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A morte nos detalhes: religiosidade e elementos da estética funerária dos cemitérios de imigrantes alemães na Grande Florianópolis (SC). Elisiana Trilha Castro, historiadora e mestranda do PGAU da UFSC; Alice de Oliveira Viana, arquiteta, mestranda do PPGAV da UDESC RESUMO Este artigo procura apresentar alguns elementos presentes na estética dos cemitérios de imigrantes alemães pesquisados na região da Grande Florianópolis e apresentados no “Inventário de Cemitérios de Imigrantes alemães da região da grande Florianópolis”. Entendendo a crença como uma atitude de negação da morte, manifestada, dentre outros pela adoção de ornamentação e símbolos na estética funerária, estes cemitérios, contrariamente aos católicos ou tradicionais, apresentam formas de expressão mais circunspectas e comedidas, o que não descarta, diferente do que comumente se supõe, também a negação da morte e a existência de uma crença e religiosidade praticadas e renovadas através dos poucos elementos adotados. Palavras-chave: Cemitério, estética e religiosidade ABSTRACT This article seeks to present some elements in the aesthetics of the cemeteries of German immigrants surveyed in the region of Greater Florianópolis and presented in the "Inventory of Cemeteries of German Immigrants in the region of Greater Florianopolis". Understanding the belief and as an attitude of denial of death, manifested, among others by the adoption of ornamentation and symbols in the funerary aesthetics, these cemeteries, unlike the Catholics or traditional ones, have forms of expression more circumspect and moderate, what doesn´t exclude, unlike what is commonly supposed, the denial of death and the existence of a belief and religiousness practiced and renewed through the few elements adopted. Keywords: Cemetery, aesthetics and religiosity. Diante da morte podemos assumir duas posturas: ser melancólicos ou tautológicos é o que assinala o historiador Georges Didi-Huberman (1998). Trata-se de situações que indicam muitas vezes nossa atitude perante o que é irremediável, a finitude, talvez de nós mesmos. De acordo com este autor o tautológico olha para a imagem do túmulo, do caixão, e vê ali somente uma caixa prismática vazia. Ele olha para o vazio, vê ali nada mais que uma inscrição, uma representação, ele nega que ali embaixo haja um sólido, um morto.

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Page 1: A morte nos detalhes : religiosidade e elementos da ... · sempre horizontais e sóbrias. Figura 01 – Elementos funerários dos cemitérios inventariados. Através deste inventário

A morte nos detalhes: religiosidade e elementos da estética

funerária dos cemitérios de imigrantes alemães na Grande Florianópolis

(SC).

Elisiana Trilha Castro, historiadora e mestranda do PGAU da UFSC; Alice de Oliveira Viana, arquiteta, mestranda do PPGAV da UDESC

RESUMO

Este artigo procura apresentar alguns elementos presentes na estética dos cemitérios de imigrantes alemães pesquisados na região da Grande Florianópolis e apresentados no “Inventário de Cemitérios de Imigrantes alemães da região da grande Florianópolis”. Entendendo a crença como uma atitude de negação da morte, manifestada, dentre outros pela adoção de ornamentação e símbolos na estética funerária, estes cemitérios, contrariamente aos católicos ou tradicionais, apresentam formas de expressão mais circunspectas e comedidas, o que não descarta, diferente do que comumente se supõe, também a negação da morte e a existência de uma crença e religiosidade praticadas e renovadas através dos poucos elementos adotados. Palavras-chave: Cemitério, estética e religiosidade

ABSTRACT

This article seeks to present some elements in the aesthetics of the cemeteries of German immigrants surveyed in the region of Greater Florianópolis and presented in the "Inventory of Cemeteries of German Immigrants in the region of Greater Florianopolis". Understanding the belief and as an attitude of denial of death, manifested, among others by the adoption of ornamentation and symbols in the funerary aesthetics, these cemeteries, unlike the Catholics or traditional ones, have forms of expression more circumspect and moderate, what doesn´t exclude, unlike what is commonly supposed, the denial of death and the existence of a belief and religiousness practiced and renewed through the few elements adopted. Keywords: Cemetery, aesthetics and religiosity.

