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A linguagem dos trabalhadores do mar
Jaime Rodrigues
1. A linguagem como questão na historiografia sobre o mar
O historiador e antropólogo britânico John Mack pautou diversos problemas a
serem enfrentados na escrita de uma história cultural do mar. Entre esses problemas,
conta-se a disciplina entre homens de cores e origens religiosas e linguísticas diversas.
Era preciso que todos entendessem o que os demais diziam, para manejar o que Mack e
outros historiadores definiram como a mais complexa máquina da época moderna:
“No caso das tripulações cosmopolitas (...), a língua seria (...) uma
dificuldade imediata. Porém, é surpreendente verificar que esparsas fontes
históricas mencionam esse aspecto. Na verdade, mesmo quando o tema é
abordado pela literatura, é-o de uma forma que o trata como um problema
que não é digno de nota” (MACK, John. The Sea: A Cultural History.
Londres: Reaktion Books, 2011 (trad.: O mar: uma história cultural.
Silveira: Book Builders, 2018).
Não pretendo checar cada uma das fontes utilizadas para embasar tal afirmação.
A abordagem do tema a partir de obras literárias de ficção parece embasar a afirmação
de que a língua não é um problema digno de atenção. Ocorre que autores como Herman
Melville e Joseph Conrad ambientaram seus enredos no mar, e não na formação ou no
treinamento das tripulações, razão pela qual não explicam a experiência dos sujeitos
como resultado de relações sociais e de processos históricos. Melville, Conrad e outros
literatos que escreveram obras magistrais sobre a vida marítima abordaram tripulações
compostas por marinheiros experimentados, para os quais a língua de fato não era um
problema. Ademais, a literatura de ficção e a historiografia raras vezes tem se fixado no
processo formativo das tripulações – deixando de lado, portanto, o tempo do
aprendizado linguístico e técnico dos homens no mundo do trabalho marítimo.
Equipagens transoceânicas sempre tinham alguma heterogeneidade linguística
em suas composições. Obviamente, é preciso atentar para o grau dessa heterogeneidade,
variável no tempo, no espaço e em razão das exigências nacionais de acordo com as
bandeiras. Centenas de milhares de homens engajaram-se no mundo do trabalho
marítimo em navios que partiam da Europa e das Américas em direção a diferentes
partes do globo. Os números não deixam dúvidas, mas não explicam qual era a
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composição das tripulações e suas clivagens. A historiografia ressaltou o
internacionalismo como característica marcante das equipagens até o século XIX. Tal
internacionalismo já se verificava nos séculos iniciais da modernidade em marinhas
como a francesa e a inglesa, deixando claro que as tripulações dos navios eram
cosmopolitas, multiétnicas e plurilinguísticas, com os problemas e as vantagens
decorrentes disso. Nos séculos seguintes e até os dias de hoje, o fenômeno
internacionalista atingiu proporções ainda maiores. Relatos distantes no tempo e escritos
em conjunturas diversas, como os de Fernão de Magalhães e Richard Dana, deixam
clara a existência de importantes diferenças linguísticas entre os marinheiros.
Rediker e Linebaugh estão entre os historiadores que tem dado ênfase à
importância da língua nos estudos do mundo do trabalho marítimo e demonstrado que o
conjunto dos marinheiros nas marinhas anglófonas era internacional. A linguagem, pivô
de qualquer cultura, tinha um significado essencial no mundo do trabalho no mar,
formando um “caldeirão de internacionalismo” ainda mais notório nas tripulações
piratas. Aprender e ensinar o jargão próprio do mar era parte do processo que levava um
homem a se tornar um marinheiro em marinhas nacionais, internacionais ou piratas.
Para marinheiros de primeira viagem, o aprendizado não era apenas da língua, mas
também dos padrões de pensamento da nova comunidade em que ele ingressava.
