a manifestaÇÃo cultural da capoeira no municÍpio de … · a manifestaÇÃo cultural da capoeira...

24

Upload: lamdung

Post on 10-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA
Page 2: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

2

A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE

DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

AFRO-BRASILEIRA

Cleusa Ortiz Ferreira

1

Altair Bonini2

RESUMO

Muitos educadores do Brasil procuram maneiras de como ensinar a história e cultura africana e afro-brasileira para os estudantes da educação básica. A realidade é que são poucos os materiais didáticos produzidos sobre o tema e as dúvidas quanto à metodologia e conteúdos são grandes. Por meio do estudo da manifestação da capoeira no município de São Jorge do Patrocínio (PR), procuramos abordar um conteúdo que pode ser trabalhado pelos professores, com uma metodologia pouco conhecida nas escolas: o filme etnográfico. Desta forma, nos propomos discutir como se deu a confecção deste material didático, bem como, sobre o ensino da história afro-brasileira e da capoeira nas aulas de História.

Palavras-chave: Ensino de História; cultura afro-brasileira; cultura; capoeira; filme etnográfico.

1 INTRODUÇÃO

Ao propormos um estudo sobre a capoeira e como ela se apresenta no

município de São Jorge do Patrocínio/PR, procuramos desde logo buscar

alternativas de como mostrar para os alunos como esta prática cultural traz consigo

elementos formadores da identidade cultural e de resistência dos povos de origem

africana trazidos para o Brasil a partir do século XVI, de forma involuntária e

violenta. A partir daí, buscamos conhecer a história da capoeira e a pensar uma

1 Professora da Rede Pública Estadual do Paraná – Participante do PDE – 2010. 2 Professor do Colegiado de História da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Campus

de Paranavaí.

Page 3: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

3

maneira alternativa de discutir sua prática em nosso município, surgindo assim a

ideia da elaboração do filme etnográfico.

Conforme ocorre o processo de efetivação da Lei Federal n° 10639 de março

de 2003, a cultura afro-brasileira torna-se mais presente nos currículos escolares. A

inclusão destes conteúdos nas instituições de ensino representa uma situação um

tanto nova para os educadores, gestores e comunidade escolar. Tratam de

conteúdos referentes às manifestações culturais oriundas das camadas subalternas.

Um dos movimentos a ser observado no desenvolvimento deste trabalho é a

capoeira, na qual, por um longo período foi condenada e proibida pelas classes

dirigentes. Paradoxalmente nas últimas décadas vem sendo valorizada e ganhando

maior visibilidade. “Em 15 de julho de 2008, a “Roda de Capoeira” e o “Ofício dos

seus mestres” foram registrados nos Livros das “Formas de Expressão” e no de

“Saberes” como bens imateriais brasileiros” (PELEGRINI, 2008, p.146). Tal fato

denota a importância da capoeira para nossa cultura, sendo esta compreendida de

várias formas.

Com efeito, embora tal termo expresse várias ideias, de alguma forma nos remete às origens de uma luta de resistência à escravidão e, fundamentalmente, à construção e reconstrução permanente de uma identidade étnica; e como sabemos a salvaguarda de um bem material ou imaterial só tem sentido se esse patrimônio for reconhecido pela comunidade, se estiver relacionado ao sentimento de pertença desse grupo e incluso na sua dinâmica sociocultural. (PELEGRINI, 2008, p. 149)

Como expresso acima, a capoeira, representa a luta contra a escravidão, os

valores da negritude, a identidade de um povo. Todavia, a capoeira, desde seu

surgimento foi negada, perseguida e criminalizada, mas atualmente vem sendo

valorizada, principalmente com status de esporte regulamentado, demonstrando a

sua aceitação em muitos meios da sociedade.

Como este tema aparece nas aulas de história foi uma das questões que nos

chamou atenção. Isto porque, apesar de ser muito presente no cotidiano das

crianças e jovens, historicamente exerce uma função de grande importância, visto

que no âmbito educacional geralmente são os professores de Educação Física que

se dedicam a trabalhá-lo como conteúdo em suas aulas; dentro do eixo das lutas e

Page 4: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

4

esportes e algumas vezes, aparece nas aulas de Arte com a finalidade de abordar a

questão da dança e da musicalidade afro-brasileira.

Entretanto, devemos atentar para como isto está sendo realizado. Para o

professor José Luiz C. Falcão (1996), a capoeira se tornou mais evidente e aceita à

medida que foi cooptada pelas classes dominantes. Ele chama atenção para a esta

questão e o perigo da descaracterização desta arte/luta, uma vez que passasse a

desconsiderar seu aspecto histórico e cultural. Assim, segundo este estudioso, o

estudo da capoeira, na escola, “pode aglutinar elementos concretos denunciadores

dos mecanismos de opressão que vigoraram e continuam vigorando na sociedade

brasileira”, por outro lado se for ensinada apenas como uma “modalidade técnica” da

Educação Física suas características “essenciais podem estar sendo alteradas”.

Seguindo este raciocínio, podemos perceber como a capoeira pode ser ensinada e

mostrada de forma equivocada, por exemplo, em muitos filmes hollywoodianos, nos

quais é mostrada apenas como uma arma para roubar e/ou eliminar os inimigos.

Acreditamos que as aulas de história são importantes para a formação

cultural e crítica dos indivíduos, e que a capoeira enquanto conteúdo histórico pode

auxiliá-los no entendimento deste passado, uma vez que, nos permite estabelecer

uma ponte com o presente que se apresenta. Isto nos remete a ter como ponto de

partida pensar como se dá a presença da capoeira e seu significado em nosso

município, bem como, indagar sobre sua origem. Como citado acima, a professora

Sandra C. A. Pelegrini (2008, p.146), indica-nos que suas práticas remetem ao

mesmo tempo a “pretérito longínquo e, simultaneamente, presente nas redes de

sociabilidade contemporâneas”, isto posto, metodologicamente, nos remete a

importância de mostrar, para os alunos, por meio de filmes, imagens e textos, como

a capoeira era praticada em outros tempos e como isto se dá na atualidade, bem

como, a apontar como ela é praticada em outros lugares e em nossa região.

