a metodologia qualitativa

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Anotações sobre a metodologia qualitativa: um ensaio crítico José Aderivaldo S. da Nóbrega 1 Resumo: Este trabalho se constitui em um exercício de percepção da contribuição da pesquisa qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo, no que se refere à sua flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo. Enfatiza-se operações necessárias ao desenvolvimento da pesquisa qualitativa e faz-se uma breve resenha das diversas técnicas que podem ser aplicadas em uma metodologia qualitativa. A utilização da perspectiva qualitativa não inviabiliza a utilização de procedimentos quantitativos, mas a opção por uma ou outra depende da sensibilidade e percepção do pesquisador. Palavras chave: metodologia qualitativa, técnicas, pesquisa Abstract Este trabalho se constitui em um exercício de percepção da contribuição da pesquisa qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo, no que se refere à sua flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo. Enfatiza-se operações necessárias ao desenvolvimento da pesquisa qualitativa e faz-se uma breve resenha das diversas técnicas que podem ser aplicadas em uma metodologia qualitativa. A utilização da perspectiva qualitativa não 1 Aluno de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFCG. 1

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Page 1: A metodologia qualitativa

Anotações sobre a metodologia qualitativa: um ensaio crítico

José Aderivaldo S. da Nóbrega1

Resumo: Este trabalho se constitui em um exercício de percepção da contribuição da

pesquisa qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo, no que se refere à sua

flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo. Enfatiza-se operações

necessárias ao desenvolvimento da pesquisa qualitativa e faz-se uma breve resenha das

diversas técnicas que podem ser aplicadas em uma metodologia qualitativa. A utilização da

perspectiva qualitativa não inviabiliza a utilização de procedimentos quantitativos, mas a

opção por uma ou outra depende da sensibilidade e percepção do pesquisador.

Palavras chave: metodologia qualitativa, técnicas, pesquisa

Abstract Este trabalho se constitui em um exercício de percepção da contribuição da

pesquisa qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo, no que se refere à sua

flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo. Enfatiza-se operações

necessárias ao desenvolvimento da pesquisa qualitativa e faz-se uma breve resenha das

diversas técnicas que podem ser aplicadas em uma metodologia qualitativa. A utilização da

perspectiva qualitativa não inviabiliza a utilização de procedimentos quantitativos, mas a

opção por uma ou outra depende da sensibilidade e percepção do pesquisador.

Key words metodologia qualitativa, técnicas, pesquisa

Introdução

A pesquisa qualitativa se desenvolve com muito vigor, sobretudo, a partir dos anos

1970 quando diversas tradições e movimentos encontram espaço para sua produção e

difusão. Na base das tradições da pesquisa qualitativa está o reconhecimento de que o

objeto de pesquisa das ciências sociais tem uma especificidade que exige formas também

específicas de abordá-lo. Trata-se de um objeto de estudo que é da mesma natureza do

1 Aluno de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFCG.

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pesquisador e que, portanto, dialoga com ele, que é capaz de elaborar uma performance,

que no processo de interação com as pessoas produz significados e os partilha. Trata-se em

fim de um objeto de estudo que é complexo por estar em constante processo de mudança.

Observa-se a existência de muitos textos reivindicando para si a condição de

trabalhos de perspectiva qualitativa que trazem em seu escopo diversas técnicas de

pesquisa: entrevista, etnografia, história de vida, observação participante etc. Alguns destes

trabalham enfatizam a capacidade da pesquisa qualitativa suscitar novas reflexões sobre

questões que aparecem como dados estatísticos gerais. Além disso, a pesquisa qualitativa

marca um tipo de relação de pesquisa que favorece a intervenção nas problemáticas

sociais.

Este trabalho se constitui em um exercício de perceber a contribuição da pesquisa

qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo no que se refere à sua

flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo.

Na primeira parte destacaremos a relação entre pesquisador e objeto de pesquisa do

desenvolvimento da metodologia qualitativa. A maneira como esta relação se desenvolve

favorece um contato mais profundo e mais complexo do que a pesquisa quantitativa na

qual o estabelecimento de classes coloca o trabalho sob limitação. Na segunda seção do

trabalho faremos uma discussão em primeiro lugar sobre as condições de

operacionalização da pesquisa (definição do objeto, operações preliminares etc) e em

segundo lugar apresentaremos as características de algumas técnicas. Na terceira seção

apresentaremos alguns questionamentos em relação às técnicas qualitativas. Com isso

encerraremos com algumas considerações gerais sobre o tema.

