a mina do morro das almas a mina do morro das almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf ·...

46
A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almas ________ King Rosso, o rei vermelho (conto verossímil de uma luta) 2008 Adriles Ulhoa Filho Adriles Ulhoa Filho 1

Upload: vodien

Post on 27-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

A Mina doMorro das Almas

________King Rosso, o rei vermelho

(conto verossímil de uma luta)

2008

Adriles Ulhoa Filho

Adriles Ulhoa Filho 1

Page 2: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Para

Sérgio Ulhoa Dani

Paulo Maurício Serrano Neves

Alessandro Silveira

Cylene Gama

Márcio José dos Santos

Uldicéia Oliveira

Rui Nogueira

Sandro Neiva

baluartes de uma Inconfidência

Paracatuense.

Para

outros “preás” e ”pardais” que aos

milhares se juntam nesta luta.

Adriles Ulhoa Filho2

Page 3: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

1

A mina

Foi o primeiro a perceber que não era

normal a irritante poeira que cobria todos os dias

as folhas das plantas, o telhado, o piso e a

mureta do alpendre de sua casa.

Era poeira pesada, encardida, bem

diferente da fria poeira de piçarra da ladeira do

Lajedo onde brincava na infância. Chegou a

cheirar para certeza de que não se tratava de

algum produto inadvertidamente derramado.

Não! Não era nenhum produto doméstico

derramado, e nem a poeira das suas peraltices

na infância - leve e cheirosa quando caíam as

primeiras chuvas - que, de propósito, levantava

ao arrastar os pés, para desespero das

lavadeiras que retornavam do Córrego Rico com

trouxas de roupas lavadas. Aquela servia até

para estancar, sem risco à saúde, o sangue dos

arranhões, nos jogos de bola no largo sem

grama.

A que o atormentava agora era mal

cheirosa, amarelada e pegajosa, encardia roupas

e secava as folhas das árvores.

Adriles Ulhoa Filho 3

Page 4: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Estava certo que as freqüentes corizas,

ardor nos olhos e desarranjos sem motivos que

vinha sofrendo era tudo culpa dela e da água

tratada, de gosto ruim, que chegava pelos canos.

Bem diferente da água que apanhava

gratuitamente nas cacimbas feitas nos cascalhos

do córrego. Diziam que aquelas águas davam

papo, mas eram bem mais saborosas que as que

agora bebia. Melhores que as que nos vendem

hoje em garrafões plásticos.

Lembrava sempre com quem conversava

como era a cidade há algumas décadas passadas.

O córrego morreu, secaram suas cacimbas,

seus puxados, morreram piabas, traíras e

timburés. Desapareceu tudo quando vieram as

máquinas que entraram pelo seu leito e moeram

seixos, lajes e barrancos. Só restou lodaçal

fedorento, misturado com esgotos domésticos

sem tratamento, que as poucas chuvas só

conseguem parcialmente afastar. Levar a

poluição para um pouco mais adiante. Para

outros córregos, outros rios, onde deságuam as

águas do poluído Córrego Rico.

Os espinheiros já tomaram conta do que

sobrou das antigas praias e buscam agora o

filete de água que restou. Loteamentos

Adriles Ulhoa Filho4

Page 5: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

clandestinos avançaram pelo seu antigo leito e

casebres são foram construídos.

Aparentemente não há mais o perigo das

enchentes, que eram atração, mas também

receio dos ribeirinhos. A enchente de São José,

ou das goiabas, era a mais esperada no

fechamento do verão. Muita gente se apinhava as

margens do córrego para ver a fúria das águas

derrubando barrancos e engolindo quintais.

Troncos de árvores e animais mortos rolavam

nas fortes corredeiras. Era a anual limpeza do

leito para renascer o córrego. Para abrir aos

garimpeiros novos locais de trabalho nos dias

que se seguiam.

Hoje, não é possível sequer se encantar

com o reflexo de um clarão de lua nas águas dos

puxados, onde garotos brincavam e nadavam,

até nas quentes noites de Verão.

Ficou para a cidade esse pó insuportável,

essa temperatura cada vez mais elevada, essa

verdadeira estufa, que nem capeta agüenta!

Em noites mal dormidas, como a última,

pesadelos povoaram o sono de Pardal. Ele que

raramente sonhava, essa noite sonhou que:

“Aninha Preta Velha, gargalhava ao seu

redor, e que outra, a Maurícia, cuspia fumo

Adriles Ulhoa Filho 5

Page 6: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

mascado aos seus pés, enquanto diversas negras

escravas, semi-nuas, dançavam, piscavam e

sorriam vitoriosas ao seu redor. Tudo ao som de

um batuque ensurdecedor. Uma dança de

candomblé de caboclo, com todas elas

apontando para ele, como se fosse o único

culpado de uma grande tragédia. Vai moleque!

Vai Pardal, levanta de novo a poeira. Mate os

preás agora, seu malvado! Cadê os canarinhos

cabeça de fogo que você aprisionou? As piabas

que engoliu? Cadê? Cadê seu estilingue com

forquilha de goiabeira, moleque? Cadê? Cê agora

que dê jeito!”

Acordou num sobre-salto, ensopado de

suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

água e a primeira que encontrou foi da pia do

banheiro. Quente, salobra e com cheiro de

amoníaco. Sorveu alguns goles que fizeram seu

estômago roncar, reclamando da má qualidade

do líquido. Saiu porta fora para o quintal e

sentou debaixo da velha mangueira de dias

contados. Suas folhas estão amareladas, ou já

mesmo secas, e só vem produzindo frutos

brocados. Sua sina parece ser mesmo virar

lenha. Talvez do tronco façam uma gamela.

Adriles Ulhoa Filho6

Page 7: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Uma brisa quase fresca tapeou por instante

o ar, despertando alguns galos ali por perto e

outros mais ao longe. Cantavam em dueto

anunciando a madrugada de mais um quente dia

Os primeiros pardais, sempre famintos, iniciavam

o irritante e repetitivo piar sem nenhuma beleza

sonora. Parece ser por isso que conseguem

sobreviver e multiplicarem nas mais inóspitas

situações. São insistentes. Piam, piam, piam...

Até obterem comida.

Tá aí! Deve ter sido pela minha reconhecida

intransigência, pela minha insistência para

reclamar até obter o desejado, que minha mãe

me apelidou de Pardal.

