a linguagem dos trabalhadores do mar 1. a linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais...

13
1 A linguagem dos trabalhadores do mar Jaime Rodrigues 1. A linguagem como questão na historiografia sobre o mar O historiador e antropólogo britânico John Mack pautou diversos problemas a serem enfrentados na escrita de uma história cultural do mar. Entre esses problemas, conta-se a disciplina entre homens de cores e origens religiosas e linguísticas diversas. Era preciso que todos entendessem o que os demais diziam, para manejar o que Mack e outros historiadores definiram como a mais complexa máquina da época moderna: “No caso das tripulações cosmopolitas (...), a língua seria (...) uma dificuldade imediata. Porém, é surpreendente verificar que esparsas fontes históricas mencionam esse aspecto. Na verdade, mesmo quando o tema é abordado pela literatura, é-o de uma forma que o trata como um problema que não é digno de nota” (MACK, John. The Sea: A Cultural History. Londres: Reaktion Books, 2011 (trad.: O mar: uma história cultural. Silveira: Book Builders, 2018). Não pretendo checar cada uma das fontes utilizadas para embasar tal afirmação. A abordagem do tema a partir de obras literárias de ficção parece embasar a afirmação de que a língua não é um problema digno de atenção. Ocorre que autores como Herman Melville e Joseph Conrad ambientaram seus enredos no mar, e não na formação ou no treinamento das tripulações, razão pela qual não explicam a experiência dos sujeitos como resultado de relações sociais e de processos históricos. Melville, Conrad e outros literatos que escreveram obras magistrais sobre a vida marítima abordaram tripulações compostas por marinheiros experimentados, para os quais a língua de fato não era um problema. Ademais, a literatura de ficção e a historiografia raras vezes tem se fixado no processo formativo das tripulações deixando de lado, portanto, o tempo do aprendizado linguístico e técnico dos homens no mundo do trabalho marítimo. Equipagens transoceânicas sempre tinham alguma heterogeneidade linguística em suas composições. Obviamente, é preciso atentar para o grau dessa heterogeneidade, variável no tempo, no espaço e em razão das exigências nacionais de acordo com as bandeiras. Centenas de milhares de homens engajaram-se no mundo do trabalho marítimo em navios que partiam da Europa e das Américas em direção a diferentes partes do globo. Os números não deixam dúvidas, mas não explicam qual era a

Upload: others

Post on 16-Mar-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

1

A linguagem dos trabalhadores do mar

Jaime Rodrigues

1. A linguagem como questão na historiografia sobre o mar

O historiador e antropólogo britânico John Mack pautou diversos problemas a

serem enfrentados na escrita de uma história cultural do mar. Entre esses problemas,

conta-se a disciplina entre homens de cores e origens religiosas e linguísticas diversas.

Era preciso que todos entendessem o que os demais diziam, para manejar o que Mack e

outros historiadores definiram como a mais complexa máquina da época moderna:

“No caso das tripulações cosmopolitas (...), a língua seria (...) uma

dificuldade imediata. Porém, é surpreendente verificar que esparsas fontes

históricas mencionam esse aspecto. Na verdade, mesmo quando o tema é

abordado pela literatura, é-o de uma forma que o trata como um problema

que não é digno de nota” (MACK, John. The Sea: A Cultural History.

Londres: Reaktion Books, 2011 (trad.: O mar: uma história cultural.

Silveira: Book Builders, 2018).

Não pretendo checar cada uma das fontes utilizadas para embasar tal afirmação.

A abordagem do tema a partir de obras literárias de ficção parece embasar a afirmação

de que a língua não é um problema digno de atenção. Ocorre que autores como Herman

Melville e Joseph Conrad ambientaram seus enredos no mar, e não na formação ou no

treinamento das tripulações, razão pela qual não explicam a experiência dos sujeitos

como resultado de relações sociais e de processos históricos. Melville, Conrad e outros

literatos que escreveram obras magistrais sobre a vida marítima abordaram tripulações

compostas por marinheiros experimentados, para os quais a língua de fato não era um

problema. Ademais, a literatura de ficção e a historiografia raras vezes tem se fixado no

processo formativo das tripulações – deixando de lado, portanto, o tempo do

aprendizado linguístico e técnico dos homens no mundo do trabalho marítimo.

