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A luneta do Arquiteto

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A luneta do Arquiteto

ÍndiceSobre poesias oferecidas............................................. 4A luneta do arquiteto...................................................8La lunette de l'architecte..............................................8

Ars Nova......................................................................... 9Cantiga de amigo.......................................................11Cena aberta................................................................12sua paixão seria decisiva........................................... 12Corrupios no ar parado..............................................13Esta Madrugada.........................................................14Em memória de Gesualdo de Venosa....................... 15Soneto da harmonia partida.......................................17Impercebido...............................................................18Urbano e calmo......................................................... 19As águas turvas do Mondego.................................... 20Soneto do amor Sereno............................................. 21

Sobre Poesia...................................................................22Bissexto..................................................................... 23Razões de canto.........................................................25

Sobre gente.....................................................................26Vem viajar.................................................................27Verde imenso oceano................................................ 28A dedication.............................................................. 29Inalcance................................................................... 31O anjo em cima do caixote........................................32Ana............................................................................ 33Correio.......................................................................35e.e.cummings.............................................................36Para Jerusalém, no natal............................................37Lenço.........................................................................38Moeda........................................................................38Marigold....................................................................39Troy........................................................................... 40Revenant....................................................................41Tema para um mote alheio........................................42

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Run of the mill.......................................................... 43The mind's glow worm..............................................44Noli me tangere......................................................... 45Ouviram do Ipiranga................................................. 46Festas Táteis...................................................................................47Perfeição Concisa......................................................48Sempre Cabral...........................................................49A noite se constrói sozinha....................................... 50Twinkle Fair.............................................................. 51Poema convexo......................................................... 53

Sobre o mundo............................................................... 54O banquete sob o rio................................................. 55Canteiro..................................................................... 58Seis instantes do trajeto.............................................59

Höhe und Tiefer............................................................. 62Paráclito.....................................................................63Salmo 92....................................................................65S. Cosme................................................................... 67Feliz dia dos santos antonios.....................................68

Circunstância .................................................................69A graça de ser Maria................................................. 70Sonnet de méfiance.................................................. 71Mamar....................................................................... 72Pour un ange à son jour de fête:................................ 73Santa..........................................................................74Paródia.......................................................................75Lise Törek................................................................. 76Cívia.......................................................................... 76Noctu......................................................................... 77Ana Maria..................................................................78Si lo hubiera escrito Calderón................................... 79

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Sobre poesias oferecidas16 III 89

Nem todo mundo é igual; há os caudalosos. Drummond, segundo Cabral:" não há guarda chuva contra o poema". Cabral mesmo prefere ou só sabe a secura. Que talvez seja uma forma de fazer da introspecção uma forma criativa: Cabral está apaixonado por uma colega de poesia agora, aos 69 anos, o que não parece ser sinal de uma secura de emoções, puro discurso de caniço pensante. Eu sempre fui Cabral, Danusia foi Drummond. Drummond, chefe de gabinete do Ministro Capanema, enamorou-se, e sendo de movimentos imediatos, foi fazer amor nas escadas de incêndio do prédio do MEC na Graça Aranha; pois alguém abriu a porta e, no susto, o poeta despencou escada abaixo. Fraturas. No entanto, ele era tímido. Tudo isto para te dizer que, nunca tendo entrado numa escada de incêndio, só consigo ver teus poemas com os olhos secos de Cabral. E daí o "Catar Feijão": no escrever, diz ele, como no catar feijão, "joga-se fora o que

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boiar"; mas a diferença entre os dois atos é que no catar feijão recata-se a pedra do fundo do alguidar; e no escrever, guarda-se a pedra-palavra: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo/ obstrui a leitura fluviante, flutual". Acho que no que aí há feijão bom, há até pedra; mas bóia muita coisa. Falta catar. Aliás se não houvesse feijão e pedra eu nem estaria te escrevendo, porque na minha arrogância não perdôo falta de talento, quando é de estética que se trata. A poiésis, o ato de fazer, tem que resultar em proporção e em graça, em harmonia e em espanto (harmonia sem espanto não é arte: é decoração de interiores ou desenho industrial).Aí vem o trabalho da cata. Eu com minha flauta: à minha direita, na minha mesa de advogado, ela fica ali me assombrando. A trinta centímetros, ela está a meio segundo de distância, mas a quatro meses de estudo obstinado, se tivesse que tocar em concerto. Vale a pena? Vale catar poemas, se a intenção é expressar-se e não poiésis? Pois que poemas não falam do amor e de impasses, da frustração de uma conversa intensa ao telefone pelos reclamos imediatos, absolutamente concretos, do Gabriel. Poemas falam de