O ajuste do método ao objeto

Não existe uma superioridade entre ciências naturais e sociais, cada qual, possui sua

importância, mesmo quando as duas estão tratando de seres humanos. É possível,

entretanto, e essa questão há muito tempo já discutida, explicitar as diferenciações entre

um modelo e outro de prática da ciência. A diferenciação que nos interessa refere-se às

características do objeto de estudo e a relação que o pesquisador instaura sobre elas.

De modo geral, as ciências naturais lidam com fenômenos e processos de uma

categoria diferenciada em relação ao pesquisador. São de outro gênero. Roberto Da Matta,

faz um interessante exercício de distinção entre esses dois campos, enfatizando que, no

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caso das ciências sociais o objeto tem relação com o pesquisador, justamente porque são

fatos produzidos pelas pessoas, inclusive, em boa parte dos casos, por pessoas do mesmo

universo social do pesquisador. Nesse caso, é um objeto que dialoga, é um objeto que pode

questionar aquilo que se diz sobre ele. Apresentamos aqui esta idéia básica com objetivo

de afirmar que, em ciências sociais, pesquisar é criar relações sociais com uma finalidade

específica que deve ser esclarecida e difundida: investigar um determinado fenômeno que

envolve os grupos sociais. O pesquisador acaba incursando no meio social para apreender

os sentidos, verificar a constituição das relações sociais.

Chegar a um estágio de conhecimento dessas relações, desse universo de sentidos,

valores, práticas sociais, não é uma tarefa simples, mas é um processo que exige

instrumentos adequados e um compromisso pela clareza da sua condição de pesquisador

que traz consigo da responsabilidade pela lisura daquilo que ele está colocando como

resultado de sua pesquisa ou como teoria. A questão primeira é: criar relações sociais no

seu processo de pesquisa, mas não deixar que elas o impeçam de olhar criticamente os

acontecimentos. Laplantine tratando da pesquisa antropológica, especificamente sobre a

observação, afirma que:

“Se for possível, e mesmo necessário, distinguir aquele que observa daquele que é observado, parece-me, no entanto, impensável dissociá-los. Nós nã somos testemunhas objetivas, observando objetos, mas sujeitos observadores de outros sujeitos no seio de uma experiência na qual o observador é ele mesmo observado” (LAPANTINE, 2004, 24)

A metodologia da pesquisa é um meio, pelo menos sob o nosso ponto de vista,

através do qual o árduo caminho de produção do conhecimento é traçado levando o

pesquisador a estabelecer parâmetros para lidar com as diversas situações do campo de

modo a garantir a cientificidade de seu trabalho e a especificidade do seu discurso frente

aos demais. Vale lembrar que nós produzimos conhecimento sobre questões que as pessoas

geralmente já tem alguma opinião formada, ainda que esta opinião seja de senso comum,

arraigada em valores e preconceitos.

Em face da especificidade do tipo de relação que temos com o objeto de pesquisa,

tem-se uma questão muito instigante: quais as técnicas de pesquisa que podemos lançar

mão com vistas à produção do conhecimento? Duas grandes tradições se apresentam como

caminho metodológico: a primeira faz recurso a técnicas quantitativa, sobretudo, no que se

refere a arrojados modelos estatísticos; a segunda, que ganha força cada vez mais, recorre à

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técnicas qualitativas. Isso pode nos induzir a crer que esta seja uma antinomia, isto é, que

opção desta inviabiliza a utilização daquela na mesma pesquisa.

Somos da opinião de que técnicas qualitativas e quantitativas não são

inconciliáveis, ao contrário, elas são complementares desde que a pessoa que opte pela

utilização das mesmas tenha clareza das limitações de cada uma dessas alternativas e,

sobretudo, saibam adequar estas técnicas ao seu objeto de estudo. O processo de pesquisa

precisa de um controle exercido pelo pesquisador, conforme pondera Günther (2006): “Os

métodos são sujeitos a um controle contínuo (...) os passos da pesquisa precisam ser

explicitados, ser documentados e seguir regras fundamentadas” ( Günther, 2006:202). Esta

postura desconstrói o argumento de heranças positivistas segundo o qual o procedimento

estatístico e generalizante é que era o paradigma da ciência. Assim sendo, a perspectiva

qualitativa contribui tanto quanto a quantitativa desde que seja desenvolvida sob regras

fundamentadas.