Diante da morte podemos assumir duas posturas: ser melancólicos ou

tautológicos é o que assinala o historiador Georges Didi-Huberman (1998).

Trata-se de situações que indicam muitas vezes nossa atitude perante o que é

irremediável, a finitude, talvez de nós mesmos.

De acordo com este autor o tautológico olha para a imagem do túmulo,

do caixão, e vê ali somente uma caixa prismática vazia. Ele olha para o vazio,

vê ali nada mais que uma inscrição, uma representação, ele nega que ali

embaixo haja um sólido, um morto.

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Já para o melancólico, o crente, o corpo também não está mais ali, ele

está longe. Ele pensa no ente querido que se encontra agora distante em um

lugar que pode ser de descanso e paz, belo e saudável, no Além, em um local

melhor, talvez o Paraíso ou o Céu. A crença, diferente da tautologia, é da

dimensão do invisível, ela é fruto da imaginação.

Podemos ter estas duas atitudes talvez porque quando olhamos o

túmulo é ele que nos olha profundamente, impedindo nossa capacidade de

simplesmente olhá-lo. Ele nos olha e indica que ali há um volume que em breve

poderá ser o nosso; o túmulo, que através de um volume só, anuncia de forma

incontestável o que seremos um dia - um corpo jazente, inerte, horizontal

(DIDI-HUBERMAN, 1998).

Talvez por isto tanto a atitude de tautologia quanto a de crença nada

mais são do que resultado da negação, do evitamento da morte, devido ao

reconhecimento da inexorável finitude humana, da qual ninguém é imune: os

dois pensam no túmulo vazio.

A estética cristã foi profundamente marcada pela atitude de produzir

imagens geradas pela crença, imagens que eram resultado de uma ação de

escape, de fuga, dessa situação inexorável da morte e justamente por isso

criam um tempo fictício, de uma teleologia, para superar nossos temores.

Assim a estética cristã carrega o que o Didi-Huberman (1998) chama de

melancolia, e tal característica deixou traços na arquitetura e na tradição

cemiterial. Já que:

O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrecentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 48).

Assim diferentes maneiras de se materializar a forma ou o local onde

enterramos nossos mortos encerram, em grande medida, a negação da morte

e são, portanto, resultados de crenças. Isto parece estar expresso tanto em

cemitérios onde são encontradas farta ornamentação e inserção de elementos

arquitetônicos alusivos à memória do morto - pois nesta atitude podemos

perceber uma negação da morte, através da crença geralmente centrada na

sobrevivência do morto no Paraíso do que na aceitação de sua finitude -

quanto em cemitérios ou túmulos mais timidamente ornamentados que, apesar

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de apresentarem poucas formas de expressão estética, estas não deixam de

existir e de ser produto de crenças.

Mas é fato que geralmente os cemitérios com uma arquitetura mais

comedida, como no caso dos cemitérios protestantes ou dos cemitérios jardins,

são associados à falta de religiosidade e de uma atitude de reverência àqueles

que se foram. Mas será que podemos afirmar que há pouca religiosidade na

discreta arquitetura destes cemitérios?

São questões que se põem quando nos deparamos com cemitérios que

possuem uma arquitetura funerária que se distancia da comumente encontrada

naqueles mais convencionais ou cemitérios secularizados espalhados por

muitas cidades do Brasil, caracterizados por serem marcadamente católicos e

com uma sacralidade afirmada por uma profusão de anjos, santos e demais

referenciais religiosos. Alguns como os encontrados durante a realização do

“Inventário de cemitérios de imigrantes alemães da Grande Florianópolis”1, que

chamam a atenção por suas particularidades e que em grande medida, exigem

um olhar mais atento ao lugar da afirmação do sagrado em suas formas quase

sempre horizontais e sóbrias.

Figura 01 – Elementos funerários dos cemitérios inventariados.