No Município de São Jorge do Patrocínio estão presentes diferentes

manifestações da cultura afro-brasileira, como na maioria dos municípios do Brasil.

A capoeira é contemplada, sempre ressaltada por mestres capoeiristas da região,

nas escolas de capoeira, mas principalmente em atividades voltadas para a

comunidade local, ligada a projetos educacionais, na maioria das vezes financiadas

pelos governos do próprio município. São estes sujeitos que fazem, vivem, valorizam

e divulgam a prática da capoeira e mantém viva sua tradição histórica e valores,

nessa região.

Page 5: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

5

Desta forma, tendo por base a discussão acima e a valorização desta

experiência, iniciamos um projeto que pudesse, além de mostrar a história da

capoeira e sua importância para a identidade negra no Brasil, que também

evidenciasse como ela é praticada em nosso município.

Assim sendo, idealizamos a elaboração e produção de um vídeo, estruturado

a partir da metodologia dos filmes/documentário etnográficos. Este gênero de

produção fílmica se preocupa com os temas sociais e culturais, a fim de revelar uma

sociedade à outra, tendo como atores sociais principais, os sujeitos e suas

experiências. São os atores sociais que figuram em primeiro plano nas filmagens, no

qual são realizadas espécies de entrevistas, mas o entrevistador não aparece,

apenas, suas falas são valorizadas.

Desta forma, o filme etnográfico que produzimos, serve de meio para abordar

as diferentes temporalidades e espacialidades de prática da capoeira, ao mesmo

tempo evidencia que para trabalhar a história e cultura afro-brasileira não

necessitamos referendar os lugares distantes e realidades que não são entendidas

pelos jovens educandos. Sendo assim, podemos ensinar que a história e cultura

afro-brasileira não é algo folclórico e do passado remoto, ela está presente em

nossas cidades, mesmo as do interior do Paraná, porque ela faz parte da cultura de

todo país.

Desse modo, o presente artigo é uma discussão e descrição deste projeto de

intervenção pedagógica que resultou na elaboração de um material didático (vídeo

etnográfico – disponível no Portal Educacional do Estado do Paraná) e que

compartilhamos com vocês. Para uma melhor didática dividimos o presente texto em

três partes, primeiramente destacamos o que é a capoeira, como ela aparece na

história do Brasil e como é sua prática no município de São Jorge do Patrocínio. Na

segunda parte apresentamos como aconteceu a elaboração do filme etnográfico e

sua utilização na sala de aula. Por fim, uma pequena discussão de como vem

desenvolvendo-se a temática da capoeira na disciplina de história e a importância de

resgatar e valorizar a cultura afro-brasileira não só no ambiente escolar, mas

também na comunidade em que os educandos estão inseridos.

Page 6: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

6

2 BREVE HISTÓRICO DA CAPOEIRA: ORIGEM, PERSEGUIÇÃO E

RECONHECIMENTO

A capoeira é um dos elementos da cultura afro-brasileira mais significativos,

ela representa desde muito a busca por liberdade e igualdade dos povos africanos

escravizados no Brasil já desde o século XVI. Sua expressão foi codificada no corpo

do homem, suas palavras através de cantos e ladainhas, seu ritual mistura

vontades, conceitos e devoção religiosa.

Quanto à origem da capoeira não existe um consenso devido à falta de

documentação histórica. Entre as fontes de pesquisas que resistiram à ação do

tempo estão às tradições orais, poucos registros escritos e algumas imagens.

Conforme o historiador José Carlos Reis a “[...] capoeira é uma manifestação cultural

brasileira nascida em circunstâncias de luta por liberdade, nos tempos da

escravidão”. Embora africanos de origem banta tivessem sido levados para diversos

outros países, na mesma época, somente na América portuguesa esta prática se

desenvolveu (REIS, 1997, p. 19).

De acordo com os autores Vieira e Assunção (1998), a origem da capoeira

ainda é um enigma que vem sendo investigada por vários pesquisadores de

diferentes áreas. Para alguns, a capoeira era praticada pelos Angolas como dança

religiosa (MARINHO apud FREITAS, 1997, p. 13). Para Waldeloir Rego (1968), tudo

leva a crer que a capoeira seja uma invenção dos africanos no Brasil, desenvolvida

por seus descendentes afro-brasileiros, tendo em vista uma série de fatores colhidos

em documentos escritos e, sobretudo, no convívio e diálogo constante com

capoeiras antigos da Bahia. Também, existe a hipótese da capoeira ter surgido da

necessidade de resistência do escravo, como este não detinha “armas suficientes

descobriu no próprio corpo mecanismos de defesa, imitando animais e estruturas

das manifestações trazidas da África“. (AREIAS apud FREITAS, 1997, p.13).

Documentos históricos, datados do século XVII, apontam para o

desenvolvimento da capoeira primeiramente vinculado a gênese urbana da colônia.

Então, o nascimento da capoeira se deu nas primeiras grandes cidades do Brasil, ou

seja, em Salvador e Rio de Janeiro, sendo marcada sua presença também em

Pernambuco. Contudo, a maior parte da documentação sobre a capoeira é da

primeira década do século XIX, no Rio de Janeiro. Isto porque com a chegada da

Page 7: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

7

Corte Portuguesa em 1808 nestas terras, D. João VI criou a Intendência Geral de

Polícia da Corte do Estado do Brasil, iniciando grandes modificações no sistema

policial. Sendo uma maneira de controle social, neste período de forma gradual

cresceu a presença da capoeira nos registros policiais e processos jurídicos.

(SOARES, 2002/ARAÚJO, 2005).