Equipagens transoceânicas sempre tinham alguma heterogeneidade linguística

em suas composições. Obviamente, é preciso atentar para o grau dessa heterogeneidade,

variável no tempo, no espaço e em razão das exigências nacionais de acordo com as

bandeiras. Centenas de milhares de homens engajaram-se no mundo do trabalho

marítimo em navios que partiam da Europa e das Américas em direção a diferentes

partes do globo. Os números não deixam dúvidas, mas não explicam qual era a

Page 2: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

2

composição das tripulações e suas clivagens. A historiografia ressaltou o

internacionalismo como característica marcante das equipagens até o século XIX. Tal

internacionalismo já se verificava nos séculos iniciais da modernidade em marinhas

como a francesa e a inglesa, deixando claro que as tripulações dos navios eram

cosmopolitas, multiétnicas e plurilinguísticas, com os problemas e as vantagens

decorrentes disso. Nos séculos seguintes e até os dias de hoje, o fenômeno

internacionalista atingiu proporções ainda maiores. Relatos distantes no tempo e escritos

em conjunturas diversas, como os de Fernão de Magalhães e Richard Dana, deixam

clara a existência de importantes diferenças linguísticas entre os marinheiros.

Rediker e Linebaugh estão entre os historiadores que tem dado ênfase à

importância da língua nos estudos do mundo do trabalho marítimo e demonstrado que o

conjunto dos marinheiros nas marinhas anglófonas era internacional. A linguagem, pivô

de qualquer cultura, tinha um significado essencial no mundo do trabalho no mar,

formando um “caldeirão de internacionalismo” ainda mais notório nas tripulações

piratas. Aprender e ensinar o jargão próprio do mar era parte do processo que levava um

homem a se tornar um marinheiro em marinhas nacionais, internacionais ou piratas.

Para marinheiros de primeira viagem, o aprendizado não era apenas da língua, mas

também dos padrões de pensamento da nova comunidade em que ele ingressava.

Diferentes escritores notaram que os trabalhadores do mar falavam de uma

maneira peculiar, em dialetos diferentes daqueles usados em terra e abstratos para a

gente que não embarcava. Todos admitem tratar-se de uma língua do trabalho,

necessária ao manejo da embarcação e à viabilização das viagens, mas também para a

socialização entre companheiros que falavam línguas estranhas umas às outras e

precisavam sincronizar seus movimentos utilizando uma linguagem compreensível por

todos. O engajamento no mundo do trabalho marítimo levava a um desenraizamento

cultural e simultaneamente criava novos laços, entre os quais se incluía a linguagem em

comum. A língua dos homens do mar abarcava o domínio técnico sobre as peças e os

procedimentos a adotar no navio, especialmente em situações de perigo. Ela era também

a correia de transmissão das ordens, da preservação e do questionamento do poder e da

hierarquia, na medida em que precisava ser um instrumento na comunicação entre o

Page 3: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

3

capitão e os demais tripulantes, sendo, portanto, conhecida e compartilhada por todos.

Tratava-se, assim, de uma linguagem concisa, acurada e técnica, expressão dos saberes,

das tensões, sensibilidades e relações sociais a bordo.

As linguagens marítimas incorporavam interjeições, palavras e frases curtas e

inconfundíveis, para designar objetos e ações muitas vezes ininteligíveis a quem não

fosse do meio, mas plenamente compreensíveis nas situações em que os comandos

precisavam ser dados com brevidade. Essas situações, como tempestades, perigo de

naufrágios, salvamento de homens ou repressão às revoltas a bordo, por exemplo,

requeriam ações rápidas, pois qualquer falha levaria à perda de vidas ou da embarcação.

