a modernizacao da administracao publica brasileira no contexto do estado humberto falcao martins

Upload: luciana-xavier

Post on 26-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    1/113

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins

    COPYMARKET.COM

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAO PODER SERREPRODUZIDA SEM A AUTORIZAO DA EDITORA.

    Ttulo: A Modernizao da Administrao PblicaBrasileira no Contexto do Estado

    Autor: Humberto Falco MartinsEDITORA: COPYMARKET.COM, 2000

    FUNDAO GETULIOVARGASESCOLA BRASILEIRA DEADMINISTRAO PBLICADEPARTAMENTO DE ENSINOCURSO DE MESTRADO EMADMINISTRAO PBLICA

    A MODERNIZAO DAADMINISTRAO PBLICA BRASILEIRA

    NO CONTEXTO DO ESTADO

    DISSERTAO APRESENTADA ESCOLABRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICAPARA A OBTENO DO GRAU DE MESTRE EM

    ADMINISTRAO PBLICA

    HUMBERTO FALCO MARTINS

    Rio de Janeiro, 1995.

    FUNDAO GETULIOVARGASESCOLA BRASILEIRA DEADMINISTRAO PBLICA

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    2/113

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins

    DEPARTAMENTO DE ENSINOCURSO DE MESTRADO EMADMINISTRAO PBLICA

    A MODERNIZAO DAADMINISTRAO PBLICA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO ESTADO

    DISSERTAO DE MESTRADOAPRESENTADA PORHUMBERTO FALCO MARTINS

    EAPROVADA EM 30.08.95PELA COMISSO EXAMINADORA

    PAULO REISVIEIRADoutor em Administrao Pblica (PhD)

    ARMANDO SANTOS MOREIRA DA CUNHAMestre em Administrao Pblica

    GILBERTOTRISTOMestre em Administrao Pblica

    Martins, Humberto Falco.

    A modernizao da administrao pblica brasileirano contexto do estado / Humberto Falco

    Martins. - 1995.xiii, 206f.

    Orientador: Paulo Reis Vieira.

    Dissertao (mestrado) - EscolaBrasileira de Administrao Pblica, Departamentode Ensino.

    Inclui bibliografia.

    1. Modernizao administrativa - Brasil.2. Administrao Pblica - Brasil. I. Vieira, Paulo

    Reis. II. Escola Brasileira de AdministraoPblica. Departamento de Ensino. III. Ttulo.

    CDD-353.073.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    3/113

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martinsiii

    COPYMARKET.COM

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAO PODER SERREPRODUZIDA SEM A AUTORIZAO DA EDITORA.

    Ttulo: A Modernizao da Administrao Pblica Brasileirano Contexto do Estado

    Autor: Humberto Falco MartinsEDITORA: COPYMARKET.COM, 2000

    Resumo

    Humberto Falco Martins

    Esta monografia procura contribuir para a sustentao da proposio segundo a qual uma das condies deefetividade da modernizao da administrao brasileira reside no seu carter associativo entre racionalidadepoltica e racionalidade administrativa dos sistemas burocrticos estatais. Conforme este argumento, os processose iniciativas de modernizao da administrao pblica brasileira no podem, sob pena de tornarem-sedisfuncionais, concentrar-se em medidas que visam a aumentar exclusivamente a racionalidade funcional dosistema administrativo estatal, restritas aspectos instrumentais. Isto porque o estado, cuja natureza essencialmente poltica, requer, para legitimar-se mediante a formulao e implementao de polticas pblicasefetivas, uma estrutura administrativa permevel e integrada ao sistema poltico, ao qual cabe, pela prticademocrtica, a enunciao dos valores sociais da busca do bem estar. H uma dialtica na modernizao poltico-administrativa do estado segundo a qual o incremento da racionalidade poltica da burocracia no decorre apenasda modernizao poltica do Pas, mas depende essencialmente de atributos inerentes ao sistema burocrtico.

    Esta proposio parte do delineamento de um quadro problematizante relativamente aos desafios do estadosocial contemporneo, centrado no que se convencionou chamar de crise do estadoe crise da administrao pblica. Odelineamento deste quadro parte da elaborao das seguintes assertivas: a legitimidade do estado social,decorrente da efetividade de suas aes, intimamente dependente da administrao pblica; a crise do estado secoloca essencialmente como uma crise de eficincia e efetividade do estado, no apenas de seu aparelho; e oequacionamento da crise do estado requer o enunciamento de seus requisitos funcionais enquanto ator social,promotor de transformaes. O que se convencionou chamar de crise da administrao pblica, reporta-se incapacidade poltico-administrativa de o estado em deliberar e, efetivamente, implementar aquilo que sejadefinido como certo para o bem-estar dos cidados. Em sntese, argumenta-se que a crise da administraopblica no uma crise puramente administrativa; e sua superao est condicionada ao incremento da

    racionalidade poltica e administrativa do estado de uma maneira integrada.A sustentao da proposio em questo segue trs linhas de argumentao: uma terico-interpretativa, umahistrica e outra situacional.

    A sustentao terica concentra-se em trs pontos. Primeiro, procura delinear um conceito genrico demodernizao da administrao pblica a partir de uma abordagem crtica da modernizao, que implica emqualificar os atributos do conceito corrente de modernizao racionalizao instrumental, determinismo etransformismo, segundo os quais a modernizao se reduz absoro de expresses da modernidade alheia.De forma anloga, a modernizao da administrao pblica est impregnada da idia de absoro de paradigmasdaquilo que se apregoa como boa administrao pblica, ao invs da sua construo segundo requisitos crticospeculiares. O segundo ponto consiste na identificao, no pensamento terico sobre administrao pblica, dostrs principais paradigmas dominantes de boa administrao pblica: um ortodoxo, centrado na construoinstitucional de uma administrao pblica segundo o molde weberiano clssico; um liberal, desestatizante,

    desregularizante e centrado numa administrao pblica mnima sob estreito controle poltico do mercado; e umempresarial, centrado na adoo de mtodos de gesto e avaliao empresariais em organizaes pblicas.Constata-se que estes modelos no se baseiam numa viso integrativa entre poltica e administrao: o ortodoxocontrape leis a procedimentos administrativos, valores a fatos, polticos a burocratas; o liberal contrape polticaao estado, este e cidados s organizaes pblicas; e o empresarial contrape o mercado s organizaespblicas, a gesto eficiente ao estado. O terceiro ponto procura delinear um modelo de boa administrao pblicaque integre poltica e administrao, enunciado a partir de contribuies da crtica meta-terica s teorias deadministrao pblica e a partir de uma viso integrativa de ao administrativa especificamente, do modelo da

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    4/113

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martinsiv

    racionalidade tridimensional contraditria, de Clauss Offe. O delineamento de um modelo integrativo entrepoltica e administrao permite, ademais, que se explicitem as limitaes dos trs principais modelos deadministrao pblica presentes na teoria.

    A sustentao histrica consiste em explicitar, na experincia brasileira, um modelo de modernizao daadministrao pblica dissociado do contexto poltico do estado. Esta afirmao sustentada pela caracterizaode cinco principais momentos da experincia modernizante brasileira. No primeiro perodo (1808-1930),denominado administrao tradicional, busca-se caracterizar as bases culturais e institucionais sobre as quais oestado e a administrao pblica brasileiras foram erigidas, qualificando-se suas razes lusitanas, principalmente

    com a chegada da corte portuguesa ao Brasil. O segundo perodo (1930-1945), denominado modernizao daspeana,caracteriza a implementao administrativa de um estado moderno no Brasil, mediante a implantao de umpadro de racionalidade funcional na administrao pblica de uma forma autoritria, alheia poltica. O terceiroperodo (1945-1964), denominado a administrao paralela, caracteriza o retorno do domnio do estado sarticulaes poltico-partidrias e representa, alm do desfalecimento da racionalidade instrumental, aimplantao de padres de irracionalidade poltica sobre a administrao pblica. O quarto perodo (1964-1985),denominado administrao para o desenvolvimento, marcado pelo regime militar, onde se implantou um padrotecnocrtico de racionalidade instrumental na administrao pblica, avesso poltica. O quinto momento (1985-1989), denomina-se a era da desmodernizao porque representa, por um lado, a emergncia dos efeitosdisfuncionais do modelo anterior, e, por outro, a retomada da administrao pblica pela poltica segundopadres disfuncionais. A experincia brasileira de modernizao da administrao pblica revela uma relaodisfuncional entre burocracia e democracia. Por outro lado, consolidou uma cultura, um modelo de mudana e

    uma imagem da boa administrao pblica instrumentais, restritas modernizao administrativa, dissociadas docontexto poltico do estado. Este fato contribuiu para acelerar e expandir a disfuncionalidade do sistemaadministrativo brasileiro e constituiu-se num empecilho reconstruo de uma administrao pblica para ademocracia.

    Por fim, a sustentao situacional procura demonstrar que os problemas estruturais que afligem a administraopblica brasileira na sua configurao atual no so exclusivamente administrativos, de natureza puramentetcnica, mas tambm reportam-se ao contexto poltico do estado, que se impem de maneira defensiva ouimpositiva sobre burocracia governamental. Esta abordagem procura problematizar as principais variveisorganizacionais da administrao pblica federal relativas burocracia pblica e ao sistema poltico. As variveisrelativas burocracia agrupam-se em funcionalismo aspectos quantitativos, garantias do regime jurdico,estrutura de cargos, ingresso, plano de carreira, formao e treinamento, avaliao de desempenho, promoo emobilidade, e remunerao, estrutura e recursos organizacionais estrutura organizacional, informao einformatizao, gesto de recursos organizacionais e rgo central de administrao e a aspectos da gestogovernamental presidncia da repblica, planejamento governamental e avaliao e controle. As principais

    variveis estruturais do sistema poltico so sistema representativo, regime federativo e sistema de governo. Estasproblematizaes possibilitam a identificao da natureza poltica de disfunes estruturais administrativas e asimplicaes administrativas de disfunes estruturais polticas.

