a língua portuguesa em macau e os efeitos da frustrada tentativa

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, n o 39, p. 41-66, 2009 41 A LÍNGUA PORTUGUESA EM MACAU E OS EFEITOS DA FRUSTRADA TENTATIVA DE COLONIZAÇÃO LINGUÍSTICA Denise Pacheco RESUMO O presente texto analisa a especificidade de Macau no processo de difusão da língua portuguesa no mundo, como resultado de mal sucedida tentativa lusa de co- lonização linguística deste pequeno território chinês. Com base na análise discursiva de materiais linguarei- ros, o texto discute a constituição do território linguísti- co de Macau e de suas fronteiras, focalizando o funcio- namento da língua portuguesa na região. PALAVRAS-CHAVE: Macau; difusão da Língua Por- tuguesa; política linguística. Afinal como definir Macau? O presente texto enfoca Macau 1 , peculiar região chinesa, onde Portugal concluiu o seu ciclo de “esplendor enquanto império colonial” 2 . Tem como principais objetivos configurar o território linguístico e suas fronteiras e entender o atual papel da língua portuguesa na configuração desse território. Assim como Hong Kong, Macau é oficialmente denominada 1 As ilhas de Taipa e Coloane foram incorporadas a Macau sob administração portuguesa em 1851 e 1854, respectivamente, quando Portugal completou gradualmente sua ocupação da região (GUOQIANG, Zhao. ABC da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau. Pequim: China Intercontinental Press, 1999, p. 18). 2 HORTA, ANA M. R. Longe dos olhos: A imagem de Macau nos jornais e nas televisões de Portugal. Instituto Cultural de Macau, 1999. p. 11.

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Page 1: A Língua Portuguesa em Macau e os Efeitos da Frustrada Tentativa

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 41-66, 2009 41

A LÍNGUA PORTUGUESA EM MACAU E OS EFEITOS DA FRUSTRADA TENTATIVA DE

COLONIZAÇÃO LINGUÍSTICA

Denise Pacheco

RESUMO

O presente texto analisa a especificidade de Macau no processo de difusão da língua portuguesa no mundo, como resultado de mal sucedida tentativa lusa de co-lonização linguística deste pequeno território chinês. Com base na análise discursiva de materiais linguarei-ros, o texto discute a constituição do território linguísti-co de Macau e de suas fronteiras, focalizando o funcio-namento da língua portuguesa na região.

PALAVRAS-CHAVE: Macau; difusão da Língua Por-tuguesa; política linguística.

Afinal como definir Macau?

O presente texto enfoca Macau1, peculiar região chinesa, onde Portugal concluiu o seu ciclo de “esplendor enquanto império colonial”2. Tem como principais objetivos configurar o território linguístico e

suas fronteiras e entender o atual papel da língua portuguesa na configuração desse território. Assim como Hong Kong, Macau é oficialmente denominada

1 As ilhas de Taipa e Coloane foram incorporadas a Macau sob administração portuguesa em 1851 e 1854, respectivamente, quando Portugal completou gradualmente sua ocupação da região (GUOQIANG, Zhao. ABC da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau. Pequim: China Intercontinental Press, 1999, p. 18).

2 HORTA, ANA M. R. Longe dos olhos: A imagem de Macau nos jornais e nas televisões de Portugal. Instituto Cultural de Macau, 1999. p. 11.

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Região Administrativa Especial (RAE) da República Popular da China (RPC), um país com dois sistemas políticos: socialismo - praticado na RPC - e capitalismo - praticado nas RAEs, que foram ocupadas, respectivamente por Portugal e Inglaterra nos séculos XVI e XIX.

Quando se fala em Macau, a controvérsia sobre o uso do termo coloniza-ção é muito grande. Segundo Grosso3, na verdade houve foi o desdobramento de um “processo de mútuo interesse mercantil luso–chinês”. O fato é que chineses e portugueses evitam o termo e afirmam que a situação político-administrativa de Macau deve ser encarada de modo diverso. Na perspectiva chinesa, Hong Kong e Macau sempre foram territórios chineses ocupados. Desse modo, os portugueses eram considerados como uma espécie de arren-datários e os chineses, os verdadeiros donos da terra4. O desconforto quanto à classificação política das duas RAEs como ex-colônias permaneceu até o século XX, quando o governo chinês resolveu posicionar-se oficialmente sobre o assunto em nível internacional e recorreu à Organização das Nações Unidas. A Assembléia Geral da ONU aprovou a reivindicação chinesa e excluiu Hong Kong e Macau da lista de colônias existentes no mundo.

