a mistura das raças - o caso brasileiro - lucena

Upload: alexandra-g

Post on 06-Jan-2016

24 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Fabula das três raçasIdentidade brasileira

TRANSCRIPT

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 47

    A MISTURA DAS RAAS: O CASO BRASILEIRO

    Francisco Carlos de Lucena1

    Resumo

    O artigo discute aspectos das relaes raciais brasileiras. A partir das reflexes de

    autores como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg, Roberto DaMatta,

    Fry e outros, busco refletir sobre as relaes raciais brasileiras enfatizando, sobretudo, a

    questo da mistura das raas. De forma sinttica, o objetivo do artigo fazer uma discusso

    que coloque a mistura das raas no como um mero obstculo construo de

    identidades negras no Brasil, mas buscando perceb-la como elemento integrante das

    representaes sobre raa e racismo no pas. Dessa maneira, pretende-se evidenciar

    detalhes do racismo brasileiro, destacando particularidades da formao da nao brasileira.

    Palavras-Chave: sociedade brasileira, racismo, raa, mistura racial, identidade negra.

    Abstract

    The article discuss aspects of the racial Brazilian relations. From the authors reflections

    like Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg, Roberto DaMatta, Fry and

    others, think about the racial Brazilian relations emphasizing, especially, the question of the

    mixture of the races. In the synthetic form, the objective of the article is to do a discussion

    that puts the mixture of the races do not eat a mere obstacle to the construction of black

    identities in Brazil, me them as realize it like integrant element of the representations on 1 Mestre em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande-UFRN, socilogo do Instituto

    Agronmico de Pernambuco-IPA e professor do Instituto Superior de Educao de Salgueiro-ISES.

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 48

    race and racism in the country. In this way, one intends to show up details of the Brazilian

    racism, detaching particularities of the formation of the Brazilian nation.

    Key words: Brazilian society, racism, race, racial mixture, black identity.

    Falar de racismo pressupe uma contextualizao para no se correr grande risco de

    generalizaes, que mais confundem do que explicam. Isso porque cada sistema de relaes

    raciais possui suas particularidades, apesar de no se poder desconsiderar as influncias dos

    fluxos das representaes sobre raa, cultura negra e racismo existentes entre a frica,

    Europa e as naes das Amricas fenmeno chamado de atlntico negro por Gilroy

    (2001). Na realidade, o mais importante falar de racismos e no de racismo no singular.

    Na medida em que se d nfase a anlise do racismo, considerando sobretudo as suas

    especificidades, destaca-se o seu carter social e cultural. Dessa forma, ele passa a ser

    produto de sociedades especficas. Construdo socialmente, o racismo contm os

    particularismos do contexto no qual se operacionaliza. No caso brasileiro, relevante

    discutirmos as implicaes das idias sobre mistura racial e cultural nas representaes

    sobre raa e racismo. Neste texto, pincelaremos alguns dos pontos que os estudos

    antropolgicos recentes, preocupados com a questo da mistura racial, vm apontando

    sobre alguns aspectos da realidade do racismo brasileiro.

    As idias desenvolvidas neste artigo so parte de um dos captulos da minha

    dissertao de mestrado, defendida em 2007. No decorrer do texto, buscarei apontar que as

    representaes sobre a mistura das raas foi uma constante nas relaes raciais

    brasileiras. Como aponta DaMatta (1990), a raa no Brasil configura uma realidade social

    alicerada no contato e na mistura. As representaes sobre a mistura das raas

    apresentam-se como significativas para se pensar o sentido que categorias sociais como

    negro, mulato, mestio, branco possuem no pas.

    Para refletirmos sobre aspectos das relaes raciais brasileiras, iniciaremos fazendo

    uma breve abordagem do significado da abolio para a populao negra. Isso porque foi

    justamente com o processo abolicionista que o negro passou a ser, afetivamente, uma

    preocupao poltica e social para as elites brasileira (ORTIZ, 1985). Com a abolio,

    estabeleceu-se a igualdade perante a lei entre brancos e negros. Teoricamente, o

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 49

    negro passava a ameaar o lugar do branco na sociedade de classes, em formao nas

    primeiras dcadas do sculo XX. No entanto, o processo abolicionista, como todas as

    demais reformas polticas da sociedade brasileira, foi realizado pela elite e evidentemente

    no deu ao ex-escravo as condies sociais para que ele pudesse adaptar-se aos moldes do

    trabalho livre. Segundo Florestan Fernandes (1965), a sociedade brasileira deixou o

    negro seguir seu prprio destino, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de

    reeducar-se e de transformar-se para sua insero na emergente sociedade de classes. O

    autor deixa evidente que a sociedade brasileira no colocou condies scio-polticas para

    os ex-escravos se estabelecerem como homens livres.

    Para eles, a condio de homem livre que passaram a ter depois da abolio

    significava, antes de tudo, um grande paradoxo. Isso porque, por um lado, eles estavam

    libertos oficialmente. Mas, por outro lado, tal liberdade no lhes garantia condies

    mnimas de convvio e equilbrio dentro da sociedade. O que de fato ocorreu com os ex-

    escravos foi sua excluso do processo de ascenso social da sociedade brasileira das

    primeiras dcadas do sculo XX (FERNANDES, 1965). Ao participarem do mundo dos

    brancos, o negro e o mulato se viram forados a se identificar com o

    embranquecimento psico-social e moral. Para Fernandes (1966), os negros tiveram de

    sair de sua pele, simulando a condio padro do mundo dos brancos. O

    embranquecimento social passou a ser uma das sadas que a populao negra encontrou

    para conseguir alguma ascenso social e econmica (FERNANDES, ibid).

