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A mediação enquanto instrumento de emancipação da cidadania e de democratização da justiça e do direito La médiation comme instrument d’émancipation de la citoyenneté et democratisation de la justice et du droit Tássio Bezerra Resumo O presente trabalho analisa como a dupla crise da atuação do poder judiciário no Estado Democrático de Direito, a crise estrutural do sistema judicial e a cri- se do paradigma dominante do conhecimento, a ciência, conforme apresentadas por Santos 1 , abrem as possibilidades de novas formas de regulação dos conflitos. Nesta perspectiva, busca-se apresentar a mediação, conforme proposta apresentada Warat 2 , como um instrumento transformador das relações sociais, na medida em que possibilita o surgimento de novos espaços democráticos de reafirmação de uma cidadania ativa e elaboração de um direito emancipatório que possibilite uma plena democratização do acesso à justiça. Apresenta-se assim uma ponte teórica entre a crise e as percepções de Santos quanto à transição paradigmática e as propostas de Warat de outra subjetividade. Palavras-chave: Mediação; Cidadania; Crise do Judiciário; Pluralismo Jurídico. Résumé Le présent document examine comment la double crise de la performance du pou- voir judiciaire dans un Etat Démocratique de Droit, la crise structurelle du système judiciaire et la crise du paradigme dominant de la connaissance, la science, telle que présentée par Santos, augmenter les possibilités de nouvelles formes de règlement des conflits. Cette perspective, nous cherchons à fournir une proposition de média- tion comme Warat, comme un instrument pour transformer les relations sociales, car elle permet l’émergence de nouveaux espaces démocratiques d’une réaffirmation de la citoyenneté active et le développement de un droit d’émancipation permettant une 1 SANTOS, 2007a. 2 WARAT, 2001.

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  • A mediao enquanto instrumento de emancipao da cidadania e de democratizao da justia e do direito

    La mdiation comme instrument dmancipation de la citoyennet et democratisation de la justice et du droit

    Tssio Bezerra

    Resumo

    O presente trabalho analisa como a dupla crise da atuao do poder judicirio no Estado Democrtico de Direito, a crise estrutural do sistema judicial e a cri-se do paradigma dominante do conhecimento, a cincia, conforme apresentadas por Santos1, abrem as possibilidades de novas formas de regulao dos conflitos. Nesta perspectiva, busca-se apresentar a mediao, conforme proposta apresentada Warat2, como um instrumento transformador das relaes sociais, na medida em que possibilita o surgimento de novos espaos democrticos de reafirmao de uma cidadania ativa e elaborao de um direito emancipatrio que possibilite uma plena democratizao do acesso justia. Apresenta-se assim uma ponte terica entre a crise e as percepes de Santos quanto transio paradigmtica e as propostas de Warat de outra subjetividade.

    Palavras-chave: Mediao; Cidadania; Crise do Judicirio; Pluralismo Jurdico.

    Rsum

    Le prsent document examine comment la double crise de la performance du pou-voir judiciaire dans un Etat Dmocratique de Droit, la crise structurelle du systme judiciaire et la crise du paradigme dominant de la connaissance, la science, telle que prsente par Santos, augmenter les possibilits de nouvelles formes de rglement des conflits. Cette perspective, nous cherchons fournir une proposition de mdia-tion comme Warat, comme un instrument pour transformer les relations sociales, car elle permet lmergence de nouveaux espaces dmocratiques dune raffirmation de la citoyennet active et le dveloppement de un droit dmancipation permettant une

    1 SANTOS, 2007a.2 WARAT, 2001.

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    pleine dmocratisation de laccs la justice. Il est prsent comme un pont thorique entre la crise et les perceptions de Santos combien le changement de paradigme et le propositions de Warat pour une autre subjectivit.

    Mots-cls: Mdiation; Citoyennet; Crise du Judiciaire; Pluralisme Juridique.

