundamente desenvolvidos, de algumas linhas de questionamento ou tipos possíveis de respostas, através de uma sensação vaga de falta de vida, embora haja uma incomensurabilidade formal entre esses sistemas sobre a natureza da verdade, das evidências, da justificativa e da questão das fundações. De fato, muitas das

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possíveis formalizações da filosofia, embora emergindo com vigor lógico contínuo, estão hoje começando a emergir peculiarmente destituídas de vitalidade.

A capacidade de persuasão de um sistema não está em uma força estritamente lógica, ou em uma força estritamente empírica, no sentido de apontar fatos supostamente trans-sistemáticos que outras posições filosóficas devam aceitar, mas antes em sua força em incitar insights básicos que “soem verdadeiros para a vida”, infundindo sua estrutura paradigmática com vitalidade mesmo enquanto outros se vestem com a falta de vida da artificialidade. Na linguagem do pragmatismo, uma filosofia é julgada, na verdade, não por suas raízes, mas por seus frutos. Todo sistema filosófico será persuasivo apenas se outros, através desse sistema, considerarem que ele chama a atenção para vislumbres pré-filosóficos iniciais que antes estavam vagamente inexprimíveis ou submersos pelo peso das estruturas distorcidas. A própria tradição filosófica contínua pareceria indicar que as reflexões da razão são na verdade enraizadas em (e responsáveis por) uma vitalidade prefilosófica da vida que está envolvida por uma rica e inexaustiva inteligência criativa que subordina, submerge e por fim desabsolutiza toda tentativa de impor requisições formalizadas sobre ela. Assim, James caracteriza o processo pelo qual nós aceitamos uma visão filosófica como “a vida excedendo a lógica. . . a razão teórica encontra argumentos depois que a conclusão está dada."24

De fato, essa é a única forma de avaliação que pode efetivamente manter todo sistema vivo, independente de quão sólidos sejam seus argumentos ou quão numerosos sejam seus “fatos” intrasistemáticos. Se, entretanto, como o pragmatismo defende, o pulso da existência humana, em sua essência, está ao mesmo tempo ontológica e epistêmica, criativa e perspectivamente enovelado, e então afinado, com aquilo que se revela de diversas maneiras em e entre vários níveis e modos da atividade humana, então esse sentido livre, criativo e pretemático pode ser um mestre ao mesmo tempo mais requisitante e mais tolerante do que quaisquer das diversas articulações do segundo nível a que dá origem. A filosofia pragmatista dá legitimidade filosófica a esse sentido de avaliação pré-temático, que nasce de nossa unidade interativa essencial com um universo denso e dinâmico com o qual devemos nos engajar de maneiras frutíferas. Essa compreensão pragmatista da natureza da metafísica, e inclusive da experiência humana e do conhecimento em geral, assim como do cosmos em que está incrustada, tem implicações importantes tanto para as tentativas contemporâneas de “situar” a metafísica no contexto da investigação filosófica, quanto para as tentativas de debater-se com a significação e a singularidade completa do pragmatismo americano clássico.

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24 James, A Pluralistic Universe, p. 148.

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