No momento em que o tema Política Linguística tem sido destaque, notadamente, a partir de 1996, quando foi assinada a Declaração Univer-sal dos Direitos Linguísticos, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM)5, território que já faz parte do Patrimônio Cultural da Humanida-de6, também discute, através de consulta pública, um documento preliminar com o objetivo de definir as diretrizes de estabelecimento de seu Patrimô-nio Cultural. O documento Lei de Salvaguarda do Patrimônio Cultural foi lançado em fevereiro de 2009 e o prazo para consulta e discussão, previsto

3 GROSSO, Maria José. O discurso metodológico do ensino de português em Macau a falantes de língua materna chinesa. Universidade de Macau, 2007.

4 O ‘foro do chão’ – uma espécie de ‘aluguel’ por ocupar a região – passou a ser cobrado de Portugal, a partir do século XVI (1573). (Dado colhido em conferência intitulada ‘O es-tabelecimento dos portugueses em Macau e a administração do Território”, proferida pelo Professor Jorge Cavalheiro, na Universidade de Macau, em dezembro de 2008).

5 No presente texto, o uso alternado entre Macau e RAEM tem como pressuposto a aborda-gem no passado (Macau) e no presente/futuro da região (RAEM).

6 A inscrição de Macau na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade ocorreu em julho de 2005.

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para encerrar em maio de 20097, se mostrou insuficiente para dar conta da realidade local a ser analisada.

Em virtude da relação de Macau com o mundo lusófono, que se deu de modo bastante peculiar, considerou-se oportuno analisar discursivamente o funcionamento da língua portuguesa em um território que foi oficialmente monolíngue por tanto tempo (o português foi língua oficial durante os qua-trocentos anos de administração portuguesa), para que se possa compreender o seu atual papel na RAEM. Segundo a Lei Básica, artigo 9o., na versão oficial em português,8 está assim definido o status das línguas oficiais na RAEM: ‘Além da língua chinesa, pode-se usar também a língua portuguesa nos órgãos executivo, legislativo e judiciais da região Administrativa Especial de Macau, sendo tam-bém o português a língua oficial’ (ênfase adicionada). O texto mostra que o sen-tido de equiparação do status das duas línguas escapa, deixando transparecer um espaço secundário ao português, que a análise do presente texto vai confirmar.

Neste estudo discutimos ainda o silenciamento9 do cantonês, língua ma-terna da esmagadora maioria da população da RAEM, na esfera oficial/adminis-trativa, durante este mesmo período. Tendo como base teórica os constructos da Análise de Discurso (AD), objetivamos traçar o cenário linguístico da RAEM de hoje e descrever como se produziu discursivamente esse funcionamento.

A heterogeneidade linguística na RAEM

Como vimos, a RAEM é integrante do território da China, país de sóli-

7 Disponível em: <www.macauheritage.net/mhlaw>. Acesso em: fev. 2009. O Instituto Cul-tural de Macau promoveu vários eventos para discussão do documento, considerado ‘abran-gente’ e ‘viável’. Na reflexão sobre essa abrangência, foi surgindo a necessidade de se discutir, separadamente, o patrimônio intangível, o que enriqueceu sobremaneira o debate e impediu o cumprimento do prazo inicialmente previsto. É interessante registrar a importância desse processo, pois está sendo repensado o papel das manifestações culturais que constituem esse patrimônio, no qual se insere o patuá, crioulo de base portuguesa.

8 Os documentos oficiais da RAEM geralmente estão disponíveis nas versões em chinês e por-tuguês. Disponível em: < http://bo.io.gov.mo/bo/i/1999/leibasica/index.asp>. Acesso em: 04 abr. 2009.

9 Silêncio é “a ‘respiração’ (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o movimento do sujeito”. (ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 13).

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das tradições, reconhecidas por sua unicidade. Localizada na costa meridional da RPC, a oeste do Rio das Pérolas, fica muito próxima de Hong Kong (60 km de distância), tendo sido sempre alvo de muitos interesses comerciais, dada a sua estratégica localização geográfica. Os portugueses chegaram a Macau em 1553, “sob o pretexto de secar as mercadorias molhadas”10. Com objetivos indiscutivelmente comerciais, eles estavam, na verdade, interessados nas espe-ciarias orientais e identificaram a região como um espaço geograficamente im-portante, na qual se ‘instalaram’, ainda que tivessem que aceitar uma posição secundária, já que a China manteria a soberania plena sobre a região.