    1. Introduo

    O presente trabalho visa, a partir de um curto, porm tortuoso, es-foro terico, discutir as novas possibilidades de resoluo de conflitos que emergem da dupla crise enfrentada pela atividade jurisdicional do Estado, conforme apresentada por Boaventura de Sousa Santos: a crise estrutural do Poder Judicirio e a crise paradigmtica do prprio direito. Debate este que tem contribudo para ampliar a discusso dos mecanismos de suposta regulao social.

    O desgaste da estrutura do judicirio que no consegue atender a demanda popular, seja no campo quantitativo quanto qualitativo, d im-pulso ao surgimento de instrumentos de resoluo de conflitos a margem da estrutura estatal, dentre eles a mediao. Este mecanismo, por sua vez - na perspectiva emancipatria de Luis Alberto Warat tem o poder de, a partir da ressignificao de interesses contrapostos, prover uma maior participao social na administrao da justia, inclusive propiciando o surgimento de maneiras diversificadas e cada vez plurais de apaziguamento social.

    Neste sentido, teremos aqui a pretenso desafio de apresentar a complementaridade das ideias de Boaventura de Sousa Santos e Luis Alberto Warat na propositura de um novo modelo de gesto dos conflitos alicerado numa maior emancipao e autonomia dos indivduos enquan-to coletividade.

    2. O contexto da crise

    O desenvolvimento histrico do Estado Moderno em sua atual feio de Estado Democrtico do Direito levou a um deslocamento do centro de decises do poder legislativo (Estado Liberal) e executivo (Estado Social) para o judicirio (Estado Democrtico de Direito).

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    O judicirio passou a ser o ltimo recurso dos cidados para garantir a efetivao de direitos no realizados pela atuao dos outros poderes, porm previstos na Constituio. Passa a afirmar-se tambm enquanto resistncia contra retrocessos sociais, haja vista que proteje direitos fundamentais do in-divduo quanto a eventual ingerncia legislativa ou executiva.3

    Ao poder judicirio no Estado Democrtico de Direito posto o papel de garantidor da efetividade dos direitos constitucionalmente assegurados e no cumpridos pelo legislativo e executivo, colocando deste modo o direito como mecanismo transformador da sociedade.4

    Por outro lado o retorno de uma lgica neoliberal de mercado e a con-sequente precarizao dos direitos econmicos e sociais tem levando a um grande aumento das demandas do poder judicirio.5

    O deslocamento da legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicirio, esperando-se que este resolva problemas que o sistema po-ltico no consegue resolver, cria um excesso de expectativas que por si s geram enorme frustrao quando no atendidas, levando prpria descrena no papel do direito na construo democrtica.6

    A principal reao do poder judicirio sua prpria crise se instala sobre o lema da celeridade. As reformas so direcionadas sempre em uma ideia de rapidez a privilegiar quase exclusivamente a liquidez e segurana jurdica de interesses econmicos. A terceira onda de acesso justia pro-cessual como prognosticada por Cappelletti7 no est aqui garantida, haja vista que uma justia clere no implica, necessariamente, em uma justia mais cidad. O combate morosidade sistmica do judicirio definida por Santos8 como [...] aquela que decorrente da burocracia, do positivismo e do legalismo perpassa por questes de celeridade, refletindo na verdade a necessidade de uma revoluo democrtica da justia que seja correlata com a prpria democratizao do Estado e da sociedade.

    Quanto ao aspecto econmico do problema a dificultar o acesso jus-tia, podemos constatar a existncia de uma dupla vitimizao das camadas pobres, na medida em que o custo judicial de uma ao, apesar de ser caro de

    3 STRECK, 2001.4 Ibid, 2001.5 SANTOS, 2007b, p. 16.6 Ibid, p. 10, 19.7 CAPPELLETTI, 1992, p. 87-88.8 SANTOS, 2007b, p. 42.

