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A Mulher na Cultura Popular Nordestina... - Jaeger Revista Diálogos set. / out. 2018 N.º 20 136 A MULHER NA CULTURA POPULAR NORDESTINA: ENTRE O DISCURSO DA TRADIÇÃO E A TRADIÇÃO DO DISCURSO Dirce Jaeger Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco Campus Garanhuns, PE Pesquisadora GEPADUPE e DISCENS d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p136 Festa de São João em Caruaru, PE, Brasil. Entre ritmos, danças e comidas de milho, a réplica de um vilarejo especialmente construído para os eventos juninos de 2016 e 2017 traz em algumas portas dizeres que identificam a “casa da(s) fuxiqueira/fofoqueira(s)”, “da rezadeira”, “da cartomante”, “da cigana” e “da raizeira”. Imagens femininas que se apresentam como cristalizadas no espaço da cultura popular nordestina e que se mostram materialidades linguístico-discursivas densas em memórias e efeitos de sentido sobre a mulher no contexto interiorano da formação social nordestina. Os gestos de leitura encontram-se embasados nos movimentos teóricos e analíticos da Análise do Discurso francesa, em diálogo com a proposta de desestabilização de gênero (dégenrage) dos códigos, de Kunert. Dentre os movimentos interdiscursivos autorizados, identificam-se memórias do período cristão medieval, a demonização dos saberes femininos e a relação da mulher com o sagrado e o místico, dentre outros diálogos possíveis. Palavras-chave: tradição; análise do discurso; cultura popular; mulher nordestina THE WOMAN IN THE NORTHEASTERN POPULAR CULTURE: BETWEEN DISCOURSE OF TRADITION AND TRADITION OF DISCOURSE

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A Mulher na Cultura Popular Nordestina... - Jaeger

Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.º 20 136

A MULHER NA CULTURA POPULAR NORDESTINA:

ENTRE O DISCURSO DA TRADIÇÃO E A TRADIÇÃO

DO DISCURSO

Dirce Jaeger

Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco

Campus Garanhuns, PE

Pesquisadora GEPADUPE e DISCENS

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p136

Festa de São João em Caruaru, PE, Brasil. Entre ritmos, danças e

comidas de milho, a réplica de um vilarejo especialmente construído

para os eventos juninos de 2016 e 2017 traz em algumas portas dizeres

que identificam a “casa da(s) fuxiqueira/fofoqueira(s)”, “da rezadeira”,

“da cartomante”, “da cigana” e “da raizeira”. Imagens femininas que se

apresentam como cristalizadas no espaço da cultura popular nordestina

e que se mostram materialidades linguístico-discursivas densas em

memórias e efeitos de sentido sobre a mulher no contexto interiorano da

formação social nordestina. Os gestos de leitura encontram-se

embasados nos movimentos teóricos e analíticos da Análise do Discurso

francesa, em diálogo com a proposta de desestabilização de gênero

(dégenrage) dos códigos, de Kunert. Dentre os movimentos

interdiscursivos autorizados, identificam-se memórias do período

cristão medieval, a demonização dos saberes femininos e a relação da

mulher com o sagrado e o místico, dentre outros diálogos possíveis.

Palavras-chave: tradição; análise do discurso; cultura popular; mulher

nordestina

THE WOMAN IN THE NORTHEASTERN POPULAR CULTURE:

BETWEEN DISCOURSE OF TRADITION AND TRADITION OF

DISCOURSE

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São João festival in Caruaru, PE, Brazil. Among rhythms, dances and

maize foods, the replica of a village specially built for the June events

2016 and 2017 brings in some house doors the identification of

"gossip’s house", "prayer’s house", "The fortune teller’s house", "the

gypsy’s house" and "the raizeira" (herb sellers’ house). Female images

introduce themselves crystallized in the space of Northeastern popular

culture and shows dense linguistic-discursive materialities in memories

and effects of meaning about the women in the interior context of the

Northeast social formation. The gestures of reading are based on

theoretical and analytical movements of French Discourse Analysis, in

dialogue with Kunert's proposal of genres destabilization (dégenrage).

Between the authorized interdiscursive movements are memories of the

medieval Christian period, the demonization of women's knowledge

and the relationship of women with the sacred and the mystic, among

other possible dialogues.

Keywords: tradition; discourse analysis; popular culture; Northeastern

woman.

Introdução

Mover-se no campo da cultura e seus enunciados também é

transitar no terreno do sagrado, da tradição e da reprodução de sentidos

cristalizados e difundidos sob o manto da unanimidade cultural e da

memória de um povo. Entretanto, cada vez mais, tem-se lançado um

olhar problematizador sobre tais materialidades linguístico-discursivas.