Porém a capoeira somente ganha projeção entre os escravos e passa a ser

repreendida pelas classes dominantes a partir do fenômeno que foi o Quilombo dos

Palmares no final do século XVII. Foi neste momento que a capoeira passou a ser

utilizada como recurso de ataque e defesa. A superioridade de luta dos escravos

foragidos chamava a atenção dos grupos armados, encarregados de destruir o

Quilombo dos Palmares, espalhou-se então a fama do “jogo da capoeira”, depois

chamado “capoeiragem” (GLADSON DE SILVA, 1993, p. 13). Assim, com a extinção

de Palmares a capoeira desenvolveu-se em todos os lugares.

Como representava uma ameaça ao sistema de controle implantado na

colônia portuguesa pelos grandes proprietários, o termo capoeira passou a ser

relacionado à ideias de arruaceiros e malandros, vinculada a vadiagem, desordem e

marginalidade. De acordo com Mello (2002) “[...] a prática se dava de maneira

clandestina, pois, uma vez que ela era utilizada como arma de luta, os senhores de

engenho passavam a coibi-la veemente, submetendo as terríveis torturas de todos

àqueles que a praticassem”. Mas os povos escravizados encontraram meios de

continuar usando o corpo como uma arma contra a opressão em busca da liberdade.

Para poderem adestrar seus corpos à vista de seus senhores, disfarçavam os movimentos de luta numa dança, passando assim, uma imagem de simples divertimento, e quando fugiam da senzala eram encontrados, procuravam se defender com seus coices, cabeçadas e rasteiras para não serem conduzidos ao cativeiro (SANTOS 1990).

Segundo Filho (2009), no século XIX, durante o Primeiro e no Segundo

Império, a capoeira passou a ser muito popular no Rio de Janeiro, que por ser

combatida pelas elites e estado, se tornou comum na crônica policial e a ser

instrumento político, principalmente integrando campanhas de período eleitoral.

Contudo, em outros momentos a capoeira é utilizada pelo poder conforme

seus interesses, por exemplo, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), o próprio

Page 8: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

8

governo foi apoiar-se nos capoeiras, de vários pontos do país, requisitando-os para

lutar e defender o país, com frequência os senhores enviavam os escravizados em

troca de sua participação ou de seus filhos. Os capoeiras foram enviados “[...] na

condição de soldados chamados zuavos, que lutavam pela liberdade (também havia

soldados regulares, mercenários e voluntários). Consta que muitos desses zuavos

tiveram atos de bravura, e chegaram a receber condecorações”. Outro fato que

chama a atenção foi a existência da Guarda Negra, uma associação de fanáticos

objetivando defender a princesa Isabel e, naturalmente, frequentada por capoeiras

(FILHO, 2009, p. 3).

A mudança de regime político em 1889, com seus ideais de modernização e

de ordem na sociedade brasileira só fizeram aumentar a perseguição à capoeira,

sendo que, o primeiro presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca

concedeu grande poder ao chefe de polícia Joaquim Sampaio Ferraz, para perseguir

e acabar com esta atividade. Neste sentido, com a elaboração do Código Penal, em

1890, foi incluído a criminalização da prática de capoeira na seção denominada

“Vadios e Capoeiras”, no capítulo XIII, nos artigos 402, 403 e 404, com pena de

prisão celular de dois a seis meses (FILHO, 2009, p. 4).

Mas será que os capoeiristas representavam mesmo uma ameaça a ordem

social e ao modelo burguês que os republicanos queriam implantar no Brasil? De

certa forma, sim, pois, “na realidade era prática de vida que valorizava a liberdade

individual e de pequenas comunidades, as maltas [...] no Rio de Janeiro de 1890 a

1950, capoeiras e malandros (não confundíveis com ladrões) foram

equivocadamente inseridos no âmbito de violência urbana, entretanto a vida desses

elementos refletia uma postura contra a obrigatoriedade social do trabalho” (FILHO,

2009, p. 5). Se analisarmos o contexto do pós-abolicionismo, esta situação fica mais

evidente, visto que neste período tem-se uma forte disciplinarização para o trabalho

livre e assalariado.

Gladson de Oliveira Silva (2002), aponta como a capoeira conseguiu ter certa

aceitação pelos governantes no decorrer do século XX. Entre os principais fatos

destacados por Gladson estão o surgimento em 1907 do “Guia da capoeira ou

ginástica brasileira”, cujo autor é desconhecido, pois por segurança assinou a obra

apenas com as iniciais O.D.C. Seria uma tentativa de instituição de uma “ginástica

brasileira”. No ano de 1928, foi publicada por Aníbal Burlamáqui a obra “Ginástica

nacional (capoeiragem) – metodizada e regrada” também na linha da

Page 9: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

9

institucionalização, propondo algo mais “organizado”, estabelecendo regras, e,

assim, indicando a capoeira como jogo desportivo. A primeira academia de capoeira,

oficializada pelo governo, surge em 1932, sendo seu idealizador o baiano Eugênio

Velho Brotas. Sendo a capoeira considerada, oficialmente pelo Ministério de

Educação e Cultura, uma modalidade esportiva no ano de 1972 (SILVA, 2002, p. 22-

23).

Fato ímpar para o reconhecimento da capoeira foi realizado por Manuel dos

Reis Machado, o mestre Bimba (1900-1974). Já em 1937, “obtém reconhecimento

oficial (alvará) de sua Academia de Capoeira, a primeira a ser criada no Brasil

(1932), porém não usando o nome que carregava aquela carga preconceituosa;

chamou-a Centro de Cultura Física e Luta Regional. Ainda em 1937, ele consegue

registro de seu curso de Capoeira, integrado na área de Educação Física” (FILHO,

2009, p. 6).

Mais recentemente temos a criação da Confederação Brasileira de Capoeira,

em 23 de outubro de 1992 e de 23 federações de Capoeira, no Brasil, até 1995.

Bem como, “a eleição da Confederação Brasileira de Capoeira como oficial do

Comitê Olímpico Brasileiro, em 20 de fevereiro de 1995. Nesse mesmo ano, a CBC

é associada ao Comitê Olímpico Internacional” (FILHO, 2009, p. 7).