Essa ocupação viveu momentos de conturbação e instabilidade, mas Por-tugal se manteve no governo e impôs o português como língua oficial11 do território. Como sabemos, o português também foi imposto em outras colô-nias como Angola, Moçambique e Brasil e acabou por se tornar língua oficial desses países, a despeito da enorme diversidade linguística existente, quando o colonizador chegou e se fixou nesses territórios. Hoje no Brasil concentra-se o maior número de falantes de português no mundo. Essa situação era mui-to diversa quando a esquadra lusa chegou àquele país. Segundo Rodrigues,12 havia cerca de 1.200 línguas faladas no território brasileiro no século XVI. Atualmente, elas se reduzem a 18113.

Em Macau o processo de ocupação tomou contornos bastante diversos e se deu de modo bastante artificial, podendo mesmo ser considerada uma tentativa frustrada de colonização linguística, como a análise mais adiante vai demonstrar:

Por colonização linguística postula-se um processo histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários linguísticos cons-titutivos de povos culturalmente distintos – línguas com me-mórias, histórias, políticas de sentidos desiguais, em condições

10 GUOQIANG, op. cit, p. 20.11 O conceito é usado como o concebe Guimarães (2003, p. 48): ‘língua oficial é a língua de um

Estado, aquela que é obrigatória nas ações formais do Estado’. (GUIMARÃES, Eduardo. Enun-ciação e políticas de línguas no Brasil. Revista Letras, UFSM, n. 27, p. 47-53, jul/dez 2003).

12 RODRIGUES, Ayron D. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 1986. p. 35.

13 Para a compreensão clara de como historicamente se deu esse processo ver MARIANI, Be-thania. Colonização linguística. Campinas, SP: Pontes, 2004 e ORLANDI, Eni (Org.). Polí-tica linguística no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 2007.

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de produção tais que uma dessas línguas – chamada de língua colonizadora – visa impor-se sobre a(s) outra(s), colonizada(s). Para tanto, políticas linguísticas são engendradas com o obje-tivo de disseminar a língua colonizadora, delimitando, organi-zando e silenciando os espaços de enunciação das línguas colo-nizadas (MARIANI, 2007, p. 85).14

E por que se pode aventar a hipótese de tentativa de colonização linguís-

tica em Macau? Algumas das possíveis respostas são dadas a partir da análise do corpus,15 que representa uma amostra do funcionamento da(s) ‘língua(s)’ que se fala(m) hoje na RAEM, uma sociedade, que inegavelmente pode ser classificada como multicultural.

Vamos tomar como base teórica do presente texto o conceito de lingua-gem no paradigma multicultural, não só “como o lugar onde as relações de dominação e de exclusão se cristalizam, mas também onde essas relações são negociadas, produzidas e reproduzidas”16, ou seja, tendo como princípio a não neutralidade da linguagem.17 Além disso, consideramos que não existe também uma relação linear entre enunciador e destinatário. Essas relações são sempre mediadas pela linguagem, através da qual são produzidos efeitos de sentidos, resultantes da relação entre sujeitos. Em outras palavras, consideramos posições-sujeito que participam do discurso, que se projetam nele, dentro de circunstân-cias dadas, as chamadas condições de produção, nas quais os sujeitos simbólicos se incluem em uma determinada situação discursiva/enunciativa (ORLANDI,

14 MARIANI, Bethania. Quando as línguas eram corpos: sobre a colonização linguística por-tuguesa na África e no Brasil. In: ORLANDI, E. (Org.). Política linguística no Brasil. Cam-pinas, SP: Pontes, 2007. p. 83-112.

15 O conceito de corpus pode ser entendido como o conjunto do material bruto linguístico colhido e ‘de-segmentado’ para que se faça a análise discursiva (ORLANDI, E.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Org.). Discurso e textualidade. Campinas, SP: Pontes, 2006. p. 17). No presente texto, o corpus, composto no período de dezembro/2008 a agosto/2009, consta de documentos oficiais da RAEM, de fotos tiradas no território e de entrevistas feitas com residentes de nacionalidade chinesa, falantes de português língua estrangeira e residentes estrangeiros falantes nativos de português.