Ou, pelo menos, o olhar analítico nos coloca um dilema ético-discursivo

entre o discurso da tradição e sua blindagem cultural e o movimento

ressignificante das releituras propiciadas pela análise, sempre crítica,

dos discursos, sentidos, vozes e sujeitos.

É o caso dos enunciados que constituem o corpus de nossa

análise no presente artigo. Que leituras autorizam os dizeres “casa da

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fuxiqueira”, “casa da rezadeira”, “casa da raizeira” e “casa da

cartomante” na cidade cenográfica que quer reproduzir a tradicional

cultura popular nordestina na capital do agreste pernambucano?

Podemos vê-los como monumentos culturais integrantes do

arquivo cultural de um povo, esvaziados do crivo do “politicamente

correto” ou problematiza-los ao ponto de promover deslocamentos nos

evidentes sentidos produzidos para o “cultural”, o “pitoresco”, o

“popular”...

São João em Caruaru: da festa ao corpus...

Um passeio pela cidade cenográfica que usou o espaço da antiga

estação ferroviária de Caruaru para reprodução de um cenário típico do

interior nordestino1 nos apresenta algumas cenas que reproduzo

2 a

seguir. Cenário que se repete em 2016 e 2017, com poucas alterações,

como se percebe nas imagens:

“Casa da Rezadeira” (2016)

1 Esta é a proposta dos idealizadores do cenário montado na referida cidade

cenográfica nos anos 2016 e 2017, de onde selecionamos o corpus para as análises. 2 As fotos pertencem ao acervo pessoal da articulista.

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“Casa da Raizeira”; “Casa da Cartomante”; “Casa da Cigana” ( 2016)

“Casa das Fofoqueiras” (2016)

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“Casa da Rezadeira”; “Casa da Raizeira”; “Cartomante”; “Casa da

Fuxiqueira” (2017)

Revisitando matrizes de sentido...

Pensaremos a princípio o discurso da tradição e seu

funcionamento no âmbito das condições de produção. Nesse sentido, os

enunciados “casa da fuxiqueira”, “da rezadeira”, “da raizeira” e “da

cartomante” filiam-se ao campo semântico-discursivo das imagens

nordestinas interioranas. O mesmo nicho de produção de sentidos que

produziria, muito provavelmente, os sentidos para o padre; a velha

beata; o bêbado; o cego; o doidinho; a mulher-da-vida;.... A mesma

materialidade explorada pela comédia nova grega, imortalizada nas

produções/imitações dos comediógrafos latinos Plauto e Terêncio

(CARDOSO, 2003) e retomadas por tantos outros, dentro os quais

citamos o autor nordestino Ariano Suassuna.

Portanto, por tradição entenda-se o conjunto de formações

imaginárias legitimadas pelo uso, pela repetição e o riso. O riso que

gera cumplicidade cultural e estabiliza sentidos evidentes e

cristalizados. Daí o caráter fundacional do discurso da tradição.

Questionar a legitimidade dos sentidos estabilizados pelo discurso da

tradição pode soar (e soa) como discurso de desvalorização da cultura

popular e seus artefatos. Daí porque estudar a tradição do discurso abre

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um diálogo para a compreensão do discurso da tradição em suas

matrizes de sentido.

Tradição que se desenvolve no terreno “sacralizado” da cultura

popular onde reverbera a “voz do povo” e, portanto, “a voz de Deus”:

aquilo que “todo mundo sabe”3, os dizeres legitimados e legitimizantes

pelo saber da cultura popular. Em certo sentido, questionar as afiliações

de tais saberes corresponde, por um movimento parafrástico, ao

questionamento da própria cultura popular. Nessa mesma direção, -

agora evocando o referencial teórico-, atribuir aos saberes

(re)produzidos pela cultura popular o status de discursos histórica e

ideologicamente constituídos faz emergir a voz do “mau sujeito”4 da

formação discursiva da cultura popular nordestina.

Movimentos analíticos sugerem o funcionamento,5 atualizadas

na apresentação da cidade cenográfica do São João de Caruaru, de

memórias da formação discursiva6 religiosa medieval. Estas, por sua

vez, remetem às narrativas bíblicas da formação da mulher e do mundo:

a aproximação da mulher à serpente, sua curiosidade ante o proibido e

3 Sobre a materialidade ideológica do discurso e o jogo naturalizador de sentidos

operado pela língua, assim se expressa Pêcheux (Análise do Discurso): “É a ideologia

que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um

operário, [uma mulher], um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que

fazem com que uma palavra ou enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e

que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos o

caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.” (2010, p.146) 4 Referência à categorização do sujeito em Pêcheux (2010). O “mau sujeito”

discursivo, no caso, seria o discurso que questionaria a pureza, o aspecto intocável de

tudo o que se acha auspiciado pelo rótulo de cultura popular. 5 Como em todo trabalho de análise discursiva, é importante deixar claro que os gestos

de leitura e interpretação sempre podem ser outros. Para tanto, concorrem o olhar do

analista e o dispositivo teórico e analítico mobilizado por ocasião do trabalho de

análise. 6 Na perspectiva teórica da Análise do Discurso de matriz pecheuxtiana: “

Chamaremos , então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica

dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo

estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (...).” (PÊCHEUX,

2010, p. 147)

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sua “predisposição natural” à queda encontram-se na base da

Inquisição, da caça às bruxas e às mulheres que demonstrassem

inteligência e curiosidade para além dos muros do universo feminino.