Diferentes escritores notaram que os trabalhadores do mar falavam de uma
maneira peculiar, em dialetos diferentes daqueles usados em terra e abstratos para a
gente que não embarcava. Todos admitem tratar-se de uma língua do trabalho,
necessária ao manejo da embarcação e à viabilização das viagens, mas também para a
socialização entre companheiros que falavam línguas estranhas umas às outras e
precisavam sincronizar seus movimentos utilizando uma linguagem compreensível por
todos. O engajamento no mundo do trabalho marítimo levava a um desenraizamento
cultural e simultaneamente criava novos laços, entre os quais se incluía a linguagem em
comum. A língua dos homens do mar abarcava o domínio técnico sobre as peças e os
procedimentos a adotar no navio, especialmente em situações de perigo. Ela era também
a correia de transmissão das ordens, da preservação e do questionamento do poder e da
hierarquia, na medida em que precisava ser um instrumento na comunicação entre o
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capitão e os demais tripulantes, sendo, portanto, conhecida e compartilhada por todos.
Tratava-se, assim, de uma linguagem concisa, acurada e técnica, expressão dos saberes,
das tensões, sensibilidades e relações sociais a bordo.
As linguagens marítimas incorporavam interjeições, palavras e frases curtas e
inconfundíveis, para designar objetos e ações muitas vezes ininteligíveis a quem não
fosse do meio, mas plenamente compreensíveis nas situações em que os comandos
precisavam ser dados com brevidade. Essas situações, como tempestades, perigo de
naufrágios, salvamento de homens ou repressão às revoltas a bordo, por exemplo,
requeriam ações rápidas, pois qualquer falha levaria à perda de vidas ou da embarcação.
Movida pela urgência, na língua dos marinheiros não cabiam ambiguidades. Apesar da
forte clivagem social, a linguagem era um elemento cultural necessariamente
compartilhado por oficiais e marinheiros comuns. A clareza e a objetividade da
linguagem, contudo, não devem levar à conclusão apressada de que ela era simples.
Os estudos históricos tem dado algum destaque à composição das tripulações
dos navios de longa distância, começando a se aproximar do problema da linguagem
marítima. Silvana Jeha, ao debruçar-se sobre a Armada brasileira na época da
Independência, afirma que cerca de um terço dos homens eram portugueses, sendo os
demais nascidos no Brasil (indígenas e escravizados inclusive, em que pesem as
restrições legais) e europeus não-lusos. Era comum também a presença de estrangeiros
nas tripulações de longo curso, de cabotagem e nas zonas portuárias do Brasil
oitocentista, denotando a multiplicidade das línguas em convívio e a necessidade de
travar comunicação a bordo e nos portos. Talvez não por acaso a publicação do primeiro
léxico marítimo em português no século XIX tenha ocorrido no Rio de Janeiro, pelas
mãos de um oficial português atuante em Goa (Maurício da Costa Campos. Vocabulário
marujo, 1823), quem sabe buscando uma unidade linguística para as gentes do mar em
circulação por um império pluricontinental.
A língua marítima nas narrativas de viagens
A babilônia encontrada nos portos mundiais levou estudiosos a indagarem como
era possível reunir e manter em harmonia tripulações internacionais, com clivagens de
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origem, de língua e de religião. As fontes para o estudo da multiplicidade linguística são
numerosas, embora lacônicas em suas menções. Referir-se às numerosas línguas nos
portos e a bordo era uma maneira dos próprios narradores perceberem o mundo em
movimento e definirem a si mesmos como sujeitos históricos, com uma capacidade
limitada de entendimento das línguas mas, ao mesmo tempo, chamando a atenção para o
assunto em seus escritos. O que os viajantes-narradores mencionavam e às vezes
estranhavam também era percebido também pelos marinheiros em circulação pelo
mundo, ainda que estes não tenham nos deixado suas impressões por escrito.
Para além da construção de vocabulários inter linguísticos ou línguas francas de
comércio e navegação, um conhecimento ao menos elementar do idioma do(s) outro(s)
obrigatoriamente perpassava a vida dos homens do mar. Sinal da antiguidade desses
empréstimos é o intercâmbio de insultos entre espanhóis, holandeses e portugueses,
permeados de preconceitos decorrentes das guerras religiosas, dos confrontos marítimos
e das disputas coloniais no século XVII em palavras colhidas no Diário de Ambrósio
Richshoffer, por exemplo: “flamminco cornudo” e “spaniola cornudo”, palavras usadas
de forma pejorativa pelos holandeses para designar espanhóis e portugueses e vice-
versa; ou “becc”, provável corruptela de speck’, gordura ou toucinho, com que os
holandeses pretendiam ofender os espanhóis em razão de seus hábitos alimentares.