A qualidade dos dados obtidos depende de um ajuste da metodologia ao objeto de

pesquisa. Günter pondera que ao invés de utilizar instrumentos e procedimentos

padronizados, a pesquisa qualitativa considera cada problema do objeto de uma pesquisa

específica definindo, para este, um conjunto de instrumentos de coleta de dados

específicos.

Este ajuste consiste, portanto, em ponderações que devem ser feitas em relação ao

que se pretende estudar, às características dos informantes, sobretudo, no que se refere ao

seu meio social e ao conjunto de forças que nele se estabelecem e que podem facilitar ou

dificultar a produção de dados para análise. A consequência dessas afirmações é que não se

pode criar uma marginalização da metodologia qualitativa e nem se pode criar uma escala

na qual as técnicas quantitativas sejam as mais importantes e reconhecidas como melhores

formas de produção dos dados. Somos da opinião de que há situações nas quais, por

exemplo, técnicas estatísticas podem ser insuficientes para lidar com um determinado

universo. Estamos, para exemplificar, nos referindo à descrição de situações de descrição

do cotidiano de determinados grupos sociais. Consideramos que a aplicação de

questionários, nesta situação particular, deixaria escapar muitos elementos por ser um

modelo padronizador e que não tem abertura para reformulações, adequações.

A metodologia qualitativa, portanto, pode contribuir significativamente ao

desenvolvimento de pesquisas sociológicas. Em que consiste essa contribuição é que

passamos a destacar. Segundo Groulx (2008), a pesquisa qualitativa “encontra a

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heterogeneidade das situações, a diversidade das trajetórias e das experiências, desvenda

processos múltiplos de exclusão social e estratégias plurais de sobrevivência.” Ainda,

segundo o autor, a pesquisa qualitativa rompe com a unidade artificial da categorização

artificial estatística para dar lugar a uma diversidade de situações que só podem ser

explicitadas pela percepção holística dos problemas e das questões.

Groulx destaca a importância e a contribuição deste tipo de pesquisa a partir da

analise de estudos sobre a pobreza. Para este autor, os métodos estatísticos de

categorização da pobreza são homogeneizadores e trazem a limitação de não reconhecer a

diversidade de situações. Uma nova abordagem para o conceito de pobreza é estabelecida

deslocada das categorias institucionais e administrativas para situações ou modos de vida

revelados pela aplicação de um paradigma interpretativo, compreensivo e relativista no

qual o recurso à observação participante teve papel fundamental. Nesse caso particular

observa-se que a adoção de uma perspectiva qualitativa possibilitou o conhecimento de

uma diversidade de situações e, mais que isso, possibilitou não só constatar o perfil dos

pobres, mas entender os mecanismos que levam à situação de pobreza. Isso leva a uma

dimensão fundamental da pesquisa qualitativa, segundo Groulx, que é criar as bases para o

entendimento e a intervenção nas problemáticas sociais. Diz ele, “a metodologia

qualitativa não se reduz mais aqui, a uma simples técnica de coleta de dados, ela

desempenha um papel na renovação da problemática da pobreza, tal como o conjunto das

problemáticas sociais”.

Em um sentido similar, Bourdieu critica a tentativa de definir pela quantificação

aquilo que é a juventude. Diz ele:

“Quando digo jovens/velhos tomo a relação na sua forma mais vazia. É-se sempre velho ou jovem para alguém. É por isso que os cortes em classes de idade, ou em geração, são sempre variáveis e são uma parada e jogo de manipulação (...) o que quero lembrar é muito simplesmente que a juventude e a velhice não são dadas, mas construídas socialmente na luta entre jovens e velhos.” (Bourdieu, 2003: 152).

