a longa tarde

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 1 Anais do XIX Seminário de Iniciação Cientíca M   Ú      S    I      C    A   A. Piedade A longa tarde de um fauno 1 Acácio Tadeu de Camargo Piedade 2 A auta é desde sempre um instrumento in- vestido com imensa simbologia, não apenas no Ocidente mas também nas sociedades tradicio- nais. Uma auta de osso foi o instrumento mu- sical mais antigo até hoje encontrado, datando de 40.000 anos (g. 1). Especulações levam a crer nesta relação originária do humano com o sopro musical: mais do que produzir sons, o sopro musical anima, no sentido latino, move as ondas do mundo espiritual. Na tradição bíblica, o termo hebraico ruah (traduzido em grego por  pneu- ma) designa o próprio espírito que dá a vida. Na Amazônia indígena, o sopro do xamã torna visível e cura 3 , e as autas sagradas ocupam um lugar central na visão de mundo de mui - tas destas sociedades. O chamado complexo das autas sagradas envolve a existência de in - strumentos musicais, nem sempre autas pro - priamente mas sempre aerofones, considera- dos de uso exclusivo dos homens adultos, que não podem ser vistos por mulheres. As autas sagradas são associadas a vozes de espíritos poderosos e perigosos, e estão presentes em ritos de iniciação masculina e outros rituais, particularmente na Amazônia e na Melanésia. Parte do complexo é o mito que conta que es - tes instrumentos pertenceram originariamente às mulheres, tendo sido tomados delas pelos homens. A literatura sobre o complexo das autas sagradas enfatiza o simbolismo sexual nele presente e questões de gênero, como an- tagonismo sexual, dominação masculina e “matriarcado”. 4  Os instrumentos sagrados formam muitas vezes uma larga família de instrumentos, que pode incluir outros tipos de aerofones, como o zunidor 5 . Performances destes aerofones foram observados em várias regiões do mundo, especialmente na Nova Guiné e nas terras baixas da América do Sul 6 . Entre os índios Wauja, da região do alto Xingu, no Brasil Central, estas autas são as máscaras que perigosos espíritos invisíveis construíram para se esconder da luz. 7 Pretendo aqui reetir sobre uma história, ou um mito, que fala do sopro, da auta, do 1  Baseado em comunicação apresentada no colóquio Antropologias em Performance, 27-9/05/2009, GESTO/PPGAS/UFSC/FAPESC. 2  Graduado em Música (Composição e Regência) pela Universidade Estadual de Campinas (1985), possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Atualmente é professor efetivo do De partamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS/UDESC) da Universidade do Estado de Santa Catarina. É membro dos grupos de pesquisa MUSICS (UDESC) e MUSA (UFSC). 3  Ver Beaudet (1997). 4  Sobre a questão do matriarcado, ver Bamberger (1974). 5  Na antiguidade grega, o chamado rhombos era usado em cultos de Mistério, como o de Dionísio e o de Cibele, sendo que eram girados por homens cobertos com tinta ou fezes (West, 1994:122). 6  Ver Gregor & Tuzin (2001). 7  Ver Piedade (2004). Fig. 1: Flauta de 40.000 anos, encontrada por arqueólogos da Uni - versidade de Tübingen em uma caverna na Alemanha. Fotograa de H. Jenen (Universidade de Tübingen).

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Fala sobre os artistas que tiveram como inspiração o fauno.

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  • 1Anais do XIX Seminrio de Iniciao Cientfica

    MSICAA. Piedade

    A longa tarde de um fauno1Accio Tadeu de Camargo Piedade2

    A flauta desde sempre um instrumento in-vestido com imensa simbologia, no apenas no Ocidente mas tambm nas sociedades tradicio-nais. Uma flauta de osso foi o instrumento mu-sical mais antigo at hoje encontrado, datando de 40.000 anos (fig. 1).

    Especulaes levam a crer nesta relao originria do humano com o sopro musical: mais do que produzir sons, o sopro musical anima, no sentido latino, move as ondas do mundo espiritual. Na tradio bblica, o termo hebraico ruah (traduzido em grego por pneu-ma) designa o prprio esprito que d a vida.