Movida pela urgência, na língua dos marinheiros não cabiam ambiguidades. Apesar da

forte clivagem social, a linguagem era um elemento cultural necessariamente

compartilhado por oficiais e marinheiros comuns. A clareza e a objetividade da

linguagem, contudo, não devem levar à conclusão apressada de que ela era simples.

Os estudos históricos tem dado algum destaque à composição das tripulações

dos navios de longa distância, começando a se aproximar do problema da linguagem

marítima. Silvana Jeha, ao debruçar-se sobre a Armada brasileira na época da

Independência, afirma que cerca de um terço dos homens eram portugueses, sendo os

demais nascidos no Brasil (indígenas e escravizados inclusive, em que pesem as

restrições legais) e europeus não-lusos. Era comum também a presença de estrangeiros

nas tripulações de longo curso, de cabotagem e nas zonas portuárias do Brasil

oitocentista, denotando a multiplicidade das línguas em convívio e a necessidade de

travar comunicação a bordo e nos portos. Talvez não por acaso a publicação do primeiro

léxico marítimo em português no século XIX tenha ocorrido no Rio de Janeiro, pelas

mãos de um oficial português atuante em Goa (Maurício da Costa Campos. Vocabulário

marujo, 1823), quem sabe buscando uma unidade linguística para as gentes do mar em

circulação por um império pluricontinental.

A língua marítima nas narrativas de viagens

A babilônia encontrada nos portos mundiais levou estudiosos a indagarem como

era possível reunir e manter em harmonia tripulações internacionais, com clivagens de

Page 4: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

4

origem, de língua e de religião. As fontes para o estudo da multiplicidade linguística são

numerosas, embora lacônicas em suas menções. Referir-se às numerosas línguas nos

portos e a bordo era uma maneira dos próprios narradores perceberem o mundo em

movimento e definirem a si mesmos como sujeitos históricos, com uma capacidade

limitada de entendimento das línguas mas, ao mesmo tempo, chamando a atenção para o

assunto em seus escritos. O que os viajantes-narradores mencionavam e às vezes

estranhavam também era percebido também pelos marinheiros em circulação pelo

mundo, ainda que estes não tenham nos deixado suas impressões por escrito.

Para além da construção de vocabulários inter linguísticos ou línguas francas de

comércio e navegação, um conhecimento ao menos elementar do idioma do(s) outro(s)

obrigatoriamente perpassava a vida dos homens do mar. Sinal da antiguidade desses

empréstimos é o intercâmbio de insultos entre espanhóis, holandeses e portugueses,

permeados de preconceitos decorrentes das guerras religiosas, dos confrontos marítimos

e das disputas coloniais no século XVII em palavras colhidas no Diário de Ambrósio

Richshoffer, por exemplo: “flamminco cornudo” e “spaniola cornudo”, palavras usadas

de forma pejorativa pelos holandeses para designar espanhóis e portugueses e vice-

versa; ou “becc”, provável corruptela de speck’, gordura ou toucinho, com que os

holandeses pretendiam ofender os espanhóis em razão de seus hábitos alimentares.

Dentre os navegadores portugueses ou que trabalharam na Marinha lusa, poucos

eram letrados e deixaram narrativas densas sobre suas experiências. Ao compilar o

relato de um marinheiro português, o italiano Giovanni Battista Ramusio (1485-1557)

anotou a relação entre engajamento no mundo do trabalho marítimo e o letramento feito

a duras penas:

“(...) lhe envio aquelas poucas coisas que tive oportunidade de observar e

que (ouvi) a diversos homens que estiveram nas terras da Etiópia, coisa que,

por eu ser marinheiro e pouco habituado a escrever, descrevi sem nenhuma

ordem nem ornamento”.