O relato bíblico aproxima a mulher às “forças do mal” já no

Gênesis.7 A Bíblia proíbe, também, toda forma de investigação do

futuro e de interrogação dos mortos, como se vê no episódio do rei Saul

que procura a pitonisa de En-dor para se comunicar com Samuel

(CARDINI, 1996). Foram os teólogos do séc. XV, entretanto, que

aperfeiçoaram os elementos que ainda faltavam à imagem "definitiva"

da bruxa: o pacto com o diabo e a realidade dos poderes mágicos.

Revolução teológica e jurídica que inaugurou a "caça às bruxas"

(CARDINI, 1996).

Em última instância, trata-se do trabalho de uma tradição do

discurso à medida que as formações imaginárias não são feitas para a

efemeridade. Como afirma Pêcheux, estamos diante de paráfrases que

atualizam a premissa de que “todo mundo sabe o que é uma mulher”.

Retomadas parafrásticas que se filiam a discursos já conhecidos e

legitimados sobre o ser mulher no âmbito das condições de produção do

corpus. Razão porque é possível afirmar que, consideradas as condições

de produção dos discursos analisados, os enunciados em questão

reproduzem os discursos que se espera que reproduzam uma vez que

são enunciados dentro de um contexto de “tradição nordestina”, em que

projeções imaginárias sobre os gêneros tendem a retomar imagens

constituídas a partir do imbricamento de discursos oriundos da tradição

grecorromana e suas atualizações por parte da tradição religiosa

medieval. Fato que nos dá o que pensar...

Discursos, gêneros, estereótipos...

O gesto de leitura também sugere que se olhe para a

materialidade como espaço de funcionamento de estereótipos de gênero.

Para tanto, basta que se invertam as cenas: que imagens masculinas

7 Referência ao texto bíblico que narra o encontro entre a serpente e Eva (Gênesis, 3:1-

6).

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poderiam encontrar materialização em plaquinhas desta mesma cidade

cenográfica? Talvez “casa do padre”; “casa do prefeito”; “casa do

delegado”, “casa do doutor” ou “do coronel”. Ou imagens de

personagens volantes, desdomiciliadas, como o “bêbado”, “o mendigo”,

“o doido”, “o cego”, “o mulherengo”, dentre outras projeções... Cada

uma delas oferecendo-se ao gesto analítico como nichos significativos

dos estereótipos de gênero que se acham em funcionamento, consciente

ou inconscientemente, na cultura popular nordestina.

Verificada a aplicabilidade da terminologia estereótipo de

gênero, aqui entendido como a própria materialização discursiva de

memórias sócio-histórico-ideologicamente constituídas, passemos a

enfrentar a questão: haverá processos de significação possíveis fora das

estereotipias? Talvez não.

Buscando avançar nesta discussão, percorramos caminhos

possíveis. Em primeiro lugar, sugerimos que não se alienem as imagens

estereotipadas de seu marco sociohistórico, como monumentos

pertencentes à arqueologia dos discursos sobre as mulheres. Antes, é

importante que os (re)conheçamos em sua existência concreta enquanto

fósseis culturais da cultura nordestina no tocante à estereotipia de

gênero: discursos de um tempo, espaço e formação social em que o

horizonte de realização feminina encontravam-se circunscrito e

atravessado, via de regra, pelo viés religioso, místico, doméstico, não-

científico, ainda que socialmente valorizadas e até mesmo temidas em

suas comunidades. E que também reconheçamos o apagamento e

tratamento silenciador/ressignificante que algumas mulheres e seus

saberes receberam no marco cultural de épocas remotas. Sentidos que

reverberam no funcionamento do corpus, como por exemplo, as

memórias que remetem à naturalizada dicotomia mago/sábio/homem e

feiticeira/mulher (CARDINI, 1996):