Falcão (1996), em sua obra “A escolarização da capoeira”, reflete sobre a

discussão travada por alguns pesquisadores em torno da descaracterização da

capoeira enquanto produto efetivamente de origem afro-brasileiro, uma vez que a

partir da criação da capoeira denominada de “Regional” e a sua maior aceitação por

integrantes de outros grupos sociais. O autor assevera sobre a condição da

capoeira, na qual não pode ser negado seu aspecto dinâmico inerente às

manifestações culturais, ou seja, que como outros elementos da cultura, não pode

ser visto como algo estático e que não recebeu influência de outros povos e grupos

sociais.

3 RECONHECENDO A CAPOEIRA: ALGUNS ELEMENTOS

Para Santos (2002), a capoeira contém elementos estruturais que referem-se

a “construção da identidade social urbana do país” pois, sua prática não diz respeito

Page 10: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

10

somente aos capoeristas, remete a um estilo de vida, um complemento cultural, está

ligado com a música, movimentos corporais, instrumentos, conjunto de rituais, entre

outros aspectos. Descrevemos, de forma sucinta, alguns destes elementos que deve

ser levado em consideração pelos professores que se propõem a trabalhar com a

capoeira.

3.1 Capoeira de Angola

A Capoeira de Angola não se remete a região geográfica (país situado no

Oeste Africano), na verdade a palavra Angola é uma homenagem aos escravos e

descendentes africanos que tinham as suas raízes no continente Africano e que

viviam no Brasil, assim como os brasileiros, os angolanos também foram

colonizados pelos portugueses. A denominação capoeira de Angola foi criada depois

da capoeira regional, pois antes disso não era necessária a distinção. Foi criada

para caracterizar essa prática, em oposição às transformações empreendidas por

mestre Bimba com a capoeira regional. É considerada por muitos, como um

processo de “descaracterização” da “autêntica” capoeira, a capoeira mãe.

A malícia é uma das principais características do jogo de Angola ela é seu

fundamento, este é o segredo da capoeira angola, pois com habilidade um capoeira

deve surpreender o adversário, distrair seu rival, brincar com ele, enganando-o,

mostrando-se desprotegido, para ser atacado justamente onde deseja e, assim,

lançar seu contra-ataque com mais eficácia. Um capoeirista não deve entrar em

choque direto com seu parceiro, porque assim a harmonia do jogo será rompida. A

harmonia desenvolve o próprio jogo. Seus movimentos são com jogo baixo, por isso

grande parte requerem que ambas as mãos estejam apoiadas no chão, as pernadas

são em geral, de pouca altura sendo que as pernas fiquem flexionadas e o tronco e

a cintura a baixa altura. A Capoeira Angola se realiza com ritmo lento, com domínio

do corpo e da mente.

Page 11: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

11

3.2 Capoeira Regional

Ao contrário da capoeira de Angola, são identificadas pelos golpes bem

definidos, pernas esticadas, movimentos amplos, jogo alto e objetivo. Criada em

1928, por mestre Bimba, que utilizou os conhecimentos da Capoeira Angola e dos

Batuques para criar este novo estilo de capoeira. Mestre Bimba usou de malicia e

fugiu das pistas que lembravam a origem marginalizada da capoeira, então para isto

teve que mudar alguns movimentos, além de implantar o “batizado”, que segundo

mestre Leonardo é um momento de grande significado para o aluno, pois demonstra

que o aluno se encontra apto para jogar pela primeira vez na roda animada pelo

berimbau. Para isto é escolhido um mestre formado ou um aluno mais velho da

Academia, que como padrinho incentiva seu afilhado a jogar e após o jogo o Mestre

no centro da roda levantava a mão do aluno e então era dado um apelido (nome)

com o qual será conhecido na capoeira. As músicas na capoeira regional se dividem

em duas partes uma referente aos toques de Berimbau, ou seja: São Bento Grande,

Santa Maria, Banguela, Amazonas, Cavalaria, Idalina e Lúna, onde cada toque tem

um significado e representa um estilo de jogo. E a outra chamada de quadra e

corrido. Quadras são pequenas ladainhas com estrofes compostas de 4 a 6 versos e

os corridos são cantigas com frases curtas repetidas pelo coro.

3.3 Capoeira Estilizada

Criada por Carlos Sena, que mantendo golpes básicos, procurou criar uma

ética como existente em outras artes marciais, baseando-se principalmente no judô.

Page 12: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

12

3.4 Sons da Capoeira

A sonoridade da capoeira, os instrumentos utilizados e o acompanhamento

musical da capoeira geralmente são feitos pelo berimbau, pandeiro, adufe,

atabaque, ganzá ou reco-reco.

3.5 O Jogo

A capoeira constitui-se numa atividade em que o jogo, a luta e a dança se

interpretam. Ela é ao mesmo tempo, luta, dança e jogo, embora seu praticante seja

definido como um jogador e não como lutador ou dançarino. Entre os capoeiristas,

fala-se em jogar capoeira e, raramente, houve-se falar em lutar ou dançar capoeira.

Essa é a constatação que diferencia a capoeira das outras modalidades de luta. O

jogo é uma atividade em que predomina a alegria, não precisa ser justificado e nem

precisa de um objetivo para ocorrer. O jogo “promove a relação de grupos sociais

com tendências a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em

relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes”

(HUIZINGA, 1990, p. 16).

Assim, na roda, a capoeira é livre para jogar como e quando quiser, sem a

pretensão de obter qualquer competitividade. A partir desse enfoque, a capoeira

reflete o sentido de uma atividade descomprometida, à vontade, sem objetivos

práticos e imediatos. Vista sob a ótica do jogo, ela consegue entender a

necessidade de fantasia, utopia, justiça e estética e, ainda, desperta o gosto pelo

inesperado, pelo imprevisível.