O modo de falar dos marítimos não se limitava aos navios. Nos portos,

sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a

dos marujos como as nacionais e/ou étnicas. Muitos viajantes evidenciaram isso, alguns

com indiferença, outros com desagrado e outros, ainda, elogiando as facilidades de

Page 5: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

5

aprendizado de línguas estrangeiras por marinheiros e pescadores nativos das áreas

coloniais. Para melhor entender essas reações, é importante notar que nenhum desses

autores de relatos de viagens era embarcadiço, mas sim homens que tinham

experiências pontuais em navios no decurso de suas vidas. Os exemplos são muitos: o

inglês Clarke Abel referiu a dificuldade em compreender o “jargão de diferentes línguas

usadas pelos escravos que faziam o comércio para seus senhores” no Rio de Janeiro; o

francês Alcide D’Orbigny (1802-1857) notou a profusão de negociantes, marinheiros e

negros manejando diferentes idiomas no mesmo porto; o príncipe Maximiliano de

Wied-Neuwied (1782-1867) notou os modos de falar de ingleses, espanhóis, italianos,

franceses, alemães, holandeses, suecos, dinamarqueses e russos, além de negros cuja

origem ele não soube precisar; o estadunidense Ezekiel Barra citou a horda de

“portugueses morenos” e negros cor de carvão que falavam um jargão ininteligível de

meia dúzia de línguas em 1849; o jornalista francês Max Leclerc em 1889 mencionou as

milhares de embarcações inglesas, norueguesas, alemãs, francesas, norte-americanas e

italianas; Ribeyrolles (1812-1860) em 1858 mencionou os navios que vinham de partes

distantes como Estocolmo, São Petersburgo, Alemanha, Itália, França ou do Danúbio e

dizendo ser o Rio de Janeiro “a Babel das nações, e observam-se uns aos outros,

suspeitam-se nos primeiros dias; depois as relações começam, formam-se os grupos,

misturam-se as línguas”.

Mesmo nos portos menos frequentados os viajantes se impressionavam com a

diversidade linguística e a reunião de gentes exóticas. O entomologista estadunidense

William Edwards (1822-1909) dizia o seguinte sobre o porto amazônico de Belém em

1846:

“(...) Ancorados perto de nós [no porto de Belém], navios de várias nações e

embarcações fluviais de aparência estranha (...). Canoas vinculadas ao

mercado passavam constantemente, carregadas com todos os tipos de

produtos (...) e uma babel de sons, de cães, papagaios e línguas estranhas,

veio sobre a água (...).

Filas de canoas partiam de toda a extensão do cais (...). Seus ocupantes (...)

estão envolvidos nas atividades mais variadas (...), a maioria, conversando

com seus vizinhos ou gritando em tons agudos para seus amigos na praia.

Aqui há negros de todas as intensidades da cor, do Congo puro ao quase

puro branco (...). Soldados vestidos de modo estranho se misturam à

Page 6: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

6

multidão; oficiais ávidos por produtos não tributados; marinheiros vindos

dos navios no porto desembarcam constantemente (...)”.

A multiplicidade de origens linguísticas, étnicas e nacionais e a grande

população transitória e flutuante davam a tônica em todos os grandes portos mundiais.

Aos poucos, os homens do mar e os de terra interseccionavam seus linguajares,

alimentando uns aos outros com expressões tomadas de empréstimo nos idiomas

estrangeiros ou nas formas de expressão dos marinheiros. Conhecer a língua do outro

era condição para o bom desempenho no engajamento marítimo, mesmo quando se

tratava de pessoas que não haviam feito essa opção profissional e eram incorporadas

compulsoriamente, como indígenas da América do Sul ou africanos escravizados.

Sexualidade, violência e autoridade expressavam-se na linguagem, e o uso desta

interferia no próprio comportamento da gente do mar. O vocábulo galera, por exemplo,

designava um tipo de navio, mas também era uma forma de os marinheiros se referirem

a “mulheres boas” em um sentido sexual. Referências desse tipo aparecem em outras

ocasiões. Cunha Matos, ao falar sobre a atracagem em São Jorge da Mina na primeira

metade do século XIX, referiu as expressões “o mar está homem” e “o mar está

mulher”, usadas pelos “pilotos e remadores pretos” conforme a arrebentação na costa

permitisse ou não a penetração dos barcos pelos recifes litorâneos.