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    um modo geral, proporcionalmente mais alto nas causas de pequeno valor, penalizando os segmentos sociais economicamente mais dbeis.9

    Aos problemas estruturais da atividade judicial soma-se uma crise do prprio paradigma epistemolgico dominante da modernidade que se reflete diretamente no campo do direito.

    O paradigma jurdico vigente, normativista-liberal-individualista, sus-tentado pela atuao de atores em um campo jurdico hermtico s mudan-as da viragem lingustica, entende o direito em sua objetividade tcnica e cientfica que busca ainda em verdades pr-definidas a essncia das coisas. necessrio uma ressignificao da prpria concepo hermenutica do direito, a partir de uma compreenso que possa extrair da constituio e das demais leis as regras e princpios necessrios a efetivao dos direitos.10

    Segundo Boaventura de Sousa Santos11, vivemos hoje um perodo de transio paradigmtica. Um processo de construo de um novo modo de pensar, perceber e interagir com o mundo a partir de um outro paradigma, pelo mesmo intitulado: de um conhecimento prudente para uma vida decen-te. Emerge tal referencial terico das representaes mais inacabadas e abertas da modernidade, sendo elas no campo da regulao a comunidade e no da emancipao a racionalidade esttico-expressiva.12

    No domnio da regulao a racionalidade cognitivo-instrumental colonizou os pilares do mercado e do Estado. O outro princpio, a co-munidade, resistiu a sua cooptao sendo relegada marginalizao e ao esquecimento. Pelo seu prprio afastamento do paradigma cientfico, mos-tra-se hoje mais apta, devido a sua prpria fluidez, ao desenvolvimento de novas formas de regulao. Destacamos aqui duas dimenses do princpio da comunidade, a participao e a solidariedade, visto que mais adiante, ambos os valores, constituiro alicerce terico para um outro mecanismo de regulao e traduo dos conflitos.

    A racionalidade esttico-expressiva representa por sua vez a busca do prazer, da arte, da autonomia e da construo do dilogo enquanto for-ma de conhecimento e emancipao, ao contrrio da lgica performtico--utilitria da cincia.

    Estamos aqui a demonstrar a salutar abertura de uma verdadeira caixa de Pandora, na medida em que no plano terico, buscamos demonstrar a

    9 SANTOS, 2008, p. 168.10 STRECK, 2001, p. 59-61.11 SANTOS, 2007b, p. 74.12 SANTOS, 2007a, p. 74-76.

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    possibilidade de uma inverso paradigmtica na epistemologia ocidental. Se-gundo Boaventura de Sousa Santos:

    Todo o conhecimento implica uma trajectria, uma progresso de um ponto ou estado A, designado por ignorncia, para um ponto ou Estado B, designado por saber. As formas de conhe-cimento distinguem-se pelo modo como caracterizam os dois pontos e a trajectria que conduz de um ao outro.13

    O conhecimento-regulao uma trajetria entre um estado de ig-norncia, o caos, para um estado de saber, a ordem. Por sua vez o conheci-mento-emancipao progride da ignorncia, o colonialismo, para o saber, designado pela solidariedade. A relao dinmica entre as formas de conhe-cimento e a prevalncia da lgica da racionalidade cognitivo-instrumental permitiu o domnio da regulao sobre a emancipao e a recodificao des-ta ltima sobre os termos da primeira. Quanto a esta questo Boaventura de Sousa Santos afirma que:

    Assim, o estado de saber no conhecimento-emancipao pas-sou a estado de ignorncia no conhecimento-regulao (a solidariedade foi recodificada como caos) e, inversamente, a ignorncia no conhecimento-emancipao passou a estado de saber no conhecimento-regulao (o colonialismo foi recodi-ficado como ordem).14

    A dupla face da crise estrutural e paradigmtica propiciou dentro do prprio judicirio o surgimento de uma crtica ao formalismo jurdico seja ele substantivo ou procedimental impulsionando, em uma de suas dire-es, a retomada dos mtodos alternativos de resoluo de conflitos.