    Algumas consideraes finais so elaboradas a ttulo de requisitos funcionais do processo de modernizao daadministrao pblica brasileira, partindo-se do pressuposto de que a noo de modernizao administrativa serevela altamente inadequada para se enunciar problemas e alternativas de superao do impasse criado peloestgio atual da burocracia governamental brasileira relativamente aos desafios de se construir um estadodemocrtico no Brasil. As iniciativas modernizantes devem visar ao incremento da racionalidade administrativa eda racionalidade poltica da burocracia pblica. A iniciativa de se esboar tentativamente o contorno conceitual

    de modelos integrativos necessria porque a disciplina ainda carece de um esforo sistemtico que rearrume asdiversas nuanas em torno de modernizao da administrao pblica de modo que se possa captar sua realdimenso e alcance conceitual. Por outro lado, conforme se pretendeu demonstrar, reformas administrativasunilaterais, centradas exclusivamente na implantao de padres de racionalidade instrumental administrativa nasestruturas administrativas de deciso e implementao do estado, tm efeitos efmeros e limitados.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    5/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    viii

    COPYMARKET.COM

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAO PODER SERREPRODUZIDA SEM A AUTORIZAO DA EDITORA.

    Ttulo: A Modernizao da Administrao PblicaBrasileira no Contexto do Estado

    Autor: Humberto Falco MartinsEDITORA: COPYMARKET.COM, 2000

    SumrioHumberto Falco Martins

    RESUMO........................................................................................................................... III

    APRESENTAO................................................................................................................. V

    SUMRIO......................................................................................................................... VII

    O ESTADO SOCIAL CONTEMPORNEO E AADMINISTRAO PBLICA............................. 1

    A Evoluo para o Estado Social: a Legitimidade como Limite ...Erro! Indicador no definido.

    A Crise do Estado: Crticas e Contradies............................. ............................ ........................... ........ 3

    O Estado como Ator e Seus Requisitos Funcionais Bsicos ........................ ............................ ........... 5

    A Crise da Administrao Pblica......................... ............................. ............................ .......................... 7MODERNIZAO DAADMINISTRAO PBLICA: UMA INTERPRETAO TERICA.........12

    Uma Viso Crtica da Modernizao ................................................................................13

    Modernidade e Racionalidade .................................................................................................................13

    Determinismo Versus Possibilidade.......................................................................................................16

    Autodestruio Inovadora Versus Construo Inovadora........ ........................... ............................ .. 21

    Modelos de Administrao Pblica ................................................................................. 22

    Uma Viso Ortodoxa da Administrao Pblica.................................................................................22

    Uma Viso Liberal da Administrao Pblica ............................ ........................... ............................ ... 24

    Uma Viso Empresarial da Administrao Pblica.............................................................................25Em Busca da Boa Administrao Pblica ................................................................... 29

    O Modelo da Racionalidade Tridimensional Contraditria ...............................................................30

    Princpios da Boa Administrao Pblica ............................ ........................... ............................ ...... 35

    A EXPERINCIA BRASILEIRA DE MODERNIZAO DA ADMINISTRAO PBLICA.......... 39

    A Trajetria Modernizante da Administrao Pblica Brasileira .................................... 40

    De 1808 a 1930: a Administrao Tradicional..................................................................................40

    De 1930 a 1945: a Modernizao Daspeana.....................................................................................43

    De 1945 a 1964: o Advento da Administrao Paralela..................................................................46

    De 1964 a 1985: Administrao Para o Desenvolvimento.............................................................49De 1985 a 1994: a Era da Desmodernizao....................................................................................53

    A Modernizao Incompleta: O Modelo Brasileiro de Modernizao da Administrao Pblica 57

    O Contexto Poltico do Estado ..............................................................................................................57

    O Contexto da Burocracia e sua Implementao ................................................................................60

    PERFIL CRTICO DAADMINISTRAO PBLICA BRASILEIRA CONTEMPORNEA........... 66

    O Contexto da Burocracia Pblica Brasileira Contempornea ....................................... 67

    Funcionalismo............................................................................................................................................67

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    6/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    ix

    Aspectos Quantitativos ................................................. ............................. ..................................... ......... 68

    Regime Jurdico..........................................................................................................................................70

    Estrutura de Cargos ......................... ............................. ............................ ...................................... .......... 71

    Ingresso.......................................................................................................................................................73

    Plano de Carreira.......................................................................................................................................74

    Formao e Treinamento.........................................................................................................................74

    Avaliao de Desempenho .......................... ........................... ............................ ..................................... 75Promoo e Mobilidade .......................... ........................... ............................ ..................................... ..... 75

    Remunerao..............................................................................................................................................76

    Estrutura e Recursos Organizacionais ........................... ........................... ............................ ................. 77

    Estrutura Organizacional ............................. ............................ ............................. ................................... 77

    Informao e Informatizao..................................................................................................................78

    Gesto de Recursos Organizacionais.....................................................................................................79

    rgo Central de Administrao............................................................................................................81

    Gesto Governamental ............................................................................................................................82

    Presidncia da Repblica..........................................................................................................................82Planejamento Governamental.................................................................................................................84

    Avaliao e Controle................. ............................ ............................. ............................ ........................... 86

    O Contexto Poltico do Estado ........................................................................................ 88

    Perfil da Disfuncionalidade.............................................................................................. 92

    EM BUSCA DE REQUISITOS FUNCIONAIS DA MODERNIZAO DAADMINISTRAOPBLICA BRASILEIRA........................................................................................................ 96

    BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 99

    RELAO DE QUADROS E TABELAS

    Quadro I- TEORIA NVERSUSTEORIA P......................................................................................19Quadro II- ORIENTAO DOS PARADIGMAS DEADMINISTRAO PBLICA ..............................29

    Quadro III- ORIENTAO DA BOAADMINISTRAO PBLICA .....................................................30

    Quadro IV- CONCEITO DE RACIONALIDADETRIDIMENSIONAL CONTRADITRIA .................31

    Quadro V- MODELO INTEGRATIVO DEADMINISTRAO PBLICA .............................................33

    Quadro VI- FATORES DE RACIONALIDADE DOS PARADIGMAS DEADMINISTRAO PBLICA..33

    Quadro VII- QUANTITATIVO DE PESSOAL DAADMINISTRAO PBLICA FEDERAL............... 58

    Quadro VIII- EFETIVO PBLICO FEDERAL COMPARADO ...............................................................59

    Quadro XI- ESTABILIDADE ORGANIZACIONAL DE GOVERNOS RECENTES ...............................77

    Quadro X- PLANEJAMENTOTECNOCRTICOVERSUSPLANEJAMENTO DEMOCRTICO .........85

    Em memria de

    Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e

    Beatriz Marques de Souza Wahrlich (1915-1994).

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    7/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    2

    Os sistemas burocrticos pblicos cresceram e se diferenciaram pari passu evoluo do estado, de modo aprocessar solues para lidar com problemas cada vez mais complexos. Os sistemas burocrticos do estadosocial capitalista desenvolveram uma notvel capacidade de gerar resultados positivos para o bem estar, mas,tambm, um enorme potencial de gerar crise: de eficincia, de eficcia, de efetividade. O que se convencionouchamar de crise da administrao pblica, reporta-se, no contexto do que tambm se convencionou chamar de crise doestado, incapacidade poltico-administrativa de deliberao e, efetivamente, implementao daquilo que sejadefinido como certo para o bem-estar dos cidados. A crise da administrao pblica no uma crise puramente

    administrativa, sua superao est condicionada ao incremento da racionalidade poltica e administrativa doestado de uma maneira integrada. Este um desafio terico e prtico que dever orientar a construo, aplicaoe anlise de modelos de modernizao da administrao pblica.

    A EVOLUO PARA OESTADO SOCIAL:ALEGITIMIDADE COMOLIMITE

    O estado, enquanto forma instituda de organizao poltica, uma inveno inacabada. O advento da eramoderna, marcada pela transio da renascena ao capitalismo industrial, incorporou significativas mudanasqualitativas ao estado, que at ento se restringia ao carter militar e religioso, imbricado nas conquistasterritoriais e na dominao secular medievais. A evoluo do estado ao longo da histria recente apresenta doismomentos distintos no que concerne ao seu carter dominante e s formas de integrao do seu aparatoadministrativo sociedade: o estado moderno, marcado pelo advento do estado de direito, e o estado

    contemporneo, caracteristicamente um estado social.O estado moderno, como ordem expressamente poltica, surgiu como forma de organizao centralizada dopoder fundado nos princpios da territorialidade da obrigao poltica e da impessoalidade do comando poltico,que, originado na Europa no sculo XIII, se estendeu a todo o mundo civilizado. Sua evoluo foi condicionadapela mudana no carter do poder poltico, que marcou a transio da europa feudal para a moderna, a partir daruptura da respublica christiana, caracterizada pela ciso da unidade poltico-religiosa para uma concepouniversalista de repblica oriunda de Ccero que consiste no interesse comum a uma lei comum como nicodireito pelo qual uma comunidade afirma sua justia.1

    Esta passagem transforma o estado em projeto racional da humanidade, conferindo novo carter institucional srelaes sociais de poder: sua organizao mediante procedimentos tcnicos estabelecidos, instituies eadministrao, para a preveno e neutralizao de conflitos e atingimento de finalidades materiais, que suasforas dominadoras reconhecerem como prprias e impuserem como gerais a todo pas.