Mas era em terra que o comportamento turbulento causava impressão mais viva.

Uma visão setecentista do Porto descrevia a Ribeira após a chegada dos navios,

apontando a linguagem como um aspecto indissociável dos gestos e atitudes da maruja,

tudo provocando estranhamento à gente de terra:

“tripulações de marinheiros tisnados, cosidos de cicatrizes, a trança do

cabelo tesa de sebo; invadiam as estalagens ribeirinhas, escuras, empestadas

pelo cheiro do peixe assado na brasa (...). Falavam uma língua em que se

misturavam as pragas apanhadas no Báltico ou nas Caraíbas, assentavam

murros nas mesas ou puxavam dos facalhões de abordagem para que os

servissem mais depressa (...). Os tatuadores inscreviam-lhes nos braços

musculosos ou nas costas, listradas pelo azorrague, nomes de mulheres ou

de cidades, serpentes, flores (...)”.

Homogeneidade nacional na marinha portuguesa e a questão da língua

Page 7: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

7

A navegação marítima luso-brasileira tinha algumas especificidades frente às

outras marinhas para as quais a historiografia é mais volumosa e enraizada.

Diferentemente do que apontam historiadores anglófonos e francófonos, o espaço

lusófono da navegação não era tão internacionalista se observado comparativamente.

Ao sistematizar as matrículas de tripulantes da Junta do Comércio lisboeta, pude

verificar que mais de 90% das equipagens lusas entre os séculos XVIII e XIX eram

compostas por reinóis. Os dados acerca da naturalidade referem-se a mais de 19 mil

homens, e nos colocam diante de uma homogeneidade maior dos marinheiros e oficiais

do ponto de vista linguístico. Os casos mencionados até aqui, encontrados nas narrativas

de viajantes, permitem questionar a visão de que a língua não é um problema

historiográfico, mas ainda não trazem para a cena os marinheiros portugueses e luso-

brasileiros. Quem seriam esses homens e o que se pode dizer acerca deles numa

abordagem demográfica e linguística?

TABELA I – MARINHEIROS NA NAVEGAÇÃO DE LONGO CURSO SOB BANDEIRA

PORTUGUESA, CONFORME A NATURALIDADE (1767-1828) / TOTAL: 19.203 HOMENS

Local de nascimento Número absoluto % sobre o total

Ilhas Atlânticas (Açores 3.190 e Madeira 189) 3379 18

Alentejo 128 0,07

Algarve 166 0,09

Beira 1646 8,6

Entre-Douro-e-Minho 6206 33,46

Lisboa e Estremadura 5723 30,93

Trás os Montes 102 0,05

Portugal (local não especificado) 379 1,9

África 675 3,5

América Portuguesa/Brasil 640 3,3

Ásia 25 0,01

Espanha 100 0,05

Demais países europeus: Bulgária 1/Dinamarca 2/França

5/Holanda 2/Malta 2/Inglaterra 10/Irlanda 1/Itália 10/Suécia 1

34 0,02

Os primeiros registros de tripulações faziam constar a assinatura dos homens

matriculados, dado disponível para cerca de quatro mil dos mais de 19 mil registros. A

sistematização desses dados como indícios de letramento aparece na tabela a seguir.

TABELA II – TRIPULANTES QUE ASSINAM SUAS MATRÍCULAS, CONFORME A FUNÇÃO

Page 8: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

8

A BORDO (1767-1769) / TOTAL: 3.942 HOMENS

Função Assinam o nome

(1803 homens)

Assinam em cruz

(2139 homens)