    Na Amaznia indgena, o sopro do xam torna visvel e cura3, e as flautas sagradas ocupam um lugar central na viso de mundo de mui-tas destas sociedades. O chamado complexo das flautas sagradas envolve a existncia de in-strumentos musicais, nem sempre flautas pro-priamente mas sempre aerofones, considera-dos de uso exclusivo dos homens adultos, que no podem ser vistos por mulheres. As flautas sagradas so associadas a vozes de espritos poderosos e perigosos, e esto presentes em ritos de iniciao masculina e outros rituais, particularmente na Amaznia e na Melansia. Parte do complexo o mito que conta que es-tes instrumentos pertenceram originariamente s mulheres, tendo sido tomados delas pelos homens. A literatura sobre o complexo das flautas sagradas enfatiza o simbolismo sexual nele presente e questes de gnero, como an-tagonismo sexual, dominao masculina e matriarcado.4 Os instrumentos sagrados formam muitas vezes uma larga famlia de instrumentos, que pode incluir outros tipos de aerofones, como o zunidor5. Performances destes aerofones foram observados em vrias regies do mundo, especialmente na Nova Guin e nas terras baixas da Amrica do Sul6. Entre os ndios Wauja, da regio do alto Xingu, no Brasil Central, estas flautas so as mscaras que perigosos espritos invisveis construram para se esconder da luz.7

    Pretendo aqui refletir sobre uma histria, ou um mito, que fala do sopro, da flauta, do

    1 Baseado em comunicao apresentada no colquio Antropologias em Performance, 27-9/05/2009, GESTO/PPGAS/UFSC/FAPESC.

    2 Graduado em Msica (Composio e Regncia) pela Universidade Estadual de Campinas (1985), possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Atualmente professor efetivo do Departamento de Msica e do Programa de Ps-Graduao em Msica (PPGMUS/UDESC) da Universidade do Estado de Santa Catarina. membro dos grupos de pesquisa MUSICS (UDESC) e MUSA (UFSC).

    3 Ver Beaudet (1997).

    4 Sobre a questo do matriarcado, ver Bamberger (1974).

    5 Na antiguidade grega, o chamado rhombos era usado em cultos de Mistrio, como o de Dionsio e o de Cibele, sendo que eram girados por homens cobertos com tinta ou fezes (West, 1994:122).

    6 Ver Gregor & Tuzin (2001).

    7 Ver Piedade (2004).

    Fig. 1: Flauta de 40.000 anos, encontrada por arquelogos da Uni-versidade de Tbingen em uma caverna na Alemanha. Fotografia de H. Jenen (Universidade de Tbingen).

  • A longa tarde de um fauno

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    V Jornada de Iniciao Cientfica

    sensual, da divindade, da msica, do destino; um relato que vagou da Grcia Clssica para o campo das Artes da Europa, de narrativa se tornando imagem, poema, msica e dana. Transmutado por estas transformaes que se operaram ao longo de sculos e em contextos histricos diferentes, este mito est vivo, hoje, no s por ter passado pelas mos de grandes artistas, mas tambm porque algo faz dele uma personagem importante no grande teatro da Histria. Este drama est assim dividido:

    Cena I. O mito grego contado por Ovdio em Metamorphosis (8 AD)

    Cena II. Pintado por Franois Boucher (1759)

    Cena III. Poetizado por Mallarm (1876)

    Cena IV. Musicado por Debussy (1894)

    Cena V. Coreografado por Nijinsky (1912)

    Cena VI. Vivo (hoje)

    1. O mito grego contado por Ovdio em Metamorphosis (8 AD)

    No tempo em que deuses e humanos con-viviam nesta terra, na regio de Arcadia se passou esta histria. Pastores cuidavam de seu rebanho, e as belas ninfas eram cotejadas pelo stiros. Um dia, o deus Pan, metade homem metade bode, v e se apaixona pela ninfa Syr-inx8. Insensvel ao seu amor, ela foge de suas perseguies. Na beira de um rio, pede ajuda s suas irms niades. Crendo que agarrava a ninfa fugitiva, o deus abraou um feixe de canios. Enquanto suspirava de dor, o vento fazia soar os canios, produzindo um som que se assemelhava ao seu lamento. O deus encantou-se com a doce sonoridade, cortou os

    canios em tamanhos desiguais, e, unindo-os com cera, criou o instrumento com o nome de sua amada. Pan diz: desta forma pelo menos estaremos sempre em unssono. Ovdio de-screve desta forma o mito no primeiro livro das Metamorfoses (Syrinx, I, 689-746). im-portante notar que a palavra grega syrinx quer dizer flauta, mais especificamente flauta-de-p. O mito acima descrito , portanto, o mito de origem da flauta. Alm disso, Iynx tambm o nome de um pssaro9 cujo canto era ouvido como uma imitao do aerofone aulos transversal (West, 1992, p. 113).