O jogo, na capoeira, representa uma constante negociação (sobretudo

corporal) em que cada capoeirista procura ampliar cada vez mais o seu volume, ou

seja, desenvolver movimentos. Por mais que se pretenda minuciosa, a descrição

dos expedientes gerados num jogo de capoeira jamais refletirá a riqueza dos fatos

em si. “Através do jogo de capoeira, os corpos negociam, e a ginga significa a

possibilidade de barganha, atuando no sentido de impedir o conflito” (HUIZINGA,

1990).

Page 13: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

13

O jogo da capoeira, por ser uma simulação de luta, por não envolver

ostensivamente o perigo implícito desta última, permite o desenvolvimento da

autoconfiança e dos reflexos de adaptação e condições de perigo. Simultaneamente,

torna-se um instrumento precioso no desenvolvimento de uma personalidade sadia.

A disciplina exigida pela prática da capoeira acresce novos valores à personalidade

do aprendiz, tais como o respeito à vida ética, o cumprimento das normas e

regulamento, a obediência os preceitos e tradição, a noção de parceria e o

companheirismo indispensáveis ao aprendizado, os quais contribuem para a

formação do caráter forte e equilibrado.

3.6 A Luta

A capoeira enquanto luta, remonta às suas origens. Convém observar que o

jogo e a dança contribuem para a dissimulação do componente luta na prática da

capoeira, à medida que não se efetiva um confronto direto, mas uma constante

simulação de ataques e defesas, mediada pela ginga, numa ambiguidade onde o

jogo, a dança, a luta se interpretam. Nessa luta dissimulada e disfarçada, o capoeira

mais competente é aquele que mostra que poderia acertar um golpe, mas não o faz

e, com isso, possibilita a continuidade da própria Luta – Jogo - Dança.

3.7 A Dança

A dança, na capoeira, se expressa no gingado centrado nos quadris. No

embalo do toque do berimbau, os capoeiristas descrevem círculos no espaço da

roda, fazendo com que “o corpo lute dançando e dance lutando”, remetendo a

capoeira a, “uma zona imaginária e ambígua, situada entre o lúdico e o combativo”

(REIS, 1997, p. 215).

Page 14: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

14

3.8 A Roda de Capoeira

A roda de capoeira, local de encontro entre os capoeiristas tem origem na

maneira como os escravos faziam seus rituais religiosos, se mantendo atualmente

como espaço em que o capoeirista mostra seus conhecimentos. O local da prática

da capoeira “perdeu muitos de seus antigos rituais e preceitos” ao transferir a roda

do terreiro para a academia, pois esses ritos são esquecidos e quando lembrados

parecem ter pouco valor. Mestre Preá diz que: “muita coisa se perdeu, o valor do

mestre, o valor do berimbau, o valor do cerimonial da roda de capoeira, que a roda e

capoeira têm todo um ritual” (CRUZ, 2006, p. 31 e SOUZA, 2010).

3.9 A Música

A música é um dos componentes mais importantes para entender o jogo da

capoeira. No som dos instrumentos, a cadência inebriante chama a atenção das

pessoas pelo mundo todo, nas letras que servem como transmissão de

conhecimentos, como comunicação de movimentos sociais ou como oração. Sendo

a capoeira, a única luta no mundo, em que seus lutadores se confrontam ao som de

cantigas executadas pelos demais componentes. Além disso, é possível afirmar que

as cantigas de capoeira são o mais significativo espaço de representação dos

conflitos gerados no contexto dessa arte-luta. O sociólogo Luiz Renato Vieira (1995),

identifica três funções básicas nas cantigas de capoeira: (a) uma função ritual, que

fornece à roda o ritmo e animação; (b) uma função mantenedora das tradições, que

reaviva a memória da comunidade capoeirística acerca dos acontecimentos

importantes de uma história; e (c) uma função ética, que promove um constante

repensar dessa mesma história e dos princípios éticos nas rodas de capoeira.

Geralmente, as cantigas são poemas transformados em músicas de forma prazerosa

e tradicional, na roda de capoeira sempre o corpo se interage com a linguagem oral,

pois na roda o “capoeira” canta, toca os instrumentos e joga.

Page 15: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

15

4 DE QUE FORMA A CAPOEIRA SE APRESENTA NO MUNICÍPIO DE SÃO

JORGE DO PATROCÍNIO.

Mestre Leonardo Ferreira de Lima, desde seus 10 anos de idade pratica a

arte da capoeira. Hoje como mestre, dá aulas de capoeira, através do Grupo de

Capoeira Chora Menino. Seu trabalho é com crianças, adolescentes, jovens e

adultos; trabalha no município através de um programa com a Secretaria Municipal

de Educação. Segundo ele, as aulas de capoeira iniciaram-se, no município de São

Jorge do Patrocínio, no ano de 1983, pelo Mestre Pereira, mas pouco tempo depois

as atividades foram interrompidas, só voltando a ser praticada no ano de 1990 por

iniciativa do mestre “Bimbola”, da cidade de Umuarama. Leonardo começou a

praticar a capoeira com este professor e foi seu aluno até se tornar mestre.

Em entrevista à autora, Mestre Leonardo expressa a importância de dar aulas

de capoeira para ele, destacando a questão da consciência em relação à cultura

afro-brasileira, como esportista concentra o destaque para os aspectos

disciplinadores do esporte, contudo, mostra a capoeira como elemento integrador da

comunidade.