Oficiais

capelães 85 1

capitães/comandantes 133 -

cirurgiões 91 -

condestáveis 13 4

mestres/contramestres 97 12

escrivães 10 -

pilotos/sota-pilotos 133 1

praticantes 24 -

Ofícios manuais/marinheiros comuns

artilheiros 7 15

calafates 84 23

canoeiro 1 -

carpinteiros 62 12

cozinheiros 11 23

despenseiros 37 18

grumetes 18 26

guardião 1 1

moços/mancebos 411 754

serventes/marinheiros 575 1243

padeiro 1 -

pedreiro 1 -

tanoeiros 8 6

Distinguir oficiais de marinheiros comuns permite confirmar uma realidade

social inegável: os graus de oficialato eram acessíveis a homens em sua maioria

letrados, enquanto ter algum letramento era indiferente para o exercício do trabalho

manual e não garantia ascensão profissional e social. O grosso dos homens engajava-se

como marinheiros e/ou moços em suas diferentes nomenclaturas. Dentre eles, 67% não

eram capazes de assinar os próprios nomes, enquanto o percentual para capelães,

capitães, cirurgiões, contramestres, escrivães, pilotos e praticantes era zero ou próximo

disso. O letramento era uma medida de poder a bordo.

As tabelas I e II permitem constatar a existência de uma homogeneidade

linguística maior em termos comparativos, o que não nos deve fazer concluir que a

língua não era um problema e o domínio da linguagem marítima não pressupunha um

aprendizado, mesmo para homens iletrados. As profissões do mar eram transmitidas no

próprio desempenho do trabalho, o mesmo ocorrendo com o domínio das técnicas de

navegação e da linguagem marítima. Boa parte desses marinheiros, embora fossem

reinóis ou nascidos nos domínios coloniais, portanto falantes do português, vinham de

Page 9: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

9

experiências de pouco letramento e de trabalho no campo ou em pequenos serviços

urbanos, sendo muitos desses marinheiros os primeiros de suas famílias a deixarem a

vida camponesa para buscar alternativas de ofícios e sobrevivência no mar.

Tratava-se, assim, de homens quase inteiramente alheios aos saberes e ao jargão

marítimos até se engajarem em navios de longo curso, sem acesso prévio a

conhecimentos transmitidos no âmbito familiar, onde a experiência de trabalho era

diversa. Nas regiões ao norte de Portugal, estudos demográficos deixam clara a

tendência de retrocesso na produção agrícola no Entre-Douro-e-Minho a partir de

meados do século XVIII, época marcada por colheitas ruins, alta de preços, epidemias,

frio/chuvas/secas em excesso ou parcelamento das propriedades até o limite da

subsistência familiar. No caso de Braga, tais condições teriam levado muitos habitantes

a abandonarem a cidade a caminho das aldeias. Os dados que apresento aqui permitem

afirmar que milhares deles tomaram outra direção ou se instalaram nas aldeias apenas

de forma transitória, já que muitos se engajaram nas profissões do mar.

Para pessoas com essa experiência, adentrar o mundo do trabalho marítimo

significava aprender uma língua diferente da que era usada em terra e do jargão das

atividades profissionais que tinham antes. Como aprendizes de um novo ofício, tinham

que compreender as tarefas de bordo e os nomes das partes da embarcação: no que a

popa difere da proa ou bombordo de estibordo, para mencionar apenas os termos mais

corriqueiros? Era preciso distinguir velas e mastros, conhecer a hierarquia de bordo e as

formas de tratamento correspondentes, saber reconhecer e diferenciar brigues, escunas,

chalupas e outros tipos de navios, bem como os nomes dos ventos, das tempestades e

das correntes e suas implicações sobre o trabalho de acordo com as situações. Os

dicionários de marinharia contemplam todas essas categorias de palavras e saberes, e

sugerem um uso formativo para novos e velhos tripulantes de navios, na medida em que

as palavras tinham seus usos transformados e as novidades tecnológicas induziam a

apropriação de novos saberes e a invenção de novos termos.