Está colocado de modo bastante claro que a metodologia qualitativa possibilita ir

além da classe estatística vazia, como diz Bourdieu, permitindo ir em busca de desvelar as

diversas realidades. O que defendem os qualitativistas, diz Haggette, é que “o método

[qualitativo] fornece uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no

pressuposto maior da relevância do aspecto subjetivo da ação social face a configuração

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das estruturas societais.”(HAGGETTE, 1997,63). O que se destaca dessa passagem é,

portanto, a preferência pelas especificidades de um fenômeno interessando-se mais pelo

aprofundamento das características desse fenômeno.

Passamos agora a pensar sobre a operacionalização da pesquisa enfatizando

algumas técnicas utilizadas e suas características básicas.

A operacionalização da pesquisa qualitativa

Neste aspecto da operacionalização da pesquisa Günther promove uma interessante

discussão sobre as etapas do processo de pesquisa, as quais são sintetizadas como a coleta

dos dados que, em termos de uma abordagem qualitativa, significa recorrer a técnicas

como entrevista (seja ela estrutura, semi estruturada, centrada num problema etc.);

observação (seja simples ou participante), fotografia, etnografia, análise de filmes etc.

depois da coleta dos dados vem a transcrição que envolve a preocupação de se estabelecer

como os discursos, dados, colhidos nas entrevistas e observações serão colocados no texto;

na sequencia vem a análise dos dados, e por fim o texto aborda o que é uma pesquisa de

qualidade, fazendo referência a observação dos aspectos de objetividade, fidedignidade,

normatização, economia de esforço, etc.

Uma das operações mais complexas no processo de pesquisa que antecedem,

inclusive, as técnicas é o delineamento. Trata-se de uma fase da pesquisa que é, inclusive,

comum tanto às abordagens quantitativas como às qualitativas. O delineamento, segundo

DESLAURIERS e KÉRISIT, é a apresentação da pesquisa e o modo como o pesquisador

procederá. Envolve, diz os autores, o aspecto dos recursos metodológicos e também a

problemática que gera a pesquisa. A definição do objeto é uma operação que envolve o

conhecimento da literatura especializada, envolve a detecção de faltas ou carências na

temática e, além disso, a trajetória do pesquisador.

Alguns autores enfatizam mais a trajetória do pesquisador para demonstrar a sua

intencionalidade e envolvimento. Contudo, o processo é complexo e não pode

desconsiderar a dimensão da literatura sobre o tema. DESLAURIERS e KÉRISIT

defendem a importância de saber o que os especialistas que estudam a mesma questão têm

dito sobre o tema, contudo, na perspectiva qualitativa, a literatura preexistente é sempre

posta de maneira crítica.

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A operação segundo a qual são definidos os postulados da pesquisa é considerada

apenas como referência inicial e, o desdobramento dos trabalhos, redudará certamente em

reformulações, ampliações, etc de determinados aspectos. Assim sendo, a elaboração da

teoria é um processo contínuo, o que significa que o objeto vai sempre se especificando.

Chegamos a uma questão complexa em abordagens qualitativas: a definição do seu

universo de pesquisa. A amostragem é um procedimento que tem maior visibilidade nas

pesquisas quantitativas, contudo, em perspectivas qualitativas essa operação também

ocorre sendo que com a característica de ser não probabilística.

A pesquisa qualitativa, como já dito no início desta seção, traz muitas alternativas

de técnicas a serem utilizadas para produção dos dados. Dentre essas técnicas, a entrevista

é a mais tradicional de todas, contudo, o fato de ela ser recorrente entre os pesquisadores

não elimina a necessidade de cuidados durante o seu desenvolvimento. O momento da

entrevista não deve constituir um mero ato de coletar dados mediante perguntas

verbalizadas pelo entrevistador, mas deve ser um momento de interação entre os dois

atores envolvidos, há construir “um contato contínuo, a criação de referências que o

aproximem mais com o seu interlocutor, de modo que se construa uma postura cientifica”

(BOURDIEU et all, 1999). Poupart considera que a pesquisa é uma técnica que permite

apreender a experiência dos outros e, além disso, é um instrumento que permite elucidar

suas condutas uma vez que a entrevista seria encarada como a apresentação dos atores sob

o seu próprio ponto de vista.