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Através deste inventário foi possível perceber uma simbologia, que

apesar de comedida, faz-se presente e aparece em diferentes cemitérios

ligados aos imigrantes teuto-brasileiros. A observação de um conjunto de

elementos e ritos, repetidos em diferentes localidades visitadas com a pesquisa

apontou que a discreta postura funerária deste grupo étnico guarda em

pequenos detalhes seus valores religiosos. Menos monumental, menos

alegórica, mas reconhecível na forma como estes imigrantes encontraram para

despedir-se de seus mortos.

A atitude de ornamentar um túmulo parece estar ligada à esta atitude de

crença que é expressada de diversas maneiras pelos diferentes credos das

sociedades ocidentais. Neste sentido, os cemitérios encontrados em

comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis, apresentaram práticas

e formas funerárias diferentes daquelas encontradas em outros cemitérios a

céu aberto, o que inclui desde a opção por poucos símbolos decorativos até

pela quase ausência de mausoléus, outra opção arquitetônica funerária

bastante encontrada nos cemitérios convencionais brasileiros.

Em um outro artigo2 tratamos da relação entre a crença sobre o morto e

a morte e as representações funerárias dos protestantes, que tiveram grande

influência na arquitetura cemiterial da Alemanha, por meio de cemitérios

conhecidos como Beaux-Arts - uma união do ambiente natural com regras de

simetria produzidas a partir de discursos do pitoresco com pouca

ornamentação e monumentalidade (Oliveira, 2007). Para o protestante

luterano, o qual acredita que não há Purgatório e que o fiel se salva em vida,

uma série de investimentos como ritos e elementos arquitetônicos no lugar dos

sepultamentos perdem o sentido. Agora neste artigo tal relação será analisada

através de alguns elementos encontrados nestes cemitérios de paisagem

marcadamente influenciada por esta postura cemiterial.

As práticas funerárias consideradas como características destas

comunidades foram percebidas depois da análise de um universo de 104

cemitérios presentes, com sepultamentos de católicos e luteranos em 13

municípios da região da Grande Florianópolis formada por Antônio Carlos,

Angelina, Anitápolis, Águas Mornas, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio,

São Pedro de Alcântara, Rancho Queimado, São José, Palhoça, Biguaçu,

Governador Celso Ramos e a capital do Estado, Florianópolis.

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Dentre estes elementos percebidos como característicos das

comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis destacam-se as

cabeceiras proeminentes, as cruzes, símbolos decorativos como a palma, as

flores, o coração e as mãos juntas e as flores em ritos funerários, dentre outros

enumerados nos resultados apresentados de forma preliminar no inventário.

Para este artigo, serão analisados estes elementos acima destacados.

Figura 02 - Elementos funerários dos cemitérios inventariados.

Cabeceiras proeminentes

Uma das características que marcam a paisagem destes cemitérios é a

presença das cabeceiras proeminentes. Apesar de uma opção arquitetônica

que praticamente nivela visualmente os túmulos presentes nestes cemitérios,

foi possível perceber, principalmente no período que vai desde as últimas

décadas do século XIX até a primeira década do XX a presença destas

cabeceiras como elementos de destaque arquitetônico.

A presença marcante destas conduziu à utilização do termo

“proeminentes” no Inventário de forma a ressaltar que no conjunto de

sepultamentos que primam pela pouca estatura e volume, “proeminente” foi o

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termo mais adequado já que quer dizer aquele que: “fica sobranceiro ao que o

circunda, elevado, dominante” (PRIBERAM, 2008).

Tal elemento parece ocupar lugar de destaque perante os demais

sepultamentos, dado que não são encontrados outros elementos de distinção

na postura funerária desses imigrantes, como por exemplo, mausoléus ou

pequenas capelas. Dentre estas cabeceiras proeminentes, muitas cujos

sepultamentos são do final do século XIX apresentam uma estética mais sóbria

que remete ao neoclássico, com alguns elementos que marcam esse estilo

como cimalhas, frontões clássicos, pedestal, o arco de meia volta, divisão da

cabeceira em três partes, a saber: base, corpo e coroamento, o desenho de

colunas clássicas, alguns poucos elementos decorativos, dentre outros. Outras

poucas se apresentam bastante ornamentadas, com detalhes como curvas,

volutas, flores em relevo, colunas com capitéis floridos, dentre outros,

alinhando-se mais com a estética do ecletismo, pela profusão de elementos

ornamentais.