    3. Por uma proposta transformadora

    Os mtodos alternativos de resoluo de conflitos so assim defini-dos devido a uma faculdade de escolha, por parte do jurisdicionado, frente jurisdio estatal. Os meios mais comumente utilizados so a concilia-o, a arbitragem e a medio. Apesar da nomenclatura ADR (Alternative Dispute Resolution) ser relativamente nova, surgida por volta da dcada de oitenta do sculo passado nos Estados Unidos, o registro de utilizao de seus mtodos so antiqussimos. Tem-se notcia, apenas a ttulo de exem-plo, de registros de utilizao da arbitragem por volta de 3.000 a.C. na 13 Ibid, p. 78.14 Ibid, p. 79.

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    Babilnia. Deve-se recordar que o monismo jurdico estatal bastante re-cente no mundo ocidental e que a resoluo privada dos conflitos sempre constituiu a regra ao longo da histria.15

    Dito isto, faz-se necessrio ressalvar que o impulso dado aos meios alternativos, em especial a mediao, possibilita no s uma melhor so-luo do ponto de vista procedimental, como tambm material, como afirma Cappelletti:

    Primeiro, h situaes em que a justia conciliatria (ou coexis-tencial) capaz de produzir resultados que, longe de serem de segunda classe so melhores, at qualitativamente, do que os resultados do processo contencioso. A melhor ilustrao mi-nistrada pelos casos em que o conflito no passa de um episdio em relao complexa e permanente; a, a justia conciliatria, ou conforme se lhe poderia chamar a justia reparadora tem a possibilidade de preservar a relao tratando o episdio litigioso antes como perturbao temporria do que como rup-tura definitiva daquela;16

    A partir de agora adentraremos na anlise da mediao, encarando-a em sua perspectiva transformadora dos sujeitos envolvidos no conflito e as possibilidades que abre a uma ressignificao do mesmo e preponde-rncia ativa dos indivduos envolvidos de modo a se tornar uma prtica emancipatria da cidadania e promovedora de autntica democratizao do acesso justia.

    Primeiramente, cumpre conceituar o tipo de mediao de que estamos a falar, segundo Luis Alberto Warat:

    [...] uma forma ecolgica de resoluo dos conflitos sociais e jurdicos; uma forma na qual o intuito de satisfao do dese-jo substitui a aplicao coercitiva e terceirizada de uma sano legal. A mediao uma forma alternativa (com o outro) de resoluo de conflitos jurdicos, sem que exista a preocupao de dividir a justia ou de ajustar o acordo s disposies do direito positivo.17

    A mediao waratiana se diferencia da negociao direta por ser uma autocomposio assistida. Constitui-se em um trabalho de reconstruo sim-

    15 MEDINA, 2004, p. 18-19.16 CAPPELLETTI, 2001, p. 74.17 WARAT, 1998, p. 5.

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    blica do conflito a partir da significao dos sujeitos envolvidos, de modo a dot-los de autonomia para dar-lhe soluo.

    Tem-se por finalidade no o mero acerto de um acordo, e sim um reen-contro com o outro, um resgate do ser humano e a preocupao das implica-es futuras que aquela deciso ir trazer.

    A mediao, neste modelo, busca a ressignificao do conflito, visto que muitas vezes o problema no se encontra no conflito em si, porm no significado que lhe dado.

    Neste contexto, compete ao mediador estabelecer a comunicao entre as partes, ouvir no silncio, buscar nas entrelinhas o significado inte-rior das coisas, enfim, ter a sensibilidade de trazer a realidade do problema tona, em um autntico processo de traduo. Como lembra Boaventura de Sousa Santos:

    Diz-nos o sbio Kierkegaard: A maioria das pessoas so subje-tivas a respeito de si prprias e objectivas algumas vezes ter-rivelmente objectivas a respeito dos outros. O importante ser-se objectivo em relao a si prprio e subjectivo em relao aos outros.18

    Cabe ao mediador buscar intervir enquanto terceiro no conflito de modo que os envolvidos possam ter um outro olhar sobre a desavena, en-xergando-a como espao de reconstruo e aprendizado, de construo de sua autonomia e de um outro direito.