Pois agora vou ser mesmo um pardal. Vou

piar. Vou piar noite e dia ao ouvido das

autoridades desta cidade. Vou infernizar a vida

deles e desses ambiciosos produtores de poeira

assassina, até que me ouçam ou que acabem

comigo!

***

Pela manhã, postou-se defronte ao Fórum à

espera do Juiz de Direito. Vai ser o primeiro. Terá

que me ouvir, pois dia a dia a situação se agrava

e poucos parecem perceber. Do jeito que estão

indo as coisas não demora muito para que isto

Adriles Ulhoa Filho 7

Page 8: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

aqui se transforme numa cidade fantasma. Chego

antever:

“vagando por seus becos e ruas, pequenos

grupos de pessoas. Esqueléticas, sonâmbulas,

sobreviventes de um flagelo a procura de sobras.

E outro grupo, com roupas especiais e máscaras,

tal qual astronautas, os “guardiões da mina”

tentando retê-los e enxotá-los.

Pode ser também que chegue um dia, em

que a turba de esfarrapados famintos - como os

mineiros descritos por Zola em Germinal -

avance desesperada, depredando e destruindo

tudo numa revolta sangrenta, sem vencedores,

pois o mal maior já estará consumado. A

natureza local estará destruída”.

- Bom dia doutor!

Adriles Ulhoa Filho8

Page 9: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

2.

A busca pela Justiça

- Bom dia, Pardal.

- Dá licença, doutor?

- Pois não Pardal, que foi agora?

- O pó, doutor! O pó da mina da MKR que

está matando nossa gente e as nossas plantas.

- Mas do quê é que você está falando,

rapaz? Que pó? Você não vê que a cidade hoje

está bem melhor, mais bonita, pois quase toda

asfaltada e...

- E mais quente.

-... menos lamacenta. Já nem precisamos

no período de chuvas calçarmos galochas -

gracejou o Juiz.

- Não estou falando daquele pó e nem

mesmo daquele barro, doutor. Estou falando é do

pó amarelo ou cinzento, sei lá, de agora! Do pó

químico venenoso, com cianeto e arsênico, que

vem por cima trazido pelos ventos lá da mina, ou

arrastado de lá pelas águas das chuvas. Do

veneno que infiltra nos lençóis freáticos da água

que bebemos. Do pó que aspiramos no ar

durante todo tempo, que nos corrói por dentro

Adriles Ulhoa Filho 9

Page 10: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

causando câncer, doenças renais, alérgicas e

outras mais. Veja as estatísticas, doutor!

- Onde você leu isso Pardal? Quem botou

essas minhocas em sua cabeça? Deve ser coisa

de algum comunista! De algum desinformado que

não quer ver a cidade progredir. Você precisava

ver como era este fim de mundo quando aqui

cheguei. Nem água encanada tinha.

- É, mas foi só encanar a água que eles

apareceram! Foi só a cidade dispor de energia

elétrica suficiente, para cuja produção e rede de

transmissão, aliás, não contribuíram, para virem.

Agora, por pagarem alguns poucos impostos,

pois gozam de benefícios, pensam que tudo

podem.

O lucro verdadeiro, com melhoria de vida,

quem vai dele se beneficiar são os

endinheirados, os gringos donos do capital. O

imposto e royalty, pagos à prefeitura e aos

antigos proprietários do morro não são claros à

população e, acredito, nem honestamente

calculados. Pois não existe controle algum de

órgão externo independente, sobre o ouro

produzido. Tudo é calculado sobre planilhas que

a própria mineradora monta. Sequer sabemos

também como são empregados os recursos

arrecadados pela Prefeitura a favor da

Adriles Ulhoa Filho10

Page 11: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

comunidade. A favor dos verdadeiros donos da

riqueza que o município possui. Apenas

migalhas e pequenas doações como patrocínios

de festas públicas e contribuições cala a boca são

transparentes. Cadê a construção de um hospital,

seu aparelhamento e manutenção, ainda que

temporária, para mitigar os danos que

produzem? Cadê a construção de uma escola

técnica para aqui formarem os técnicos que a

empresa necessita, sem precisar trazer essa mão

de obra de fora? Não! Usam sempre a conhecida

tática de dar migalhas em público com enorme

propaganda e levar milhões no escondido. Ainda

são poucos os que percebem que estão levando

quase de graça nossas riquezas, que estão

mudando até a nossa paisagem e só nos

deixando problemas; de saúde e falta de

segurança. É o que já se nota, doutor, uma

transformação para pior. São mais pessoas para

serem atendidas, mais pessoas para serem

alimentadas, educadas e protegidas, sem

correspondente equilíbrio pelo explorador. E

quando o morro acabar? Quando a mina esgotar

e acabarem os interesses internacionais dos

fundos que mantêm a MKR? Se não tivermos

construído uma boa infra-estrutura para

enfrentar os problemas advindos da exploração

Adriles Ulhoa Filho 11

Page 12: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

da mina, que vai adiantar o sofrimento de

tantos? Ficaremos a ver navios, ficaremos com o

buraco e com os...

- Pare, pare, por favor! Você parece estar

emocionalmente abalado.

- Está bem doutor. Vou parar, pois o senhor

deve entender também, e mais, de medicina que

de justiça, pois acaba de diagnosticar que sou

louco. Não vou mais incomodá-lo com minhas

conversas malucas. Sei bem o que vou fazer. O

senhor me parece um dos já contaminados.

-????Olhe lá, Pardal! Não vá se meter em

trapalhadas que podem ser ruins para você.

Tenho muita consideração por você e sempre fui

amigo do seu falecido pai.

– Deixa pra lá, doutor! Já vi que bati em

porta errada.

Outra instância

Na ante-sala do Promotor esperam para

serem atendidos, dois advogados seus

conhecidos e algumas outras pessoas. Cidadãos

que procuram aquela autoridade na esperança de

conseguirem orientações ou esclarecimentos

Adriles Ulhoa Filho12

Page 13: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

sobre problemas particulares e coletivos. Para

denunciarem injustiças ou irregularidades

praticadas por pessoas, empresas ou órgãos

públicos. São muitos para serem atendidos, mas

resolve aguardar.

Passam minutos, hora, hora e meia e

finalmente, dez minutos após a saída da última

pessoa, chega a sua vez. Para sua surpresa o

Promotor vem pessoalmente à sala de espera

falar com ele..