    Para o referido autor, o embranquecimento no permitia ao negro o mnimo

    equilbrio com relao construo de sua identidade. No permitia porque, para que o

    negro se auto-afirmasse como cidado, precisava negar a sua prpria origem racial. Para

    o autor, no plano cultural, uma das conseqncias do embranquecimento foi a percepo,

    por parte dos negros, da sua cultura como um elemento negativo. Hasenbalg (1979)

    entende tambm que uma das conseqncias do ideal do branqueamento justamente

    provocar nos negros e mulatos, que conseguiam ascender, um sentimento de

    desvalorizao de suas origens negras.

    [...] a adoo pelos no-brancos socialmente ascendente das normas e

    valores do estrato branco dentro do qual a aceitao social procurada

    implica a transformao do grupo negro de origem em um grupo de

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 50

    referncia negativa. O branqueamento encontra-se na base das

    manifestaes de preconceito de mulatos ascendentes contra o negro

    (HASENBALG, 1979, P. 240; grifos do pesquisador).

    A interpretao feita por Hasenbalg (ibid) do processo de embranquecimento da

    populao negra brasileira semelhante de Florestan Fernandes. Para os dois autores

    supracitados, a realidade que o negro encontrou, depois da escravido, foi um mundo

    social ditado pelas normas e valores dos brancos. Segundos estes autores, o

    embranquecimento social aparecia para o negro como uma sada, quando na realidade

    no passava de mais uma estratgia para contrabalanar qualquer possibilidade de conflito.

    Os estudos de Florestan Fernandes e de Carlos Hasenbalg sobre as relaes raciais

    brasileiras so considerados clssicos. Foram estudos basilares, sobretudo os trabalhos de

    Florestan, para posteriores reflexes acerca do racismo no Brasil. No entanto, as suas

    interpretaes sobre o processo de branqueamento do negro brasileiro parecem ter um

    carter determinista e esttico. Para tais autores, o negro brasileiro no tinha outra sada a

    no ser se autonegar. Tal argumentao traz implcito um certo carter de neutralidade do

    negro frente s novas dinmicas sociais, advindas depois da abolio. Por mais que no

    possamos deixar de destacar o carter poltico do branqueamento no sentido de tentar

    transformar, gradativamente, o pas numa nao predominantemente branca, no se pode

    esquecer tambm que a atitude do negro, recm-sado da escravido, em buscar de

    alguma maneira se enquadrar na sociedade de classes, possui um forte contedo estratgico

    articulado por eles. A busca de ascenso social dos negros na sociedade de classes no

    significou, necessariamente, a negao da sua condio de negro. Tanto que foram

    justamente os negros que conseguiram ascenso social, na dcada de 1930, os

    responsveis pela articulao da primeira organizao poltica contra o racismo no Brasil, a

    Frente Negra Brasileira. A insero de negros na sociedade de classes configurou uma

    dimenso estratgica no sentido de buscar reverter o estigma racial. Como se sabe, entre os

    esteretipos associados aos negros, depois da abolio estava imagem deles como

    vagabundos e inadequados para o trabalho moderno (CARDOSO, 1977). Ento, se a

    insero do negro na sociedade de classes exigia o seu branqueamento racial e cultural,

    tal processo de branqueamento sempre foi negociado. De modo que se torna complicado

    pensar o ideal de embranquecimento como uma imposio da elite diante da qual os

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 51

    negros simplesmente aderiram. Sem dvida, o ideal de embranquecimento configura-se

    como uma ideologia articulada pela elite brasileira, mas tal ideologia no foi meramente

    assimilada pelos negros. Ela foi modificada e negociada nos contextos de interao. Isso

    porque os negros nunca foram pacficos diante das determinaes sociais advindas da

    elite, implicando que o embranquecimento no se configurou como um anulador das

    identidades negras no pas.

    Vale salientar que o ideal de branqueamento possui sua fundamentao mais

    consistente na lgica da mistura das raas. Na realidade, o que resultaria do processo de

    embranquecimento no seria uma sociedade necessariamente branca, mas uma sociedade

    fruto da mistura das raas. Como diz Fry (2005, p. 174), o caminho para a civilizao no

    Brasil deveria ser pavimentado no com o estabelecimento de comunidades de base racial e

    tnicas distintas e segregadas, cada uma com seu estilo de vida particular, mas pela

    assimilao e integrao. Se entendermos os discursos ideolgicos como fundamentados

    em valores e crenas mais ou menos compartilhados pela sociedade, como enfatiza Geertz

    (1989), os fundamentos do ideal de embranquecimento tm muito a dizer acerca do valor

    que a mistura racial possui para a sociedade brasileira. Isso porque ele tem como

    pressuposto a mistura das trs raas. Nesse sentido, o seu resultado mais provvel seria

    uma nao misturada. Vale salientar que no estamos afirmando que o ideal de

    embranquecimento no traga aspiraes ideolgicas da elite no sentido de manter o seu

    status. Agora, o que estamos enfatizando a lgica atravs da qual tal ideal se estruturou.