Entretanto, pode-se inferir que grande parte destas cabeceiras de médio

e grande porte faz alusão à imagem da casa e do pórtico, muitas encimadas

por cruzes, outras por pequenas estátuas de anjos, como se percebe na figura

01, dando nítida impressão de formarem telhados e portas onde geralmente

estão colocados epitáfios.

Os teóricos Gilles Deleuze e Félix Guatarri afirmam que a arte tem início

com a casa, pois ambas se relacionam com esses dois elementos que seriam

“a Casa e o Universo, o Heimlich e o Umheimlich, o território e a

desterritorialização” (DELEUZE;GUATARI, 1992, p.240). Estas imagens que

são encontradas não só nas cabeceiras proeminentes, mas também em cruzes

e lápides, parecem remeter, em grande medida, a uma tentativa de ligar-se à

Casa Primordial, ao Cosmos, como um retorno à Casa do Pai Celestial ou até

mesmo, à afirmação da representação da última morada.

Tanto as casas como os pórticos apresentam nichos que seriam as

aberturas, portas ou passagens (ver figura 01). As fendas, as aberturas podem

ser entendidas nestas imagens como um limite, limiar que separa o olho do

olhar, o visual do visível. Tanto as portas como os pórticos possuem um duplo

caráter, um de obstáculo e outro de abertura. Muro – anteparo, e labirinto –

entrada de um templo ou lugar temível, “um lugar aberto diante de nós, mas

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para nos manter à distancia e nos desorientar ainda mais” (DIDI-HUBERMAN,

1998, p.232).

A porta foi extensamente tematizada pela religião, por narrativas míticas

e contos arcaicos, possuindo esse duplo valor de um local a ser atravessado e

a ser obstaculizado. Nas passagens da Bíblia, a porta ou o portão aparece

como elemento constante, como um símbolo de passagem ao reino dos

mortos, ao Inferno ou ao mundo do Paraíso3.

A porta como umbral, como um rito de passagem, como uma transição

entre aquilo que seremos e aquilo que deixamos de ser, entre o futuro e o

passado, entre a vida profana e a sagrada é notada em diferentes cabeceiras

encontradas nos cemitérios visitados durante o inventário.

Tais observações acima citadas apontam para uma possível relação

entre estas formas adotadas e a religiosidade que nestas podem estar

previstas. Detalhes que podem fugir quando se observam tais cemitérios em

busca de símbolos e signos da religiosidade destes espaços, mas a forma das

mesmas lembrando casas e portas, torna possível a referência à imagens

religiosas como do mítico Retorno a Casa do Pai ou até mesmo à

representação da última morada.

Quanto a apresentação destas cabeceiras, as mesmas como também os

túmulos encontrados evidenciam em grande medida as mudanças estéticas

ocorridas ao longo das décadas e que também se expressam nos cemitérios.

Encontram-se túmulos construídos com alusões ao neoclássico, ao ecletismo,

além daqueles com formas mais simples quase sem ornamentos,

características da modernidade do século XX.

A estética do século XX passou a negar o ornamento e linhas sinuosas

em detrimento da sobriedade e do despojamento da geometria da máquina. A

partir da década 1930, somada à já ausência de alegorias e santos, muitos

túmulos passam a apresentar formas mais sóbrias, limpas, tendo como

ornamento tão somente a presença de uma cruz na superfície, como se

percebe na figura 01, algo que se afirmou de forma marcante nos cemitérios

encontrados nestas localidades, como característica dos mesmos e não da

mesma forma nos cemitérios convencionais que só mais tardiamente nas

últimas décadas do século XX adotariam tais posturas arquitetônicas em seus

espaços cemiteriais.