- Olá Pardal, tudo bem? Conversam ali

mesmo na ante-sala. Que está havendo? O Juiz

acaba de me ligar dizendo que você esteve com

ele reclamando um monte de coisas? Se eu não

conhecesse bem o doutor, diria até que ele está

pensando que você está doido. Louco varrido!

- Ah, é! Quer dizer que ele já ligou para

falar do nosso improdutivo encontro?

- Hum, hum!

- Que foi que ele disse? Posso saber? Ou é

segredo de Justiça?

- Você sempre bem humorado, hein! Não,

não há segredo algum que eu não possa lhe

dizer. O doutor Juiz disse apenas que você

esteve com ele pedindo ajuda para expulsar a

MKR da cidade, o que ele acha que só mesmo

estando louco para querer reclamar de uma

Adriles Ulhoa Filho 13

Page 14: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

empresa como esta que só trouxe progresso e

bem estar para a cidade. Parecia estar mesmo

muito preocupado com você.

- Ah, é! Preocupado comigo, ou com a MKR?

E o senhor o que acha? Estou mesmo maluco? Ele

já lhe contou o que fui comentar, não é?

- Bem...

- Acha então o Juiz que é tudo invencionice

da minha louca cabeça. Que está tudo bem e que

a MKR não está envenenando nossas águas e

destruindo até nossa identidade ao destruir o

Morro das Almas, cartão postal da cidade há mais

de dois séculos.

- Não, não foi bem isso que ele disse. Falou

mesmo foi do ruim para a cidade o fechamento

da mina. Da perda de muitos empregos...

- Ah, ele está preocupado é com o

desemprego!

- Lógico! Todos nós temos interesse no

progresso e desenvolvimento da cidade e o

desemprego é um dos maiores dos males.

- Sem dúvida doutor, mas quem falou em

fechamento da mina? Eu também acho que a

essa altura não há como falar em fechamento da

mina. O que precisa haver é uma compensação

para mitigar os estragos que a exploração dela

produz.

Adriles Ulhoa Filho14

Page 15: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

- É, mas temos que agir com calma, com

prudência. Sei que a MKR tem feito doações a

entidades públicas e ONGs que ajudam no social,

além de colaborar com a prefeitura na

construção e manutenção de praças e jardins.

- Isso mesmo, doutor! Pracinhas, canteiros,

bonés e lanches no carnaval temporão e nos

campeonatos de futebol de veteranos. É o pão e

o circo para iludir as pessoas.

- Mas ela tem ajudado também na

construção de prédios para o Poder Público,

como este onde estamos.

- E deviam fazer isto? Desculpe doutor, mas

isso me parece uma forma de prender rabos?

- Calma, calma Pardal. Não é bem assim.

- Por que não constroem e doam à cidade

um hospital, uma escola técnica, se os seus

interesses em explorar nosso ouro ainda vão

longe? Por muitos anos! Por que não divulgam

com transparência o montante exato de ouro

extraído e quanto dele vai para fora do município

e do país? Quanto de ouro aqui permanece para

ser trabalhado pelos nossos ourives artesão?

Sem matéria prima eles estão desaparecendo,

pois os garimpeiros de bateia que os abasteciam

já não podem extrair nem o ouro de aluvião.

Adriles Ulhoa Filho 15

Page 16: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

- Não é bem assim. Há regras e leis que

precisam ser observadas, Pardal. Trata-se de

empresa internacional com muito capital

estrangeiro, que precisa dar bom lucro, senão

não investem. Você sabe que a MKR é constituída

por fundos de investimentos? Você sabe o que é

isso?

- Fundos? Sei sim doutor. Como sei dos

nossos fundilhos que estão chutando.

- Ah, não sei como vou poder ajudar!

- Será apenas mais um, doutor. Mas há de

aparecer uma solução. A propósito, o senhor

sabe quantos e como andam os processos

trabalhistas contra a MKR na Justiça aqui na

cidade?

- Os processos são públicos, meu amigo,

mas não sei quantos são atualmente nem a

situação deles.

- Está bem doutor. Agradeço a sua atenção,

mas acho que só mesmo os preás para dar jeito

nesta situação.

- Preás?

- Um dia o senhor ouvirá sobre eles.

Adriles Ulhoa Filho16

Page 17: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Com o prefeito – Uma última tentativa

- O prefeito não vai poder atendê-lo Pardal.

Está em reunião com diretores de uma grande

empresa interessada em estabelecer na cidade.

O vice-prefeito também não está, pois viajou

para a Capital com diretores da MKR.

- Não tem problema senhora secretária,

apesar de estar a duas semanas esperando a

oportunidade de falar com ele, posso esperar

mais um pouco.

- Ah, ele disse que se você quiser pode ser

atendido pelo Secretário de Meio Ambiente.

- Então já sabe que o assunto que me traz

até ele é de meio ambiente? Ótimo, falo então

com o secretário.

- Espere um momento, por favor..

- Tudo bem.

A secretária foi ao fundo do corredor e,

minutos depois, voltando, pediu que Pardal a

acompanhasse até a sala do secretário.

Deu um toc, toc na porta que ela mesma

entreabriu e anunciou a visita. De dentro da sala

escapou ar frio do condicionador ligado e

também um forte cheiro de tabaco. Entrou depois

de autorizado pela secretária, mas permaneceu

de pé.

Adriles Ulhoa Filho 17

Page 18: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Por trás de uma enorme mesa de jacarandá

roxo estava sentado recostado em cadeira

giratória de encosto alto o senhor secretário.

Sobre a mesa, um cinzeiro de cristal com vários

tocos de cigarros e, desordenados, alguns papéis

empilhados pareciam aguardar despachos ou

providências. Sem desligar o telefone em que

falava, o secretário fez um gesto para que o

visitante sentasse. Ainda ficaram alguns minutos

a conversar ao telefone, ora sussurrando com a

mão esquerda protegendo o fone, ora com

disfarçados olhares para o visitante. Alguns

sorrisos e uma gargalhada final antes do “Deixa

comigo! Até mais tarde! Eu ligo informando”.

- Então Pardal, o senhor anda preocupado

com a poeirinha que cai sobre suas plantas?

Muito bem, uma bela preocupação com o meio

ambiente! Gracejou.

- Não, senhor secretário. O que me traz

aqui não é apenas esta diminuta preocupação.