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poesia, só. Chatíssimos. Só que quando o puto do Byron escreve "She walks in beauty, like the night/ of cloudless climes and starry skies" eu vejo a beleza da mulher que eu quero, e não a de alguma lady de 1811. O poeta fez a doação enorme de objetivar sua paixão, de criar um universo emotivo onde os afetos são comprimidos ao extremo, adquirem o peso do chumbo e ao mesmo tempo a dureza do diamante (cientificamente, poesia é isso: compressão do máximo de significado numa forma auto-referente). A poesia não é uma expressão de sentimentos, mas uma conformação, uma doação de trabalho e instinto aos outros, ao público impessoal. Não é, enfim, uma expressão de amor individual, mas um ato de amor à Humanidade.Também é uma superação do efêmero, como é óbvio. "So long as men can breath or eyes can see,/ So long lives this, and this gives life to thee", dizia Shakespeare ao seu Cavalheiro. Este efêmero, cuja fruição é todo o Zen, e é o contrário de nossa arte e poesia do Ocidente. De outro lado, além do poema, há o ato de mostrar o poema, que, como ato, é também

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poiésis, e tem uma infinidade de sentidos, todos eles (para mim) sedosos. ("Que sob a palavra gasta/persiste na coisa seda" - sempre Cabral).

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A luneta do arquiteto

No horizonte exato, a lua argentina:as esferas em quinta justa.Do logaritmo do desejoà política da sinrazón,

um traço preciso de pura inexistência, lúcifer mirando-se no vidro espelhado.

La lunette de l'architecte

Dans l'horizon exact, la lune argentine:Des sphères en cinquième juste.

Du logarithme du désirà la politique de la sinrazón,

vient le dessin précis en pure inexistence, Lucifer regardant le miroir glacé.

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Ars Nova

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Ainda Chovia

Você sorriu com o rosto inclinadoe a espuma feliz do momentofez um levíssimo movimento

no espaço do seu para o meu lado.

Os anos de nossa convivênciade amor truncado, impasse e desgaste,

fundiam o metal do engastedessa única e doce experiência.

O seu cabelo ainda molhadobeijava manso a pele dos meus dedos.

Todo o certo e todo o errado

daqueles tempos tristes e ledostinha agora esvaído e passado,

nós mais fortes do que nossos medos.

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Cantiga de amigo

Sei que você é má; sei como é arrogante.Sei quanto despreza minha inteira figurapor feio, por gordo, pela ínfima estatura.Sei quanto a você custou ter sido minha

amante.

Mas sei também que não há escárnio e mal dizer

nisso que sinto; e escrevo neste momento.Aqui e agora só borbulha o sentimentode um imenso e flamejante bem-querer.

Todas imperfeições que vejo em vocêsão as delícias de sua humanidade.

Cada um que em espanto assim me lê

falando de paixão com tanta crueldadesabe que Deus fez este mundo que se vê

e só fez você em minha felicidade.

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Cena aberta

Foi do meio da platéia vaziaque você, no escuro, deu seu grito.Nem uma palavra, só um som aflito

foi que ouvi do fundo da coxia.

A peça acabara; já a dor da hora,sofrida com a dor do meu personagem,

fora sendo diluída na passagemdesde o palco até o ar frio lá fora.

Do grito, vi que este amor rejeitadodurante a doída encenação da trama -num repente ainda maior de drama -

agora era querido e demandado.

Há uma hora ainda, em cena viva,sua paixão seria decisiva.

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Corrupios no ar parado

Claro e escuro equilibrando, quente e frio em jeito certo,

meio ruço e meio aberto, o dia vai macio e brando.

Tempos ruins, e tempo bom;

incerteza e intensa paz; o mundo faz e desfaz

a cada luz, vento ou som.