    O surgimento do estado de direito foi fortemente influenciado pelos ideais de liberdade poltica e econmica ede igualdade de participao dos cidados, no mais sditos, ideais estes que marcaram o advento da sociedadecivil. A legalidade passa a ser o carter essencial do estado de direito, atributo da sujeio lei, como forma demanuteno da ordem, no mais baseada na defesa do conflito social e na garantia das liberdades, de forma nosubjetiva. O estado de direito, gerenciado pela burguesia, tornaria possvel a sobrevivncia da sociedade civil,empregando meios cada vez mais sofisticados de organizao e controle da ordem constituda dentro da doutrinademocrtica, como parlamentarismo e partidos de massa. O estado de direito no preconizava, portanto, umforte esquema administrativo, seno nas suas funes legislativas e judicirias. Desta forma, as relaes entreestado e sociedade tinham como canal quase que exclusivo a representatividade poltica e a infiltrao da

    burguesia no aparelho do estado.O surgimento do estado social atendeu a uma demanda da sociedade civil capitalista e deu-se a partir dainstituio de formas democrticas representativas e como percepo e resposta poltica s necessidades dasclasses subalternas emergentes. A retomada, por parte do estado e do seu aparelho, de uma funo de gestodireta da ordem social, sobretudo da ordem econmica, cujo andamento natural era agora posto em dvida, tem

    1Ver Nicola Matteucci, Repblica; Gustavo Gozzi, EstadoContemporneoe Pierangelo Schiera, EstadoModerno inDicionrio dePoltica, Norberto Bobbio; Nicola Matteucci & Gianfranco Pasquino (Braslia: Universidade de Braslia, 1986), pp. 401, 425 e 1107.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    8/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    3

    incio em meados do sculo XIX. O bem-estar voltou a ser o exerccio mais prestigioso da gesto do poder,embora no mais em funo declaradamente fiscal e poltico-econmica, como nos tempos do estado absoluto,mas devido a uma gradual integrao do estado poltico com a sociedade civil, o que alterou significativamente oestatuto jurdico do estado. J nas ltimas dcadas do sculo XIX, os estados que mais ativamente intervinhamno processo de valorizao capitalista, como na Alemanha e Inglaterra, implementavam polticas protecionistas,introduziam instrumentos de poltica monetria e adotavam programas e benefcios sociais, principalmenteprevidencirios. Nascia o welfare state, que marcaria profundamente o desenvolvimento do capitalismo no mundo

    ocidental. Ou, conforme pronuncia OFFE:O Estado social , historicamente, a combinao resultante de uma srie de fatores, cuja composio varia depas a pas. O reformismo social-democrtico, o socialismo cristo, as elites esclarecidas da poltica conservadora,da economia e dos grandes sindicatos na indstria eram as foras mais importantes que lutaram por sistemascada vez mais amplos de seguro social obrigatrio, leis de proteo do trabalho, salrios mnimos, ampliao deinstituies de sade e de educao e a construo habitacional subvencionada pelo Estado, assim como peloreconhecimento dos sindicatos como representantes polticos e econmicos legtimos dos trabalhadores. Estesprogressos ininterruptos nas sociedades ocidentais foram muitas vezes dramaticamente acelerados no contextode intensos conflitos sociais e crises, sobretudo sob as condies da guerra e do ps-guerra. As instituies doEstado social, introduzidas dentro das condies da guerra e do ps-guerra, conseguiram se manter comopermanentes e depois foram acrescidas de outras inovaes, cuja introduo se tornou possvel em pocas de

    bem-estar e economia crescente. o seu carter multi-funcional e a sua capacidade de servir,concomitantemente, a mltiplos objetivos, que tornam a organizao poltica do Estado social to atrativa parauma ampla coligao de foras heterogneas.2

    A legitimidade o principal atributo do estado social, como consenso acerca dos critrios qualitativos que orientam suainterveno, pautado nos resultados de sua interveno. No estado social, as premissas da ao so resultados concretosna direo do bem-estar, demonstrando sua utilidade social, pela da gesto efetiva de seus recursos.

    A CRISE DOESTADO: CRTICAS E CONTRADIES

    A problemtica da relao entre estado e sociedade contempornea situa-se no questionamento dos limites doestado social, redundando em um enorme leque de crticas e posicionamentos em torno de questes especficas egerais da interveno estatal, ora prevalecendo seus aspectos econmico-fiscais, ora adquirindo matizes poltico-ideolgicos em torno da gesto da ordem social. Este tratamento tende a reduzir a discusso sobre os limites doestado social em torno de abordagens sobre menos estado ou mais estado, sem se atentar que o ncleo destaquesto no quantitativo, mas qualitativo. A proporo da coexistncia das formas do estado de direito com oscontedos do estado social tem sido, nas sociedades organizadas, o grande desafio do estado contemporneo.Por um lado, os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades burguesas: liberdadepessoal, poltica e econmica. Constituem um dique contra a interveno do Estado. Pelo contrrio, os direitossociais representam direito de participao no poder poltico e na distribuio da riqueza social produzida. Aforma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participao.3

    A crtica conservadora ao estado social, mais facilmente posicionada direita, insiste em trat-lo como a doenaque pretende curar: sua ao tende a agravar os conflitos da sociedade de mercado, em vez de harmoniz-los,

    impedindo que as foras do mercado funcionem adequadamente, basicamente devido a duas principais razes.Primeiro, o aparelho do estado social impe ao capital uma carga de impostos e regulamentos que embotam ecerceiam os investimentos privados. Segundo, seus trabalhadores e sindicatos so beneficiados com direitos eprivilgios que contribuem para a baixa produtividade, comparativamente aos padres do mercado:

    2C. Offe, Trabalho e Sociedade - Problemas Estruturais e Perspectivas para o futuro da Sociedade do Trabalho(Volume II; Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1991), pp. 114-5.3E., Forsthoff, Stato di Diritto in Transformazioni(Milano: Giufre,1973) apud G., Gozzi, 1986, op. cit., p. 401.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    9/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    4

    Estes efeitos levam dinmica do desenvolvimento decrescente e das expectativas crescentes, sobrecarga depretenses econmicas (que conhecemos como inflao), assim como sobrecarga de pretenses polticas(ingovernabilidade), e, por conseguinte, um nmero cada vez menor de expectativas pode ser satisfeito pelos serviossociais disponveis. [...] A concluso importante que se pode tirar desse tipo de anlise que o estado socialno uma fonteisolada e autnoma de bem-estar que pe disposio do cidado, como um direito, rendas e servios; ao contrrio, eleprprio altamente dependente da prosperidade e rentabilidade contnua da economia.4

    Por outro lado, a crtica da esquerda fundamenta-se na utilidade do estado social para as classes menos

    favorecidas e baseia-se em trs pontos: o estado social ineficaz e ineficiente; repressivo; e promove uma falsaideologia na classe operria. Segundo esta crtica, sua pesada maquinaria redistributiva trabalha apenas no sentidohorizontal, dentro da classe dos operrios, no no sentido vertical, de maior mobilidade social. Ademais, o estadosocial no reduz a causa das necessidades e carncias como, por exemplo, a desorganizao das cidades pelomercado capitalista de imveis, o desgaste da capacidade e da qualificao de trabalho, o desemprego, etc.,mas apenas compensa parcialmente as conseqncias dessas ocorrncias suprindo servios de sade e seguros,subvenes habitacionais, organizaes educacionais, auxlio desemprego, etc. Conseqentemente, a ineficcia doestado social acentua a contnua ameaa de crise financeira, conseqncia, por sua vez, das descontinuidadescclicas e estruturais do processo de acumulao capitalista.5

    Outra fonte de ineficincia, ineficcia e represso inerentes estrutura do estado social est nos atributos da

    burocracia pblica, que absorve mais recursos e presta menos servios do que outras estruturas democrticas edescentralizadas de poltica social poderiam fazer. Por isso, a razo da manuteno da forma burocrtica deadministrao de servios sociais, apesar da sua ineficincia e ineficcia, evidente para um nmero cada vez maiorde observadores, deve estar relacionada com a funo de controle social exercida pela burocracia centralizada doEstado social.6Em resumo, a crtica da esquerda alega que o estado social seria antes um meio para estabilizar asociedade capitalista do que um passo para transform-la ou transcend-la.

    Nenhum dos dois plos de crticas assume as contradies do estado social capitalista contemporneo, quercentrando-se em aspectos desta, quer enunciando seus pontos crticos e requisitos funcionais de uma maneiraintegral, conforme sentencia Offe:

    O desagradvel segredo do estado social reside em que, apesar do seu efeito sobre a acumulao capitalistapoder muito bem tornar-se destrutivo (como a anlise conservadora demonstra to enfaticamente), a suaeliminao seria evidentemente disruptiva (fato que a crtica conservadora sistematicamente ignora). Acontradio consiste em que o capitalismo no pode coexistir com o estado social nem continuar existindo semele. [...] Parece que o Estado social, apesar de atacado tanto pela direita quanto pela esquerda, no pode serfacilmente substitudo por uma alternativa conservadora ou progressista.7

    No obstante as discusses sobre a crise do estado social comportarem matizes de natureza diversa v.g. decarter poltico, sociolgico, econmico etc., importa explorar um carter especfico da crise do estado: odesempenho, que consiste na crise de eficincia e de efetividade do estado social contemporneo maisrelevante quando se coloca o estado numa perspectiva ativa, de ator social.

    O ESTADO COMOATOR E SEUS REQUISITOSFUNCIONAISBSICOS

    A tendncia de enfocar o debate em torno do estado social a partir da constatao de suas contradies bsicas,tem relegado a um segundo plano as discusses ideolgicas que se polarizam a respeito de sua crise econmico-fiscal e, por outro, da preocupao no menos pragmtica com a efetividade do estado social, enquanto agente

    4C. Offe, 1991, op. cit., pp 117-8.5Ibid., pp. 122-3.

    6Ibid., p. 124.