    Apoiando-se na argumentao de Geertz (ibid) sobre a ideologia como sistema cultural,

    pode-se afirmar que a ideologia do embranquecimento foi elaborada a partir dos valores da

    mistura das raas; valores esses que so articulados dinamicamente nas representaes

    sobre raa e identidade negra na sociedade brasileira. Com efeito, o que se torna

    recorrente nos discursos ideolgicos do branqueamento so as suas relaes com a mistura

    racial e cultural da nao. Nesse sentido, tais discursos podem revelar pistas de uma

    sociedade que no se pensa como racialmente dividida.

    Parece-nos faltar nas interpretaes de Fernandes e Hasenbalg uma compreenso

    mais dinmica do negro. Para tais autores, o negro no visto como um sujeito capaz

    de interagir com as demandas polticas e ideolgicas dos brancos. Interao esta que

    implicaria num processo de re-elaborao de sua identidade negra, mesmo que ele

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 52

    estivesse convivendo com o discurso do embranquecimento. Para eles, o

    embranquecimento implicava apenas na autonegao do negro e na completa assimilao

    dos valores da cultura branca. Esta perspectiva traz limitaes em dois pontos. O

    primeiro deles, se refere a apresentar o negro como um mero receptor dos valores e

    normas sociais da elite branca, no sendo visto assim como um agente transformador de

    tais valores e normas. O segundo ponto, diz respeito ao fato de se colocar tais valores e

    normas sociais como produto exclusivo dos brancos, ao invs de abord-los como

    construto social elaborado atravs das interaes entre os brancos e os negros. No

    Brasil, parece problemtico falar num mundo dos brancos, como dizia Florestan (1966),

    em oposio a um mundo dos negros. A lgica cultural da sociedade brasileira

    encaminha-se no sentido da converso dos valores culturais, resultando assim numa cultura

    criada a partir das interaes e negociaes entre brancos, ndios e negros (FRY,

    2005).

    Vale destacar que a interpretao dada ao processo de embranquecimento como

    sendo um dos principais engodos, para a construo de uma identidade negra, no Brasil,

    no ficou restrita aos estudos de Florestan e Hasenbalg, mas ainda enfatizada por

    estudiosos contemporneos da questo racial brasileira. O antroplogo Kabengele

    Munanga, escrevendo em 2004, tambm interpreta o processo de embranquecimento do

    negro brasileiro como um fator negativo na formao da sua identidade negra.

    [...] No Brasil o negro pode esperar que seus filhos sejam capazes de furar

    as barreiras que o mantiveram para trs, caso eles se casem com gente

    mais clara. Tal possibilidade atua como uma vlvula de segurana sobre o

    descontentamento e frustrao entre os negros e mulatos, razo pela qual

    os negros no Brasil no foram levados a formar organizaes de protestos

    como nos Estados Unidos (MUNANGA, 2004, P. 93; Grifos do

    pesquisador).

    Pode-se ver que, para Munanga (ibid), o processo de embranquecimento funciona

    como um enfraquecedor da construo de uma identidade negra no Brasil. Munanga

    tambm concorda com a viso de Carl Degler (1976), segundo a qual a presena do

    mulato suaviza a linha racial entre brancos e negros, no favorecendo assim uma

    polarizao em termos de identidade racial tal como ocorre nos Estados Unidos. Portanto,

    podemos ver que, mesmo escrevendo em pocas diferentes, estes autores possuem uma

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 53

    interpretao semelhante do processo de embranquecimento no Brasil, no sentido de

    colocar o negro como um receptor inativo dos valores sociais da elite banca.

    Agora, no se pode negar que o discurso do embranquecimento est intimamente

    relacionado s aspiraes da elite, e foi explicitado no apoio dado pelo Brasil para a poltica

    de imigrao europia no sculo XIX e durante as primeiras dcadas do sculo XX

    (SEYFERTH, 1995). Ao propor que os negros preferissem casamentos com brancos, o

    discurso do branqueamento apresenta-se, certamente, como mecanismo ideolgico

    elaborado pela elite brasileira com o objetivo de provocar a diluio racial. Este aspecto do

    branqueamento no pode ser negado de forma nenhuma. Agora, por outro lado,

    consideramos problemtico quando se fala que o ideal do embranquecimento desfavorece a

    elaborao de uma polarizao identitria entre brancos e negros no Brasil

    (MUNANGA, 2004). Consideramos esta afirmao problemtica porque exclui a

    possibilidade de pensarmos a mistura racial e cultural como elemento dinmico da

    sociedade brasileira (DAMATTA, 1990; FRY, 2005; SANSONE, 2003; MAGGIE, 2001).

    Ento, por um lado, o ideal de embranquecimento funciona como um vetor que

    busca, a partir das relaes matrimoniais entre negros e brancos, diluir o fentipo

    negro e formar um tipo mestio ou misturado. Mas, por outro lado, Sansone (1996,

    p. 8) nos fala que a mestiagem pode tambm ser considerada como um estilo de vida e

    uma maneira de pensar o mundo social brasileiro, envolvendo cordialidade, produzindo

    momentos de confraternizao e criando discursos na direo do mito da democracia

    racial. Portanto, como destaca Sansone (ibid) a discusso sobre o ideal do

    embranquecimento envolve aspectos culturais da sociedade brasileira que transcendem a

    mera reflexo sobre o aspecto biolgico de diluio dos caracteres fenotpicos da populao

    negra. Desse modo, parece que as dificuldades em se formar no Brasil uma polarizao

    racial no est no ideal do branqueamento, mas relaciona-se, sobretudo, com as

    representaes sobre a mistura racial.