Vou passando assim meus anos cheios de inquieta quietude;

igual a todos humanos,

o mesmo, por mais que eu mude, acertando com os enganos, enquanto a vida me ilude.

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Esta Madrugada

Eu quero desta quieta madrugadaa calma, o silêncio, e a Paz.

Só esta mansidão me satisfazna vida momentosa e agitada.

Meu amor está dormindo distantenos lençóis de cetim da madrugada;Deus fará com que seja despertada

com a mesma doçura deste instante.

Espero que essa hora tão suaveque precede - bem leve - o amanhecer

seja a onda que lave e relave,

com o macio que a onda pode ter,todas feridas deste tempo grave.

E o que já foi, não tenha mais que ser.

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Em memória de Gesualdo de Venosa

Na hora em que o dia apaga as corese reflete, imerso em si, seus males,

eu peço que também tu te calespara ouvir o som dos meus amores.

É o mar lento, impreciso e constantedo interior de uma concha na praia.

É a lei que se expanda e se retraiao incontido no peito do amante.

Vai a onda em espuma de orgasmoe retorna torcida e amarga

revoltada no mesmo marasmo

em que a impotência explode sua carga;e vai doçura e volta sarcasmo

na paixão que se espreme e se alarga.

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Le Sonnet de l'accord brisé

Des âmes entièrement faites en fusionNous aurons en nous tout l'agrément;

nous sommes en accord même au sentimentQu'au but viendra la séparation.

Mais cette raison qu'à nous préside

elle a la prudence de la sottise,et la faiblesse qui est toujours de misedans les affaires où le cœur est vide.

C'est ainsi que j'ai le pauvre espoirDe nier cette loi qu'alors on lise

et que le plus sombre des devoirs

d'achever aux fins qu'on se divisene survivra ce jour et ce soir

- qu'enfin ce parfait accord se brise.

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Soneto da harmonia partida

Nossas almas todas em fusão,Tudo em nós se passa em harmonia;

Houve acordo mesmo em que haveria,No fim de tudo, a separação.

Mas esta razão que a nós presideTem a prudência de uma loucura,

E a imperfeição como a que perduraOnde o excesso de razão reside.

Assim é que eu tenho a esperançaDe que este pacto frio desabe

E que outra voz mais suave e mais mansa

Venha com a certeza de quem sabeSer preciso, nesta nossa dança,

Que a perfeita harmonia se acabe.

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Impercebido

Quando já se foi todo o amor passado,e da tersa curva se olha o caminho,

carece adiante a falta de carinhoque todo o gozo não teria compensado.

Por mais imenso que era o prazerpor mais aquosa cada madrugadamato fundo, espanto e revoada,nada paga o que não se pôde ter:

o toque leve de inteiro afago,o gesto quieto de suavidade amável -um vento que roça, macio, o lago.

As minúcias do afeto inenarrável,que de ti nunca tive e já não trago,carinho imperdido e inencontrável.

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Urbano e calmo

Nestas horas da mais quieta desesperançarepartidas num suavíssimo conversar -como um pássaro voando parado no ar

recolho o fogo selvagem de minha dança.

Dança de bicho fera buscando parceira;dança de canto hondo, afiada como espada;

jiga irlandesa, tesa, precisa e afogueada;corpo explodindo em faísca de pederneira.

Urbano e calmo, moderado e elegante,falo de coisas, sem avanço nem recuo,parado no ar numa agitação incessante;

pois nessa farsa quieta eu peno, sofro e suo.Para ocultar a fornalha aberta e hiante,Morri na hora; e morrendo continuo.

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As águas turvas do Mondego

Toma; aqui está tudo que extraíNo meu garimpar deste tempo todo

O que encontrei sob o cascalho e no lodoEra só teu; agora devolvi.

Se ainda tivesse uma alma sobrandoSeria ela, sempre, para ti;

Contando as almas todas que perdiEra impossível continuar te amando.

Deste canto, desde onde me despeçoTu és tão linda como quando cheguei;

Ou mais ainda, se em ti eu meço

As esmeraldas que eu garimpei.Sei, no entanto, que não há mais regresso:

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Ninguém desama o que já ameiSoneto do amor Sereno

A paixão que se solta e se alarga,toma o espaço todo do vivente,é um sentimento inconseqüenteque cedo se esgota; ou amarga.