Ser professor de capoeira é muito importante, porque a gente passa a ter contato sociocultural com as pessoas, passa a ser respeitado, ainda mais que agora a capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro. A gente se interage com as famílias das pessoas, se entende em todos os lugares que se encontram, as pessoas se respeitam entre si em prol do esporte. Assim que eu, como professor de capoeira, passo meu conhecimento e sabedoria para as pessoas que treinam no domínio de sua mente numa metodologia educacional e vice e versa. O movimento da capoeira é muita malícia para quem não conhece e para quem passa a conhecer nos estudos ou na prática, a capoeira passa a ser vista de uma maneira diferente, ou seja, a capoeira é jinga, samba, dança, frevo de Pernambuco, carnaval, dança afro-brasileira, cultura, música, poesia, arte. A capoeira trás para o seu corpo muitos benefícios, prepara a mente, faz dormir bem, deixa a gente ágil, fisicamente tem postura, é bom para saúde, dá tranquilidade ao espírito e flexibilidade ao corpo. (MESTRE LEONARDO, 2011).

Page 16: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

16

Muitos profissionais acabam por olhar a capoeira apenas pelo víeis do

treinamento do corpo e da luta, nestes casos ela perde este aspecto integrador de

valorização e de resgate da cultura afro-brasileira.

A capoeira é praticada em São Jorge do Patrocínio em três dias da semana:

quarta, quinta e sexta-feira. Mestre Leonardo (único professor), atende um total de

114 alunos. A capoeira é praticada em vários espaços da cidade, tais como: no

Espaço Criança, no qual são 57 crianças que aprendem a capoeira, sendo 30 de

manhã e 27 à tarde; já no bairro Santo Agostinho, somente no período noturno, 25

adultos exercitam a arte luta e na Casa Familiar Rural são 32 alunos que praticam e

aprendem mais sobre a capoeira.

As principais dificuldades encontradas são a falta de instrumentos e

uniformes, e, em menor grau, a aceitação, pois como a cultura afro-brasileira foi por

muitas décadas desvalorizadas socialmente, as pessoas ainda não a compreendem

completamente.

Ainda não existe academia de Capoeira no município de São Jorge do

Patrocínio, no entanto com a divulgação do filme etnográfico nos jornais da região o

Mestre Leonardo foi convidado a abrir uma academia no Município vizinho de

Altônia.

5 CAPOEIRA E IDENTIDADE

Segundo Santos (2002), “do período colonial ao republicano, os africanos e

seus descendentes sempre foram utilizados por suas características físicas e

procedência racial pelo sistema econômico”. Neste sentido, os povos escravizados

tiveram que encontrar novas formas de viver frente à cultura dos dominantes,

criando mecanismos de resistência, que os diferenciavam dos brancos. Assim,

surgiu, por exemplo, o sincretismo religioso e a capoeira.

Page 17: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

17

6 FALANDO SOBRE A CAPOEIRA NO FILME ETNOGRÁFICO: SUJEITOS DE

SÃO JORGE DO PATROCÍNIO E SUAS PERCEPÇÕES.

O filme etnográfico foi o meio escolhido para falar de capoeira com os alunos

e comunidade escolar. Nele figuram alguns dos sujeitos que vivem a capoeira e a

cultura afro-brasileira em São Jorge do Patrocínio. Também podemos recontar um

pouco da história da capoeira. Por meio de entrevistas, conversas com mestres de

capoeira, com professores e com quilombolas da Comunidade de Manoel Ciriáco

dos Santos da cidade de Guaíra-Pr.

O filme etnográfico que produzimos está dividido em quatro partes: a primeira

parte busca mostrar como é praticada a capoeira na cidade de São Jorge do

Patrocínio. Na segunda e terceira partes, apresenta-se a história da capoeira no

Brasil e conceitua-se a capoeira. A ultima parte é destinado a falas de integrantes de

Quilombolas da Comunidade Manoel Ciríaco dos Santos da região de Guaíra-Pr e

de seus parentes residentes em nosso município.

A produção do filme se deu de forma simples, de forma amadora, ou seja,

uma ideia e uma câmera na mão. Assim, em um período de seis meses

conseguimos realizar todas as gravações de depoimentos da comunidade local, no

qual um depoimento abria caminho para outro, completando um enredo, uma

sequência em que podemos dividir em partes no final. Podemos dizer que o roteiro

foi se fazendo no percurso, entre uma entrevista e outra.

A parte que mais nos cativou, foi a entrevista do encerramento do filme, nas

terras Quilombolas, neste dia houve o encontro de dois grupos de capoeira, o Chora

Menino de São Jorge do Patrocínio com o grupo dos Quilombolas de Guaíra,

juntamente com a Família Santos, a qual fazia 21 anos que não voltavam lá. Este

fato foi muito importante, pois despertou atenção de muitas escolas e de várias

localidades que passaram a visitar a comunidade Quilombola de Guaíra com seus

alunos, os quais foram motivados a pesquisar, conhecer e valorizar a cultura

Quilombola em nossa região.

Apesar da falta de recursos materiais e preparo técnico, para realização de

um bom filme etnográfico, à medida que avançávamos em sua produção, se deu

uma verdadeira mobilização no município. Muitos passaram a conhecer o tema, a

Page 18: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

18

valorizar a participação nas entrevistas, tivemos apoio da Secretaria Municipal de

Educação e do jornal local, que demonstraram interesse com o tema.

O encerramento do filme se deu com a visita à Comunidade Quilombola de

Manoel Ciríaco dos Santos, em Guairá, em companhia do grupo de capoeira Chora

Menino e da Família Santos de São Jorge do Patrocínio, descendentes de membros

dessa comunidade Quilombola.

Na Comunidade Quilombola de Manoel Ciríaco dos Santos, os irmãos

Quilombolas e capoeiristas Adir Rodrigues dos Santos e Joaquim Rodrigues dos

Santos relataram sobre a importância dos sons da capoeira para eles. O toque do

berimbau e do atabaque tem um valor especial, uma simbologia, porque traz à

memória o resgate de sua cultura, provoca uma alegria muito grande, um respeito

aos seus antepassados que viveram na época da escravidão, os quais travavam

uma grande luta para se libertarem e se defenderem utilizando a capoeira. Por isso,

mantém viva na comunidade essa luta.