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Cruzes

Outro elemento bastante encontrado nestes cemitérios é a cruz, um dos

ornamentos mais recorrentes. Elas foram encontradas em diferentes materiais

de acabamento tanto em cima de lápides e também como sendo a única

demarcação do local da sepultura, cumprindo também a função de lápide,

trazendo inscrições e epitáfios. As cruzes apresentavam-se principalmente em

madeira e ferro e muitas são trabalhadas artisticamente com detalhes variados

Algumas cruzes de ferro possuem detalhes de flores, folhas, como também

corações, muitas vezes comportando epitáfios e dados de identificação do

morto (figura 01).

Também as cruzes de madeira primam por diferentes detalhes e

ornamentos. Em algumas é possível encontrar lambrequins, elementos

trabalhados em ferro que beiram as bordas de pequenos telhados encimados

nas cruzes, remetendo à questão da casa já citada anteriormente. Estes

elementos, um dos principais símbolos do cristianismo, afirma de forma

marcante a religiosidade destes espaços, guardando referências a Salvação

em Cristo, crucificado e ressuscitado.

Ritos funerários – as flores As flores aparecem nos elementos decorativos dos túmulos, mas têm

destaque dentre os rituais funerários principalmente na utilização das flores

artificiais em forma de coroas e também em ramos em vasos.

Nos cemitérios pesquisados destacou-se a utilização de flores artificiais

em formato de coroas coloridas como ritual funerário, o que parece ser uma

prática comum principalmente em período de Finados. Algo que foi percebido

em visitas anteriores a um alguns desses cemitérios logo após o dia de finados,

onde a presença destas coroas era vista em grande quantidade e o colorido

das mesmas destacou-se de forma marcante.

O uso destas flores chama a atenção pelas cores adotadas, geralmente

em tons de roxo e amarelo formando uma paisagem diferente daquelas

encontradas em muitos cemitérios em diferentes cidades brasileiras, como

apresentado na figura 02.

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Também foi comum encontrar nestes cemitérios arranjos feitos a partir

dessas flores artificiais montados sobre placas de isopor, geralmente envoltos

com plásticos transparentes e que adornavam alguns sepultamentos (figura

02). Ainda com relação às flores, uma prática comum encontrada foi o plantio

de flores naturais sobre os túmulos. Tal prática encontrada em vários

cemitérios parece ser uma referência ao costume difundido nas localidades

formadas por imigrantes teutos, o da adoção de jardins domésticos (figura 02).

Esta prática dos imigrantes de origem germânica até hoje marca

profundamente suas cidades, que atraem visitantes também por seus jardins

domiciliares.

Notou-se tanto pelas coroas de flores artificiais como pelas flores

naturais plantadas sobre sepulturas somadas aos jardins que enfeitam as

casas, que a flor é um elemento valorado por esses imigrantes e que também

aparece em seus cemitérios, lá se destacando pelos rituais supracitados. Aqui

cabe destacar que, de forma correlata, estes imigrantes parecem adotar

através das flores, como também dos lambrequins encontrados em cruzes,

formas e posturas que também adotaram em seus lares, o que corrobora a

afirmação já citada de Deleuze e Gautarri (1992) de que a arte inicia-se com a

casa, podendo o cemitério também ser entendido como uma segunda morada,

e evidenciando este como um importante espaço de afirmação de elementos

culturais destes imigrantes.

Símbolos decorativos

Também na composição dos túmulos verifica-se que alguns símbolos

decorativos entalhados ou desenhados nestes ou nas cabeceiras são

comumente adotados e se repetem em vários cemitérios, destacando-se dentre

estes a palma, as flores, o coração e as mãos juntas. A partir de modelos de

túmulos padronizados em diferentes épocas é possível perceber,

principalmente com relação com à palma, que esta é um dos símbolos de uso

mais freqüente.