Paixão serena flui leve e mansa,num querer suave e meticuloso:

o cotidiano remansosoacolhe, enraíza e jamais cansa.

É amor de mãos quentes e abertas,de olhos nos olhos da amada;

é amor das escolhas certas,

da doação inteira e adequada.Perfeita, entre as emoções incertas -

21

uma paixão desapaixonada.Sobre Poesia

22

Bissexto

A enxada e pá das palavras - o som -e outros meios e muitos dessa economia

singular;a forma omissa das coisas - a terraabaixo e além das garras da enxada;

a forma da pesca (de caniço)que entretece com a água a intimidade das

raízes.

O trabalho eventual, errante,não é do barqueiro que desce o rionem a tarefa do caixeiro viajante.A plantação é apegada ao solo,

estante como um cruzeiro levantadona memória da ação de bala ou faca.

E a imagem última aponta

23

o vértice de sua exata função. (1970)

24

Razões de canto

Eu canto a noitesilenciosa e vazia

que posso encher toda de solidão.Canto como a coruja

que mora na mangueira do eu quintal,num monólogo polifônico

Canto a amplidãodesde que vaziacanto o silêncio

desde que sem ecocanto o amor

desde que sem razão (1964)

25

Sobre gente

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Vem viajar

De tão calmo, verde e claro

o mar quase não balança.Com seus olhos de criança,o dia está num tempo raro.

Vem, apóia em mim, e desce. O barco é velho como as lendas.

O vento tecendo rendasentre as velas; e amanhece.

Bom tempo pr'a navegar -o sol de inverno nos guia.Vai ser gostoso esse diasem ter hora de voltar.

O nosso amor nos aninha,as amarras já estão soltas.As ondas antes revoltas

estão em paz; você é minha.

27

Verde imenso oceanoVerde, imenso oceano de teu beijo nunca

havidoeternidade diferida do que o destino coage e

frustraseremos nós um só no topo e cume de algum

tempoquando esse oceano feito gota só, conquanto

imensaentrar em ti, sêmen dos deuses de todo

crepúsculo

28

A dedication

Deep inside your flesh, music caresses your outing,

all of you dimly wet by the soundand the throbbing intent

of Brubbeck's sly keyboard.

Eve of softness, heir to time,extract of long yielded kisses

and seamless dawns,catches you aware, but won.

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A véspera.

Neste antes para sempre postergadoem que nunca se chega ao exato agora,

ao instante pejado de si mesmodo tudo já, e nada além, e mais nada.

O indevir tem, contudo, estância própria;não espera, nem se poupa, nem se ilude:

vive inteiro o que nunca ocorrerá,com a sabedoria turva e velha da descrença.

30

InalcanceComo um fio de faca, exato,

na polpa e na dor do dedo cortado;como a pimenta no gostoe o ar da manhã no olfato;o que corta e dói e congela

mas só até, e não mais, e nuncaé o mesmo orgasmo transformado.

31

O anjo em cima do caixote.

O boi e o burro em papier machée o anjo,

muito alto,num caixote,com crepom.

A madeira range,o halo dói na testa

e no fundouiva um medo ainda e sempre sem nome

(anátema)

32

Anates passions guère dangereuses

l'amour le plus loin, le plus impossible,pour faire ta vie à jamais paisible pour laisser ton âme paresseuse

33

Crop of time It was August, and she called me flower, as though I were the dearest of her cats.

The dusk flowed in with caution and a restrained and sad light

punctured her eyelids and her brow.

I should be manlier, I guess; some of a satyr - rough if tender,

waiting by some Arcadic fir.

Flower then I was, transient on the side of a road,

glowing on the charm of my dying irrelevance.

34

Correio

chegou enfim sua cartaperdida tanto tempo nos correios.

não lhe era mais destinatárionem o destino era mais o meu.

35

e.e.cummings

nothing more harmful to reason than to be earnest.

reason is playful and witty, cutting as a caress,

hard as a foggy dawnyou cannot reach the truth with a flaming

sword

36

Para Jerusalém, no natal

Uma carta é um pouco asapois conclui distâncias

um tanto calmariapois enreda o tempo.A carta amiga é mais:

dessalga a saudade, dança-a.