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IMAGEM 1 IMAGEM 2

Os poderes da feiticeira, assinalados por Cardini (1996),

guardam grande proximidade com algumas das imagens facilmente

associadas aos saberes/práticas das rezadeiras, raizeiras, cartomantes e

ciganas que povoam o imaginário evocado nas plaquetas da cidade

cenográfica junina de Caruaru, objeto de nossa reflexão, a saber:

a) Metamorfose: A feiticeira pode transformar-se em animal

(frequentemente uma ave de rapina noturna, como um morcego ou uma

coruja) e nessa forma perturbar sobretudo as crianças, sugando-lhes o

sangue até a morte. Na origem, esta crença era estruturada ao contrário:

havia gênios maus que à noite tomavam forma de pássaros sugadores de

sangue e de dia a de velhas mulheres. A feiticeira pode também

transformar os outros em animais;

b) A feiticeira (incantatrix) atua como xamã: viaja ao país dos mortos,

fala com eles e graças a eles prediz o futuro;

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c) A feiticeira também faz, com seu carmen (cantus), rituais e ervas que

ela conhece: poções que dão ou tiram amor, que matam crianças no

próprio seio materno, que curam ou matam.

Fechando, por ora, as análises Não se trata de aceitar/rejeitar as manifestações culturais

materializadas em estereotipias de gênero, como as que conformam o

corpus. A questão mostra-se mais complexa. Vivemos o tempo presente

e como tal podemos ver, em tempo real, a tradição do discurso

interpelando sujeitos, naturalizando/ressignificando saberes... Apesar do

gesto interpelador da ideologia e seu modus operandi, não devemos

abrir mão do protagonismo que nos cabe como sujeitos

discursivos/interpretantes. Como sujeitos das escolhas...

Nesse sentido, não haveria como falar-se de uma erradicação de

estereótipos ou de uma aniquilação de discursos. Alguns autores

preferem referir-se ao processo (possível) de desestabilização de gênero

(dégenrage, KUNERT apud PAVEAU, 2017), o que viria a ser um

modo de contestação de estereótipo de gênero. Kunert propõe que “se

trata mais de uma questão de ‘recodificação’ do que de decodificação e

mostra que mesmo os objetos discursivos considerados como fixos, como o

estereótipo de gênero, possuem uma ampla gama de possibilidades

interpretativas.” (2012). Há, portanto, estereótipos que podem/devem ser

substituídos, discursos a serem desnaturalizados e sentidos a serem

deslocados. Substituições como as sugeridas pelo esquema...

MÍSTICAS,

BRUXAS,

EMPÍRICAS,

OCIOSAS,

DISSIMULADAS

(ESPAÇO

DOMÉSTICO)...

CIÊNCIA,

PODER,

ENGENHOSAS ,

CAPAZES,

CONFIÁVEIS,

(ESPAÇO

PÚBLICO)...

Portanto, a título de fechamento, alguns

desafios se apresentam:

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_ pensar “cultura” e “arte” como discursos,

assumindo os incômodos associados à

desnaturalização de seus sentidos;

_ reconhecer que a reprodução de estereótipos e

conceitos constitui prática humana inerente à

existência social da espécie (o ser humano

interpreta sempre);

_ assumir uma atitude de permanente análise/leitura

crítica e engajada dos discursos circulantes, ainda

que nos cheguem protegidos pelo manto da arte e

da cultura;

_ promover uma ação de retorno do discurso sobre

a ideologia mediante a substituição de estereótipos

e conceitos sobre a mulher (dentre outros), sempre

que os sentidos produzidos fundamentem posturas,

opiniões e ações que impeçam ou desestimulem

relações humanas fraternas, valorizadoras, justas e

respeitosas....

Pausado o gesto de análise do corpus, foram

estas algumas das ponderações e diálogos

possíveis, desenvolvidos a partir do referencial

teórico e analítico da análise do discurso de

orientação pecheuxtiana. Discussões que não se

encerram, assim como não cessa a produção de

sentidos, enquanto houver gestos de interpretação.

REFERÊNCIAS

CARDINI, Franco. Magia e bruxaria na

Idade Média e no Renascimento. In: Revista

online Psicologia USP v.7 n.1-2 São

Paulo, 1996. Disponível em:

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20bruxaria%20na%20Idade%20M%C3%A9dia

%20e%20no%20Renascimento.html. Acesso

em: 9/11/2017.

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura

latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KUNERT, Stéphanie. Códigos de

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desafio. In: Semen, n 34, 2012: Texte, discours,

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Disponível em: http://semen.revues.org/9713.

Acesso em: 9/11/2017

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso:

princípios e procedimentos. Campinas, SP:

Pontes, Editores, 2013.

PAVEAU, Marie-Anne. Das mulheres Tarzan

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Mulheres em discurso: gênero, linguagem e

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PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso.

Tradução de Eni P. Orlandi et al. Campinas:

Editora da Unicamp, 2010

IMAGENS:

Imagem 1:

https://www.google.com.br/search?q=mago&sourc

e=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiT2YKn

1KjZAhUDGZAKHQNqCfcQ_AUICigB&biw=10

93&bih=530#imgrc=NOym8eh6tgrNbM: (acesso

em: 15/02/2018)