    7Ibid., pp. 122 e 127.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    10/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    5

    de transformaes sociais. Nesse escopo, a mecnica da ao social do estado contemporneo , conformedemonstra Luciano Martins, decorrncia de uma das contradies bsicas do capitalismo:

    [...] um Estado que intervm, enquanto ator, [articulando a manuteno] das relaes de produo [com as] asrelaes de reproduo da sociedade, ou seja, ao nvel da manuteno da sociedade capitalista e ao nvel dapassagem de um tipo a outro de sociedade capitalista. Por isso que a interveno tpica do Estado capitalista dirigida no sentido de manter artificialmente a forma mercadoria (atravs do welfare state, subsdios ao capital,reciclagem da fora de trabalho, etc.) dos atores sociais que tenham perdido a capacidade de participar da relao

    de troca. Essa tarefa de estabilizar e universalizar a forma mercadoria condio para reconciliar os requisitosconstitutivos divergentes antes mencionados os autores [Alain Tourraine, Claus Offe e V. Ronge] designampor administrative recommodification. No capitalismo contemporneo a dificuldade consiste em superar asdeficincias do mercado (dada sua fraca capacidade autocorretora) e, simultaneamente, as formas de welfare stateutilizadas para tanto (dada a crise fiscal por elas provocada). Da serem geradas novas formas de contradiesinternas ao capitalismo avanado. Uma dessas contradies seria que, na medida em que se amplia a ao doEstado para garantir e repor as relaes de troca por via poltica e administrativa, as vastas estruturas burocrticascriadas para realizar essa funo tendem a escapar forma mercadoria.8

    A teoria do estado-ator coloca o estado como um agente de transformaes sociais, polticas e econmicas nocontexto do capitalismo moderno9. , nesse sentido, rotulado de neo-weberiano, porque pressupe a capacidade

    de responder com efetividade e agilidade s demandas da sociedade civil. Mas a nfase deste enfoque no secoloca na relao de utilidade funcional entre estado e cidado-consumidor, seno na capacidade dos governosrepresentativos em liderar, balisar, empreender, e mesmo tutelar processos modernizantes. Este papelfundamenta-se em dois argumentos bsicos.

    Primeiro, o estado, enquanto organizao, pode formular objetivos que no so simples reflexos das demandasou interesses dos grupos sociais, classes ou sociedade. O estado pode desenvolver seus prprios objetivos para obem-comum, conforme escreve Tollini:

    primeira vista, pode-se ter a falsa impresso de que nesta argumentao o Estado concebido como umdirigente acima da sociedade. Entretanto, o fato de poder formular objetivos independentes no significa umEstado que se sobrepuje vontade social, mas, sim, que sirva sociedade da melhor forma possvel. [...] essencial o entendimento de que essa noo pressupe que os lderes do Estado possam prosseguir estratgiastransformadoras, mesmo contrariando a indiferena ou a resistncia de foras sociais politicamente poderosas.Em resumo, a teoria do Estado como ator diverge de outras teorias que vm o Estado como eterno prisioneirode conflitos sociais que o impedem de implementar mudanas efetivas na sociedade.10

    8L. Martins, Estado Capitalista e Burocracia no Brasil ps-64(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985), p. 39. O autor parte das elaboraesde A. Tourraine, Les Societs Dependantes (Paris: ditions Duculot), 1977 e C. Offe & V. Ronge, Notes on the Theory of the StateinThe New German Critique(Winsconsin, n 6, fall 1975).9

    Ver P. Evans; D. Rueschemeyer & T. Skocpol (eds.), Bringing the State Back In (Cambridge: Cambridge University Press, 1985).10I. M.Tollini, O Estado Ator e o Presidente(Brasilia: Correio Braziliense, 12.12.94). oportuno mencionar que os principais modelosutilizados na anlise da ao estatal o pluralista, o elitista (na sua vertente corporativista) e o marxista apresentam maioresrestries. O modelo pluralista explora o papel do empresariado na formulao de polticas pblicas, na qualidade de agentesinteressados que mobilizam recursos conforme suas possibilidades para influenciar o governo por meio de diversos canais. Estaabordagem subestima o carter poltico-ideolgico da formulao de polticas pblicas e, ademais, supe uma ingnua facilidade deacesso de grupos de presso organizados setores de governo. O modelo corporativista enfatiza a relao capital-trabalho articuladaentre grupos relevantes no meio empresarial e o estado, baseados no papel decisivo dos primeiros para o desempenho da economia,o que contribui para um maior poder de barganha na formulao da poltica econmica, em particular. Sua principal crtica aaplicabilidade, baseada na alegao de que o modelo se aplica constataes eventuais, porque o relacionamento governo-capitalseria apenas eventualmente unilateral. O modelo marxista enfoca o Estado como refm dos interesses do capital, em cujas variantesv o estado quer controlado indiretamente pelo empresariado, quer sujeito restries estruturais inerentes ao seu conjuntoinstitucional (de ordem poltica, administrativa etc.). Ver, a esse respeito, R. L. S. Cardoso, Autonomia do Estado Versus Mobilizaodos Atores Sociais - Uma Proposta Terico-Metodolgica para Anlise de Polticas Pblicas no Brasil (Braslia: Centro de EstudosEstratgicos da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica: Documento de Trabalho n 20, maro de 1995).

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    11/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    6

    O segundo argumento respeita a capacidade do estado em atingir resultados, em formular e implementarpolticas pblicas efetivas, pressuposto que o habilita a empreender mudanas sociais. A teoria coloca comocondio precpua para o desenvolvimento das capacidades do Estado a criao da coeso das partes de suamquina burocrtica.11 Segundo afirma Cardoso, abordagens institucionais12 so, neste contexto, de maiorutilidade para se analisar a poltica burocrtica no cenrio do estado social contemporneo:

    [...] O novo institucionalismo [...] incorpora [...] um novo fator: a complexidade das instituies sociais, polticase econmicas na vida moderna, sua extenso e sua maior importncia para a vida coletiva, enfocando, tambm, o

    papel das organizaes na vida pblica. Justifica-se a nfase nestas organizaes no apenas por seremencarregadas da implementao das polticas, mas tambm por serem os cenrios em que essas so decididas eavaliadas. Segundo esta concepo, as organizaes governamentais, em ltima instncia, so as responsveis pelalegitimidade das polticas, garantindo-lhes a universalidade e o poder de utilizarem legitimamente a coero paraque sejam efetivadas.13

    A implementao administrativa do estado-ator no contexto da sociedade capitalista democrtica fundamenta-sena concepo de que o prprio processo de desenvolvimento do capitalismo exige uma mudana radical nomodo de conceber e colocar a ao administrativa. Isso significa dizer que a ampliao do papel do estado nodesenvolvimento nacional vai exigir uma nova postura administrativa, ou seja, um novo modelo de gestopblica, capaz de colocar as funes organizativas-institucionais num nvel ideal, que permita o estabelecimento

    de uma relao ntima e imediata com os objetivos primeiros e com a sociedade organizada. [...] Essas relaesdevem coexistir num ambiente de constante interdependncia de escolhas e de resultados.14

    A modernizao da administrao pblica adquire uma importncia essencial frente ao imperativo de agiornamentodoestado social. A consolidao de uma tecnocracia popular15sensvel, respaldada no aumento da capacidade de julgamento,de deciso e de ao, por meio da instituio de novos mtodos de governo, que estimule o estabelecimento deparcerias com capacidade de interveno, tornou-se um requisito que coloca em risco a prpria evoluo do estado.

    Todavia, o que se verifica que o crescimento burocrtico do estado, rpido e qualitativamente complexo,representado por suas mltiplas instituies, mecanismos e oramentos, no se coaduna, hoje, com as exignciasderivadas da crise (que obrigam uma maior interveno), no lhe proporcionando uma maior capacidade de gesto dodesenvolvimento.16 Uma das alternativas estratgicas para o equacionamento da crise do estado via seuredirecionamento reside na superao da crise da administrao pblica.

    A CRISE DAADMINISTRAO PBLICA

    A crise da administrao pblica tem um duplo sentido: no terreno dapraxis, atinge a capacidade dos estados emrealizar, em alcanar resultados desejados no sentido do bem comum; no terreno do pensamento, atinge a

    11Ibid..

    12Conforme afirma R. L. Cardoso, 1995, op. cit.: as abordagens institucionais proporcionam modelos de anlise de polticas pblicas queenfocam a importncia de padres estruturados de comportamento que tendem a persistir e que adquirem certa autonomia. Esses padres,tambm chamados instituies, afetam o contedo das polticas pblicas, por estarem estruturados de forma que facilitem, dificultem, ou at

    mesmo impeam alguns resultados (outcomes) destas polticas. (p.10) Ver, a propsito, G. Nordlinger, On the Autonomy of the DemocraticState(Cambridge: Havard University Press, 1981); G. ODonnell,Anlise do Autoritarismo Burocrtico(So Paulo: Paz e Terra, 1990); J. D.Aberbach, R. D. Putnam & B. A. Rocman, Bureaucrats & Politicians in Western Democracies(Cambridge: Harvard University Press, 1981) e M.M. Atkinson & W. D. Coleman, Strong States and Weak States: Sectoral Policy Networks in Advenced Capitalist Economies (The BritishJournal of Political Science, n 19).13R. L. Cardoso, 1995, op. cit.,p. 10.14R. S. Santos & E. M. Ribeiro, A Administrao Poltica Brasileira (Revista de Administrao Pblica: 27(4):102-35, out./dez. de1993), p. 106. Os autores referem-se ao conceito de Administrao Poltica de Giorgio Pastori in Administrao Pblica, in Dicionriode Poltica, op. cit., p. 15.15Para usar a expresso de Alain Tourraine, que remonta ao excessivo amparo governamental classe mdia, em detrimento dossocialmente excludos. A. Tourraine, participao no seminrio O Estado que Queremos - Novas Estruturas, Novas Funes (Braslia:IPEA/SEPLAN, 1994).16J. R. Felicissimo & S. C. Albuquerque, Governo, Administrao Pblica e Crise(So Paulo: So Paulo em Perspectiva, 2(1):19-23,

    jan./mar. de 1988), p. 21.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    12/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    7

    capacidade dos tericos da administrao pblica, espalhados num vasto campo de disciplinas, em refletir sobreas causas, conseqncias e alternativas ao fenmeno que se verifica na prtica.