Essa precisa missivanão se resume em aceno -

tange, toca, soacomo um sino contíguo

ou, como o dele, sino, parentemais ínsito, peitoral

perpetuamente vigente (1973)

37

LençoA imponência do verão fica excluída

desse espaço todo meu, que se recolhedobrado como um lenço antigo de linho.

MoedaMoeda sem reverso

toda face aberta e lindaeu te giro entre os dedos -

o lado irreversívelé um foco de farol na onda escura

38

Marigold

There isn't but truth in this love of plenty and rhythm

washing me thorough.Here am I close to your flesh,balming your skin in marigold,

mandrake and mistletoe,the geography of your hands on my hips.

I am afraid to split in half:this life or your grabbing speech.

Here am I as I am yours. (de um poema de Thereza Motta)

39

Troy

you are a multi-layered city:in each slab a life of its own,

all crowded, all soaked in time,no slice worthier than the whole,

the impregnable walling of your self. You are many and, somewhat, me.

40

Revenant

treat me softly as you tread on my aweas I am all exposed to the death inlaid in you

the fury of the unlove and opportunityimposed on you by the thorniest spirit of gray

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Tema para um mote alheio

O menino dança na salameigo e lento vai o diatão simples e tão vaziaesta vida me avassala.

42

Run of the mill

A roca que fia o sonhogira-moinho de água sem fim,

roda o tempo, flui o rio,e o longo fio faz trama e teia

indo e devindodesde, até e mais além.

43

The mind's glow worm

Under a blanket of mistmy dear friend dreams;

she knows what she meansto whom she did enlist.

Misty mysterious mind,your waking dreams elope -

if there is wit and hope,if this is a time of its kind:

"Shall I redress my past?shall I mend my ways?shall I give my days

to love and labor that last?"

And so did your night flowyour eyes bright and skin aglow

(Sobre um poema de Thereza Motta)

44

Noli me tangere

“Depois de ver-te, terei mudado”.

Tanto te queria sem te ver,macio era o corpo que não tinha,

então nada eras, sendo minha,e sólida em mim, sem o saber.

Perderemos os dois no instanteem que tato e tato se completam,em que fome e fome se aquietam,

e do nada emerge a amante

Não mude. Não me veja. Mais nada.Deixemos intocado o macio

corpo, sempre quente pois vazio;nossa esperança, imaculada.

45

Ouviram do Ipiranga

O menino pulava na plataforma do bonde(é proibido viajar na plataforma e nos estribos)

O bonde vazio,a rua vazia na hora de almoço

O bonde parouandou

parouO menino pendurava-se no balaústre

e sorria

O bonde parouO garoto gritou

"independência ou morte"

46

Festas Táteis

Nas festas táteis da madrugadao som ostensivo das cigarrase inaudito dos pelos - farpas

eriçadas em seu dorso -perfazem a música toda.

O frio do momento só espera- quieto - o silêncio enfim

do corpo prolongado.

47

Perfeição ConcisaA perfeição tem uma sombra

e nela nós dois vivemos;todo o brilho se revoltapara lado que é o de lá.

nas humilhações do escuronossa vida não nos pesa;

o prazer é escondido,mas por pura irrelevância.

48

Sempre Cabralem cada palavra despedidahá uma espera pregnante

de um outro galo que apanhe o gritoou da resposta fulminada;pulsa vivente a língua tesa

para lançar carinho ou corte,tato ou morte prefigurando

a espera engravidada.cada espera é despedida

toda palavra interminada.

49

A noite se constrói sozinha

Perdemo-nos os dois na noitee dela surgimos outros:

sua fonte murmurando em mimcomo uma outra linfa

obscura e essencial;eu, em alguma memória

de seu obscuro imanente; cada um parte da obscura

e radiante madrugada.

50

Twinkle Fair

estatelada no sol da tarde,liame e insídia, cobra coral;cada cor inatural entretecida

na explosão do momento prolongado.

jazida de medo fulgurante,sempre e inteiramente inevitável.

51

Quatorze anosDeixem-me gozar a irracionalidade da fonte

(a prodigalidade louca das águas naturais)

Deixem-me sozinho: quero noivar a solidão

Deixem-me ser ininteligível:amar o vermelho molhado,

odiar o verde sem adjetivos. Deixem-me entender o mundo pela análise da

palavra mundo.