    2. Pintado por Franois Boucher (1759)

    O artista plstico parisiense Franois Boucher (17031770) foi muito influenciado. O quadro Pan et Syrinx, de 1759 diretamente baseado na cena de Metamorfoses. Sob o olhar das niades e instigado pelo cupido, que se-gura uma tocha acesa e um arco, o deus agarra o feixe de canios, a prpria Syrinx. Embora a influncia de seu contemporneo Watteau seja clara, o quadro de Boucher tem um carter dramtico e de movimento, reminiscncias do estilo de Rubens. parte da movimentao de Pan, as niades mostram-se com relaxada beleza. O calor sensual das niades alcanado

    pela luz incidindo sob sua pele de textura ave-ludada. Se o corpo humano belo, mais belo que o dos animais, porque revela a existncia de uma vida interior, e a pele humana mani-festa o frmito da sensibilidade interna, a car-nao de uma verdade interior (Ribon, 1991, p. 78). Para os padres da poca, trata-se de uma imagem propriamente ertica.

    3. Poetizado por Mallarm (1876)

    8 Uma niade, sereias das guas cujo canto encanta, sirne.9 Da famlia do Picapau (em latim torticollis, em portugus torcicolo).

    Fig. 2: Pan & Syrinx (Frana, 1722-1724). Jean-Franois de Troy

    Fig. 3: Pan et Syrinx (leo sobre tela, 1759) por Franois Boucher (1703 - 1770 ); London National Gallery.

  • 3Anais do XIX Seminrio de Iniciao Cientfica

    MSICAA. Piedade

    Mallarm declaradamente conhecia a obra de Boucher, e provavelmente conheceu o quadro Pan et Syrinx em forma de gravura atravs de alguma reproduo, como era co-mum na poca (AUSTIN, 1995:199). Seu poe-ma coloca-se no gnero de glogue, procurando dar continuidade s clogas de Virglio, que, por sua vez, inspiradas nos idlios de Tecrito, inauguram toda uma nova idia de natureza como lugar de uma beleza nostlgica, o bucli-co: trata-se do estilo pastoral. Esta filosofia da natureza se faz um estilo artstico que constitui toda uma corrente que atravessa os sculos at os nossos dias. Na cloga de Mallarm, o fauno acorda de um sonho no qual era seduzido por ninfas. Desperto, canta sua angstia.

    Essas ninfas eu quero eternizar. a sua carnao, que ela gira no arSonolento de sonhos e arbustos.Massa de muita noite,A dvida se armaEm filetes sutis que so a prpria mata,Prova infeliz de que eu sozinho me ofertava guisa de triunfo a ausncia ideal das rosas.10

    A primeira verso deste poema, Mono-logue dun faune (1865), destinava-se ao teatro. J era pensado, portanto, no seu potencial cni-co, imagens e movimentos passionais postos em ao. Entretanto, sua pea foi considerada inadequada para o palco, e somente dez anos depois Mallarm transforma a pea em poema, mas sua publicao na revista Troisime Par-nasse Contemparain foi recusada. A cada recusa, Mallarm respondeu com uma radicalizao potica do texto, cada vez mais polissmico e com requintado trabalho na sintaxe. Para Pig-natari,

    O poema ganha conscincia defini-tiva de escritura e o fauno se realiza na pgina com as ninfas que modula e escreve seres de linguagem. In-stala-se a impotncia criadora com, atravs e no signo-que-mata-e-regen-era-osentimento, como diriam, con-juntamente, Lacan e Charles Sanders Peirce. (Pignatari, 1974a, pp. 111).

    4. Musicado por Debussy (1894)

    Claude Debussy comps o Prlude lAprs-midi dun faune de 1891 a 1894, por en-comenda da Socit Nationale de Musique11. Foi o prprio Mallarm que instigou seu amigo compositor a compor esta pea, e ela tornouse um sucesso imediato. Debussy muitas vezes descrito como um compositor intuitivo, improvisador, sonhador de imagens musicais. No entanto, era igualmente um construtor de estruturas, minucioso quanto s propores12. Desta forma, na prpria estrutura musical do Prlude pode estar ancorada, como uma res-posta formal no nvel do timbre, a estrutura potica do poema de Mallarm13. A pea or-questral tornou-se um marco na histria da msica europia, causou uma verdadeira rev-oluo e inaugurou a msica moderna. J no incio inovadora, comeando com um solo de flauta em arabesco marcando o intervalo de tr-tono C#-G e finalizando com o modo drico de C#. Este tema vai aparecer diversas vezes ao longo do Prlude, a forma da pea no cabe em nenhuma estrutura anteriormente produzida:

    10 Primeiras palavras do poema L`Aprs-midi d`un faune, de Mallarm (1876), conforme uma das tridues de Pignatari (1974b).8 A grande maioria das licenciaturas no contemplam uma disciplina de incluso em suas matrizes curriculares.