    Na dimenso da praxis, a crise da administrao pblica repousa na concatenao entre meios e fins. umproblema de racionalidade de meios, instrumental ou funcional, e de racionalidade de fins, substantiva ou de

    valor. A efetividade da ao pblica uma funo do emprego de meios apropriados para o alcance de finsdesejados, cujo estabelecimento e controle uma tarefa essencialmente poltica. Da, dois componentesdisfuncionais referirem-se, mais comumente, adequao dos meios e conformao aos fins. O primeiro

    tradicionalmente tratado como irracionalidade instrumental e exclusivamente identificado crescenteincapacidade de os sistemas burocrticos, circunscritos instrumentalidade, processarem meios apropriados donde advm a prpria noo pejorativa de burocracia relacionada ao atraso, ineficincia e ineficcia. Osegundo tradicionalmente tratado como irracionalidade substantiva ou a resistncia dos sistemas burocrticosem processarem as finalidades definidas na arena poltica, quer pela imposio de interesses da prpriaburocracia enquanto expresso social de poder, quer pelo atendimento aos interesses privados em detrimento dointeresse pblico. O que esta viso recorrente no esclarece que a crise da administrao pblica essencialmente uma crise de racionalidade nas relaes poltico-administrativas do estado, no necessria eisoladamente uma crise administrativa no domnio instrumental da burocracia pblica.17

    A implementao burocrtica do estado moderno, segundo um enfoque weberiano, deu-se no domnio

    preponderante da racionalidade funcional, instrumentalizando premissas de valor definidas fora de seu alcance,na arena poltica. A burocracia weberiana se caracteriza essencialmente por ser uma instncia micro-socialfundada exclusivamente na racionalidade funcional, que lida com fatos, no valores e meios, no fins. Ospolticos estabelecem valores na arena da barganha poltica enquanto que os burocratas, em contrapartida, soagentes neutros cuja tarefa executar, com preciso tcnica e imparcialidade, as deliberaes que emergemdaquela barganha. Poltica e administrao, fins e meios, valor e fato, so radicalmente separados nestaperspectiva porque os sistemas burocrticos seriam incapazes de processar finalidades e, mesmo se o fossem,tenderiam a sobrepor suas regras operacionais s finalidades, numa frontal descaracterizao da poltica.18 Aadministrao burocrtica aquela forma de organizao da ao social (improvvel e rica em pre-requisitos) queno pode tematizar suas prprias premissas. nisso que se baseia tambm a diviso rgida entre administrao epoltica, prevista no tipo ideal burocrtico. [...] A racionalidade burocrtica no assegura, e possivelmente

    contraria, a racionalidade poltica do sistema nas condies do Estado de bem-estar capitalista.19

    A disfuno estrutural mais comumente atribuda ao contexto da crise da administrao pblica consiste nainverso dialtica da racionalidade burocrtica. Primeiro, no sentido de que embora formatada para processarmeios, adquiriu uma responsabilidade deliberativa maior que sua capacidade. Segundo, como conseqncia,passou a deliberar segundo sua tica exclusivamente instrumental, sobrepondo-se poltica e sociedade, naconcepo de Schwartzman:

    A complexidade crescente dos Estados modernos e o aumento das funes que este Estado desempenha, fazcom que seja impossvel continuar mantendo a estrita separao, que Weber supunha entre a elaborao das leise sua execuo. Este princpio ainda hoje est presente na totalidade ou quase, dos regimes polticosdemocrticos. No entanto, bastante claro que agncias governamentais responsveis por uma srie de atos, dapoltica social poltica ambiental e econmica, tm que tomar decises pormenorizadas quase dirias, que tmum contedo poltico bastante bvio, na medida em que beneficiam determinados interesses em detrimento deoutros. Enquanto isto, os rgos polticos os partidos polticos, os legislativos, etc. dificilmentedesenvolvem a competncia tcnica especfica para tomar as decises polticas que muitas vezes so deles

    17Ver J. Bendor & T. Moe, An Alternative Model of Bureaucratic Politics(American Political Science Review, 1985), 79:755-74.18Ver M. Weber, Economy and Society - An Outline of Interpretative Sociology (Berkeley: University of California Press, 1978), pp. 217-26 e 956-1003.19Ver C. Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista(Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984), p. 217.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    13/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    8

    esperados. Isto ocorre pela prpria complexidade crescente do processo poltico, que tende a especializar ospartidos e os rgos legislativos nas questes mais diretamente poltico-partidrias, ou seja, aquelas que tmrepercusses mais diretas e visveis sobre a distribuio do poder na sociedade. Em outras palavras, a distinoentre o que tcnico, formal ou administrativo, de um lado, e o que poltico e substantivo, por outro, hojebastante obscura, e no h indicaes de que tender a se clarificar no futuro. Isto faz com que a burocraciaacrescente sua tendncia natural de defender seus interesses corporativos uma segunda caracterstica: atendncia a querer subtrair dos rgos polticos a prpria competncia decisria, em nome de sua maior

    capacitao tcnica.20

    No domnio da poltica representativa democrtica, a crise da administrao pblica materializa o embate entreburocracia e poltica. No processo decisrio institucional do estado democrtico, o controle poltico daburocracia pblica se manifesta da seguinte forma: cidados pressionam legisladores nas eleies e grupos deinteresse exercem influncia sobre legisladores em nome de interesses; legisladores influenciam a burocraciamediante dotaes e restries oramentrias e de indicaes de ocupantes de cargos de confiana, resultado deacordos polticos; a burocracia afeta os cidados pela utilidade de seus produtos, servios, bens ou regulaes, oque significa no s o custo benefcio, mas a adequao qualitativa das caractersticas dos produtos snecessidades e direitos dos cidados; e o crculo fechado quando cidados ou grupos estabelecem uma ligaoentre o apoio a legisladores no que respeita ao posicionamento e grau de interveno em torno de questes ouassuntos especificamente tratados na esfera de determinados rgos burocrticos21. Nesta arena, o que est em

    jogo a influncia poltica sobre a prtica burocrtica. No entanto, a anlise do processo de deciso polticaconduzida por Lindbloom, dentro do enfoque que denomina de poltica burocrtica, deixa claro que a inversodeste processo no se deve aos atributos estruturais da mecnica democrtico-representativa, seno da prpriaburocracia inserida neste contexto:

    O processo decisrio poltico est predominantemente nas mos da burocracia, deixando uma rea pequenapara deciso por outros participantes. Embora os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio estabeleamalgumas das polticas mais importantes, a burocracia que determina a maioria delas, inclusive as maisimportantes de todas. A poltica decorre, especificamente, das interaes burocrticas. [...] Tais alianasconstituem s vezes um desafio ao controle efetivo das polticas pelo Congresso.

    A maioria dos atos administrativos fazem ou alteram polticas, ao procurar implement-las. [...] A execuo

    sempre faz ou altera as polticas de algum modo nas mos dos administradores. Nenhum formulador de polticaspode enunciar completamente essas polticas, e poucos tentariam isso, pois sabem que no possvel elaborarum texto legal, por exemplo, que cubra todas as contingncias, todos os casos possveis. O que os formuladoresde polticas fazem permitir que os responsveis pela sua administrao determinem muitos elementos daconcepo que apenas esboam. A burocracia fica com uma parte maior de autoridade, no processo de decisopoltica, do que podem ter pretendido os congressistas.

    Sempre que os formuladores de polticas especificam (como acontece com freqncia) os vrios critriosconflitantes que pretendem aplicar execuo de uma poltica, o processo decisrio poltico recai de algummodo nas mos da administrao. A multiplicidade de critrios conflitantes um fenmeno universal naexecuo de polticas, que aparece tambm em setores muito afastados da execuo comum de polticas nossistemas democrticos. As condies em que se espera que os administradores implementem as polticas oscolocam com muita freqncia na situao de participantes do processo decisrio.22

    Nesse contexto, o que Offe denomina politizao da administrao no o resultado de novos critrios derelevncia assimilados e processados pela burocracia pblica, conforme um padro de racionalidade prtica e

    20Simon Schwartzman, A Abertura Poltica e a Dignificao da Funo Pblica in FUNCEP, O Estado e a Administrao Pblica(Brasilia: FUNCEP, 1987), pp. 77-8.21Ver J. Bendor & T. Moe, 1985, op. cit., pp. 79:755-74.22C. E. Lindblom, O Processo de Deciso Poltica(Braslia: Universidade de Braslia, srie Pensamento Poltico, 1980), pp. 60-2.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    14/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    9

    valorativa, mas o resultado de um processo em que a ao estatal tpica do estado de direito, condicionada aosseus processos e imperativos racionais-legais, torna-se crescentemente inconfivel, pois sua eficincia eefetividade so colocadas prova, sem garantias de que sua racionalidade valorativa seja incrementada. 23 Asoluo deste quadro de inverso to intrincada quanto o dilema no qual tradicionalmente colocado noenfoque weberiano.

    O fatalismo weberiano consiste em se estabelecer um continuumconceitual entre a inverso da racionalidade daao burocrtica e o processo de racionalizao, de carter histrico-mundial. Schwatzman e Offe assim o

    descrevem:

    a m-leitura de Weber consiste em considerar que seu modelo de burocracia uma receita para a organizaoda mquina burocrtica; uma receita que, bem aplicada, geraria a administrao cientfica e tcnica que tantosbuscam. Na realidade, o que Weber faz dar as caractersticas ideais de uma administrao pblica que existiriaem um contexto social e poltico bem determinado; ela no , de nenhuma maneira, a forma mais eficiente eracional de organizao social para a realizao de determinados fins; e, mais importante, ela no pode existir no

    vazio, mas requer uma srie de condies externas bastante especficas.24

    [Por outro lado, a ...] dominao burocrtica no , como acreditava Weber, o critrio estrutural irreversvel detodas as sociedades futuras, mas est vinculada a certas fases histricas e pode ser transcendida, na perspectiva deuma racionalidade sistmica de nvel superior. [... Os] esquemas normativos das organizaes poltico-

    administrativas no podem depender do acaso ou do arbtrio de seus membros, mas precisam estar em harmoniacom os imperativos de seu meio social e econmico. Quando isso no o caso, podemos dizer que asinstituies estatais esto seguindo critrios irracionais de racionalidade. Quando uma organizao pe em riscoo seu vnculo com o meio, costumamos falar de patologias burocrticas, isto , da no-correspondncia entre aestrutura interna e o meio externo, ou simplesmente entre estrutura e funo.