    Outro aspecto do racismo brasileiro que expressa discordncias, quanto ao seu

    significado, a emblemtica democracia racial. Para uma grande gama de estudiosos e

    para o Movimento Negro Brasileiro, a discusso sobre a democracia racial se pautou apenas

    em entend-la como um mito responsvel pelo mascaramento da verdadeira realidade do

    racismo brasileiro. Esta linha de interpretao da democracia racial teve seu incio com o

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 54

    projeto da UNESCO na dcada de 1950 e se estendeu at a atualidade (FRY, 2005). Na

    contemporaneidade, surgiram argumentaes que contestam o modo de se pensar a

    democracia racial como sendo simplesmente um vis poltico-ideolgico, que esconde o

    racismo brasileiro. So argumentos vindos, principalmente, de estudos antropolgicos

    sobre as formas como a populao brasileira se percebe em termos raciais e como ela

    entende o racismo no Brasil. Tais anlises apontam que a sociedade brasileira prima mais

    pelas representaes e valores da mistura ao invs de oposies binrias. Isso faz com que o

    mito da democracia racial seja encarado, tambm, como um cdigo cultural que expressa o

    que existe de singular no racismo brasileiro.

    Na segunda metade do sculo XIX, as reflexes sobre a mistura racial brasileira se

    aliceravam nas especulaes sobre o cruzamento das raas biolgicas. Com a crtica do

    estatuto da raa biolgica como um conceito vlido para o mundo social, entraram em

    voga, a partir da dcada de 1930, as discusses acerca do contato cultural como sendo o

    elemento diferencial do Brasil. A viso da intelectualidade brasileira na dcada de 1930

    dava grande nfase ao discurso da mistura cultural como sendo o elemento diferencial do

    Brasil. Consolidava-se uma imagem do pas como constitudo por uma nao hbrida em

    termos culturais e raciais. Na compreenso de Guimares (2004), na dcada de 1930 j

    estava presente, entre os intelectuais brasileiros, a viso do Brasil como uma nao que no

    conhecera o dio racial; onde as linhas da estratificao social no eram influenciadas pelo

    critrio da cor. Foi no contexto da dcada de 1930 e 1940 que se deu grande respaldo

    imagem do Brasil como uma nao na qual negros e brancos viviam numa democracia

    racial.

    Os estudos de Gilberto Freyre foram responsveis pela construo da imagem do

    Brasil como uma nao onde as relaes raciais possuem um carter democrtico:

    Gilberto Freyre promove uma verdadeira revoluo ideolgica no Brasil

    moderno ao encontrar na velha, colonial e mestia cultura luso-brasileira

    nordestina a alma nacional. Ethos esse que logo ganhar, em seus escritos

    polticos, a partir de 1937, o nome de "democracia social e tnica", por

    oposio democracia poltica da Amrica do Norte e dos ingleses

    (GUIMARES, 2004, p. 3).

    Para Munanga (2004), a importncia do legado intelectual de Gilberto Freyre est

    em mostrar a contribuio positiva que os negros, os ndios e os mestios trouxeram

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 55

    para a cultura brasileira. Para o autor mencionado, Gilberto Freyre tira a mestiagem do

    campo da dvida e da especulao que era colocado sobre ela pelo pensamento de Nina

    Rodrigues, Silvio Romero e outros para transform-la num valor inquestionavelmente

    positivo da cultura e da sociedade brasileiras. A perspectiva freyriana alm de atestar o

    contato no plano biolgico, os cruzamentos das raas, tambm apresenta a mistura no

    universo cultural da nao brasileira.

    No plano racial, Gilberto Freyre (1998 [1933]) argumenta, em Casa Grande &

    Senzala, que, das sociedades latino-americanas, a brasileira a nica onde as relaes

    raciais foram construdas mais harmoniosamente. Segundo Ianne (1988), na interpretao

    de Gilberto Freyre sobre a sociedade brasileira sobressai o carter democrtico das relaes

    entre brancos e negros. Para Freyre, a escravido no Brasil teve um teor menos cruel

    do que em outras partes do mundo. Na interpretao de Freyre, isso foi possvel devido ao

    contato do portugus com os escravocratas maometanos, conhecidos pela sua maneira

    familial como tratavam seus escravos. Em Sobrados e Mocambos (1951), Freyre deixa bem

    claro as suas convices quanto ao carter democrtico das nossas relaes raciais. O

    referido autor destaca que:

    Talvez em nenhum outro pas seja possvel ascenso social mais rpida de

    uma classe para a outra: do mocambo ao sobrado. De uma raa a outra:

    de negro a branco ou a moreno ou a caboclo. (...) se certo que somos mveis nos dois sentidos no horizontal e no vertical que no so to rgidas as configuraes psicolgicas de raa e de classe no nosso

    pas (FREYRE, 1951, P. 1076).