Primeiro, converso com o senhor porque o

prefeito não pôde me atender. Mas parece que a

comunicação entre o poder executivo, o

judiciário, bem como com o ministério público da

cidade está em boa sintonia, não é? Acho que

nem vou precisar repetir minhas preocupações.

Adriles Ulhoa Filho18

Page 19: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Fico, pois, esperando a sua opinião sobre o que

conversei com o Juiz e com o Promotor.

- Bom, não é bem assim! Você sabe que em

cidade pequena os assuntos, os boatos, correm

rápidos de boca em boca, e...

- E sempre são deturpados ao gosto de

interesses.

- Mas o que eu queria lhe dizer é que em

nossa gestão todo apoio temos dado a iniciativas

e a todos àqueles que de uma forma ou outra

lutam para que nosso município seja exemplo de

preservação do meio ambiente. Cuidamos para

que desmatamentos desnecessários,

assoreamentos de córregos e rios e

envenenamento por garimpeiros das nossas

águas aconteçam. Estamos, para isso, recebendo

efetivo apoio da MKR e estreita colaboração da

Polícia Militar através dos quatro policiais da

Guarda Florestal.

- Quatro valentes policiais e um velho Jeep,

para fiscalizarem os mais de oito mil quilômetros

quadrados do município...

- É o que temos!

- E quem fiscaliza a segurança das

barragens de dejetos, a poluição das águas de

rios, ribeirões e córregos que são bombeadas

para tratamento e distribuição à população?

Adriles Ulhoa Filho 19

Page 20: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Quem fiscaliza o desaparecimento das águas que

outrora perenizavam pequenos córregos no

entorno de onde está hoje a mina? Quem

fiscaliza quem as roubam sem nenhum

pagamento? Ou simplesmente sumiram estas

águas? Evaporaram. Escafederam-se? Quem vai

fiscalizar, a fim de se evitar a invasão, das

poucas e pequenas áreas de preservação que a

enorme custo foram criadas? E a biota?

- Biota? Quem é biota?

- Ah! Quem é biota! Deixa pra lá senhor

Secretário do Meio Ambiente. Boa sorte para

vossa secretaria e boa tarde! Com licença.

-????

Adriles Ulhoa Filho20

Page 21: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

3

A família de Pardal e a premonição da Negra Maria .

A visão do Morro das Almas posto rés da

praia.

Noite mais fresca nesse início do outono,

com uma linda lua cheia no céu que propicia

momento de reflexão. É quando a lembrança dos

pais e de amigos que já se foram vêm à mente de

Pardal. Recordações. Pensou nos pais e também

como conheceu Negra Maria, moradora do sopé

do Morro das Almas, e como construíram uma

sincera amizade.

Sua mãe era ainda moçoila quando veio da

roça para trabalhar sem paga na cidade, como

ama de crianças de famílias abastadas. Mais

tarde, trabalhou sem registro e sem horário

como empregada doméstica. Estudou apenas até

o terceiro ano no Grupo Escolar, pois não

dispunha de tempo para prosseguir estudos. Por

ter nascida e sido criada na religião católica, por

nada perdia uma missa aos domingos. Conduziu

Pardal, enquanto pôde, nessa mesma religião,

mas ele assistia por assistir as missas, já que

Adriles Ulhoa Filho 21

Page 22: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

não entendia nada do latinório rezado pelos

padres e repetido parcialmente pelos fiéis. Seu

pai era carpinteiro muito procurado na cidade,

hábil com formão e enxó, especialista em montar

telhados. Diferentemente da esposa ele era

protestante, mas pouco participava da igreja.

Rigoroso era mesmo para com o filho e esforçou

bastante para que aprendesse ofício e estudasse.

Conseguiu apenas tirar o Ginásio, mas não

aprendeu o ofício do pai. Parou com os estudos

por não ter como sair da cidade para continuar

os estudos fora. Àquela época a cidade não

dispunha nem de Ensino Médio completo. Ficou-

lhe, no entanto, o bom gosto pelos estudos e

pela leitura, e assim muito aprendeu sozinho.

Mas... Por que pensava em tudo isso agora?

Talvez pelo cheiro que sentiu de leite que havia

deixado fervendo e que derramou no fogão e o

fez recordar a mãe. Lembrou dela e de um doce

que fazia para aproveitar leite bispado. Leite

bispado! Não posso desperdiçar este leite, só

porque entrou fumaça da lenha molhada no

fogão, pareceu ouvi-la dizer. Sorriu.

Negra Maria ele conheceu quando ainda era

criança, e caminhava pelas praias do Córrego

Rico.

Adriles Ulhoa Filho22

Page 23: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

“Foi numa manhã de domingo. Cabulei a

missa e fui beirar praia, subindo desde o Lajedo

até a Praia dos Macacos. Armado de um bom

estilingue, forquilha de goiabeira, um bornal

médio para as pedras da atiradeira e guarda de

possível caça, lá fui eu. Descalço como gostava

de andar subi córrego acima cumprindo o ritual

pré-estabelecido. Ora n’água, ora nos barrancos

vistoriando tocas e ninhos de garrinchas, tico-

ticos e das pombas mato-virgem. Umas baitas!

Percorria nos barrancos as trilhas de preás.

Sabia dos seus hábitos noturnos, mas sempre

havia a possibilidade de encontrar alguma não

entocada que pudesse tornar alvo fácil para as

pedras do meu estilingue. Sempre fui bom no

manejo dessa atiradeira. As águas frescas do

córrego convidam a um mergulho nessa manhã

de Verão. Frescas, fartas e limpas, só turvavam

rapidamente quando alguma pequena traíra

assustada com a nossa presença se escondia em

um monturo de garranchos ou na fresta de

alguma pedra. Aquele dia, ser domingo, não

tinha garimpeiro algum nos puxados, só os

galhos de espinheiros demarcam os locais que

não devíamos nadar. Todos respeitavam. Quase

todos!

Adriles Ulhoa Filho 23

Page 24: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

No barranco do Matinho cedi ao convite da

água. Tirei toda a minha roupa e me atirei pelado

para um mergulho. Estava tão fundo o poço que

não conseguia tomar-pé. Nadei, mergulhei e até

bebi daquela gostosa água. Vesti ainda molhado

a velha camisa branca encardida de três botões –

que nem abotoei – e a calça curta de suspensório

de pano. Prossegui o passeio pelo barranco até

chegar ao Vigário. Já estavam por ali alguns

garotos para o futebol no macio gramado

encharcado pelas águas das chuvas dessa época

do ano.