A entrevista sempre foi considerada como um meio para levar uma pessoa a dizer o

que pensa, afirma Poupart, mas este procedimento exige alguns princípios e estratégias

para se desenvolver. O entrevistado precisa se sentir seguro para colaborar e, nestes

termos, obter a colaboração do entrevistado é um complexo processo, que envolve,

segundo (Menezes et all, 2004) a negociação de identidades que darão maior confiança ao

entrevistado de modo que ele tome a iniciativa e se volva com a entrevista.

Entrevistas, estruturadas ou semi estruturadas, são apenas um dos exemplos de

técnicas que uma perspectiva qualitativa pode desenvolver. O Estudo de caso é outro

interessante instrumento que consiste na tomada de um caso individual para interpretar um

fenômeno mais amplo. A análise de documentos pode ser outro instrumento interessante

para compor uma interpretação. A utilização de documentos pode ser feita tanto pela

perspectiva quantitativa como pela qualitativa e os materiais vão de recortes de jornais a

documentos oficiais.

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A observação é um importantíssimo recurso que se desenvolve a partir do contato

com seus interlocutores na pesquisa para observar, de acordo com um esquema

preestabelecido elementos do cotidiano que ajudem a compor um quadro analítico. Não se

trata, portanto, de uma atividade desenvolvida sem nenhum preparo, mas, neste caso, é

fundamental a orientação teórica como forma de observação dos fatos cotidianos.

Esta observação pode ser também do tipo participante. Ela continua sendo um

mergulho do pesquisador no mundo do outro, mas esse mergulho é comprometido em fazer

com que a produção científica possibilite uma intervenção na própria problemática. Esta

preocupação em distanciar-se de si para melhor compreender o mundo do outro remonta à

clássica Antropologia tomando como referencia importante Malinowiski. Este propunha

que o pesquisador interagisse com os povos pesquisados de modo a constituir-se um deles.

Brandão propõe uma perspectiva diferente para este recurso:

“quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Quando o outro me transforme em um compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe da sua história. (...) então a observação participante, a entrevista livre e a história de vida se impõe. O pesquisador descobre com espanto que a maneira espontânea de um entrevistado falar sobre qualquer assunto é através de sua pessoa” (BRANDÃO,1984:13-14).

Vimos, portanto, que seja qual for a técnica - seja observação, entrevista ou história

oral – o seu desenvolvimento implica uma relação social que não deve ser instrumental.

Ela parte, segundo Demo (1984) de um compromisso político tão importante quanto o

próprio compromisso com pesquisa. Isto, significa, continua o autor, “a repulsa contra a

manipulação das comunidades, buscando produzir o saber através da análise coletiva e

mantendo o controle nas suas mãos”. (DEMO, 1984:122)

Estes não são, evidentemente, os únicos instrumentos de pesquisa qualitativa.

Ainda faltaria falar sobre grupo focal, etnografia, história oral entre outras. Esta última

ganha cada vez mais espaço entre os pesquisadores por ser um meio de lidar com

conhecimentos que não estão mais disponíveis em outras fontes. Trata-se, portanto de

reconstruir a partir das trajetórias das pessoas acontecimentos históricos, processos, formas

de organização, enfim, produzir material para analisar fenômenos sociais.

Um olhar crítico sobre a pesquisa qualitativa

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A pesquisa qualitativa suscita um caloroso debate em torno da questão do

engajamento do pesquisador que gera o risco de filtrar os argumentos sob um único ponto

de vista. O risco, em suma, é de reduzir o trabalho de pesquisa a um aspecto instrumental

cujo objetivo é defender uma posição. Groulx afirma que o olhar particular voltado para a

experiência dos sujeitos não pode substituir o trabalho de elaboração dos conceitos e

interpretação dos dados. Para Hammersley apud Groulx (2008) o procedimento qualitativo

não é superior em cientificidade ao procedimento qualitativo. Então a pesquisa qualitativa

encontra como limites o perigo se tornar um discurso truncado, instrumental, de criar uma

relação de cumplicidade entre pesquisador e pesquisado que pode comprometer a

apresentação de determinados elementos importantes para explicitação do fenômeno.

Em relação à técnica específica da entrevista, o risco é o do direcionamento das

respostas do entrevistado mediante o tipo de pergunta. Além disso, o procedimento que

antecede a realização da entrevista também pode resultar em prejuízos nos dados. A

observação, seja ela participante ou direta, pode alterar o cotidiano das pessoas com quem

se pretende interagir na pesquisa, de modo que as análises podem sair deturpadas. Além

disso, a observação sem nenhuma orientação teórica antecedente pode redundar na perda

da sensibilidade quanto a determinados aspectos que seriam importantes à pesquisa.