Deixem-me ser sofista nas matérias da mudez.

52

Poema convexo

Como um úbere reflexona água velada de terraComo a seara ínsita -

convexa como um punhofechado mas por dentro;

E, além do punho, como a tardemas terminada e quente;

assim se dispersaa legião esparsadas pessoas figo

(1972)

53

Sobre o mundo

54

O banquete sob o rio

esta foi a terceira noite:com os pilares nus do rioa panda cérvix da pedra

do fundo do rio de pedras

a primeira noite primeirasendo delas a primeira

não pareceu noite, senãomomento da noite travessa

a água do rio águamenos dura do que a terceira

cochilava como a águado rio da noite rio

meus pés raízes pésimplantados na vazante

55

cochilavam com as águasvárias águas travesseiras

minhas mãos lentas mãoslentas ao som das águas

são primeiras como a noite

noite das águas primeiras

a segunda noite segundafoi segunda ante a outrafirmada em patas de seda

mais sedosa que a primeira

meus membros todos membrosressaltando a cheia noitea noite da água recheiaa cheia da água segunda

esta foi a noite terceira:

56

com as portas nuas do rioabertas como em clara

clara noite terceira. (1973)

57

Canteiro

a flor do imprevisto brota ao sole está ali - rente e ocre -

ao alcance do tato e além dos olhos

a flor do imprevisto cheira como noitee está ali - perto e linda -

na borda exata dos sentidos

a flor do imprevisto cresceu desde sempreno sétimo canteiro

contando a partir da porta amarela

58

Seis instantes do trajetoO fato, o fardo, o lagarto;o sol no corpo; a estrada.

Todo o Universo como causa,e a fazenda que não chega.

Peregrino sem orago, indopara além do próximo cupim,e deste, para outro. E destenuma sucessão irrelevante.

Só a transcendência e as cigarras.

.......

O saibro acomoda o péa curva revela.

E vai a estrada entre cigarrasnum enlace cuidadoso da montanha.

...........

A fonte d'água, entre rochas,numa clareza de noite quieta.

Apalpa o limo: morno.Pelo de bicho úmido.

Ali são horas; a noite marulha.

...........

59

O caminho, de pedras roliças,passo a passo, vai ao rio.

Depois, vai de si: só caminho.

...........

O caminho cessa, sem retorno,No mais escuro da estrada.

Você tateia; o nada é úmido,daquele molhado de lâmina

do olho de quem te desconfia.É o repente, é o instante,

E você está hiantemente só............

O caso da nova estrada

Não é a encruzilhadahiante

anteposta aos passos.

É o caminho, feito,cavado,

arrebentado no chão.

Não é o traço que uneo aqui e o ali

e que tem rumo e destino.

60

É o movimentoadiante;

é a expedição de caça

que tem motivos e não razões.

61

Höhe und Tiefer

62

Paráclito

Entre suas mãos fulguranteseu me encolho e me entrego.

Você está no mais azul do fogo,no sangue vivo que brota,

na pedra roliça do fundo do rio.Você está no susto

e no encanto do meu filho,no som da flauta do outro prédio

no mosaico cromático de Ravenna.Digo seu nome infinitamente,

enfrento sua cintilânciasem baixar os olhos,sem temer a fúria,

mesmo perante minhas ofensas.Você é meu resguardo e esperança,

sempre o foi e sempre o será,Deus dos antigos que nem conheço,

63

Deus dos que crêem e dos que negam,Deus dos filhos dos filhos dos meus filhos.

64

Salmo 92

Quem mora na querência de Deusem sua sombra descansarádizendo sempre: Senhor

tu és minha força e minha esperançae para tudo eu confio em ti.

Tu me livras do laço do caçador eda morte que vem insidiosa .

Eu me oculto entre as penas de suas asas,e sob elas me abrigo.

Com Teu escudo e verdadeira proteção,não me fustigará o medo escuro da noite,

a flecha que voa na luz do diaa peste que infecta nas trevas

nem a praga do meio dia. Mil pessoas perecem a meu lado

dez mil a minha esquerdae nenhum golpe me fere.