    A nfase que Freyre d a plasticidade das relaes entre brancos e negros

    conduzem noo de uma democracia racial. A imagem do Brasil como um povo no qual

    as relaes raciais gozavam deste carter democrtico prevaleceu at aproximadamente a

    dcada de 1960, quando entram em cena os estudos sobre o racismo brasileiro patrocinados

    pela UNESCO. A imagem que se tinha do Brasil no exterior era de um pas racialmente

    misturado, mas sem preconceito racial. Isso fez com que a ONU se interessasse em saber

    quais eram as especificidades raciais do Brasil. Em 1951, a UNESCO financiou, junto

    USP, um estudo sobre as relaes raciais brasileiras. Florestan Fernandes e Roger Bastide,

    dentre outros, encabearam tais pesquisas. importante destacar que um dos principais

    legados destas pesquisas foi a constatao cientfica da existncia do preconceito racial no

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 56

    Brasil. A confirmao cientfica de preconceito racial no Brasil configura, certamente, uma

    das grandes contribuies desses estudos.

    Ao invs de encontrar no Brasil uma democracia racial, as pesquisas de Florestan

    Fernandes e dos demais estudiosos do projeto da Unesco, denunciaram tal democracia

    racial como sendo um mito falseador da real situao dos negros e mestios no pas.

    Ao contrrio de uma democracia racial, Fernandes (1966) declara que no Brasil as pessoas

    tm vergonha de afirmar que so racistas.

    No Brasil, o preconceito de cor condenado sem reservas, como se constitusse um mal em si mesmo, mas degradante para quem o praticado

    que para quem seja vtima. A liberdade de preservar os antigos

    ajustamentos discriminatrios e preconceituosos tida como intocvel,

    desde que se mantenha o decoro e suas manifestaes passam encobertas

    e dissimuladas (FERNANDES, 1966, P. 24).

    Para o referido autor, o que existia de singular na realidade racial do Brasil era o que

    ele denominou de preconceito de no ter preconceito. Para ele, este mecanismo permite

    que se construa, no plano do discurso, uma disposio para se esquecer o passado escravista

    e para deixar que as coisas se resolvam por si mesmas. Para Florestan (ibid), o preconceito

    de no ter preconceito possui um vis cultural que possibilita a acomodao da populao

    negra, desestruturando a eventualidade de um conflito racial aberto no Brasil.

    Numa viso bem mais sofisticada do que a de Fernandes, Oracy Nogueira (1985

    [1955]) atesta consistentemente que a realidade racial brasileira tem sua especificidade, mas

    que ela no a to falada democracia racial. Para Nogueira (ibid), o que existe no Brasil de

    especfico nas suas relaes raciais o fato do preconceito racial se constituir pelo que ele

    denominou de preconceito de marca. O preconceito de marca se exerce quando levada em

    conta a aparncia fsica da pessoa e a sua condio socioeconmica, no prevalecendo a

    descendncia racial como fator determinante. Assim, na interpretao do autor citado, as

    atitudes de preconceito racial no Brasil so situacionais, dependendo de outros fatores

    como a educao, a amizade, a estratificao social entre outros. Apesar de Nogueira (ibid)

    j apontar nas dcadas de 1950 e 60 uma reflexo extremamente pertinente para se refletir o

    significado de raa e do racismo no Brasil e, conseqentemente, se discutir a democracia

    racial de forma menos determinista, vrios autores contemporneos continuam a encar-la

    como um mero engodo construo de uma identidade negra no pas.

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 57

    Na contemporaneidade, Guimares (2002) argumenta que a democracia racial

    configura-se como um poderoso mecanismo de amortecimento do conflito racial brasileiro,

    ao apontar para a unidade e homogeneidade nacional, e ocultar a existncia da estrutura

    segregadora do racismo. Segundo o autor, outra importante funo desse mito se constitui

    na proibio social ou at institucional de se falar em racismo e preconceito racial no

    Brasil. Em suma, na interpretao de Guimares (ibid), a democracia racial funciona como

    um vis mobilizado pelos grupos dominantes para manter a questo do racismo como um

    conflito latente no seio da sociedade brasileira2.

    Com uma interpretao similar a de Guimares, Munanga (2004) tambm afirma ser

    a democracia racial um fator que age no sentido de esconder o racismo brasileiro e

    desestruturar a construo de identidades negras no pas.

    O mito de democracia racial, baseado na dupla mestiagem biolgica e

    cultural entre as trs raas originrias, tem uma penetrao muito

    profunda na sociedade brasileira: exalta a idia de convivncia

    harmoniosa entre indivduos de todas as camadas sociais e grupos tnicos,

    permitindo s elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo

    os membros das comunidades no-brancas de terem conscincia dos sutis

    mecanismos de excluso da qual so vtimas na sociedade. [...] encobre os

    conflitos raiais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e

    afastando das comunidades subalternas a tomada de conscincia de suas

    caractersticas culturais que teriam contribudo para construo e

    expresso de uma identidade prpria (MUNANGA, 2004, P. 89; grifos do

    pesquisador).

    J para Hanchard (2001), a democracia racial significa uma fase no

    desenvolvimento histrico do que ele chamou de excepcionalidade racial brasileira. Para

    o autor, tal excepcionalidade racial foi modificada no sentido de no representar na

    atualidade a ausncia irrestrita de racismo no Brasil, mas sim uma aceitao restrita do

    racismo na sociedade brasileira contempornea. Mesmo admitindo que a democracia racial

    brasileira passou por modificaes, Hanchard (ibid) a entende tambm como um dos

    mecanismos que desestruturam a construo de identidades negras no Brasil. Portanto,

    para esses autores a discusso sobre a democracia racial estruturada mediante uma viso

    segunda qual a enquadra como um mito que mascara o racismo brasileiro.