Dentre os navegadores portugueses ou que trabalharam na Marinha lusa, poucos
eram letrados e deixaram narrativas densas sobre suas experiências. Ao compilar o
relato de um marinheiro português, o italiano Giovanni Battista Ramusio (1485-1557)
anotou a relação entre engajamento no mundo do trabalho marítimo e o letramento feito
a duras penas:
“(...) lhe envio aquelas poucas coisas que tive oportunidade de observar e
que (ouvi) a diversos homens que estiveram nas terras da Etiópia, coisa que,
por eu ser marinheiro e pouco habituado a escrever, descrevi sem nenhuma
ordem nem ornamento”.
O modo de falar dos marítimos não se limitava aos navios. Nos portos,
sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a
dos marujos como as nacionais e/ou étnicas. Muitos viajantes evidenciaram isso, alguns
com indiferença, outros com desagrado e outros, ainda, elogiando as facilidades de
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aprendizado de línguas estrangeiras por marinheiros e pescadores nativos das áreas
coloniais. Para melhor entender essas reações, é importante notar que nenhum desses
autores de relatos de viagens era embarcadiço, mas sim homens que tinham
experiências pontuais em navios no decurso de suas vidas. Os exemplos são muitos: o
inglês Clarke Abel referiu a dificuldade em compreender o “jargão de diferentes línguas
usadas pelos escravos que faziam o comércio para seus senhores” no Rio de Janeiro; o
francês Alcide D’Orbigny (1802-1857) notou a profusão de negociantes, marinheiros e
negros manejando diferentes idiomas no mesmo porto; o príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied (1782-1867) notou os modos de falar de ingleses, espanhóis, italianos,
franceses, alemães, holandeses, suecos, dinamarqueses e russos, além de negros cuja
origem ele não soube precisar; o estadunidense Ezekiel Barra citou a horda de
“portugueses morenos” e negros cor de carvão que falavam um jargão ininteligível de
meia dúzia de línguas em 1849; o jornalista francês Max Leclerc em 1889 mencionou as
milhares de embarcações inglesas, norueguesas, alemãs, francesas, norte-americanas e
italianas; Ribeyrolles (1812-1860) em 1858 mencionou os navios que vinham de partes
distantes como Estocolmo, São Petersburgo, Alemanha, Itália, França ou do Danúbio e
dizendo ser o Rio de Janeiro “a Babel das nações, e observam-se uns aos outros,
suspeitam-se nos primeiros dias; depois as relações começam, formam-se os grupos,
misturam-se as línguas”.
Mesmo nos portos menos frequentados os viajantes se impressionavam com a
diversidade linguística e a reunião de gentes exóticas. O entomologista estadunidense
William Edwards (1822-1909) dizia o seguinte sobre o porto amazônico de Belém em
1846:
“(...) Ancorados perto de nós [no porto de Belém], navios de várias nações e
embarcações fluviais de aparência estranha (...). Canoas vinculadas ao
mercado passavam constantemente, carregadas com todos os tipos de
produtos (...) e uma babel de sons, de cães, papagaios e línguas estranhas,
veio sobre a água (...).
Filas de canoas partiam de toda a extensão do cais (...). Seus ocupantes (...)
estão envolvidos nas atividades mais variadas (...), a maioria, conversando
com seus vizinhos ou gritando em tons agudos para seus amigos na praia.
Aqui há negros de todas as intensidades da cor, do Congo puro ao quase
puro branco (...). Soldados vestidos de modo estranho se misturam à
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multidão; oficiais ávidos por produtos não tributados; marinheiros vindos
dos navios no porto desembarcam constantemente (...)”.
A multiplicidade de origens linguísticas, étnicas e nacionais e a grande
população transitória e flutuante davam a tônica em todos os grandes portos mundiais.