    Tais situaes so freqentemente estudadas pela sociologia das organizaes sob a perspectiva terica eprescritiva de como seria possvel o restabelecimento do equilbrio. Isto poderia ser alcanado atravs deprocessos de aprendizado dentro das organizaes, ou impostos do exterior mediante reforma da estruturaorganizacional. Nessas reflexes, a organizao apresentada como retrgrada e deficitria, exigindo mudanas

    uma posio que s pode ser definida com base no pressuposto de que em princpio critrios mais adequadosde racionalidade so possveis e praticveis, bastando idealiz-los e introduzi-los. Mas justamente essa premissaser abandonada [...]. Pois, bem possvel que o desnvel entre o modo de operao interno e as exignciasfuncionais impostas do exterior administrao do Estado no se deva estrutura de uma burocracia retrgrada,e sim estrutura de um meio scio-econmico que por um lado fixa a administrao estatal em um certo modode operao, mas que por outro lado exige desse gnero entre o esquema normativo da administrao dasestruturas, assim definidas. bvio que um desnvel desse gnero entre o esquema normativo daadministrao e as exigncias funcionais externas no poderia ser superado atravs de uma reformaadministrativa, mas somente atravs de uma reforma daquelas estruturas do meio que provocam acontradio entre estrutura administrativa e capacidade de desempenho [grifo no original].25

    Portanto, a superao da crise da administrao pblica no se circunscreve superao da burocracia enquantofenmeno social, tampouco capacidade de mudana exclusivamente no mbito instrumental da burocracia

    pblica, seno tambm sua capacidade de deliberao substantiva, no bojo das relaes poltico-administrativasdo estado baseado no argumento desenvolvido por Guerreiro-Ramos:

    23C. Offe, 1984, op. cit., pp. 225-6.24S. Schwartzman, 1987, op. cit., p. 67.25C. Offe, 1984, op. cit., pp. 225-6. Ver, tambm, a propsito da crtica tradicional burocracia, A. Guerreiro-Ramos, Administrao eContexto Brasileiro(Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1983), pp. 186-202.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    15/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    10

    inconcebvel no futuro a concretizao de uma sociedade destituda de burocracia, entendida esta comosistema de prestar servios que funciona com alguma coordenao centralizada de atividades e com a vigncia dealguma impessoalidade nas relaes humanas. Sem burocracia, a vida social seria inorgnica, principalmentenuma sociedade de massas. O ideal da liquidao da burocracia no cientfico, ideolgico. O que cientfico proceder ao equacionamento dialtico da questo. A sociedade de massas impe a organizao de serviospblicos de considervel envergadura, os quais no funcionaro sem burocracia, cuja qualidade, graas aodesenvolvimento tecnolgico e social, ser tanto mais alta quanto menos alienado for o carter geral das relaes

    entre autoridades e subordinados, entre os servios e sua clientela. A grandeza da sociedade futura, a intensidadee o refinamento que, nela tero necessariamente as relaes entre os homens, ao contrrio de dispensar aburocracia, a requerero mais. mas isso no equivale a dizer que a burocracia, no futuro, permanea com oscaracteres que at agora tem apresentado. [...Porque] o que confere racionalidade s prticas administrativas no a sua forma aparente, nem o seu significado intrnseco, mas a funo positiva que realizam na estratgiaadequada para atingir determinado objetivo concreto, socialmente desejado.26

    A convico sobre a necessidade de se buscar novos paradigmas no campo das teorias de administrao pblicadecorre no apenas da intensificao das prticas reformistas nos segmentos governamentais em funo dasrestries fiscais e burocrticas do estado social contemporneo que tm ocupado lugar central nas discussesacadmica e poltica nos anos 90. Decorre, tambm, de uma tomada de conscincia terica que vem sesedimentando a partir da crtica epistemolgica s cincias sociais, em particular ao campo da administrao

    pblica.27 A tendncia revisionista das teorias de administrao pblica tem sucitado o surgimento tanto deabordagens sistematizantes, que buscam levantar e repensar o estado da arte sob novas perspectivas, apontandocaminhos e explicitando direcionamentos, quanto tem feito surgir abordagens que se propem alternativas senquadradas nas correntes predominantes.28De uma maneira geral, a trajetria do pensamento no terreno daadministrao pblica tem evoludo no sentido de criar, criticar e aprimorar modelos e princpios de mudanaorganizacional planejada, nos nveis micro ou macro-organizacional, de um enfoque organizacional para um

    26A. Guerreiro-Ramos, 1983, op. cit., pp. 201 e 205. Alguns autores (dentre eles, Peter Drucker, Alvin Toffler e Frederick Mosher)discutem a decadncia da organizao burocrtica no na perspectiva da superao da burocracia enquanto fenmeno social, mas nosentido da flexibilizao de suas caractersticas morfolgicas. A questo que as ditas organizaesps-burocrticasno assegurama liquidao da burocracia enquanto sistema tipicamente instrumental. Ver, a propsito, Frederick Mosher, The Public Service in theTemporary SocietyinPublic Administration in a Time of Turbulence, D. Waldo (Scranton: Chandler Publishers, 1971); F. C. P. Motta &L. C. Bresser-Pereira, Introduo Organizao Burocrtica (So Paulo: editora Brasiliense, 1980) e A. Toffler, Rumo Civilizao daTerceira Onda (Dilogo, n 22, vol. 14).27 Ver V. Ostrom, Artisanship and Artifact (Public Administration Review 40:309-17, 1980); P. Sederberg, Organization andExplanation: New Metaphores for Old Problems(Administration and Society, 16:167-94, 1984); F. Fisher, Ethical Discourse in Public

    Administration (Administration and Society, 15: 5-43, 1983); H. Y. Jung, Phenomenology as a Critique of Public Affairs Education(Southern review of Public Administration, 6:175-87, 1987); R. Denhardt, In the Shadow of Organization(Lawrence: Univ. of KansasPress, 1981) e Toward a Critical Theory of Public Administration (Public Administration Review, 41:628-35, 1981); J. Forester,Questioning and Organizing Attention: Toward a Critical Theory of Planning and Administrative Practice(Administration and Society,13:161-207) e Bounded Rationality in the Politics of Mudding Through (Public Administration Review, 44:23-30, 1984); G. Morgan,Opportunities Arising from Paradigm Diversity(Administration and Society, 16:306-28, 1984); N. Lonerich Jr., Contending Paradigms

    in Public Administration: a Sign of Crisis or Intellectual vitality?(Administration and Society, 17:307-30, 1985) e O. White, ImprovingProspects for Heterodoxy in Organization Theory: a Review of Sociological Paradigms and Organizational Analysis(Administration andSociety, 15:257-71).28Ver M. Frank, Toward a New Public Administration (San Francisco: Chandler, ed. 1971); H. G. Frederickson, New Public

    Administration(University, Ala.: University of Alabama Press, 1980); C. Bellone, Organization Theory and the New Public Administration(Boston: Allyn and Bacon, ed. 1980); A. Guerreiro-Ramos, A Nova Cincia das Organizaes. Uma Reconceituao da Riqueza dasNaes(Rio de janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1981); Frederick C. Thayer, Organization Theory as Epistemology inOrganizationTheory and the New Public Administration, compilado por Carl Bellone (Boston: Allyn and Bacon, 1980); R. P. Hummel, TheBureaucratic Experience(New York: St. Martins Press, 2ed., 1982); M. M. Harmon, Action Theory for Public Administration(New York:Longman, 1981); T. L. Cooper, The Responsible Administrator: An Approachto Ethics for the Administrative Role (New York: KennikatPress, 1982); J. S. Jun, Public Administration Design and Problem Solving(New York: Macmillan, 1986); R. B. Denhardt, Theories ofPublic Organization(Monterey, Calif.: Brooks/Cole, 1984); F. Fischer, Politics, Values and Public Policy: the Problem of Methodology(Denver: Westview Press, 1980); D. Schuman, Policy, Analysis, Education and Everyday Life: An Empirical Reevaluation of HigherEducation in America(Lexington, Mass.: Health, 1982) e D. Waldo, The Enterprise of Public Administration(Novato, Calif.: Chandlerand Sharp, 1980).

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    16/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    1

    COPYMARKET.COM

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAO PODER SERREPRODUZIDA SEM A AUTORIZAO DA EDITORA.

    Ttulo: A Modernizao da Administrao Pblica Brasileirano Contexto do Estado

    Autor: Humberto Falco MartinsEDITORA: COPYMARKET.COM, 2000

    O Estado Social Contemporneo e a Administrao PblicaHumberto Falco Martins

    Cada teoria [... social] digna desse nome precisa responder a duas perguntas: em primeiro lugar, qual a forma desejvel de

    organizao da sociedade e do Estado e como podemos demonstrar ser ela exeqvel, ou seja, consistente com as nossas hipteses

    normativas e efetivas sobre os processos sociais? O problema definir um modelo consistente ou uma meta de transformao. Em

    segundo lugar, como chegaremos l? O problema aqui identificar as foras dinmicas e as estratgias que podem trazer a

    transformao.

    Claus Offe

    O que confere racionalidade s prticas administrativas no a sua forma aparente, nem o seu significado intrnseco, mas a funo

    positiva que realizam na estratgia adequada para atingir determinado objetivo concreto, socialmente desejado.

    Guerreiro Ramos

    A Evoluo para o Estado Social: a Legitimidade como Limite

    A Crise do Estado: Crticas e Contradies

    O Estado como Ator e Seus Requisitos Funcionais Bsicos

    A Crise da Administrao Pblica

    O objetivo deste primeiro captulo desenvolver um quadro geral de problemas, de carter universal, queinspiraram a proposio central desta monografia. Trata-se de descrever o cenrio no qual a administrao

    pblica contempornea se apresenta: o estado social, seus atributos, contradies, crticas, desafios e aspectoscrticos que concernem aos sistemas poltico-administrativos.