    2 Vale destacar que na atualidade brasileira o racismo condenado e reconhecido pela maioria das pessoas

    (ver, Turra & Venturi em pesquisa realizada pelo Datafolha em 1995).

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 58

    Por outro lado, vrios estudos antropolgicos vm discutindo a democracia racial a

    partir de uma abordagem mais sofisticada, buscando entend-la no apenas um obstculo

    poltico no combater ao racismo, mas tambm como um elemento constitutivo das relaes

    raciais brasileiras, e uma realidade capaz de d pistas sobre o significado de raas no

    Brasil. Para Srgio Costa (2002) a viso de Hanchard representa a insistncia em subsumir

    uma ideologia nacional abrangente num iderio de polarizao racial que complicado de

    ser pensado no Brasil. Na interpretao de Costa (ibid), o racismo j foi desmascarado no

    Brasil, mas a democracia racial configura uma aspirao da populao brasileira.

    Justamente por representar tambm um desejo ou um modo de pensar a realidade racial do

    Brasil que a democracia racial no deve ser compreendida como simplesmente um mito

    falseador da situao racial do Brasil. Para Robin Sheriff (1993 apud HASENBALG,

    1996), a democracia racial possui duas faces, a de mito e a de sonho. Com relao a isso

    argumenta a autora:

    A democracia racial e certamente um mito, mas tambm um sonho em

    que a maioria dos brasileiros de todas as cores e classes sociais deseja

    acreditar com paixo. Enquanto ele obviamente permite uma tremenda

    hipocrisia e ofusca e realidade do racismo, o mito da democracia racial

    tambm um discurso moral que afirma que o racismo nocivo, desnatural

    e contrrio brasilidade (SHERIFF apud HASENBALG, 1996, P. 9).

    A autora nos instiga a pensar a democracia racial no apenas como um vis poltico

    e ideolgico que camufla o racismo brasileiro. Como ela sugere, o significado da

    democracia racial para a sociedade brasileira no se esgota apenas na sua dimenso

    ideolgica. Representa tambm a maneira como a grande maioria da populao do Brasil

    pensa sobre as relaes raciais e o que significa ser negro. Nesse sentido, a democracia

    racial pode ser pensada como reveladora de valores e crenas que norteiam as

    representaes sobre raa no pas, pois, como esclarece Geertz (1989), as ideologias

    expressam coordenadas atravs das quais a sociedade se pensa. As ideologias so tambm

    criaes culturais, configurando significados sociais norteadores da vida social. Dessa

    forma, a democracia racial pensada sobre um prisma mais dinmico, buscando

    correlacionar o seu sentido com a lgica do racismo brasileiro. Isso permite no entend-la

    apenas como falsificador das relaes raciais brasileiras.

    Corroborando com a interpretao de Sheriff, Sansone (1996) faz uma crtica s

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 59

    interpretaes que percebem na democracia racial s a sua dimenso de esconder o

    racismo.

    Se a democracia racial um mito como sem dvida trata-se de um mito fundador das relaes scio-raciais, que se inspira, nas suas origens,

    na fbula das trs raas. Tal mito aceito por uma grande parte do povo, que o reproduz no prprio cotidiano, articulando-o numa srie de

    discursos populares a respeito das relaes raciais [...] Em alguns mbitos,

    como na famlia e no lazer, este mito popular coexiste tambm com a

    relativizao da cor nas prticas sociais, com momentos de intimidade

    extra-racial e com a produo de estratgias individuais de gerir o aspecto

    fsico na vida cotidiana (SANSONE, 1996, P. 9).

    A interpretao que Sansone faz da democracia racial interessante em dois

    aspectos. Em primeiro lugar, o autor destaca a correlao do mito da democracia racial com

    a fbula das trs raas, um dos mitos fundadores da nacionalidade brasileira. Isso faz com

    que a democracia racial esteja intimamente ligada prpria idia que os brasileiros tm de

    nao. Em segundo lugar, o autor argumenta que o mito da democracia racial se atrela

    tambm maneira como os negros, pardos, mestios, brancos definem estratgias

    individuais para estruturar as suas relaes sociais no cotidiano, perfazendo assim um modo

    de comportamento social. Pensada desta maneira, a democracia racial passa a representar

    no apenas uma ideologia construda pela elite branca para manter a subordinao da

    populao negra, mas um conjunto de idias e de prticas que est profundamente

    enraizado em toda extenso da populao brasileira.

    Para Fry (2005), o mito da democracia racial deve ser interpretado a partir de uma

    viso mais abrangente, tentando v-lo como um mito no sentido antropolgico. Na

    compreenso do autor, entender a democracia racial e seus corolrios no mais como

    impedimentos conscincia racial, mas como fundamento do que de fato significa raa

    no Brasil leva uma radical mudana de nfase. Tal mudana de nfase acena no sentido

    de buscar entender as relaes raciais e os processos de construo de identidades negras

    no Brasil, levando em considerao a noo de mistura racial e cultural como

    fundamentais.