    11 Associao criada em 1871 como um esforo de construir uma msica verdadeiramente francesa em reao febre wagneriana que havia tomado a Frana. Apesar de to diferente, a obra de Debussy deixa traos do profundo impacto de Wagner (Piedade, 2007).

    12 Debussy utilizou a seo urea, sries matemticas e padres geomtricos na construo da estrutura de diversas de suas obras (ver Howat, 1983).

    13 Cf. Code (2001), que argumenta que Debussy comps uma fuga literria.

    Fig. 4: Ilustrao de douard Manet para a edio original do poema LAprs-midi ddun Faune (1876).

    Fig. 5: Capa da revista literria Les Hommes d`Aujourd`hui (1887).

  • A longa tarde de um fauno

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    V Jornada de Iniciao Cientfica

    episdios fragmentados, articulados por ir-regularidades mtricas, um tema bastante am-bguo em termos tonais, uma instrumentao envolvente. O tropos da flauta pastoral que inaugurado pelo mito de Pan e Syrinx inspira a flauta nesta pea, e tambm a pea Syrinx para flauta solo, composta em 1913 (fig.6). Como no Preldio, o som da flauta presentifica o desejo, o sonho, o homem reconciliado com o mist-rio, com sua natureza originria. Do silncio brota esta melodia que circula e volta ao ponto inicial14, a frase dita que presentifica a ninfa, a prpria voz do fauno.

    O Prlude de Debussy traz vrios quad-ros sonoros para acompanhar o roteiro do poema, mas a articulao destes segmentos muito suave, no h nenhum corte, nada brusco, tudo flui com em uma continuidade quase esttica. O dinamismo est potencial-izado na esfera dos timbres: como uma pele, as cores musicais vo revelando um interior

    denso de paixes e frustraes. H uma inten-sidade em toda a pea, mas no um s ponto culminante, e sim vrios. A pea termina na quietude que a abriu, e o ouvinte percebe fi-nalmente que a forma da pea no passvel de rtulos, consistindo basicamente na institu-io do tema principal e seu timbre soprado - um conjunto inseparvel que evoca ao mesmo tempo o fauno e a presena da ninfa - e suas mltiplas e diferenciadas exposies, estgios da memria e da sensibilidade, permeadas por episdios que constroem diferentes olhares para a natureza. Alguns episdios trazem a ver o ex-tico, em termos tcnicos representado atravs do uso da escala de tons inteiros. Mas o fluxo predominantemente modal, drico e mixoldio. Estabelece-se um dilogo entre cordas e flautas, muitas vezes pontuado pala harpa signo vivo da antiga lira - e pelo obo, outro instrumento cuja sonoridade reporta ao arcaico. Acordes meio-diminutos criam am-bigidade tonal, vagueza fundamental no rit-mo deste momento em que o fauno, desperto, relembra seu sonho ertico e retorna ao sono.

    5. Coreografado por Nijinsky (1912)

    O Ballets Russes chegou em Paris em 1909 para uma trajetria de grande sucesso. Di-rigido pelo empresrio Serge Diaghilev, tinha como maior estrela o bailarino Vaslav Nijin-sky. Em sua primeira coreografia, Nijinsky mostrou uma criatividade revolucionria na concepo do espetculo, desde o cenrios aos figurinos de Leon Bakst (ver Fig. 10), e foi ele mesmo que danou o fauno. No programa do bal, escreveu-se: um fauno cochila ninfas o provocaram um leno esquecido satisfaz seu sonho. A cortina desce e assim o poema pode comear na memria de todos. O ertico re-criado, explcito. O fauno de Nijinsky revela seu pertencimento srie animal, sua sexuali-dade selvagem, e ao mesmo tempo sua capaci-dade para a paixo.

    O bal chocou o pblico parisiense: a se-gunda pele do fauno, o estilo angular de movi-mento, que imita as representaes estilizadas em vasos gregos antigos, e principalmente a cena fina de cpula do fauno como leno. O es-cndalo tornou-se sucesso, o teatro lotado toda noite.