Olha lá! Avistei uma folha de piteira

cortada. Não resisti. Sentado nela escorreguei lá

do mais alto barranco. Subi e desci várias vezes.

O futebol ainda ia demorar, pois ainda eram

poucos os garotos. Por isso, continuei minha

caminhada pelo leito do córrego. Observei na

barra do Córrego do Espalha com o Rico, que as

águas daquele eram bem mais frias. Por aquele

córrego não era fácil caminhar, pois as matas às

suas margens eram densas e o seu leito

profundo. Segui caminho e passei sob o

pontilhão que levava à Estrada de Goiás.

Observei grandes lagartixas negras tomando sol

nas madeiras da ponte. De vez em quando

moviam as cabeças como que assuntando o

Adriles Ulhoa Filho24

Page 25: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

perigo. Arrisquei uma pedrada numa grandona,

mas felizmente, digo hoje, errei. Fugiram todas

para o outro lado da viga e eu continuei zerado

nas minhas maldades naquele domingo. Nem um

passarinho, um preá ou mesmo um ovinho de

beija-flor.

O sol já ia alto quando alcancei o lugar

onde se encontram os Córregos de São Gonçalo e

dos Macacos. Lugar lindo. Lá no sopé do morro,

num pequeno achatado que existia no barranco

do São Gonçalo, morava a Negra Maria,

apelidada Tortuga, carregando seus muitos anos.

Alguns garotos tinham medo até de se

aproximarem da casinha. Comentavam que os

pais diziam que ela era uma bruxa. Ela mesma

deve ter espalhado a lenda para não ser

perturbada pela molecada invasora de quintais.

Fiquei seu amigo num desses meus

passeios. Certo dia, com muita fome e grande

dose de coragem, resolvi pedi a ela uma bonita

manga Sabina madurinha, que vi dependurada

num galho quase sobre a cerca de varas do seu

quintal. Olhou-me de modo fixo, séria – quase

corri – mas abriu em seguida um sorriso

bondoso em seu rosto me autorizando apanhar a

manga. Enquanto eu devorava a fruta ela puxou

conversa. Perguntou aquelas coisas que os

Adriles Ulhoa Filho 25

Page 26: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

adultos sempre perguntam às crianças que

encontram pela primeira vez: “quem é seu pai,

sua mãe, onde você mora e o que faz por aqui”.

Achei que estava era mesmo com vontade de

conversar e comecei também a indagar.

- A senhora mora aqui sozinha? Tem

marido não? Filhos meninos?

- Não, não meu amigo!

Verdade. Ela me chamou de amigo.

- Não mais tenho marido e nem filho. Meu

marido morreu há muito tempo e o único filho

que eu tive sumiu aí no morro.

- Sumiu?

- É, sumiu.

- Por que a chamam de Tartaruga?

Ela sorriu.

- Não, não é Tartaruga, meu filho! É

Tortuga, mas acho até que é a mesma coisa.

Nome inventado por um espanhol, meu amigo,

que morou numa outra casa que existia ali mais

em cima no São Gonçalo. Foi meu único vizinho

por muitos anos. Tinha mulher e duas filhas, mas

como enviuvou cedo criou sozinho as meninas.

Estas, assim que ficaram mocinhas foram

embora. Deixa pra lá que isto não é assunto que

interessa a uma criança. Como ia dizendo, era

ele que me chamava de Tortuga. Dizia que eu era

Adriles Ulhoa Filho26

Page 27: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

tão vagarosa no caminhar que até parecia uma

tortuga. Aí ficou! Não me incomodo de me

chamarem assim, apesar do meu nome ser Maria

de Jesus da Silva. Não conheci meu pai e minha

mãe era escrava. Ela chamava Aparecida.

Aparecida de Jesus, ou Cida do Morro como

todos a chamavam. Mas vai embora que já está

ficando tarde e sua mãe vai ficar incomodada

com sua demora.

- Até outro dia, dona Tarta... Tartaruga...

- Tortuga, meu amigo.

Foi assim que conheci Negra Maria.

Agora, já passado alguns anos, eu a visito

sempre - como hoje - e desfruto de sua

confiança. Ando por seu pequeno quintal e

conheço toda sua posse. Uma fresca casinha num

achatado no sopé do morro, aonde o sol sempre

chega mais tarde. Paredes de adobes crus, sem

reboco, telhado sem forro - em quatro águas -

coberto de velhas telhas coloniais, pesadas e

patinadas pelo tempo. Uma sala, um quarto, uma

cozinha e pequeno despejo. Tudo em chão

batido, mas em boa ordem. No quintal, algumas

outras árvores frutíferas além do pé de manga

Sabina Um de romã, um sabugueiro e algumas

Adriles Ulhoa Filho 27

Page 28: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

laranjeiras. Laranja da terra, da China e da Ásia.

Moitas de bananas, ouro e prata e capim cidreira

para o chá. Duas roseiras, uma branca,

medicinal, e outra vermelha. Três ou quatro

canteiros elevados, para plantio de verduras e

pequeno forno de lenha debaixo da mangueira. E

uma latrina de fossa a uns quinze passos da

casa.

O terreno é coberto de terra preta

misturada em pedregulho, um pouco esconso,

mas bastante fértil. Basta adubar com um pouco

de esterco de cavalo, queimado, misturado com

cinzas do fogão de lenha, para produzir lindas

cabeças de alface, couve e cebolinha de grossas

folhas. O esterco é batido e sapecado antes de

utilizar nos canteiros, a fim de evitar pragas e

também para não ‘queimar’ as plantas.

Certo dia Dona Maria me contou o que

aconteceu com o seu único filho.

“Ele se chamava Francisco, mas era mais

conhecido por Chico, - como todo Francisco.

Chiquinho Preá. O apelido veio por ser pardinho

miúdo de corpo, dentes superiores da frente

salientes e olhos muito pequenos e espertos.

Acho até que parecia mesmo um preá! Disse

sorrindo. Ele gostava muito dos bichinhos e vivia

Adriles Ulhoa Filho28

Page 29: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

os protegendo das caçadas dos outros meninos e

dos gaviões predadores aí do morro. Quando os

viam se aproximarem do morro, fazia o maior

barulho prevenindo os amiguinhos. Com ele os

preás eram mansos e até o deixava tocá-los.

