a morte representada na cultura - danilo novais

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A MORTE REPRESENTADA NA CUL TU RA por Danilo Novais Uma investigação sobre quais expressões culturais a única certeza que temos em vida assumiu ao longo da história.

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A M

ORTE

REPRESENTADA

NA

CULTU

RApor D

anilo N

ovais

Uma investigação

sobre quais

expressões culturais

a única certeza

que temos em vida

assumiu ao longo

da história.

0002

0003

ENQUANTO SOCIEDADE, não nos

sentimos confortáveis com a ideia

de mortalidade. Talvez por isso,

a morte — e a tentativa de prorrogação

da sua chegada — seja um assunto tão

enraizado em nossa cultura. Crescemos

em meio a intervenções cirúrgicas,

rituais religiosos ou artifícios científicos

para atingir a imortalidade. Conforme

envelhecemos, refletir sobre a morte

se torna uma constante inevitável.

0004

Apesar dessa reflexão ser mais comum em circunstâncias fúnebres,

ela bate à nossa porta em diversos outros momentos por meio das

produções culturais — arte, literatura, música, cinema,

moda, fotografia e televisão.Qualquer produto da cultura, naturalmente,

é resultado de um contexto histórico. Entre os séculos 14 e 19, por

exemplo, quando a expectativa de vida foi afetada por epidemias

que assolaram o mundo de maneira descontrolada, a morte

teve participação cativa em parte considerável das criações artísticas

e literárias do período.

0005

“Para uma

mente bem

estruturada, a

morte é apenas

uma aventura

seguinte.”As produções variam de acordo com o contexto. Com isso em mente

e observando obras de datas distintas, vamos mergulhar numa breve análise das identidades que a morte assumiu ao longo da história. Vem comigo!

— J.K. Rowling (31/07/1965 ), Harry Potter e a Pedra Filosofal

Uma playlist com músicas sobre a morte e suas diversas representações para degustar durante a leitura.

Cemitery por SilverchairI Will Follow You In The Dark por Deatch Cab For CutieNovember Rain por Guns N' RosesFade To black por MetallicaBest Friend por The DrumsTears In Heaven por Eric ClaptonBack To Black por Amy WinehouseCreep por RadioheadShadowplay por The KillersThe Scientist por ColdplayHurt por Johnny CashLive Foreve por OasisTempo Perdido por Legião UrbanaMyth por Beach HouseGraveyard por FeistMy Body Is A Cage por Arcade FireGreet Death por Explosions In the skyCemitery por Silverchair

IRREVOGÁVEL

0006

"A Single Man" (2009), de Tom Ford ( 27/08/1962 )

CONSCIÊNCIAE ACEITAÇÃO DO ÓBITO COMO FATO

Aqui a analogia

funciona como assistência ao luto

pessoal. É o caso do primeiro filme de Tom

Ford ( 27/08/1962 ), “A Single Man” (2009),

maravilhosamente carregado de metáforas visuais sobre

a separação súbita de um casal apaixonado. De belíssima fotografia, figurino impecável e desfecho trágico, a trama acompanha 24 horas da vida de um professor que deseja superar a perda de seu amado. Ainda sobre luto, só que de um modo lírico, Eric Clapton ( 30/03/1945 ) concebeu a primorosa “Tears in Heaven” para lidar com a tristeza causada pela partida de seu filho. A canção evidencia a saudade de Eric, mas ao mesmo tempo vislumbra

IRREVOGÁVEL

0007

um bem-estar que parece distante. Um fato curioso: Clapton retirou a música de seu setlist em 2004 por não conseguir se conectar com ela como quando a lançou, em 1992.No papel de admissão do fim na qualidade de inelutável, a série “Ghost Whisperer” (2005 –2010) cumpre bem a representação. Ela conta a história de Melinda Gordon (Jennifer Love Hewitt ( 21/02/1979 )), uma jovem que consegue se comunicar com os espíritos perdidos no plano terrestre que, de alguma forma, ainda não conseguiram aceitar a própria morte. Melinda ajuda não só quem passou dessa para melhor, como também as pessoas que eles eram conectados em vida.