    {O estado capitalista democrtico contemporneo proporciona, sua face de estado de direito, garantias edireitos individuais e coletivos e, na sua face de estado social, impe aes deliberadas no sentido de se atingir,mediante a promoo de polticas pblicas efetivas, o bem-estar do cidado. Independentemente de seu grau deinterveno, o estado contemporneo necessita, no primeiro sentido, de boas leis; e, no segundo, de boaadministrao pblica. A legitimidade do estado social, decorrente da efetividade de suas aes, o seu limite. Aao estatal contempornea , portanto, intimamente dependente da administrao pblica, que, neste contexto,se coloca como instrumento e condio de legitimao, no como uma varivel dependente de arranjos mais oumenos intervencionistas.

    Neste contexto, a despeito de posies extremadas em torno do que se convencionou chamar de crise do estado,que se concentram na busca de solues polarizadas em torno de menos estado ou mais estado, a crise do estadose coloca essencialmente como uma crise de eficincia e efetividade no apenas de seu aparelho. Enfocar a crisedo estado social contemporneo, a partir de suas crticas e contradies elementares no implica, em princpio,na discusso sobre menos ou mais estado, seno sobre melhor ou pior estado.

    Tomando-se como pressuposto de que a legitimidade do estado contemporneo decorre de sua ao, no de suainao, tanto na direo do bem-estar quanto das salvaguardas dos direitos e garantias individuais e coletivas, oequacionamento da sua crise requer o enunciado de seus requisitos funcionais enquanto ator social, promotor detransformaes sociais. A implementao burocrtica do estado ator o requisito funcional mais essencial.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    17/113

    CopyMarket.com A Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do EstadoHumberto Falco Martins

    11

    enfoque poltico-sociolgico, que privilegia como ponto central a tenso entre poltica e administrao.29Nestaperspectiva, a modernizao da administrao pblica adquire um carter integrativo entre poltica eadministrao. A questo de como dotar os sistemas poltico-administrativos do estado de maior racionalidadetornou-se um requisito crtico da evoluo do estado social contemporneo. Importa investigar, nesta tendncia,elementos conceituais que possibilitem avaliar a limitao dos modelos correntes de modernizao daadministrao pblica, bem assim, circunscrever uma abordagem integrativa da administrao pblica, maisadequada ao contexto poltico do estado social contemporneo.

    A reduo deste quadro de problemas realidade brasileira ainda mais agravante. Primeiro porque aadministrao pblica brasileira tem uma trajetria modernizante, no sentido de instrumentalizar o estado paraser o indutor do desenvolvimento. Esta trajetria tem sido seguida de recorrentes percalos, dentre os quais adifcil e problemtica relao entre democracia e racionalidade poltico-administrativa, bem como o dascaractersticas prprias do modelo brasileiro de modernizao da administrao pblica essencialmente ummodelo de modernizao administrativa, que contribuiu para o atingimento de um ponto crtico no queconcerne funcionalidade dos atuais sistemas poltico-administrativos do estado brasileiro. Segundo, porque osomatrio de desafios e oportunidades que cabe atualmente ao estado brasileiro explorar, no sentido de liderarparcerias para promover um desenvolvimento mais sustentado e eqitativo, altamente incompatvel com suacondio operacional, com severas implicaes governabilidade. O redirecionamento do estado brasileiro essencialmente dependente da modernizao da sua administrao pblica. Na sociedade atual no h estado

    possvel sem administrao pblica; no h governo possvel sem estado.

    Por outro lado, a racionalidade poltica dos sistemas burocrticos no decorre, como uma conseqncia natural,da modernizao poltica do estado e da sociedade. A existncia de um grau satisfatrio de racionalidade polticano sistema poltico estatal no implica, automaticamente, no incremento da racionalidade poltica dos sistemasburocrticos. Definem, antes, condies de concorrncia ou potencialidades sistmicas, mas a relao decausao no direta. Isto porque h atributos estruturais nos sistemas burocrticos que o tornam resistentes racionalidade poltica do sistema poltico. Logo, necessrio que os sistemas burocrticos sejam enfocados apartir de sua capacidade em processar a racionalidade poltica e administrativa do estado, de uma maneiraintegrativa.

    29Ver Robert Denhardt, Public Administration Theory - The State of the DisciplineinPublic Administration - The State of the Discipline ,N. Lynn & A. Wildavsky (Chatham: Chatham House Publishers Inc., 1990), pp 43-72.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    18/113

    COPYMARKET.COM

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAO PODER SERREPRODUZIDA SEM A AUTORIZAO DA EDITORA.

    Ttulo: A Modernizao da Administrao PblicaBrasileira no Contexto do Estado

    Autor: Humberto Falco MartinsEDITORA: COPYMARKET.COM, 2000

    Modernizao da Administrao Pblica:

    Uma Interpretao TericaHumberto Falco Martins

    Uma Viso Crtica da Modernizao

    Modernidade e Racionalidade

    Determinismo VersusPossibilidade

    Autodestruio Inovadora VersusConstruo Inovadora

    Modelos de Administrao Pblica

    Uma Viso Ortodoxa da Administrao Pblica

    Uma Viso Liberal da Administrao PblicaUma Viso Empresarial da Administrao Pblica

    Em Busca da Boa Administrao Pblica

    O Modelo da Racionalidade Tridimensional Contraditria

    Princpios da Boa Administrao Pblica

    So trs os objetivos deste captulo. Primeiro, procura-se delinear um conceito genrico de modernizao daadministrao pblica a partir de uma abordagem crtica da modernizao, que implica em qualificar os atributosdo conceito corrente de modernizao: racionalizao instrumental, determinismo e transformismo, segundo osquais a modernizao se reduz absoro de expresses da modernidade alheia. De forma anloga, a

    modernizao da administrao pblica est impregnada da idia de absoro de paradigmas daquilo que seapregoa como boa administrao pblica, ao invs da sua construo segundo requisitos crticos peculiares.

    {Assume-se que a modernizao, abordada criticamente, , mais do que nunca dado o contextoglobalizante uma categoria conceitual vlida e conveniente para se pensar os processos induzidos detransformaes sociais, e, analogamente, administrativas no mbito do estado. Modernizao da administraopblica , no entanto, uma categoria conceitual problemtica. Inexiste uma teoria especificamente direcionada modernizao da administrao pblica. De uma maneira geral, as disciplinas sociais se ocupam da modernizaonuma perspectiva crtica, freqentemente metaterica, ou prescritiva, comumente associada a casos delimitadospor teorias ou praxis especficas. Em particular, no campo da administrao pblica, enquanto disciplina ouprtica, o termo modernizao da administrao pblica soa como um vasto horizonte de noes, mtodos e

    tcnicas empregados de alguma forma para o aprimoramento dos sistemas administrativos. Em ltima anlise,refere-se, da maneira mais imprecisa e implcita possvel, aos processos de implementao daquilo que as teoriasde administrao pblica prescrevem como sendo a boa administrao pblica. No obstante existirem idias edemonstraes sobre como os sistemas burocrticos pblicos podem ser, a modernizao da administraopblica, vista criticamente, impe a reflexo sobre como estes sistemas devem ser e sobre como implement-los.

    O segundo objetivo consiste na identificao, no pensamento terico sobre administrao pblica, dos trsprincipais paradigmas dominantes de boa administrao pblica: um ortodoxo, centrado na construo institucional de

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins12

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    19/113

    uma administrao pblica no molde weberiano clssico; um liberal, desestatizante, desregularizante e centradonuma administrao pblica mnima sob estreito controle poltico do mercado; e um empresarial, centrado naadoo de mtodos de gesto e avaliao empresariais em organizaes pblicas. Estes modelos no se baseiamnuma viso integrativa entre poltica e administrao: o ortodoxo contrape leis a procedimentosadministrativos, valores a fatos, polticos a burocratas; o liberal contrape poltica ao estado, estado e cidados aorganizaes pblicas; e o empresarial contrape o mercado a organizaes pblicas e gesto eficiente ao estado.

    O terceiro objetivo delinear um modelo de boa administrao pblica que integre poltica e administrao,

    enunciado a partir de contribuies da crtica metaterica s teorias de administrao pblica e a partir de umaviso integrativa de ao administrativa -especificamente o modelo da racionalidade tridimensional contraditriade Clauss Offe. O delineamento de um modelo integrativo entre poltica e administrao permite, ademais, quese explicitem as limitaes dos trs principais modelos de modernizao presentes na teoria.

    UMA VISO CRTICA DA MODERNIZAO

    O termomodernizao, no obstante a fluidez proveniente de sua variada e imprecisa utilizao no senso comum,tem sido explorado pelas cincias sociais como uma categoria analtica relacionada implementao damodernidade, ao desenvolvimento, evoluo, aos processos de mudanas sociais numa perspectiva histrica efilosfica. Trata-se, essencialmente, do campo que relaciona meios a fins, enquanto prelees, explcitas ou no,de alternativas de aes modernizadoras, quer induzidas para gerarem transformaes sociais, quer destas

    decorrentes.Enfocar criticamente a modernizao com o propsito de subsidiar a delimitao de um conceito demodernizao da administrao pblica implica em duas principais aes. Primeira, situar, a partir do sentidohistrico-filosfico da modernidade, a correlao entre a modernidade e racionalidade. Segunda, caracterizarelementos crticos subjacentes s teorias sobre modernizao, chamando a ateno para seu cunho determinista etransformista.