A palma, símbolo fartamente encontrado nestes cemitérios e também

encontrado de forma significativa por outros pesquisadores em outros

cemitérios (BELLOMO, 2000), possui um significado geralmente associado à

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vitória, estando geralmente relacionado à passagem bíblica da entrada de

Jesus em Jerusalém. A palma também pode representar o renascimento e a

alegria dentro da concepção cristã (figura 02).

O coração parece remeter ao lugar dos sentimentos ou ao lugar vazio

deixado pelo ente querido. Também pode ser relacionado com sentimentos de

virtudes, ou à crença Mariana, na qual a Virgem teve seu coração

transpassado de dor pela perda do filho no momento da crucificação de Cristo

(figura 02).

As flores também são encontradas em entalhes de túmulos e

cabeceiras. Dentre as mais freqüentes estão as rosas que aparecem em forma

de ramos ou coroas e parecem dar o sentido de uma oferta de flores ao ente

querido, flores que por serem marcadas na pedra da lápide nunca morrem. As

flores aparecem em vários túmulos e são geralmente ligadas ao cristianismo,

podendo representar a vitória sobre as trevas e a saudade (figura 02).

As mãos juntas é um símbolo freqüente em formatos tumulares

padronizados em acabamento de cimento e parece remeter à união dos vivos

com seus mortos, uma união que permanece mesmo depois da morte, com a

certeza de que os laços afetivos não se desfazem com o sepultamento. Um

símbolo que aponta para sentimentos de fraternidade e união (figura 02).

Estes são parte dos elementos característicos encontrados na pesquisa

para o inventário. Mas apesar dos símbolos e características aqui

apresentadas como elementos funerários comuns dos cemitérios pesquisados,

percebe-se de forma destacada uma característica geral na arquitetura desses

cemitérios: uma postura formal mais sóbria que opta por criar túmulos ou

lápides com poucos ornamentos, em linhas retas, sem mausoléus, com poucas

alegorias e santos praticamente ausentes, uma paisagem que chama atenção

pela uniformidade.

Considerações finais

Com a proposta de perceber nos elementos e ritos funerários dos

cemitérios localizados nas comunidades teuto-brasileiras da Grande

Florianópolis traços de sua religiosidade, que muitas vezes se manifesta de

forma circunspecta, este artigo analisou alguns desses elementos com o

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objetivo de destacar em seus discretos detalhes a manifestação da crença e a

afirmação de seus valores religiosos.

Tal qual a arquitetura monumental presente em outras propostas

cemiteriais, a arquitetura e os ritos destes cemitérios parecem se impor como

forma também de tratar a morte, ou melhor, bem como nos destacou Didi-

Huberman, a negação da mesma através de uma crença. Enfim, uma estética

que se compromete com formas sóbrias e comedidas, mas que não descarta a

religiosidade e os sentimentos presentes na despedida e na lembrança,

representando apenas formas diferentes de materializar o sentimento pelos

que se foram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução Centro bíblico católico. 34ª edição. São Paulo: Ave Maria, 1982.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O que é filosofia. RJ: Ed. 34, 1992.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

OLIVEIRA, Maria Manuel Lobo Pinto de. In memorian, na cidade. Tese de Doutoramento em Arquitetura – Concentração Cultura Arquitetônica. Universidade do Minho: Braga, 2007. PRIBERAM, 2008. Dicionário de língua portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx>. Acesso em: 08 de abril de 2008.

1Projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, na forma prevista nos Artigos 20, 22 e 23 do Decreto nº 3.115, 29 de abril de 2005 e homologado pelo Comitê Gestor, de acordo com o Artigo 11, item II, do mencionado Decreto, sob PTEC - 1261/053. 2VIANA, Alice de Oliveira; CASTRO, Elisiana Trilha. A arte que nasce da saudade: a representação funerária do cemitério alemão de Florianópolis (SC). In: Anais do III Simpósio Internacional de História. Goiás, 2007. 3Respectivamente aparecem em Isaías (38,10); no Evangelho de Mateus(16,18); no Gênesis(28,17) e Apocalipse(4,1).