Acho que conversava com eles. Pois bem,

viveram essa amizade por algum tempo, mas

certo dia apareceu por aqui um pessoal de fora,

dizendo ter comprado as terras e que iam

explorar o ouro do Morro das Almas. Até esse

terreno aqui onde moro diziam ser deles. Deles!

Como deles? Se desde o tempo de minha avó,

escrava alforriada, e depois minha mãe, escrava

liberta pela Princesa, vivemos aqui?

“A senhora é quem sabe. Vamos ver se

agüentará as explosões, o barulho das máquinas

e a poeira por muito tempo! Até sua cisterna vai

secar. Melhor aceitar a indenização e procurar

outro lugar para morar”.

Desaforo! Chiquinho ficou muito assustado

e passava os dias no morro com os animais seus

amigos. Voltava para casa só depois que

escurecia e acordava quase todas as noites aos

gritos ordenando que corressem. “Não, não...

Fujam! Vão embora!” gritava sem parar.

E um dia eles vieram mesmo para as

primeiras escavações. Enorme máquina raspou o

Adriles Ulhoa Filho 29

Page 30: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

terreno, bem aqui acima onde existia uma

baixada. Lugar mais fresco onde minava água e o

capim era sempre verde. Ali morava a maioria

dos roedores. Arrasaram as suas tocas,

esmagando muitos, adultos e filhotes e

aprisionaram outros tantos. Diziam os

maquinistas, que dariam um ótimo “tira-gosto”.

Judiação!

***

Meses depois numa de minhas visitas

encontrei Negra Maria muito triste! Parecia

muito doente e dizia coisas confusas. Muito

pálida e com o olhar sempre parado.

- Algum problema dona Maria? Era assim

que habituei chamá-la.

- São eles! Estão chegando para destruir

tudo.

- Destruir o quê?

- O Morro das Almas, meu filho!

Fiquei observando as rugas no rosto da

minha amiga. Pareciam formar letras Achei um

“m” de medo, um “a” de aflição e um “t” de

temor, sobre os olhos.

- Você, meu amigo, já é um rapazinho e

precisa saber tudo o que está para acontecer e

Adriles Ulhoa Filho30

Page 31: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

tentar amenizar o sofrimento de muitos. É

terrível! Esta noite eu ouvi minha gente;

conversei com ela!

- Que gente dona Maria? A senhora sempre

me disse que não tem mais ninguém no mundo!

- Tenho sim Pardal! Muitos! Muita gente,

muitas almas sofridas que perambulam aí pelo

morro, com os pés acorrentados, cavando sem

razão aqui e acolá há mais de um século. O

morro está cheio delas. Estão agitadas e falam

em destruição. Disseram que uma verdadeira

guerra vai ser travada. Virão enormes e

estranhas máquinas explodir e moer o morro,

afugentar os bichos, transformar tudo a pó. O

Morro das Almas vai se transformar num inferno,

exalando gases de enormes buracos, um lago

negro vai se formar e, por fim, um deserto. O pó

que vai do morro soprar cobrirá toda a cidade e

não vingará nem um pé de fruta, uma

mangueira, ou qualquer outra árvore. Você já

ouviu falar de uma cidade de um distante país

que foi totalmente destruída, soterrada pelas

larvas de um vulcão?

- Sim, já estudei sobre isso no ginásio,

respondi. Foi Pompéia, cidade italiana, que no

ano 79 da Era de Cristo, foi totalmente destruída

pelas larvas da erupção do Vesúvio. Mas o que

Adriles Ulhoa Filho 31

Page 32: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

tem a ver essa história, se em nosso país nem

tem vulcões e apenas alguns pequenos montes?

Quem, por que e para que fará isso, dona Maria?

- Pelo ouro, meu filho, pelo ouro! O Morro

das Almas tem ainda muito ouro, meu filho e não

produz apenas mangabas e serve de abrigo para

preás, lobos guará, pássaros e para fornecer as

águas que vazam das pedras e abastecem os

córregos lá embaixo.

- E vão destruir isto, dona Maria? Não

compreendo. Deve ter sido apenas um sonho, um

pesadelo que a senhora teve.

- Não, meu filho, elas estavam inquietas

esta noite, e eu até senti que o morro tremia.

Tive uma visão desses estranhos que estão

chegando. Vão ser recebidos com muitas festas.

Virá um que chamam de “rei vermelho”, alegre,

sorridente, folgadão, fazendo enormes

promessas. Chegará pelos ares como um pássaro

e será recebido com muita pompa pelo povo e

autoridades. Distribuirá durante algum tempo

presentes e fará pequenas doações “em

benefício do povo da cidade”, discursará. Muitos

acreditarão em sua palavra dizendo que trará

empregos, que virá progresso e bem estar para

os habitantes da cidade.

- Mas, isto não será bom, dona Maria?

Adriles Ulhoa Filho32

Page 33: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

- Seria, meu filho, seria se a ambição não

fosse maior que o morro. Quando o ouro acabar,

vão embora à procura de outra reserva e

ficaremos somente com os problemas de saúde

que a extração vai deixar. Com pouca água boa

para consumo pelo homem e pelos animai a

cidade vai aos poucos desaparecer. Do céu vai

chover ácido, Pardal!

- Que horror, dona Maria!

- Mas ainda há uma esperança! Os preás

vão reagir à destruição de sua casa. A princípio

poucos, mas vão se multiplicar enormemente e

logo virão até de outros mundos. Virão de todos

os lados, mil, milhares, milhões de preás

grunhindo tal qual javalis, roendo tudo que

encontrarem pela frente, exigindo reparos,

exigindo respeito. Não sei o que vai resultar.

Quem vencerá, quem se salvará dessa guerra, se

os preás ou o “rei vermelho”. Agora vá embora,

pois estou bastante cansada.

Foi minha última conversa com a Nega

Maria. Dois dias depois a encontraram morta.

Foi se juntar aos seus no Morro das Almas.

Adriles Ulhoa Filho 33

Page 34: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

King Rosso, o rei vermelho .

Como a mineradora tomou conta da cidade.