Aos poucos, os homens do mar e os de terra interseccionavam seus linguajares,
alimentando uns aos outros com expressões tomadas de empréstimo nos idiomas
estrangeiros ou nas formas de expressão dos marinheiros. Conhecer a língua do outro
era condição para o bom desempenho no engajamento marítimo, mesmo quando se
tratava de pessoas que não haviam feito essa opção profissional e eram incorporadas
compulsoriamente, como indígenas da América do Sul ou africanos escravizados.
Sexualidade, violência e autoridade expressavam-se na linguagem, e o uso desta
interferia no próprio comportamento da gente do mar. O vocábulo galera, por exemplo,
designava um tipo de navio, mas também era uma forma de os marinheiros se referirem
a “mulheres boas” em um sentido sexual. Referências desse tipo aparecem em outras
ocasiões. Cunha Matos, ao falar sobre a atracagem em São Jorge da Mina na primeira
metade do século XIX, referiu as expressões “o mar está homem” e “o mar está
mulher”, usadas pelos “pilotos e remadores pretos” conforme a arrebentação na costa
permitisse ou não a penetração dos barcos pelos recifes litorâneos.
Mas era em terra que o comportamento turbulento causava impressão mais viva.
Uma visão setecentista do Porto descrevia a Ribeira após a chegada dos navios,
apontando a linguagem como um aspecto indissociável dos gestos e atitudes da maruja,
tudo provocando estranhamento à gente de terra:
“tripulações de marinheiros tisnados, cosidos de cicatrizes, a trança do
cabelo tesa de sebo; invadiam as estalagens ribeirinhas, escuras, empestadas
pelo cheiro do peixe assado na brasa (...). Falavam uma língua em que se
misturavam as pragas apanhadas no Báltico ou nas Caraíbas, assentavam
murros nas mesas ou puxavam dos facalhões de abordagem para que os
servissem mais depressa (...). Os tatuadores inscreviam-lhes nos braços
musculosos ou nas costas, listradas pelo azorrague, nomes de mulheres ou
de cidades, serpentes, flores (...)”.
Homogeneidade nacional na marinha portuguesa e a questão da língua
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A navegação marítima luso-brasileira tinha algumas especificidades frente às
outras marinhas para as quais a historiografia é mais volumosa e enraizada.
Diferentemente do que apontam historiadores anglófonos e francófonos, o espaço
lusófono da navegação não era tão internacionalista se observado comparativamente.
Ao sistematizar as matrículas de tripulantes da Junta do Comércio lisboeta, pude
verificar que mais de 90% das equipagens lusas entre os séculos XVIII e XIX eram
compostas por reinóis. Os dados acerca da naturalidade referem-se a mais de 19 mil
homens, e nos colocam diante de uma homogeneidade maior dos marinheiros e oficiais
do ponto de vista linguístico. Os casos mencionados até aqui, encontrados nas narrativas
de viajantes, permitem questionar a visão de que a língua não é um problema
historiográfico, mas ainda não trazem para a cena os marinheiros portugueses e luso-
brasileiros. Quem seriam esses homens e o que se pode dizer acerca deles numa
abordagem demográfica e linguística?
TABELA I – MARINHEIROS NA NAVEGAÇÃO DE LONGO CURSO SOB BANDEIRA
PORTUGUESA, CONFORME A NATURALIDADE (1767-1828) / TOTAL: 19.203 HOMENS
Local de nascimento Número absoluto % sobre o total
Ilhas Atlânticas (Açores 3.190 e Madeira 189) 3379 18
Alentejo 128 0,07
Algarve 166 0,09
Beira 1646 8,6
Entre-Douro-e-Minho 6206 33,46
Lisboa e Estremadura 5723 30,93
Trás os Montes 102 0,05
Portugal (local não especificado) 379 1,9
África 675 3,5
América Portuguesa/Brasil 640 3,3
Ásia 25 0,01
Espanha 100 0,05
Demais países europeus: Bulgária 1/Dinamarca 2/França
5/Holanda 2/Malta 2/Inglaterra 10/Irlanda 1/Itália 10/Suécia 1
34 0,02
Os primeiros registros de tripulações faziam constar a assinatura dos homens
matriculados, dado disponível para cerca de quatro mil dos mais de 19 mil registros. A
sistematização desses dados como indícios de letramento aparece na tabela a seguir.