    A linguagem da mediao est longe do linguajar hermtico do direito. Deve ser a lngua dos sentimentos e do amor. A mediao deve andar junto com este, visto ser o amor meio do indivduo poder enxergar seu prprio in-terior e principalmente ao outro. O amor o religamento com a natureza e com os outros.19

    Podemos claramente denotar a dificuldade de grande parte da po-pulao de compreender o mundo jurdico haja vista que apresen-tado como um plano distinto da realidade concreta pelo fato de este conter uma linguagem, ritos e procedimentos ininteligveis para o senso comum. Serve como tima ilustrao deste fato a busca incansvel de Josef K. ao longo de sua trajetria narrada na obra de Franz Kafka, O Processo para entender de que se tratava o processo do qual era acu-sado. Anseio este que permaneceu insolvel at sua condenao prtica,

    18 SANTOS, 2007a, p. 17.19 WARAT, 2001, p. 43.

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    apesar de tratar-se aqui de indivduo com grau de inteleco bastante acima de um homem mdio.

    A distino entre a percepo popular e erudita da atividade jurdica em nada ocasional, sendo bastante precisas as palavras de Pierre Bour-dieu ao afirmar:

    O desvio entre a viso vulgar daquele que se vai tornar num judicivel, quer dizer, num cliente, e a viso cientfica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurdico e etc., nada tem de aciden-tal. Ele constitutivo de uma relao de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de intenes expressi-vas, numa palavra, duas vises do mundo.20

    Neste sentido, ainda segundo o referido autor, se produz o efeito de hermetismo no direito que se manifesta no fato de:

    [...] as instituies judiciais tenderem a produzir verdadeiras tradies especficas e, em particular, categorias de percepo e apreciao perfeitamente irredutveis s dos no especialistas, gerando os seus problemas e suas solues segundo uma lgica totalmente hermtica e inacessvel aos profanos.21

    O espao judicial funciona como um lugar aonde ocorre um processo de neutralizao dos conflitos por meio de sua transmutao em termos jur-dicos. Deste modo, h um processo de distanciamento da partes em conflito, sendo agora o litgio operado mediante procurao por profissionais habilita-dos que tem como pressuposto o conhecimento do direito e dos procedimen-tos jurdicos.22

    No difcil se constatar que diversos so os atos cotidianos reali-zados pelos indivduos, com reflexos no direito, nos quais no h a cons-cincia de sua natureza jurdica. Tal fenmeno pode ser definido, segundo conceituao de Carlos Maria Crvova, como opacidade do direito. Se-gundo o mencionado autor:

    Existe, pois, uma opacidade do jurdico. O direito, que atua como uma lgica da vida social, como um livreto, como uma partitura, paradoxalmente no conhecido, ou no compre-endido, pelos atores em cena. Estes realizaram certos rituais,

    20 BOURDIEU, 2005, p. 226, grifo do autor.21 BOURDIEU, 2005, p. 226.22 Ibid, p. 227-232.

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    imitam condutas, reproduzem certos gestos, com pouca ou ne-nhuma percepo de seus significados e alcances.23