Grande aparato foi armado para receber o

presidente, Mister Scott – o rei vermelho – que

veio finalmente conhecer a mina adquirida por

sua empresa. A cidadezinha ficou agitada pelo

acontecimento. Escolares foram desde muito

cedo colocados alinhados ao sol junto à pequena

banda musical convocada para a recepção no

pequeno aeroporto. Sol inclemente, calor

insuportável, amenizado apenas pelo uso dos

bonés amarelo-vermelho com emblema da MKR-

Mineração King Rosso distribuídos às crianças, e

mais uma garrafinha plástica com suco vermelho

gelado. . Meia hora antes do horário previsto

para a chegada já se encontram no local, além

dos escolares e dos componentes da banda, o

prefeito, o padre, o tenente, chefe do

policiamento na cidade, três pastores

evangélicos e quatro vereadores do partido

situacionista. A diretora do grupo escolar e mais

duas professoras ficam também ao sol cuidando

das barulhentas crianças que em algazarra

acham tudo muito divertido. Um pouco afastados

das autoridades municipais e do gerente-chefe

da mina, alguns funcionários menos graduados

Adriles Ulhoa Filho34

Page 35: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

da MKR marcam presença engrossando o público

para a recepção. Foram convocados pela chefia e

dispensados do trabalho por algumas horas.

Tudo perfeito! O gerente-chefe sorri para todos e

confere todo momento um ponto no horizonte

aéreo por onde deve chegar o helicóptero do rei.

Dois luxuosos automóveis haviam chegado a

cidade no dia anterior, trazendo da capital alguns

membros menos graduados da diretoria e alguns

seguranças.

Já é de quarenta minutos o atraso da

chegada prevista para as dez e trinta. Mesmo as

autoridades protegidas do sol sob o teto de zinco

do pequeno hangar transformado em saguão de

recepção, suam sufocadas nos seus ternos com

cheiro de naftalina e gravatas escuras. Olhe lá,

estão chegando! Por fim, sobre a pequena serra

que emoldura a cidade aparece o pássaro de

ferro, raro por aquelas bandas, trazendo em seu

bojo a importante visita. Alguns fogos espocam e

o romper de um dobrado de boas vindas

executado pela banda euterpe saúdam os

visitantes. Os colegiais agitam as bandeirolas

coloridas; alguns se assustam com o barulho, o

vento e a poeira que levanta da pista sem asfalto

pelo possante helicóptero. Olhos arregalados e

brilhantes de crianças curiosas. Adiantam-se

Adriles Ulhoa Filho 35

Page 36: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

autoridades para cumprimentos e apresentações,

curvaturas de dorsos e até beija-mão da esposa

do rei, Miss Scott, que sorridente não entende

nada do que falam os nativos. Responde sempre

prauzer e muuto obrigadô! Simpática e

perfumada, a jovem esposa do magnata até

parece ser sua filha. Sorri o tempo todo.

A caravana se forma com o Fiat 147 do

chefe de policiamento de batedor, dirigindo

devagar e com muito cuidado para não levantar

poeira. Seguem os carros do prefeito com os

ilustres visitantes, os diretores da empresa com

as bagagens e os seguranças. Quatro outros

carros com as autoridades civis, militares e

eclesiásticas e, por último, o velho ônibus escolar

amarelo doado pelo governo canadense, como se

lê em uma de suas laterais, levando os

estudantes em grande algazarra. A banda

euterpe ficou por ali mesmo no campo de

aviação. Depois de entoar mais alguns dobrados

se dispersou, carregando cada músico o seu

instrumento para casa.

Adriles Ulhoa Filho36

Page 37: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

A festa

À noite, no Social Clube, aconteceu o jantar

e baile oferecido pela cidade aos ilustres

visitantes. Seletos membros da sociedade e

autoridades tiveram direito de participar e

degustar os saborosos pratos da culinária

mineira e goiana às custa do erário público

municipal. Vinhos portugueses de boa qualidade,

discretas cervejas e água mineral. Os visitantes

não tomam da água da cidade, temerosos da sua

qualidade. Bebem somente águas minerais de

Caxambu ou São Lourenço, cujas garrafas são

abertas somente na hora de servir.

Fazem enorme sucesso o goiano peixe na

telha e as sobremesas de doces de mamão

lascado, manga verde e de laranja da terra.

Mister Scott e sua jovem esposa sorriem o tempo

todo.

Na visita que fez à tarde a mina,

acompanhado do prefeito e de outras

autoridades, mister Law foi informado dos

detalhes da mina, sobre a história da cidade e

das reservas minerais da região. O que conversa

em inglês com o gerente-chefe, quando

interessa, é traduzido às autoridades. Para a

compreensão de Mister Scott foi traduzida as

Adriles Ulhoa Filho 37

Page 38: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

palavras escritas em português nas faixas de

saudação pela cidade. Música suave de aparelho

eletrônico durante o jantar e, mais tarde, música

dançante executada por um conjunto local. No

final da noite o vermelho e suado rei se mistura à

plebe e dança de modo desajeitado com a sua

rainha e com algumas alegres damas da

sociedade. Arrisca até remexer as cadeiras

dançando um forró executado pelo conjunto com

uma bela morena a ele oferecida para a dança.

Uma galhofa!

No dia seguinte a Praça da Matriz ainda

está no silêncio de uma manhã de domingo. O

barulho que se ouve é de um garoto com um

cestinho enfiado no braço a apregoar de porta

em porta o bolo de domingo, e o repicar do sino

da Matriz convocando fieis à missa.

Pardal, após mais uma noite mal dormida

pelo calor e pelo barulho do Social, comenta com

seu amigo Zé Pindoba:

- Zé, pra onde estamos indo, Zé! A farra

aqui no Social foi grande, pois até uma meia hora

atrás tinha gente saindo cambaleando daqui.

Muitos, só pela boca-livre e para puxar-saco de

um grupo de gringos que aqui vêm nos explorar.

Adriles Ulhoa Filho38

Page 39: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

E tudo, tudo pago com o nosso rico dinheirinho,

Zé!

- Quem é gringo, Pardal? Quem deu

dinheiro? Você deu? A mim não pediram dinheiro

algum para esse jantar!

- Você não sabe mesmo é de nada, hein

cara! Um alienado é o que você é. Santa

ignorância essa sua! Você deu sim, seu burro. Ou

por acaso não paga impostos?