Todas essas questões despertam no pesquisador a atenção sob pena de ter o seu

trabalho dificultado. O pesquisador, seja qual a postura que assuma no processo de

pesquisa, deve ter controle sob as técnicas que aplica, sob a maneira como se porta no

processo de interação no trabalho de campo.

Considerações finais

A identificação das limitações do tópico anterior não diminuem a importância que

as técnicas de pesquisa qualitativas tem para o trabalho do Sociólogo. Paulo Oliveira

chama a atenção para o fato de que não é meramente aplicando as técnicas que se pode

constituir-se um pesquisador:

“O cultivo da capacidade imaginadora separa o técnico do pesquisador; somente a engenhosidade saberá promover a associação de coisas, que não poderíamos sequer intentar um dia se compor num dado cenário social. Significa aprimorar a percepção, refinar a sensibilidade, ampliar horizontes de compreensão [...]” (pág 19)

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A percepção e a sensibilidade do pesquisador completa e melhora as condições de

aplicação das técnicas de pesquisa a que fizemos referência durante todo este trabalho. Isto

se aproxima da idéia de artesanato intelectual a que faz referência Wright Mills.

Certamente que a opção de determinadas técnicas de pesquisa se faz não só pelo domínio

da técnica, mas pela clareza do objeto de estudo que tem que ser desvelado e pelo ambiente

social onde se encontram os interlocutores da pesquisa. Neste sentido, a maioria dos textos

a que fizemos referência neste trabalho possibilitam afirmar, em primeiro lugar, que a

disputa pela afirmação de maior ou menor cientificidade das técnicas qualitativas e das

quantitativas não é muito frutífero ao desenvolvimento da pesquisa. A questão, ao que nos

consta, é saber os alcances e os limites de cada uma dessas técnicas.

As técnicas qualitativas, entretanto, ao que pudemos compreender, possibilitam

uma interação maior do pesquisador com o pesquisado o que, por conseguinte, favorece

um conhecimento mais complexo da diversidade das experiências, das formas de vida, dos

sentidos etc. Este não é um mérito exclusivo da entrevista, não obstante, ela continue sendo

uma excelente técnica indispensável ao trabalho de campo. Contudo, outras técnicas a

exemplo da observação e da etnografia podem produzir resultados muito significativos,

porquanto também sejam formas de interação com o cotidiano das pessoas que fazem parte

da pesquisa. O desenvolvimento dessas técnicas exige um controle sobre elas a fim de

observar até que ponto estão conseguindo atingir os objetivos e quando os dados que elas

produzem estão saturados. Essa flexibilidade e facilidade de redirecionar a aplicação das

técnicas constitui, sob o nosso ponto de vista, uma vantagem das perspectivas qualitativas

frente as quantitativas.

Dependendo dos objetivos da pesquisa, pode-se lançar mão tanto de técnicas

qualitativas quanto quantitativas de modo que elas se complementem e dêem conta de

elementos distintos, mas que sejam ambos relevantes para explicação sociológica.

Portanto, o refinamento da sensibilidade e da percepção do pesquisador, associado ao

domínio técnico e controle dos instrumentos de pesquisa, instauram uma espécie de “senso

de oportunidade” para aplicação um instrumento ou outro de análise.

Compreendemos que a pesquisa é, qualquer que seja o seu enfoque, um complexo

processo que não começa nem termina na coleta de dados. Conforme nos apresentaram

alguns autores (DESLAURIERS e KÉRISIT 2008; GÜNTHER, 2006) que traz

preocupação desde o delineamento da pesquisa (construção do objeto), passando pela

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revisão de literatura e definição de técnicas da pesquisa até a análise e divulgação dos

resultados.

Tivemos o objetivo, neste trabalho, não de esgotar todas as fases deste processo,

mas enfatizar as potencialidades da pesquisa qualitativas, sobretudo, no que se refere a sua

capacidade de adequação ao objeto de estudo e sua possiblidade de controle e ajustamento

durante o seu desenvolvimento.

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