    Ademais, Fry (ibid) faz uma reflexo interessante sobre o significado do racismo

    brasileiro. Na sua compreenso, a sociedade brasileira preferiu a converso dos diversos

    grupos tnicos cultura dominante do que uma estrutura formada pela oposio social. Se

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 60

    no Brasil no h lugar para tipos sociais binrios, como ento se pensar numa oposio

    entre brancos e negros? Para o autor, buscar interpretar a realidade racial do Brasil a

    partir de uma polarizao racial extremamente complicada e pode nos levar reduo e

    ao essencialismo uma realidade muita mais complexa e plural. No Brasil, as pessoas no se

    classificam e no so classificadas, exclusivamente, atravs do modelo racial bipolar. O

    processo de autoclassificao racial da sociedade brasileira dinamizado atravs de um

    sistema diversificado de critrios raciais, que leva em considerao fatores como a

    aparncia, a posio social do indivduo, as relaes de amizade e parentesco, dentre outras.

    Isso implica que categorias classificatrias como negro e branco no Brasil so

    fluidas e se decompem em muitas outras categorias intermedirias, perfazendo um

    complexo jogo de identificaes raciais. Assim, dependendo do local e da posio social

    que o indivduo ocupa na sociedade, ele pode ser chamado de negro ou de moreno ou

    qualquer outra categoria racial usada no Brasil3.

    A dificuldade de fazer valer uma linguagem que fala de negros e brancos para quem fala uma linguagem de morenos, pretos, mulatos, etc. exatamente a dificuldade de fazer com que as pessoas abram mo de um modo de vida ao qual esto habituados, um modo de

    vida baseado na crena de que a aparncia das pessoas no deve influir

    nas suas escolhas e carreiras, mesmo que se compartilhe outra crena

    igualmente forte nas restries que so imposta sobre os indivduos de

    pele mais escura (FRY, 2005, P. 196).

    O prprio termo conflito racial soa estridente no contexto brasileiro, quando

    pesquisas antropolgicas recentes mostram que os indivduos no seu cotidiano preferem as

    relaes de amizade ao invs do conflito racial aberto (SANSONE, 1996). Outro elemento

    que devemos levar em considerao, quando pensamos sobre a constituio racial do

    Brasil, que crenas, prticas e modos de ser de origens africanas so amplamente

    disseminados na sociedade brasileira. Dentro de tal contexto, raa no tem um sentido de

    oposio estanque. No Brasil, a nfase recai na mistura entre raas diferentes. Disso

    resulta que pensar a sociedade brasileira como racialmente dividida entre brancos e

    negros querer construir uma imagem do pas que no compartilhada pela grande

    maioria da sua populao, apesar dela reconhecer taxativamente que somos um pas racista.

    3 Pesquisa de 1976 revelou a existncia de nada menos que 135 categorias raciais no Brasil, (FRY, 2005).

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 61

    Salientamos que no estamos desconsiderando a existncia de conflitos raciais no

    pas. Como o racismo presente e atuante no Brasil, conflitos em torno da cor

    obviamente existem. O sentido de raa no Brasil foi construdo historicamente atravs da

    tenso entre negros e brancos, expressando sempre, atravs da mistura, a multiplicidade

    de categorias classificatrias (FRY, 2005). Ento, o mito da democracia racial e a

    valorizao da mistura racial podem apontar significados culturais de uma nao na qual a

    idia de pureza racial ecoa como estranha s suas representaes sobre raa. Portanto,

    no se trata de desconsiderar eventuais conflitos ou atos de racismo na sociedade brasileira,

    mas de buscar entender as especificidades sociais atravs das quais o racismo e a raa

    foram elaborados no Brasil.

    Estudos realizados a partir do final da dcada de 1990 vm dando privilgio s

    anlises centradas nas aes dos sujeitos socais e nos processos criativos destes, dentro da

    estrutura da sociedade brasileira. Tal perspectiva analtica busca no se orientar por

    conceitos essencializados como a cultura negra, o ndio, o branco, pois eles no

    permitem explicar a complexidade que envolve os processos interpretativos destas

    categorias pelos sujeitos sociais nas suas diferentes trajetrias de vida. Maggie (2001),

    afirma que conceitos como identidade racial, cultura negra, raa, racismo, quando

    usados numa perspectiva essencializadora reificam uma realidade muito mais complexa,

    flutuante e varivel, segundo o contexto social no qual o encontro entre indivduos

    diferenciados acontece. necessrio d nfase s capacidades criativas, que os indivduos

    articulam quando esto interagindo nos seus contextos sociais. Como as categorias

    classificatrias so acionadas dentro de um campo de poder, elas so constantemente

    negociadas e renegociadas, dependendo do carter da situao do encontro entre os

    indivduos. Ento, para no substancializar as categorias raciais preciso estar atento a este

    flexvel processo de busca de reconhecimento social.

    Dessa forma, pode-se pensar os processos de construo de identidades negras,

    priorizando os fluxos e a mobilidade destas identificaes. Assim, no retirando a histria,

    a transformao, a inveno e a criatividade social dos sujeitos socais. Este enfoque das

    relaes raciais brasileiras busca apresentar negros, brancos, mulatos e demais

    outros como sujeitos modernos e dinmicos, que interagem historicamente com a

    globalizao e com a modernizao, tal como elas ocorrem em seus contextos

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 62

    socioculturais.