    A viso da mediao transformadora sobre o conflito percebe-o como uma situao-problema comum ao convvio e que deve servir de oportuni-dade ao amadurecimento das relaes. Contrariamente, o poder jurisdicio-nal percebe no conflito a lide judicial a qual deve ser posta termo, visto que reflete algum distrbio ou quebra da ordem social. A deciso autoritria pe fim lide processual, permanecendo ou at mesmo piorando o conflito, pois na maioria dos casos a determinao judicial trabalha de forma binria com a tica de vencedores e perdedores, no satisfazendo muitas vezes o resultado a nenhuma das partes. Neste sentido so eficazes as palavras de Trcio Sam-paio Ferraz Jnior ao afirmar que [...] as decises, portanto, absorvem in-segurana, no porque eliminem o conflito, mas porque o transformam.24 Mais adiante, vai discorrer o referido autor sobre a relao das decises ju-diciais com os conflitos:

    A institucionalizao do conflito e do procedimento decisrio confere aos conflitos jurdicos uma qualidade especial: eles ter-minam. Ou seja, a deciso jurdica aquela capaz de lhes pr um fim, no no sentido de que os elimina, mas que impede sua continuao.25

    Consequentemente, se pode inferir que um dos grandes diferenciais da mediao waratiana dos mtodos tradicionais (sentenas judiciais) e alternati-vos de resoluo de conflitos est no fato de que naquela modalidade de me-diao h uma reconstruo simblica do conflito a partir do discurso e uma busca da satisfao da real necessidade dos indivduos com base no sentido que do desavena. Analisa ainda a dimenso afetivo-conflituosa, buscando as origens, as causas e conseqncias do conflito.

    A mediao transformadora ao contrrio das modalidades anterior-mente citadas no resume o conflito a sua dimenso legal, muito menos pro-cessual, conforme se extrai desta passagem:

    A mediao no se preocupa com o litgio, ou seja, com a ver-dade formal contida nos autos. Tampouco, tem como nica finalidade a obteno de um acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar os interessados a redimensionar o conflito, aqui entendi-do como conjunto de condies psicolgicas, culturais e sociais

    23 CRCOVA, 1998, p. 14.24 FERRAZ JR, 2007, p. 327.25 Ibid, p. 328.

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    que determinaram um choque de atitudes e interesses no rela-cionamento das pessoas envolvidas.26

    Diferentemente de uma perspectiva acordista da mediao que con-cebe o acordo como o fim ltimo do processo em que o mediador trabalha a busca do consenso, como o mercador negociando a mercadoria, a me-diao transformadora se preocupa na construo de uma relao dialgica que possibilite o entendimento de sentidos, a partir da determinao da autonomia dos indivduos.

    4. Democratizao da justia e pluralismo jurdico

    Um outro ponto de inflexo da teoria waratiana que a difere de grande parte das concepes vigentes de mediao a sua desvinculao do direito positivo. Valoriza-se aqui a autodeteminao dos indivduos enquanto sujeitos ativos do conflito e capazes de livremente conceber-lhe soluo, construindo concretamente uma justia cidad e participativa. Radicaliza-se aqui o que foi relativizado por Cappelletti:

    A componente normativa do direito no negada, mas enca-rada como um elemento, e com grande freqncia no o prin-cipal, do direito. O elemento primrio o povo, com todos os seus traos culturais, econmicos e psicolgicos.27

    Abre-se aqui, de modo concreto, a possibilidade de um verdadeiro plu-ralismo jurdico, a partir do uso alternativo do direito ou da aplicao de outro modo de regulao das relaes comunitrias diverso do ordenamento estatal. Segundo afirmao de Antnio Carlos Wolkmer:

    Trata-se de explorar, mediante o mtodo hermenutico (in-terpretao de cunho libertrio), as contradies e as crises do prprio sistema oficial e buscar formas legais mais democrticas superadoras da ordem burguesa estatal.28

    De modo a legitimar a prtica de uma mediao transformadora das relaes jurdicas podemos utilizar dos prprios espaos do ordenamento jur-dico estatal, conforme afirma o referido autor:

    No amplo quadro da legislao estatal brasileira subsistem vrios dispositivos que viabilizam no s explorar as lacunas