Segundo os professores do Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela, o filme

teve grande aceitação pelos alunos, talvez porque muitos de seus colegas e

pessoas que conheciam estavam presentes nele, falando de algo que está no

passado, mas que não aparece preso a ele, também está vivo no presente. O

conteúdo de história e cultura afro-brasileira pode ter este papel de reconhecer os

sujeitos, a cultura, as comunidades e o povo simples do Paraná. Trazer este

passado é ajudar no fortalecimento de sua identidade, mostrar o outro é reconhecer

às diferenças, mas ao mesmo tempo perceber o que todos temos de igual e de

humano.

As possibilidades de utilização do filme são muitas, foi desenvolvido para ser

trabalhado em blocos ou unidades temáticas, como por exemplo, a história da

capoeira, os elementos da capoeira e suas características, entre outras. O filme

também possibilita trabalhar inúmeros temas ligados a outras disciplinas.

6. 1 A Capoeira no Processo Pedagógico

Muito tempo se passou até que a capoeira superasse esse estigma de

mazela social. Pode-se afirmar que a história da capoeira nos últimos cem anos tem

Page 19: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

19

sido a trajetória de sua inserção e institucionalização na sociedade brasileira. Aos

poucos foi sendo reconhecida como expressão de cultura nacional, como técnica

eficiente de luta e mais recentemente, como instrumento educativo importantíssimo

para a consciência de nossa cultura (FALCÃO, BRASÍLIA, 1996).

A capoeira pode se integrar aos currículos escolares, sem a conotação de um

simples passatempo, ao contrário, pode integrar-se como uma atividade que tem

lugar de destaque, porque é um jogo que pode desenvolver a criança em seu todo,

em virtude de sua riqueza de expressão e musicalização e principalmente do seu

aspecto de ludicidade. Assim, concorda-se com Oliveira (1983), quando diz que o

jogo é um recurso metodológico capaz de propiciar uma aprendizagem espontânea

e natural, concorrendo para a descoberta e minimizando a atmosfera

predominantemente artificial e tecnicista que impera nos meios educacionais,

estimulando a crítica, a criatividade, a socialização e muitos outros aspectos. A

capoeira, como parte integrante da existência de muitas pessoas, é um fenômeno

lúdico fundamental. Enquanto cultura de movimento na escola deve ser vista como

movimento crítico-social.

A viabilização da capoeira na escola, dentro da proposta aqui sugerida,

requer, portanto, um compromisso com sua historicidade. Não basta que o ensino-

aprendizagem da capoeira se realize apenas pelo viés da técnica, do espetáculo, do

desenvolvimento físico. A capoeira deve ser vivenciada e analisada a partir de suas

próprias mudanças, de sua leitura histórica, de seus condicionantes, de modo a

permitir o desvelamento de suas contradições. Falcão (1996), sem perder de vista a

questão da dinâmica do poder, que incontestavelmente, plasma as suas

configurações. A capoeira emplaca as contradições sociais, onde a dominação e a

resistência coexistem de forma conflitante, fazendo dela uma figura emblemática,

reveladora dos conflitos sociais.

No ensino de história a capoeira pode ser inserida de duas formas: como

tema gerador que teria a função de mobilizar os alunos para a discussão dos

conteúdos relacionados a ela, tais como escravidão moderna, formas de resistência,

sociabilidades no período colonial, imperial e republicano do Brasil, por exemplo.

Neste caso se partiria da capoeira, que é um tema mais próximo dos alunos e

atrelaria a este, outros conteúdos que seriam desenvolvidos pelo professor no

decorrer de um período.

Page 20: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

20

Outra possibilidade é trabalhar com a metodologia da Unidade Temática

Investigativa, neste caso o professor teria como objetivo o desenvolvimento de

ideias históricas nos alunos sobre a capoeira e sua importância para a identidade

dos afro-brasileiros. Para tanto, seu ponto de partida é buscar saber o que os alunos

já conhecem sobre o tema, com a elaboração de problematizações e o levantamento

de hipóteses pelos alunos. Nesta metodologia, o processo de aprendizagem requer

que o aluno seja ativo construindo o conhecimento a partir dos indícios que o

professor seleciona para serem discutidos em sala de aula. Para tanto, o professor

irá trabalhar com os alunos documentos históricos, fontes escritas, depoimentos de

vários sujeitos históricos, fragmentos de historiografia que discutam o tema e

possibilitem aos alunos responderem de certa forma as hipóteses levantadas no

inicio do estudo. Com isto, poderemos ter um aluno que não responda perguntas

apenas, mas que de posse do conhecimento histórico possa produzir narrativas

históricas sobre o passado e com isto sobre a capoeira.

O filme etnográfico abre-se para ambas as possibilidades didáticas, uma vez

que, apresentam os diferentes sujeitos, documentos, imagens, entre outros que o

professor pode inserir e discutir em suas aulas. Além disto, temos sempre que ter

em mente o fato que trabalhar com a cultura afro-brasileira é mostrar para os alunos

as pessoas do povo, que como eles, vivem, lutam, trabalham, brincam entre muitos

outros aspectos, que passam por experiências de vida semelhantes, mas que cada

uma contém em si sua singularidade.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente projeto direcionado a professores do colégio, procurou-se

privilegiar os valores da cultura afro-brasileira e consequentemente da capoeira

dentro da proposta educativa. A metodologia utilizada (história de vida, os

movimentos corporais, as artes, o diálogo, a expressão dramática e a música)

estimulou os professores e consequentemente os alunos ao aprendizado da cultura

afro-brasileira, considerando a capacidade de formação de pessoas críticas e

conscientes de sua própria história.

Page 21: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

21

Foi um trabalho participativo, no qual a abordagem se deu a partir da

experiência local dos sujeitos históricos, os moradores do município de São Jorge do

Patrocínio. São estes sujeitos que fazem, vivem, valorizam e divulgam a prática da

capoeira mantendo viva a tradição, a história, os valores e as práticas culturais afro-

brasileira em nossa região.