0008

A DICOTOMIA MORTE/VIDA

E SUAS IMPLICAÇÕES

RELIGIOSAS E CIENTÍFICAS

Registros escritos sobre a relação inerente entre morte/vida existem desde as primeiras civilizações. É o caso do Livro dos Mortos, um conjunto de feitiços e orações criado pelos Egípcios para ajudar o falecido em sua viagem para outro estágio de existência. Daí a importância de conservar o corpo por meio da mumificação, porque eles acreditavam que o morto tomaria posse do mesmo em sua nova etapa.

00090009

Em 1818, a autora Mary Shelley

( 30/08/1797 - 01/02/1851 )

deu origem a uma das criaturas mais

conhecidas da literatura romântica

- FrankenstEIN - em seu romance

“O Moderno Prometeu” (1818).

Entre as múltiplas interpretações, pode-se

dizer que o embate morte/vida está presente

do início ao fim da narrativa. Tais

significados são trazidos à tona na trajetória

de VICtor Frankenstein, a qual alude ao dom

divino d a c r i a ç ã o / f i m d a vida.

“I’m not afraid of death;

I just don’t want to be there when it happens.” — Woody Allen

(01/12/1935)

Outro mistério encontrado no livro de Shelley é a pós-morte. Até hoje, tanto a ciência quanto a religião não conseguiram afirmar o que acontece depois que alguém morre. Existem sim sugestões, o que depende de cada cultura.

00100010

00110011

Gustave Doré ( 06/01/1832 - 23/01/1883 ),

“Death on a Pale Horse” (1865)

O costume de jun tar pedaços de teorias para

compor uma resposta plausível a anti gos questionamentos pode ser considerado

característica latente da sociedade pós-moder na. Esses remendos de verdades que constroem

nossa crença estão diretamente ligados aos remendos de carne e restos de defunto usados para criar o próprio

Frankenst ein. E quando falamo s em cre nça, nã o dá para não m encionar

a perso nificação da mo rte em vár ias cult uras. A mais famosa delas é o Ceifador, seja como c

oletor de almas ou com o causa dor da morte literal . De álbu

ns de heavy metal à pinturas sinistras, a sua estética geralmente te m

base n a i magem da caveira. Veja a imagem ao lado de Gusta ve Doré ( 06/01/1832 - 23/01/1883 ), “Death on a Pale Horse” (1865).

0012

A fotógrafa Ana Oliveira retratou a passagem

do tempo em sua série “Personalidade”.

A PASSAGEM

DO TEMPO

INEXORÁVEL

0013

A la

men

táve

l cer

teza

de

que

o in

stan

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assa

do n

ão v

olta

mai

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ão à

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s m

otiv

acio

nal n

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ema

“O T

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” de

Már

io Quin

tana:

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já

são se

is horas!

Quando se vê, já

é sexta-fe

ira!

Quando se vê, já

é natal…

Quando se vê, já

terminou o ano…

Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.

Quando se vê passa

ram 50 anos!

0014

Cerc

ado

pelo

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rico

e o

mac

abro

, o su

icídio

das

irmãs

Lis

bon

em “A

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uicida

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993), apesar d

e

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stro

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trag

édia:

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stera

passagem do

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prim

eiro

rom

ance

, Jef

frey

Eugen

ides (

08/0

3/1960 )

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mpa

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rtur

a da

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a ca

usad

a pe

lo d

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ste

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tina e

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eira pessoa do

plur

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ura.

Ago

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tard

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s par

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A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.

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é sexta-fe

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Quando se vê, já

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Quando se vê, já

terminou o ano…

Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.

Quando se vê passa

ram 50 anos!

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sse

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dia, o

utra oportunidade, eu nem olhava o relógio.

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inho a casca dourada e inútil das horas…

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amor

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a que eu o amo.

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e que gosta devido à falta de tempo.

Não

dei

xe d

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s ao

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do por puro medo de ser feliz.

A ú

nic

a fa

lta

que

terá

será

a desse

tempo que, infelizmente,

nunca mais voltará.

TODO DIA ACIMA DO CHÃO É UM

Para celebrar a vida, algumas produções

culturais imaginam realidades utópicas

em que a humanidade vive em paz. John Lennon

e sua transcendental “Imagine” (1971) é uma dessas

obras que aspiram um mundo melhor, no qual as pessoas

não tenham razão para matar, seja pela falta de ganância

e guerras ou pela gratidão de estar vivo.

A morte, por vezes, assume um

caráter indireto ou coadjuvante,

não sendo necessariamente

citada, mas ainda assim presente

em referências relacionadas.