Ao propor uma ordem de causas pelas quais os sentidos das palavras se

transformam, Antoine Meillet apontou a “repartição dos homens de uma mesma língua

em grupos distintos” como a principal dessas causas. Ele concordou com o filólogo

Page 10: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

10

Michel Bréal quando este viu a vida em sociedade se transformar em variedade e

riqueza e se dividir em diferentes ocupações, atos e interesses, afirmando que

“nem o estado de ânimo, nem a direção da ação são os mesmos para o

padre, o soldado, o político, o agricultor. Ainda que tenham herdado a

mesma língua, entre eles as palavras ganham nuance distinta, a qual se fixa

e acaba por aderir às próprias palavras (...). Cada ciência, cada arte, cada

profissão, ao compor sua terminologia, marca com sua especificidade as

palavras da língua comum”.

Ainda que cada grupo social tenha especificidades linguísticas, Meillet lembra

que os indivíduos circulam por diferentes espaços ou pertencem a mais de um grupo,

simultaneamente ou no decorrer de suas vidas, carregando consigo seu linguajar e

influenciando os demais. Assim, os jargões são permeáveis, e mesmo os homens do mar

tendo uma experiência de isolamento mais radical do que outros grupos profissionais,

eles também recebem influência de terra, ao mesmo tempo em que influenciam os

idiomas de onde são naturais e dos lugares por onde circulam.

A maior homogeneidade linguística na marinha lusa ou luso-brasileira não deve,

assim, levar à conclusão de que o problema da linguagem era inexistente. Recorro a um

último indício em reforço do meu argumento. Um autor anônimo esboçou um dicionário

em português no ano de 1765, garantindo que não pretendia editá-lo, mas sim mantê-lo

em sua forma manuscrita e apenas para uso próprio. “Palavra chula” e “palavra maruja”

foram duas das categorias usadas por esse autor para classificar os verbetes, sendo

ambas apresentadas como sinônimos. A definição do termo marabuto – o mesmo que

marujo, marítimo ou homem do mar – era calcada no linguajar desses homens:

“Explicam-se entre si com uma linguagem, termos e vocábulos alheios, que aos de fora

custa a entender, pondo às coisas uns tais nomes que nenhuma conexão ou analogia tem

com o nome próprio delas”. Temos aqui um sinal importante do estranhamento que a

língua dos marítimos ainda causava em terra, mesmo em uma sociedade como a

portuguesa, que havia séculos era marcada pelas viagens transoceânicas e pelas

conquistas ultramarinas. Para quem vinha da experiência de terra, engajar-se nos

trabalhos marítimos era adentrar um mundo novo, sendo o aprendizado

A língua e os dicionários de marinharia: fontes históricas e elementos da formação

Page 11: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

11

maruja

O reconhecimento da dupla utilidade dos dicionários de marinharia, como fontes

de informação histórica e como dado da formação profissional, não se faz sem uma

crítica. Os verbetes dos dicionários projetam uma imagem acerca da sociedade que

produziu a língua; ao mesmo tempo em que gera identificação, essa imagem também

silencia outros significados. Dicionários, vocabulários e gramáticas inserem-se no rol

das fontes escritas, o que não exclui as fontes orais do conjunto de dados linguísticos

nem a oralidade eventualmente presente nos textos escritos. Marcos Abreu chamou a

atenção dos estudiosos para isso, ao afirmar a necessidade de se fazer “uma crítica ao

testemunho para reconstituir antes a lógica social do texto e observar de que maneira as

palavras foram coligidas e registradas pelo compilador”. Como, quando e onde são

questões centrais para o historiador.

Os dicionários não são repositórios de definições unívocas. Dicionários

compilados em determinados momentos podem não expressar toda a dinâmica da

transformação na linguagem, e as definições neles contidas não têm necessariamente o

mesmo significado para os usuários do mesmo léxico ou para a sociedade coeva como

um todo. No caso dos dicionários de marinharia, eles reúnem definições sobre partes e

peças das embarcações e as técnicas construtivas, além de descreverem cargos e funções

da equipagem e raramente gírias de bordo. Há um certo número de dicionários editados,

suficiente para permitir comparações e sondar se houve diferentes entendimentos sobre

determinados conceitos no decorrer do tempo. No caso de Portugal, quase todas essas

obras foram editadas no século XIX, o que dificulta a verificação das alterações de

conteúdo nos significados das palavras ao longo de períodos mais amplos. O mesmo

acontece com os vocabulários eventualmente compilados por homens que, a rigor, não

eram dicionaristas profissionais.