TABELA II – TRIPULANTES QUE ASSINAM SUAS MATRÍCULAS, CONFORME A FUNÇÃO
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A BORDO (1767-1769) / TOTAL: 3.942 HOMENS
Função Assinam o nome
(1803 homens)
Assinam em cruz
(2139 homens)
Oficiais
capelães 85 1
capitães/comandantes 133 -
cirurgiões 91 -
condestáveis 13 4
mestres/contramestres 97 12
escrivães 10 -
pilotos/sota-pilotos 133 1
praticantes 24 -
Ofícios manuais/marinheiros comuns
artilheiros 7 15
calafates 84 23
canoeiro 1 -
carpinteiros 62 12
cozinheiros 11 23
despenseiros 37 18
grumetes 18 26
guardião 1 1
moços/mancebos 411 754
serventes/marinheiros 575 1243
padeiro 1 -
pedreiro 1 -
tanoeiros 8 6
Distinguir oficiais de marinheiros comuns permite confirmar uma realidade
social inegável: os graus de oficialato eram acessíveis a homens em sua maioria
letrados, enquanto ter algum letramento era indiferente para o exercício do trabalho
manual e não garantia ascensão profissional e social. O grosso dos homens engajava-se
como marinheiros e/ou moços em suas diferentes nomenclaturas. Dentre eles, 67% não
eram capazes de assinar os próprios nomes, enquanto o percentual para capelães,
capitães, cirurgiões, contramestres, escrivães, pilotos e praticantes era zero ou próximo
disso. O letramento era uma medida de poder a bordo.
As tabelas I e II permitem constatar a existência de uma homogeneidade
linguística maior em termos comparativos, o que não nos deve fazer concluir que a
língua não era um problema e o domínio da linguagem marítima não pressupunha um
aprendizado, mesmo para homens iletrados. As profissões do mar eram transmitidas no
próprio desempenho do trabalho, o mesmo ocorrendo com o domínio das técnicas de
navegação e da linguagem marítima. Boa parte desses marinheiros, embora fossem
reinóis ou nascidos nos domínios coloniais, portanto falantes do português, vinham de
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experiências de pouco letramento e de trabalho no campo ou em pequenos serviços
urbanos, sendo muitos desses marinheiros os primeiros de suas famílias a deixarem a
vida camponesa para buscar alternativas de ofícios e sobrevivência no mar.
Tratava-se, assim, de homens quase inteiramente alheios aos saberes e ao jargão
marítimos até se engajarem em navios de longo curso, sem acesso prévio a
conhecimentos transmitidos no âmbito familiar, onde a experiência de trabalho era
diversa. Nas regiões ao norte de Portugal, estudos demográficos deixam clara a
tendência de retrocesso na produção agrícola no Entre-Douro-e-Minho a partir de
meados do século XVIII, época marcada por colheitas ruins, alta de preços, epidemias,
frio/chuvas/secas em excesso ou parcelamento das propriedades até o limite da
subsistência familiar. No caso de Braga, tais condições teriam levado muitos habitantes
a abandonarem a cidade a caminho das aldeias. Os dados que apresento aqui permitem
afirmar que milhares deles tomaram outra direção ou se instalaram nas aldeias apenas
de forma transitória, já que muitos se engajaram nas profissões do mar.
Para pessoas com essa experiência, adentrar o mundo do trabalho marítimo
significava aprender uma língua diferente da que era usada em terra e do jargão das
atividades profissionais que tinham antes. Como aprendizes de um novo ofício, tinham
que compreender as tarefas de bordo e os nomes das partes da embarcação: no que a
popa difere da proa ou bombordo de estibordo, para mencionar apenas os termos mais
corriqueiros? Era preciso distinguir velas e mastros, conhecer a hierarquia de bordo e as
formas de tratamento correspondentes, saber reconhecer e diferenciar brigues, escunas,
chalupas e outros tipos de navios, bem como os nomes dos ventos, das tempestades e
das correntes e suas implicações sobre o trabalho de acordo com as situações. Os
dicionários de marinharia contemplam todas essas categorias de palavras e saberes, e
sugerem um uso formativo para novos e velhos tripulantes de navios, na medida em que
as palavras tinham seus usos transformados e as novidades tecnológicas induziam a
apropriação de novos saberes e a invenção de novos termos.