    MODERNIDADE E RACIONALIDADE

    Etimologicamente, modernidadeprovm do advrbio latino modo, que significa h pouco, recentemente. Daseu sentido filosfico: representao do tempo como uma sucesso de modos ou atualidades, constituindosegmentos temporais privilegiados pela forma de razo que neles se exerce. Nesse sentido, o tempo vividocomo propriamente histricoe nele alguma coisa acontece que pode ser chamada qualitativamente moderna.1H,todavia, uma distino essencial entre modernidade, enquanto experincia, e o projeto da modernidade, decarter histrico. No primeiro caso, refere-se Berman a:

    [...] uma modalidade de experincia vital -experincia do espao e do tempo, do eu e dos outros, daspossibilidades e perigos de vida- que partilhada por homens e mulheres em todo mundo atual. Denominareiesse corpo de experincia modernidade. Ser moderno encontrar-se num ambiente que promete aventura,poder, alegria, crescimento, transformao de si e do mundo - e, ao mesmo tempo, que ameaa destruir tudo oque temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experincias modernos cruzam todas asfronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religio e da ideologia; nesse sentido,pode-se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade

    da desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perptua desintegrao e renovao, de luta e contradio, de

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins13

    1H. C. L. Vaz, Religio e Modernidade Filosfica (Sntese Nova Fase: v. 18 n. 53, 1991), p. 151, apudA Modernidade e sua Crise,M. Perine (Sntese Nova Fase: v. 19 n. 57, 1992), p. 163.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    20/113

    ambigidade e angstia. Ser moderno ser parte de um universo em que, como disse Marx, tudo o que slidodesmancha no ar .2

    Esta idia de turbilho, de constante transformao abriga o desenrolar de um projeto histrico, no qual se insereo ncleo da questo da modernidade e tambm da discusso em torno da ps-modernidade: a razo moderna. Atese amplamente discutida de Weber, segundo a qual a modernidade se define pela racionalizao funcional da

    vida humana que, tomando o termo de emprstimo Schiller, chamou de desencantamento do mundorepresenta a inverso dialtica do ideal iluminista de um mundo regido pela razo.3

    O projeto iluminista via no apelo razo um instrumento fundamental de emancipao dos mitos e daignorncia seculares auto-impostas aos homens por fora da dominao episcopal exercida pela antiga aliana. Otrao caracterstico da antiga aliana era a tradio animista e religiosa, que regia as relaes entre homem emundo: o mundo da subjetividade humana e o da realidade objetiva (ou simplesmente o desejo e a realidade) seconfundem. As finalidades e os significados humanos so incorporados ao real, objetivando-se os significados daprpria existncia, nesse mundo at ento encantado.4

    Mas o mundo encantado representava muito mais o carter da irracionalidade (do homem agrilhoado pelos mitose pela impotncia perante Deus) que o da razo substantiva, presente nos textos clssicos da filosofia socrtica.O mundo grego, no menos encantado, era o paradigma da boa sociedade na medida em que a vida humana ordenada segundo os imperativos de valor dos indivduos envolvidos. A validade de tal paradigma repousa na

    considerao de que a tenso vivida entre os valores e os fatos (ou entre a razo substantiva e funcional)apontava para o aperfeioamento do indivduo pois estando a razo instrumental subordinada razosubstantiva, esta ltima no estaria sujeita a um processo de confuso.5

    O grito do iluminismo chamava ateno ao despertar da conscincia humana para sua capacidade de dominar odestino, a natureza e as foras, outrora mgicas ou ddivas: o homem estava convocado pela razo a dominar suanatureza externa mediante clculo. Estava possudo da extravagante expectativa de que as artes e as cinciasiriam promover no somente o controle das foras naturais como tambm a compreenso do mundo e do eu, oprogresso moral, a justia da instituies e at a felicidade dos seres humanos6. Ou, como escreve Harvey:

    [...] o projeto da modernidade entrou em foco durante o sculo XVIII. Esse projeto equivalia a umextraordinrio esforo intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a cincia objetiva, a moralidade e

    a lei universais e a arte autnoma nos termos da prpria lgica interna destas [nas palavras de Habermas]. A idiaera usar o acmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca daemancipao humana e do enriquecimento da vida diria. O domnio cientfico da natureza prometia liberdadeda escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins14

    2M. Berman, Tudo que Slido Desmancha no Ar. A Aventurada Modernidade (So Paulo: Companhia das Letras, 1987), p.15.3Ver D. Wrong, Max Weber. Makers of Modern Social Sciences Series (Englewood Cliffs: Prentice Hall). Este argumento um dosprincipais pressupostos da chamada Escola de Frankfurt, expresso que designa o grupo de cientistas sociais e filsofos alemesque desencadearam um movimento de crtica sociedade e cultura contemporneas, a partir da fundao de um instituto depesquisas Sociais (o Institut fr Sozialforschung) que se incorporou a um dos departamentos da Universidade de Frankfurt em 1924. A

    escola de Frankfurt refere-se simultaneamente a um grupo de intelectuais e a uma teoria social. Dentre seus principais participantesdestacam-se Friedrich Pollock, Carl Grnberg, Max Horkheimer, Karl Wittfogel, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Karl Kosch, HerbetMarcuse, Erich Fromm e Jrgen Habermas, cujas elaboraes gravitam em torno de trs eixos temticos, ainda hoje inesgotados:dialtica da razo iluminista e crtica da cincia; cultura de massa e indstria cultural; e a questo do estado e suas formas delegitimao. Ver B. Freitag, A Teoria Crtica Ontem e Hoje (So Paulo: Brasiliense, 1986) e A. Penna, A Escola de Frankfurt e aPsicologia(Arquivos Brasileiros de Psicologia: 38(2):18-33, abril/junho de 1986).4L. Colletti, Desencantamento do Mundo e Secularizao(Braslia: Universidade de Braslia, Srie Encontros Internacionais, 1979).5Ver Eric Voegelin, On Readiness to Rational DebateapudFreedom and Serfdom, A. Hynold (Dordrecht: D. Reidel, 1961), p. 284.6Jrgen Habermas, Modernity: an Incomplete ProjectinThe Anti-Aesthetic: Essays in Post-Modern, H. Foster, (ed.) (Washington: PostTowsend., 1983), p. 9.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    21/113

    de organizao social e de modos racionais de pensamento prometia a libertao das irracionalidades do mito, dareligio, da superstio, liberao do uso arbitrrio do poder, bem como do lado sombrio da nossa prprianatureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutveis detoda a humanidade ser reveladas [...]

    Na medida em que ele tambm saudava a criatividade humana, a descoberta cientfica e a busca da excelnciaindividual em nome do progresso humano, os pensadores iluministas acolheram o turbilho da mudana e virama transitoriedade, o fugidio e o fragmentrio como condio necessria por meio da qual o projeto modernizador

    poderia ser realizado. Abundavam doutrinas de igualdade, liberdade, f na inteligncia humana (uma vezpermitidos os benefcios da educao) e razo universal.7

    Mas, neste processo, a razo clssica, como fora ativa na psique humana que habilita o indivduo a distinguirentre o bem e o mal, entre o certo e o errado, assume o significado dado por Hobbes: transforma-se numacapacidade, desenvolvida pelo indivduo por meio da disciplina, de domnio do clculo utilitrio das conseqncias. Ohomem transformado numa criatura que calcula.8Os efeitos desta inverso na sociedade moderna contribuipara desacreditar o contedo emancipador do projeto iluminista de modernidade:

    O sculo XX com seus campos de concentrao e esquadres da morte, seu militarismo e duas guerrasmundiais, sua ameaa de aniquilao nuclear e sua experincia de Hiroshima e Nagasaki certamente deitou porterra esse otimismo. Pior ainda, h a suspeita de que o projeto Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si

    mesmo e transformar a busca da emancipao humana num sistema de opresso universal em nome dalibertao humana. [... A] lgica que se oculta por trs da racionalidade iluminista uma lgica da dominao e daopresso. A nsia por dominar a natureza envolvia o domnio dos seres humanos, o que no final s poderia levara uma tenebrosa condio de autodominao [...]. A revolta da natureza, que eles representavam como a nicasada para o impasse, tinha portanto de ser concebida como uma revolta da natureza humana contra o poderopressor da razo puramente instrumental sobre a cultura e a personalidade.9

    Com efeito, a inverso dialtica de uma razo originalmente com intento emancipatrio manifesta-se hoje emvrias esferas da vida social. A razo que a sociedade contempornea revela concentra-se no clculo utilitrio deconseqncias. No decorrer dos trs ltimos sculos a razo evocada no ideal iluminista se automizou, abortandoseu contedo emancipatrio: a razo que est presente na cincia, na tecnologia e na burocracia modernas umarazo puramente instrumental, repressiva, que guarda uma relao ditatorial com seu objeto.10A ordenao dosnegcios, capacidades, disponibilidades, necessidades e os meios de produo obedecem a mera expectativa deresultados planejados e no a inteleco valorativa das possibilidades de evoluo social. O concreto convertido no abstrato, o bom no funcional e o tico no no-tico... o pensamento transformado emmatemtica, qualidades em funes, conceitos em frmulas e a verdade em freqncias estatsticas de mdia.11O pensamento transformado em mera tautologia.12

    O nascimento da burocracia moderna apresenta o mesmo carter fundamental de instrumentalizao. A despeitoda crescente necessidade de tecnologia de produo, atrelada expanso quantitativa qualitativa dos mercados, onascimento das fbricas fez surgir a administrao burocrtica: uma forma de tecnologia operacional,posteriormente sistematizada como conhecimento cientfico, necessrios manuteno da sociedade

    CopyMarket.comA Modernizao da Administrao Pblica Brasileira no Contexto do Estado

    Humberto Falco Martins15

    7D. Harvey, Condio Ps Moderna. Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudana Cultural (So Paulo: Loyola, 1993), p. 23.8A. Guerreiro-Ramos, 1981, op. cit., p. 3. O autor refere-se T. Hobbes, Leviathan(London, Mc Millan, 1974).9D. Harvey, 1993, op. cit., p. 23-4.10B. Freitag, 1986, op. cit., p. 35.11A. Guerreiro-Ramos, 1981, op. cit., pp. 1-2.12M. Horkheimer, Eclipse of Reason(New York: Oxford University Press, 1947), p. 97.

  • 7/25/2019 A Modernizacao Da Administracao Publica Brasileira No Contexto Do Estado Humberto Falcao Martins

    22/113

    industrial.13 Tal como Weber colocou, a burocracia, ou o domnio organizacional da vida moderna, torna-seinstncia de racionalizao funcional da vida humana na medida em que exige dos indivduos envolvidos asubmisso s regras de condutas e a integrao uma estrutura hierrquica absolutamente impessoal, planejadasegundo os imperativos racionais-funcionais.14Nesse domnio, a racionalidade funcional do sistema acaba porexpropriar a racionalidade substantiva do indivduo, despojando-o de suas capacidades crticas de sadiojulgamento.15

    Weber alegava que a esperana e a expectativa dos pensadores iluministas era