    6. Concluses

    De mito enquanto experincia primeira de performao de palavra e canto, Ovdio pro-move a passagem para uma tradio de Letras, de gnero erudito, que vai at o sculo XVIII. Como diz Marcel Detienne, entre um estado de oralidade primordial e a forma escrita da mitolo-gia tristemente chamada clssica h estragos e deformaes, e preciso contabiliz-las e levan-tar o mapa dos atalhos secretos (1998, p.219).

    Fig. 6: Acima, primeiros compassos de Prlude lAprs d un Faune, de Debussy (1891); abaixo, primeiros compassos de Syrinx, de Debussy (1913).

    Fig. 7: Vaslav Nijinsky no Laprs-midi dum faune, pintado por George Barbier (1882-1932).

    14 Um solo de flauta em arabesco inicial ambas as peas, lembrando a abertura formulaica tpica de Debussy que Hepokoski chamou de Ab-ertura Monofnica (1984)

  • 5Anais do XIX Seminrio de Iniciao Cientfica

    MSICAA. Piedade

    O que h neste mito, que atravessa scu-los, migrando de uma margem da linguagem para outra? Com certeza h outras variantes, outras verses desta histria. Tentei sublinhar uma rota nesse mapa da histria de Pan. Dos confins do mito, traos do tempo originrio, para o texto potico de Ovdio, da para re-nascer como imagem de Boucher, a partir da qual torna-se poesia simbolista de Mallarm, da msica impressionista de Debussy, sendo ento danada por Nijinsky. A cada passo, inaugura-se uma re-composio e uma re-per-formao do mito, viajando por diferentes sen-tidos. Seus criadores o reinscrevem em uma tradio estrangeira e, mesmo sem sab-lo, ti-veram que se curvar s regras desse jogo de

    associaes, oposies, homologias que a srie de verses anteriores empregou (conforme afirma Pierre Vernant, 1992, p.31).

    Talvez o mito do fauno se apresente para o humano como estrutura autnoma, falando do alto da Histria para si prprio, deixando-nos encantados pelo desejo de desvelamento que brota das sua dicotomias internas. No fauno subsiste a fronteira misteriosa entre o animal e o humano; nas ninfas expressa-se o natural e o sobrenatural; na ocultao de Syr-inx impe-se o paradoxo do visvel e do invi-svel e a metamorfose entre as sries humana, animal e vegetal; sua transformao em flau-tas implica na revelao da presena do invi-

    Fig. 8: Vaslav Nijinsky fotografado de perfil durante apresentao como o Fauno (1912). Foto da coleo de Robert Greskovic

    Fig. 9: Projeto de Cenrio para o Prlude, de Lon Bakst.

  • A longa tarde de um fauno

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    V Jornada de Iniciao Cientfica

    svel no audvel atravs do sopro. A flauta o aerofone mais rico no sentido da presena do sopro na composio do timbre, principal-mente na regio grave e mdia, justamente onde Debussy faz soar seus temas. As flautas indgenas tambm apresentam esse excesso de sopro, porm seus mitos de origem so varia-dos: osso de ancestrais mticos ou seu prprio corpo, transformado em vegetal. Nas cosmo-logias amerndias, o sopro que cria o som da flauta o mesmo daquele do xam, cujo sopro transcendental traz a cura, sopro que tem um corpo prprio, revelado pela fumaa do tabaco (Beaudet, 1997). Sem dvida Lvi-Strauss te-ria muito a dizer sobre esta histria, no ap-enas atravs de uma anlise estrutural do mito grego e uma interpretao comparativa com os mitos homlogos amerndios. Lvi-Strauss teria muito a dizer sobre esta longa tarde do fauno porque ela vai de encontro sua aguda percepo de que o modo mitolgico de ver o mundo, o Mythos, tendo sobrevivido por scu-los no Ocidente, foi acossado pela imposio do Logos e migrou para as artes, no sculo XVIII.

    O Mito esse espao mental onde, nas palavras de George Dumzil, conceitos, ima-gens e aes articulam-se e formam, por suas ligaes, uma espcie de rede (apud Vernant, 1992, p.33). Acrescento: rede de significados, pois o mito habita o horizonte semitico. Neste caso, o fauno personagem dessa trama que faz parte do grande teatro da Histria, cujo script vem sendo encenado ao longo de sculos, se desenrolando como um ritual de longus-sima durao. Talvez mais do que ler o poema ou ouvir a msica, um olhar distanciado possa estranhar a permanncia desta longa tarde do fauno.

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  • 7Anais do XIX Seminrio de Iniciao Cientfica

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