Com meus próprios olhos

65

verei a perdição dos pecadores.Como tu, meu Deus, és meu refugio

e minha morada a Tua morada, o mal não me acomete

e a pestilência não vem à minha casa.Pois Tu comandaras a teus anjos

que me guardem em todos os meus caminhos,e me ergam com suas mãos

para que meus pés não se firam no cascalho.E assim prevalecerei sobre os poderosos e os

dissimulados,como quem vence o leão e a serpente.

E o Senhor me dirá:Como tu me amas e conheces meu Nome

eu te protegerei e livrarei do malTu me invocarás, e Eu te responderei

Estarei contigo nas dificuldades,delas te afastarei e te darei a minha gloria

e prolongarei os teus diase te darei a minha Salvação

66

S. Cosme

por sutilezas da lenda(pese ou não a obra do santeiro)o dia alvora em gritose aflui: em bandos em revoadas em outroras (1973)

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Feliz dia dos santos antonios

A Thereza Motta

O antonio da feira, suado e quieto,o antonio do lixo de cada madrugada

o antonio sem nome de cada dia -numa esquina do tempo, fora de hora,

recebe a graça sempre suavede um cheiro, olhar ou gesto.

E da esperança ou fato vem a luzque inaugura desde o caos o milagre

e faz boa a exclusão de todos paraísos.

68

Circunstância

69

A graça de ser MariaQuem é você, Maria?

onde está o azul do aço das asas do besouro

onde está o macio veludosoo duro e rude e nodoso

onde está o deliberado e frioo gesto secreto e encolhido

da carícia truncada no percursoonde está sua ausência mais chegada?

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Sonnet de méfiance

Le sans prix de l'unicité,

quand il y a des choses si faciles,qu'on peut remettre pour la cité

des lettres comme ça comptant des milles.

Ce sont les malédictions du temps:on ne peut pas savoir nullementsi on est bien aimé dans l'espaceou si bien se cache une grimace

dans le plus beau des sourires,dont la clarté s'épuise partout.Quand on est dans l'age mûr

l'espoir est avare, le soin constant,

parce qu'il est fier et défiantce saint qui a reçu toute cette aumône.

71

Mamar

Vem de vocêcuriosamente

acadêmico e adequado o texto -uma menina engomada no uniforme de escola

sem vincossem poeira no joelho

uma solidão tão isoladaTão destilada,

parece a vontade de mamar que vem aos dez anos de idade.

72

Pour un ange à son jour de fête:

Dans tes ailes fières au parfum du ciel,c´est mêlé aussi de la cendre et miel,

Tu seras toujours une créature de Dieuplus proche d´Il qui sait le mieuxcomme blesser ce jour ci de gloire

comme faire éclairer le noir et sortir du néant un joyeux anniversaire

73

Santa.

Falso e veraz olho verde,mamilo do rosto, incisivo e doce;

a cintila de paixão sempre em passagem,a dedicação de quem caça uma presa.

Fera cigana entre pretensas grades,num preguiçoso desencanto, nu de amargura,

eternamente temporária em sua selvageria cômoda.

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ParódiaParodiando um pouco Chico Buarque:

mire-se nos gatos de Atenas,mármores lânguidos em calma

a preguiça atenta na almae ferocidade apenas

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Lise Törek

a idade pouca se engalanaem tafetás, renda e lantejoulas,

em olhos verde-bandeiraenormes, esquivos, sazonais (75)

Cívia

Cívia níviaestrela belacá na terra

quero tê-la (66)

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Noctu

Conheci Gloria inda meninanuma voluta de azul

e branco uniforme de escola;no entanto seus passosquietos na rua escura

me despertam no torpor noturno (1964)

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Ana Maria

O bosque escuro, sombra reversano verde da tarde da Úmbria:

a voz de madrugadaa surpresa macia

a ossatura de pássarouma nau heráldica na noite contígua

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Si lo hubiera escrito Calderón...

La buena virgen del Pilar- no se hay de comentar -pero muy virgen no es.Quien la mira de travéspuede ver en sus ojitos

la hambre de los cabritosa que el leche les faltan.Otras imágenes puras

han visiones más durasde los deberes de santo:Pilar es juego y canto.

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