    26 WARAT, 2001, p. 80-81.27 CAPPELLETTI, 2001, p. 83.28 WOLKMER, 1994, p. 271.

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    da lei e as antinomias jurdicas, como, igualmente, exercer uma interpretao flexvel e menos rgida, at mesmo fora das regras formais, fundada na equidade, na justia social e na socializao do Direito.29

    A escolha entre as distintas alternativas interpretativas deve estar vol-tada para o alcance social que a aplicao do sentido normativo assim possa ter, visto que nem todos os sentidos se prestam organizao da comunida-de, alguns inclusive podendo levar prpria desagregao social.30 Busca-se deste modo a legitimao do direito pelo discurso e pala sua possibilidade de consenso social.

    A afirmao ideolgica liberal da [...] igualdade de todos os cidados perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidados.31 Deste modo, percebe-se que quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes, maior a probabilida-de de que ela no seja aplicada.32 No se deve esquecer a grande afinidade quando no identidade dos intrpretes e aplicadores do direito com os detentores do poder poltico e econmico, o que faz com que pretenses que consubstanciem interesses, valores e vises antagnicas tenham poucas proba-bilidades de desfavorecer os extratos dominantes da sociedade.33

    A autoridade judiciria manifesta-se como poder de violncia simbli-ca, na medida em que utiliza de um discurso forjado de tcnica e neutralidade para legitimar a dominao, perante os dominados, internalizando-a, sem o recurso expresso violncia fsica ao menos inicialmente.34

    Assim, a luta pelo direito perpassa tanto a efetividade daquilo que j foi conquistado, quanto sua prpria mudana enquanto instrumento de transfor-mao social.

    De fato, o prprio exaurimento das estruturas centralizadoras do Esta-do possibilita o desenvolvimento de limitaes ao seu poder, abrindo oportu-nidade expanso de uma democracia de base que participe de maneira ativa na tomada de decises, na soluo dos conflitos comunitrios e na perspectiva de elaborao de uma justia cidad.

    29 Ibid, p. 272.30 FALCO, 2009, p. 3552.31 SANTOS, 2008, p. 165.32 Ibid, p. 178.33 BOURDIEU, 2005, p. 242.34 Ibid, p. 211, 243.

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    O prprio fato de a mediao ser um procedimento no regulamenta-do dentro de nosso ordenamento jurdico, longe de ser concebido como um prejuzo a sua prtica, possibilita uma maior flexibilidade em seu exerccio, na medida em que garante a possibilidade de fluidez. Da advm o medo de alguns de que a regulao desta atividade tramita no congresso nacional pro-jeto de lei sobre a regulamentao do tema, Projeto de Lei n. 4.827-b/1998 possa sufocar muitas de suas principais caractersticas: seu carter no deci-sionista, e no autoritrio no tratamento de conflitos.35

    Uma das mais significativas resistncias a sua larga utilizao o argu-mento segundo o qual a mediao no possui um arcabouo terico que possa garantir a previsibilidade dos acordos e sua conseqente segurana jurdica. Tal crtica carece de fundamento terico e representa um enfoque ideolgico do problema, na medida em que pressupe a necessidade de o direito se mani-festar enquanto tcnica cientfica na soluo de situaes-problema. Acredita--se, nesta perspectiva, que se possa extrair das regras jurdicas uma verdade inconteste para a resoluo do conflito. Este posicionamento tem como base a utilizao da filosofia do sujeito cognoscente que tem as normas e os fatos ju-rdicos como objeto de anlise, apartados do homem, e deles pode extrair uma soluo objetiva para o caso concreto. O erro epistemolgico nesta abordagem se d na premissa de desconsiderar o prprio direito enquanto linguagem e de descartar a possibilidade de se utilizar desta ferramenta para construir solues muito mais criativas e garantidoras da paz social.