Foi muito gratificante inserir a cultura da capoeira na escola e resgatar os

valores da cultura brasileira, e, através dela, esperamos conseguir fazer com que a

ética trabalhada faça ressurgir os valores históricos que se perderam ao longo dos

tempos e desmistificar a prática da capoeira, atribuída historicamente como uma

atividade de vagabundos e malandros, à margem da sociedade brasileira. Agora ela

foi levada para as escolas como forma de conhecimento e de expressão.

Enfim, o estudo da capoeira resultou em algo positivo dentro da comunidade

escolar, pois ao estudar a história da capoeira e perceber esta manifestação cultural

rica em movimentos corporais, que contribuem na formação de valores importantes

para crianças, jovens e adultos, que faz parte da identidade do povo brasileiro, que

pode ser vivido dentro e fora da escola e só faz fortalecer esta comunidade, dando

sentido e significado a sua existência e unidade com o restante da nação.

8 REFERÊNCIAS

ARAÚJO, E. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898. ARAÚJO, P. C. de. Capoeira: um nome – uma origem. Juiz de Fora: Notas & Letras, 2005. AREIAS, A. das. O que é capoeira. São Paulo: Brasiliense, 1983. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações e ações para a educação das relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006. _______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. 1988. _______. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC/Secretaria Especial de Políticas de Promoção

Page 22: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

22

da Igualdade Racial/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2004. CAMPOS, H. (Mestre Xaréu) - Capoeira na escola, Salvador-BA 1990. CAVALCANTI, N. O. Crônicas históricas do Rio Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. CRUZ, J. L. O. (Mestre Bola Sete). Histórias e estórias da capoeiragem. Salvador: P555 Edições, 2006. EDMUNDO, L. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. 2. Ed. Rio de Janeiro: Athena, 1940. FALCÃO, Luiz C. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE – Royal Court, 1996. FILHO, A. P. CAPOEIRA: da senzala às Olimpíadas? Rosa dos Ventos. Revista do Programa de Pós - graduação em Turismo. Universidade de Caxias do Sul. V. 1, n. 0, jul/dez. 2009. <Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/rosadosventos/article/view/357/296 acessado em julho de 2012.> FREITAS, J. L. de. Capoeira infantil: a arte de brincar com o próprio corpo. Curitiba: Editora Abadá, 1997. HUIZINGA, J. H. L: O JOGO COMO ELEMENTO DA CULTURA. tradução de João Paulo Monteiro. 2 ed. São Paulo : Perspectiva, 1990.

ITAPOAN, Mestre (Raimundo de Almeida). Bimba: Perfil do Mestre. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1982. LYNN, H. A Nova História Cultural. Tradução de JEFFERSON LUIZ CAMARGO. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MELLO, A. S. A história da capoeira. Pressuposto para uma abordagem na perspectiva da Cultura Corporal. In: VIII Congresso Brasileiro de História da Educação física, Esporte, Laser e Dança Ponta Grossa - PR. 2002. OLIVEIRA, E. M.; SILVA, F. R. O Macrogrupo Banto: Etnia e escravidão, um pouco de cultura Africana. Caminhos da geografia, Uberlândia. V.18. Jun/2006. Disponível em: http://www.ig.ufu.br/. PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – História. Curitiba: SEED – PR, 2008.

Page 23: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

23

________, Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Diretoria de Políticas e Programas Educacionais. Coordenação de Desafios Educacionais Contemporâneos. Educando para as Relações Étnico-Raciais II. Curitiba: SEED – PR2008. - 208 p. - (Cadernos temáticos). PASTINHA, Mestre Pastinha, escritos de, 1988. PELEGRINI, S. C. A. A gestão do patrimônio imaterial brasileiro na contemporaneidade. História, vol.27, no. 2 Franca, 2008. PINATTI, D.; OLIVEIRA, S. G. de. Capoeira: a arte marcial do Brasil. 2 vol., São Paulo, Editora Três. 1984. REGO, W. Capoeira Angola Ensino Sócio-Etnográfico. Bahia, 1968. REIS, A. L. T. Brincando de capoeira. Cidade: Ed. Abadá, 1997(a). REIS, J.J; GOMES, F. dos S. Liberdade por um fio: Historia dos quilombos do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1996. SANTOS, L. S. Educação- Educação Física- Capoeira. Maringá-PR. Fundação Universidade Estadual de Maringá-PR Imprensa Universitária, 1990. ____________. Capoeira: uma expressão antropológica da cultura brasileira. Maringá: UEM, 2002. SERGIPE, MESTRE. O Poder da Capoeira. Imprensa Oficial do Paraná. Curitiba, 2006. SILVA, L. H. O. Por uma história e cultura Afro-brasileira e Africana. In: CERRI, Luiz Fernando (org.) Ensino de História e educação: olhares em convergência. Ponta Grossa: UEPG, 2007, p. 139-151. SILVA, G. DE O. Capoeira: do engenho à universidade. São Paulo: O Autor, 1993. ____________. Capoeira: do engenho à universidade. São Paulo. Cepeusp. 3ª edição. 2002. SOARES, C. E. L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. Ed. rev. e ampl. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2002. ______. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial 1850-1890. Ed. Rio de Janeiro: Access Editora, 1999. SOUZA, A. N. A. Entrevista concedida a Carolina de Souza Amaral sobre a capoeira na cidade do Rio Grande. Rio Grande, 30/04/2010. SOUZA, M. de M. e. África e Brasil Africano. São Paulo. Ed. Ática, 2008.

Page 24: A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE … · A MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA CAPOEIRA NO MUNICÍPIO DE SÃO JORGE DO PATROCÍNIO: ELEMENTOS PARA O ENSINO DA CULTURA

24

VIEIRA, L.R; ASSUNÇÃO, M. R. Os desafios contemporâneos da capoeira. Revista Textos do Brasil, n°14, p.10-19, s/d. ______. Mitos, controvérsias e fatos: construindo a história da capoeira. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 34, p.81-121, 1998.