Mesmo com todos esses questionamentos, os dicionários de termos marítimos

não podem ser descartados como fontes para o estudo da linguagem dos homens do

mar. Sobretudo, porque não existem fontes escritas de próprio punho pelos marinheiros,

e essa ausência precisa ser superada com recursos metodológicos. Como escreveu E. P.

Thompson, “para grande desespero dos historiadores, os homens não mudam seu

Page 12: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

12

vocabulário toda vez que mudam seus costumes”, o que estimula o lidar com os

dicionários de termos marítimos para compreender a dinâmica das transformações e da

permanência vocabular na linguagem e na cultura dos homens do mar. A mudança ou a

preservação dos sentidos das palavras através do tempo possibilita o estudo de questões

caras ao historiador, da cultura à política, da sociedade à economia, da velocidade e

permanências dos empréstimos linguísticos aos padrões de contato entre sociedades.

Por meio dos dicionários de marinharia, é possível abordar a questão da

linguagem marítima, suas transformações e permanências no decorrer do tempo e diante

das mudanças técnicas. Os homens do mar eram poliglotas e cosmopolitas por

excelência. Durante suas viagens ou em seus períodos de fixação em terra, conheciam

falantes de línguas diversas e disso retiravam um aprendizado circunstancial ou

duradouro. Era também em razão da linguagem peculiar que utilizavam que os

marinheiros eram identificados por outros grupos sociais em terra.

O jargão marítimo era utilizado no trato pessoal, na imposição da disciplina e no

aprendizado profissional. Quanto a estes aspectos, os vocabulários técnicos e os

dicionários de marinharia são reveladores. Bons exemplos disso em Portugal são as

obras de arquitetura naval escritas ao menos desde século XVII, entre elas o Breve

compendio do que pertence à obrigação de hum capitão de mar & guerra, de 1676, que

encerra um dos primeiros vocabulários sistemáticos da linguagem marítima dos

navegadores lusos – prática que tomaria corpo mais extenso em dicionários portugueses

de marinharia editados a partir das primeiras décadas do século XIX, na esteira da

tradição dos séculos anteriores. A compilação de dicionários de linguagem marítima

ocorre na Europa ao menos desde o século XVIII e do Universal Dictionary of the

Marine, de William Falconer, editado pela primeira vez em Londres em 1769. Em

Portugal e no Brasil, essa tradição foi levada adiante por meio da edição de diversos

dicionários de linguagem marítima nos séculos XIX e XX.

Ao historiador não resta alternativa a não ser lidar com as evidências de que dispõe:

do mesmo modo que a cultura popular dos tempos modernos vem sendo estudada a partir

das descrições dos folcloristas do século XIX, fontes valiosas como os dicionários

compilados por homens letrados e oficiais da Marinha nos séculos XIX e XX ou relatos de

Page 13: A linguagem dos trabalhadores do mar 1. A linguagem como … · 2020. 8. 26. · sobretudo os mais movimentados, era comum ouvir o emaranhado das línguas, tanto a dos marujos como

13

viajantes coevos precisam ser manejadas com cuidado para não repetir seus procedimentos

paternalistas, mesmo que essas fontes eventualmente possam ser definidas pelo abismo de

classe que encerram e tenham sido produzidas por observadores das antiguidades

populares divorciados do contexto, como afirmou Thompson em relação às narrativas dos

folcloristas. No caso dos dicionários ou vocabulários, uma crítica feita nestes termos

inviabilizaria o estudo: os oficiais, por mais que dominassem as letras e se diferenciassem

socialmente de seus subordinados, compartilhavam o uso dos vocábulos e não teriam

motivos para construir novos significados para palavras de uso comum, sobretudo no

treinamento de marujos recém-engajados.