    5. A percepo de um novo sentido

    Partindo do pressuposto da crise paradigmtica, conforme anterior-mente exposta por Boaventura de Sousa Santos, Warat vai trabalhar em uma verdadeira antecipao do futuro, daquilo que concebe enquanto sinais do novo para a percepo de um paradigma emergente. Tais apontamentos cir-culam em torno de trs questes centrais: a ecologia, a cidadania e a subjetivi-dade, as quais se encontram na base de toda uma discusso da ressignificao das escalas individuais e coletivas.36

    Deste modo, o autor argentino vai debater em torno do que convencio-nou chamar de ecocidadania, a qual define:

    [...] como referncia globalizante de uma resposta emancipat-ria sustentvel, baseada na articulao da subjetividade em esta-

    35 MORAIS, 2008, p. 152.36 WARAT, 1994, p. 250.

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    do nascente, da cidadania em estado de mutao e da ecologia no conjunto de suas implicaes.37

    Um verdadeiro trabalho cartogrfico sobre o desejo, no sentido de que o concebe como fator de propulso da autonomia e da vontade, na busca de novas maneiras de entender e viver com o outro.38

    As preocupaes modernas da verdade, da objetividade, da ideologia e do poder foram suplantadas pela problemtica do sentido da vida. Uma neces-sidade de redescobrimento consigo mesmo e com o outro.

    Pode-se claramente perceber como a proposta de mediao waratiana busca o descobrimento e a construo de um novo sujeito, tanto no plano individual quanto no coletivo. Um cidado impulsionado pelo desejo que lhe d sentido a vida, ao mesmo tempo em que comprometido com a cole-tividade e o futuro.

    Neste sentido, concebe-se o direito enquanto limitao atividade esta-tal, na medida em que defende-se a liberdade e a emancipao. A democracia no pode constituir-se em um formalismo representativo e autoritrio, e sim como exerccio pleno e efetivo da cidadania e da prpria diversidade.

    6. Concluso

    A falncia do Estado, tanto terica quanto prtica, em gerir os conflitos sociais abre irremediavelmente a porta para a perda de seu monoplio jurisdi-cional e para o surgimento de novas formas de regulao dos conflitos.

    Nos termos em que foi exposta, a proposta waratiana de mediao que-bra o paradigma do direito moderno, monista, se coadunando com a perspec-tiva apontada por Boaventura de Sousa Santos de um direito emancipatrio, plural e originrio da auto-regulao da comunidade.

    O novo paradigma de conhecimento introduzido pelo pensador por-tugus como um conhecimento prudente para uma vida decente de certo modo aprofundado pela perspectiva libertria do jurista argentino. Da crtica estruturalista de Santos ao paradigma epistemolgico dominante, segue-se de modo concatenado porm em nada linear uma proposta surrealista de conhecimento e auto-regulao pautada na subjetividade.

    37 Ibid, p. 251.38 Ibid, p. 252.

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    Assim, a mediao emancipatria se transmuta de um mero procedi-mento de resoluo de conflitos para se converter em um verdadeiro instru-mento de exerccio da cidadania, na medida em que possibilita a criao de um direito inclusivo, rompendo com o normativismo jurdico estatal e possi-bilitando concretamente o surgimento de um direito plural, capaz de absorver as expectativas de uma maior variedade de sujeitos sociais, em especial aqueles oriundos de segmentos mais marginalizados da sociedade.

    A mediao transformadora de Warat perfeitamente se coaduna com as perspectivas apresentadas por Santos como uma nova poltica judiciria que deve estar comprometida com a democratizao do direito e da sociedade.39

    Pode ento o direito transformar a sociedade? Penso de forma otimista a tal assertiva, na medida em que alm de guiar as coletividades na defesa da-quilo que foi ao menos formalmente conquistado, o debate jurdico, enquan-to manifestao do poltico, possibilita a ampliao do campo de luta pela afirmao de identidades sejam elas individuais ou coletivas e a conquista do reconhecimento e legitimao da pluralidade, em um verdadeiro exerccio de emancipao da cidadania e democratizao da sociedade.

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