Ao propor uma ordem de causas pelas quais os sentidos das palavras se
transformam, Antoine Meillet apontou a “repartição dos homens de uma mesma língua
em grupos distintos” como a principal dessas causas. Ele concordou com o filólogo
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Michel Bréal quando este viu a vida em sociedade se transformar em variedade e
riqueza e se dividir em diferentes ocupações, atos e interesses, afirmando que
“nem o estado de ânimo, nem a direção da ação são os mesmos para o
padre, o soldado, o político, o agricultor. Ainda que tenham herdado a
mesma língua, entre eles as palavras ganham nuance distinta, a qual se fixa
e acaba por aderir às próprias palavras (...). Cada ciência, cada arte, cada
profissão, ao compor sua terminologia, marca com sua especificidade as
palavras da língua comum”.
Ainda que cada grupo social tenha especificidades linguísticas, Meillet lembra
que os indivíduos circulam por diferentes espaços ou pertencem a mais de um grupo,
simultaneamente ou no decorrer de suas vidas, carregando consigo seu linguajar e
influenciando os demais. Assim, os jargões são permeáveis, e mesmo os homens do mar
tendo uma experiência de isolamento mais radical do que outros grupos profissionais,
eles também recebem influência de terra, ao mesmo tempo em que influenciam os
idiomas de onde são naturais e dos lugares por onde circulam.
A maior homogeneidade linguística na marinha lusa ou luso-brasileira não deve,
assim, levar à conclusão de que o problema da linguagem era inexistente. Recorro a um
último indício em reforço do meu argumento. Um autor anônimo esboçou um dicionário
em português no ano de 1765, garantindo que não pretendia editá-lo, mas sim mantê-lo
em sua forma manuscrita e apenas para uso próprio. “Palavra chula” e “palavra maruja”
foram duas das categorias usadas por esse autor para classificar os verbetes, sendo
ambas apresentadas como sinônimos. A definição do termo marabuto – o mesmo que
marujo, marítimo ou homem do mar – era calcada no linguajar desses homens:
“Explicam-se entre si com uma linguagem, termos e vocábulos alheios, que aos de fora
custa a entender, pondo às coisas uns tais nomes que nenhuma conexão ou analogia tem
com o nome próprio delas”. Temos aqui um sinal importante do estranhamento que a
língua dos marítimos ainda causava em terra, mesmo em uma sociedade como a
portuguesa, que havia séculos era marcada pelas viagens transoceânicas e pelas
conquistas ultramarinas. Para quem vinha da experiência de terra, engajar-se nos
trabalhos marítimos era adentrar um mundo novo, sendo o aprendizado
A língua e os dicionários de marinharia: fontes históricas e elementos da formação
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maruja
O reconhecimento da dupla utilidade dos dicionários de marinharia, como fontes
de informação histórica e como dado da formação profissional, não se faz sem uma
crítica. Os verbetes dos dicionários projetam uma imagem acerca da sociedade que
produziu a língua; ao mesmo tempo em que gera identificação, essa imagem também
silencia outros significados. Dicionários, vocabulários e gramáticas inserem-se no rol
das fontes escritas, o que não exclui as fontes orais do conjunto de dados linguísticos
nem a oralidade eventualmente presente nos textos escritos. Marcos Abreu chamou a
atenção dos estudiosos para isso, ao afirmar a necessidade de se fazer “uma crítica ao
testemunho para reconstituir antes a lógica social do texto e observar de que maneira as
palavras foram coligidas e registradas pelo compilador”. Como, quando e onde são
questões centrais para o historiador.