- Ih! Você já amanhece azedo. Vá rezar ali

na igreja pra essa sua santa. Essa sua Santa

Ignó, vai!

- Ah! Deixa pra lá! Você é mais um daqueles

que custa compreender as coisas. Daqueles que

acham bonito uma pracinha singela com várias

placas informando: esta praça foi restaurada

pela MKR em parceria com a Prefeitura

Municipal. Acha mais importante o patrocínio de

um carnaval temporão, de um show sertanejo

que enche praças de bêbados inconseqüentes, de

depredadores eventuais, do que de uma escola.

Grande dádiva! Esses gringos são sim uns

grandes filhos da pauta, Zé! Como pagam alguns

impostos e distribuírem migalhas, iludem

pessoas e acham que podem tudo. E nós, bestas,

concordamos.

Adriles Ulhoa Filho 39

Page 40: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

- Ô louco! Onde você tomou dessa, Pardal?

Acordou com a macaca?

- Ah! Você ainda não percebeu. Vai demorar

entender o que vai sobrar depois da festa!

- Mas a festa não foi de ontem pra hoje? Já

não acabou?

- Desisto. Vou dar uma caminhada

enquanto posso; até logo!

Adriles Ulhoa Filho40

Page 41: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

5

A revolta dos preás e pardais

O triste fim de Pardal.

Pardal passou dias horríveis depois das

frustradas tentativas de conseguir apoio de

autoridades e pessoas para as suas reclamações

contra a MKR.

Com quase todos que conversava pareciam

contentes e satisfeitos com a grande empresa

que a cidade abrigava. Ela dá emprego a muita

gente!

Não percebiam que a maioria dos técnicos e

engenheiros veio de outras cidades. Daqui,

apenas uns poucos operários sem formação

especializada.

Será que mais ninguém vai entender a fria

que estamos entrando? Pensava em sua solidão,

nos seus delírios quixotescos. Será que nem as

almas penadas, que a Negra Maria dizia vagarem

pelo morro, não vão se levantar? Ou estarão

planejando vingança maior aos ambiciosos

forasteiros e àqueles que se vendem e os

seguem por vinte dinheiros?

Adriles Ulhoa Filho 41

Page 42: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Sentia cansado pelas noites mal dormidas e

pela dificuldade que vinha ultimamente

encontrando para respirar. Uma espécie de

asma, da qual só sentia alívio pelo uso de uma

bombinha com um produto para aspergir na

garganta, que passou a carregar consigo por

recomendação de um farmacêutico seu amigo.

Poucos colegas do armazém onde

trabalhava ainda davam atenção à sua conversa.

Pensou estar chateando os colegas e por isso, se

trancou. Noites e noites sozinho, já que não

tinha irmãos e os únicos parentes que lhe

restavam eram os dois tios que moravam e

trabalhavam como bóias-frias em fazendas da

região.

Em mais uma noite quente, febril e com a

respiração ofegante, Pardal sonhou:

De cima de alta pedra que restou, qual um

totem, no centro do morro destruído, Pardal e

Chiquinho Preá comandam o ataque. Pássaros e

preás aparecem de todos os lados e devoram

tudo. Dezenas, centenas, milhares, bilhões de

preás e pardais fazem tremer o que resta do

antigo morro.

Os primeiros invasores foram dois preás,

que mesmo perseguidos por dois vigilantes de

Adriles Ulhoa Filho42

Page 43: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

fardas vermelho-amarelo que tentaram abatê-los

para mais um tira-gosto, se evadiram. Depois, os

vigilantes começaram a sorrir ao verem a

enorme quantidade deles e de pardais

sobrevoando a mina pousando nos arredores.

Roedores começaram então a varar cercas e

portões.

Assustados, ligaram para o escritório do

gerente da mina.

- Preás? Pardais? Mas que história é essa?

Presta atenção, vocês não estão aí para

brincadeira, certo? Pleck.

- Ele desligou.

- Acho melhor darmos uns tiros para o alto

e cairmos fora...

E cada vez era maior o número dos

invasores roendo tudo que não fosse pedra.

Máquinas, caminhões, esteiras, canais, dutos e

bombas d’água, tudo sendo devorado como se

fossem migalhas. As migalhas distribuídas, as

mentes e consciências compradas pela MKR,

tudo sendo consumido numa voracidade jamais

vista.

Sede, muita sede de esqueléticas figuras,

que a água borbulhante e negra não sacia. E as

negras rindo!

Adriles Ulhoa Filho 43

Page 44: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Togados, engravatados, rezadores e

políticos correm sem direção. E os negros rindo!

Vento forte arrasta por fim tudo para a

escuridão. Pessoas, aves e animais e um

tremendo estrondo se ouve. Um big-bang que

fará renascer de novo o morro.

Chiquinho gargalhava de cima da pedra.

Anh!

Acordou mais uma vez ensopado pelo suor

da febre bastante alta e dirigiu-se ao chuveiro.

Na madrugada, tremendo e batendo queixo

após o frio banho, se armou de velha bacia que

dizia a si mesmo ser uma bateia, atravessou a

cidade em direção a mina. Pela portaria principal

não poderia entrar, por isso contornou a fralda

do que restava do morro, e atravessando

quintais vazios já pertencentes à MKR, alcançou

a área de dejetos onde numa valeta profunda

escorria em direção ao lago negro um líquido

grosso semi-coberto por fumaça amarela que

exalava forte cheiro ácido.

- Pare! Advertiu um vigilante armado de

uma escopeta.

Continuou andando e depois correndo com

a velha bacia às mãos.

Adriles Ulhoa Filho44

Page 45: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

- Pare! Repetiu o vigilante, quando ele já

alcançava o final da valeta que terminava em um

sumidouro que levava ao lago.

Um tiro, e o seu corpo rolou pelas margens

da valeta desaparecendo no sumidouro.

Mais uma alma foi se juntar no morro às

almas penadas de muitos escravos, de muitos

sonhadores e também as de Chiquinho Preá e a

de dona Maria Tortuga, na esperança de um dia

poderem renascer em um mundo mais justo e

fraterno.

Fim

Adriles Ulhoa Filho 45

Page 46: A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almasserrano.neves.nom.br/dowloads/king_rosso.pdf · Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia

A Mina do Morro das Almas

Publicado por

INSTITUTO SERRANO NEVES

www.serrano.neves.nom.br

Edição

Adriles Ulhoa Filho46