    Concluso

    Os discursos da mistura racial e cultura permeiam as representaes sobre a

    construo da nacionalidade brasileira. Isso por demais evidente. Nessa tica, tais

    discursos esto atrelados aos processos de tentativas da elite brasileira para silenciar e

    minimizar as diferenas tnicas e culturais do pas. Agora, entender os discursos da mistura

    como significando apenas uma barreira elaborao de identidades negras e vis poltico

    desmobilizador do combate ao racismo problemtico. Isso porque as pessoas, em seus

    contextos sociais, no so simples receptoras dos discursos oficiais. O processo de

    reinterpretao de tais discursos constante. Dessa forma, os discursos da mistura tambm

    podem ser interpretados pelas pessoas de maneira positiva e ser mobilizados nos seus

    processos de auto-identificao. Assim, a formao de uma identidade negra ciente que

    advm da mistura de raas pode ser viabilizada. Ademais, buscar entender a mistura de

    forma mais dinmica possibilita a construo de uma discusso, enfocando especificidades

    do racismo brasileiro.

    importante tambm deixar claro que a abordagem da mistura como elemento

    relevante para se pensar o significado de raas no Brasil, realizada neste artigo, no

    possui nenhuma pretenso de colocar as relaes raciais brasileiras como mais amenas. O

    racismo brasileiro to violento como qualquer outro sistema de relaes raciais. O que

    buscamos enfatizar foi problemtica da mistura racial e cultura na sociedade brasileira,

    tentando v-la como realidade instigante para a compreenso da lgica das relaes raciais

    brasileiras, e como aspecto que tambm pode est associado semntica de identidades

    negras no pas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravido no Brasil Meridional: O Negro

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 63

    na Sociedade Escravocrata do Rio grande do Sul. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1977.

    COSTA, Srgio. A construo sociolgica da raa no Brasil. Estudos Afro-Asiticos,

    Vol. 24. n. 1; Rio de janeiro, 2002.

    DAMATTA, Roberto. Relativizando: Uma Introduo Antropologia Social. Rio de

    Janeiro: Rocco, 1990.

    DEGLER, Carl. Nem Preto Nem Branco: Escravido e Relaes Raciais no Brasil e nos

    Estados Unidos. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976.

    FELIX, Joo B. Chic Show e Zimbawe e a Construo da Identidade nos Bailes Black

    Paulistanos. Dissertao de Mestrado em Antropologia. So Paulo; USP, 2000.

    FERNANDES, Florestan. A Integrao do Negro na Sociedade de Classes. So Paulo: Vol.

    I; Dominus, 1965.

    _______ . O Negro no Mundo dos Brancos. So Paulo; Difuso Europia do Livro, 1966.

    FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: A Formao da Famlia Brasileira sob o

    Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1998 [1933].

    _______. Sobrados e Mocambos: Decadncia do Patriarcado Rural e Desenvolvimento

    Urbano. Rio de Janeiro; Jos Olympio, 1951.

    FRY, Peter. A Persistncia da Raa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.

    GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LCT Editora, 1989.

    GILROY, Paul. O Atlntico Negro. So Paulo; Editora 34/UCAM, 2001.

    GUIMARES, Antonio Srgio Alfredo. Classes, Raas e Democracia. So Paulo: Editora

    34, 2002.

    ___________Preconceito de cor e racimo no Brasil. Revista de Antropologia, Vol. 47.

    n.1; So Paulo, 2004

    HANCHARD, Michael George. Orfeu e o Pode: O Movimento Negro no Rio de Janeiro e

    So Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.

    HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminao e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de

    janeiro; Graal, 1979.

  • Revista gora-ISSN 1984 -185x

    R. g., Salgueiro-PE, v. 3, n. 1, p. 47-64, nov. 2008. 64

    __________. Entre o mito e os fatos: racismo e relaes raciais no Brasil. In: M.C. Maio

    & R. V. Santos (org.), Raa, Cincia e Sociedade. Rio de Janeiro; Fiocruz/ccbb, 1996.

    IANNE, Octavio. Escravido e Racismo. So Paulo; Hucitec, 1988.

    MAGGIE, Yvonne. Introduo. In: MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Cludia Barcellos

    (org.). Raa como Retrica: A Construo da Diferena. Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 2001.

    MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiagem no Brasil: Identidade Nacional

    versus Identidade Negra. Belo Horizonte: Autentica, 2004.

    NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugesto

    de um quadro de referncia para a interpretao do material sobre relaes raciais no

    Brasil. In: Tanto Preto como Branco: Estudos de Relaes Raciais. So Paulo: T.A.

    Queiroz, 1985 [1955].

    ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. So Paulo; Brasiliense, 1985.

    SANSONE, Lvio. Negritude sem Etnicidade: O Local e o Global nas Relaes Raciais e

    na Produo Cultural Negra do Brasil. Salvador: Edufba; Pallas, 2003.

    _________. As relaes raciais em Casa Grande & Senzala revisitadas luz do processo

    de internacionalizao e globalizao. In: M.C. Maio & R. V. Santos (org.), Raa, Cincia

    e Sociedade.Rio de Janeiro; Fiocruz/ccbb, 1996.

    SEYFERTH, Giralda. A inveno da raa e o poder discriminatrio dos esteretipos.

    Anurio Antropolgico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

    SHERIFF, Robin E. Como os senhores chamam os escravos: discursos sobre cor, raa e

    racismo num morro carioca. In: MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Cludia Barcellos

    (org.). Raa como Retrica: A Construo da Diferena. Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 2002.

    TURRA, Cleusa & VENTURA, Gustavo. Racismo Cordial. So Paulo: tica, 1995.