BOM DIA

00160016

Para celebrar a vida, algumas produções

culturais imaginam realidades utópicas

em que a humanidade vive em paz. John Lennon

e sua transcendental “Imagine” (1971) é uma dessas

obras que aspiram um mundo melhor, no qual as pessoas

não tenham razão para matar, seja pela falta de ganância

e guerras ou pela gratidão de estar vivo.

Neste mesmo caminho, o filme “Restless” (2011), de Gus Van Sant, nos conta

o encontro de Annabel e Enoch, dois jovens que se conhecem em um funeral. Enoch,

ainda compensando a perda de seus pais, conhece Annabel, uma jovem

com câncer terminal e três meses de vida. A atmosfera mórbida que paira sobre as

personagens influencia o comportamento delas.

Se a morte junta os dois, é a vida que os

fazem se apaixonar. Aliás, Van Sant é dono de outros

longas sobre a morte, esses mais contemplativos, como

“Elefante” e “Paranoid Park”, mas que valem

sua atenção.

0017

0018

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Everything, everyone, everywhere, ends.— Six Feet Under

"

"0019

0020

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DE

QUESTÕES SOCIAIS

Enquanto crítica à sociedade, esse papel tomado pela morte teve origem no final do século 19, quando o fim da escravidão, a luta de classes e o liberalismo de fachada se instauraram. Da época, um representante categórico, conhecido dos brasileiros, é o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), de Machado de Assis ( 21/06/1839 - 29/09/1908 ).O fato do protagonista estar morto possibilita a sua isenção e distanciamento da sociedade. Tal separação do mundo físico concede o direito a Brás Cubas de zombar e criticar o que e quem ele quiser. A ironia marca a obra inteira, a começar pela dedicatória encontrada na abertura que exprime a revolta pela vida ou a insignificância do ser humano diante da natureza:

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0021

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do

meu cadáver dedico com saudosa lembrança

estas memórias póstumas.”

— Brás Cubas

Uma das séries mais icônicas da televi-são, “Six Feet Under” (2001–2005), tam-bém usava a morte como veículo para

debater temas sociais cabeludos. Carregado

de humor negro, o show tinha uma dinâmica de narrativa

bem sólida. O arco central trazia o falecimento de alguém, que servia para

explorar tabus como homossexualidade, drogas, racismo, infidelidade, entre outros.

0022

Calcado no romantismo sombrio, Edgar Allan Poe ( 19/01/1809 - 07/10/1849 ) utilizava a morte e seus aspectos físicos — a decomposição de cadáveres, pessoas enterradas vivas, reanimação de mortos — como tema recorrente em suas criações. Edgar se opunha aos significados óbvios na literatura, por isso suas ideias eram calculadas e dosadas, tendo um único efeito como objetivo.

Fim iminente como propulsor narrativo

Apesar dos muitos elementos que o trabalho de Poe trouxe à literatura universal, um em especial contribui

para nossa causa: morte como objeto de investigação e a figura do detetive. Em “Os Assassinatos da Rua Morgue”

(1841), o detetive C. Auguste Dupin, considerado o primeiro da ficção, apura uma série de assassinatos

brutais. O conto deu início ao gênero policial, o qual seria desenvolvido

melhor posteriormente por outros autores célebres, como Arthur Conan Doyle ( 22/05/1859 - 07/07/1930 )

e Agatha Christie ( 15/09/1890 - 12/01/1976 ).

0023

Fim iminente como propulsor narrativo

Morte como ser iminente em ambientes assustadores, causada por serial killers, fantasmas ou outras criaturas sobrenaturais, é a representação favorita dos filmes de horror e suspense. Este recurso narrativo, que funciona bem para prender a atenção do público, provavelmente é a expressão mais atual em relação às outras apresentadas neste artigo.

Mais sob

re N

osferatu n

o artigo: Terror d

as An

tigas

Se você chegou até aqui, deve ter percebido que não importa a dimensão ou protagonismo que a morte tenha nas diferentes obras, ela sempre vai servir

de fomento para representações maiores. E apesar do contexto, do formato e do meio definirem essas estruturas narrativas e a frequência com que o tema é abordado, uma única coisa é certa: a mórbida constatação de que ela tem

papel garantido em qualquer história ficcional a ser contada, porque faz parte da história real das nossas vidas.