Os dicionários não são repositórios de definições unívocas. Dicionários
compilados em determinados momentos podem não expressar toda a dinâmica da
transformação na linguagem, e as definições neles contidas não têm necessariamente o
mesmo significado para os usuários do mesmo léxico ou para a sociedade coeva como
um todo. No caso dos dicionários de marinharia, eles reúnem definições sobre partes e
peças das embarcações e as técnicas construtivas, além de descreverem cargos e funções
da equipagem e raramente gírias de bordo. Há um certo número de dicionários editados,
suficiente para permitir comparações e sondar se houve diferentes entendimentos sobre
determinados conceitos no decorrer do tempo. No caso de Portugal, quase todas essas
obras foram editadas no século XIX, o que dificulta a verificação das alterações de
conteúdo nos significados das palavras ao longo de períodos mais amplos. O mesmo
acontece com os vocabulários eventualmente compilados por homens que, a rigor, não
eram dicionaristas profissionais.
Mesmo com todos esses questionamentos, os dicionários de termos marítimos
não podem ser descartados como fontes para o estudo da linguagem dos homens do
mar. Sobretudo, porque não existem fontes escritas de próprio punho pelos marinheiros,
e essa ausência precisa ser superada com recursos metodológicos. Como escreveu E. P.
Thompson, “para grande desespero dos historiadores, os homens não mudam seu
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vocabulário toda vez que mudam seus costumes”, o que estimula o lidar com os
dicionários de termos marítimos para compreender a dinâmica das transformações e da
permanência vocabular na linguagem e na cultura dos homens do mar. A mudança ou a
preservação dos sentidos das palavras através do tempo possibilita o estudo de questões
caras ao historiador, da cultura à política, da sociedade à economia, da velocidade e
permanências dos empréstimos linguísticos aos padrões de contato entre sociedades.
Por meio dos dicionários de marinharia, é possível abordar a questão da
linguagem marítima, suas transformações e permanências no decorrer do tempo e diante
das mudanças técnicas. Os homens do mar eram poliglotas e cosmopolitas por
excelência. Durante suas viagens ou em seus períodos de fixação em terra, conheciam
falantes de línguas diversas e disso retiravam um aprendizado circunstancial ou
duradouro. Era também em razão da linguagem peculiar que utilizavam que os
marinheiros eram identificados por outros grupos sociais em terra.
O jargão marítimo era utilizado no trato pessoal, na imposição da disciplina e no
aprendizado profissional. Quanto a estes aspectos, os vocabulários técnicos e os
dicionários de marinharia são reveladores. Bons exemplos disso em Portugal são as
obras de arquitetura naval escritas ao menos desde século XVII, entre elas o Breve
compendio do que pertence à obrigação de hum capitão de mar & guerra, de 1676, que
encerra um dos primeiros vocabulários sistemáticos da linguagem marítima dos
navegadores lusos – prática que tomaria corpo mais extenso em dicionários portugueses
de marinharia editados a partir das primeiras décadas do século XIX, na esteira da
tradição dos séculos anteriores. A compilação de dicionários de linguagem marítima
ocorre na Europa ao menos desde o século XVIII e do Universal Dictionary of the
Marine, de William Falconer, editado pela primeira vez em Londres em 1769. Em
Portugal e no Brasil, essa tradição foi levada adiante por meio da edição de diversos
dicionários de linguagem marítima nos séculos XIX e XX.
Ao historiador não resta alternativa a não ser lidar com as evidências de que dispõe:
do mesmo modo que a cultura popular dos tempos modernos vem sendo estudada a partir
das descrições dos folcloristas do século XIX, fontes valiosas como os dicionários
compilados por homens letrados e oficiais da Marinha nos séculos XIX e XX ou relatos de
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viajantes coevos precisam ser manejadas com cuidado para não repetir seus procedimentos
paternalistas, mesmo que essas fontes eventualmente possam ser definidas pelo abismo de
classe que encerram e tenham sido produzidas por observadores das antiguidades
populares divorciados do contexto, como afirmou Thompson em relação às narrativas dos
folcloristas. No caso dos dicionários ou vocabulários, uma crítica feita nestes termos
inviabilizaria o estudo: os oficiais, por mais que dominassem as letras e se diferenciassem
socialmente de seus subordinados, compartilhavam o uso dos vocábulos e não teriam
motivos para construir novos significados para palavras de uso comum, sobretudo no
treinamento de marujos recém-engajados.