16 SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 66-67.17 ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes,

2003. p. 9.

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2006, p. 15).18 Essas condições de produção compreendem as circunstâncias de enunciação - o aqui agora do dizer e o contexto sócio-histórico-ideológico mais amplo (ORLANDI, 2003). Assim, os enunciados, que inexoravelmente pro-duzem efeitos de sentidos, são direcionados a diferentes formações discursivas, entendidas como aquilo que,v numa formação ideológica dada determina o que pode e o que não pode ser dito.19 Por causa desse processo de remessa a uma formação discursiva e não a outra, efeitos de sentido produzidos são diferentes.20

O conjunto de formações discursivas, ou seja, ‘todo dizer já dito’, é o que chamamos de interdiscurso, ou seja, a memória discursiva (PÊCHEUX, 1983)21, que integra a complexa articulação que se dá no discurso. Para entender como se dá esse processo, retomemos a sua descrição feita por Courtine.22 O autor propõe que pensemos a existência de dois eixos no discurso: um horizontal, o eixo da formulação do enunciado, e um vertical, ou seja, o da constituição do dizer. A memória discursiva situa-se exatamente neste segundo eixo, de modo que todo dizer lida com um já-dito e com o próprio processo de constituição do dizer.

Uma rápida visita pela RAEM permite que se visualize claramente como esses espaços de significação se configuram em um contexto linguístico caracteri-zado por uma intensa heterogeneidade. Ela funciona de modo contrastante com um bilinguismo oficial (chinês/português). É interessante observar, entretanto, a especificidade com que a língua portuguesa é utilizada na região. Este fato chama a atenção de todos os proficientes na língua que andam pelas ruas da RAEM.

Cantonês é a língua materna da esmagadora maioria dos residentes de Macau (cf. Fig. 1). É falado também na outra RAE chinesa, Hong Kong. Em sua escrita são usados os caracteres tradicionais da escrita chinesa, o que dificulta o processo de leitura inclusive entre os chineses de outras regiões que

18 ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy. (Org.). Discurso e textualidade. Campi-nas, SP: Pontes, 2006.

19 PÊCHEUX, Michel. La verité de La Palice. Maspero, 1975. Paris. Trad. bras. Semântica e discurso. E. Orlandi et alii, Ed. da Unicamp, 1988

20 Segundo Orlandi (1992, p. 31), “o homem está “condenado’ a significar”. E esse processo de interpretação é por essa razão, dinâmico. Uma forma pragmática de se reconhecer como ele se dá é reler um livro. Os efeitos de sentido produzidos na/pela releitura podem até mesmo nos dar a sensação de estarmos lendo outro livro, pela primeira vez.

21 PÊCHEUX, M. Role de la mémoire. In Linguistique et histoire. CNRS, Paris, trad. Brás. Papel da Memória. José Horta Nunes. Campinas: SP, Pontes, 1999.

22 COURTINE, J. J. Définition d’orientations théoriques et methodologiques en Analyse de Dis-cours”. In: Philosophiques, Paris, v. IX, n. 2, 1984.

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chegam à RAEM. A despeito do rápido aumento populacional, em virtude da vinda de emigrantes em busca de sonho e de luz,23 existe, neste recanto oriental uma importante diversidade linguística em chinês. Segundo Calvet,24 “os chineses não se compreendem entre si de um canto a outro do país quando falam a sua língua materna”. Usam uma escrita padronizada, cuja oralização se dá de modo bastante diverso, conforme a língua em que os caracteres este-jam sendo lidos. Assim, na China é possível que um mesmo texto seja lido de modo bastante diverso por pessoas que falem diferentes línguas chinesas.

Segundo ainda Calvet25, “além das línguas minoritárias, em torno de cin-quenta, faladas por 5% da população, existe um vasto conjunto composto por oito línguas diferentes [...] estas mesmas divididas em mais de 600 dialetos locais”. O território multilíngue da RPC é, portanto, inegavelmente plurilíngue em chinês.

O putonghua (mandarim) foi adotado pelo governo como estratégia de política linguística, como forma de lidar com o enorme plurilinguismo em chi-nês, que poderia26 ser encarado como um complicador para atingir a meta de uma unidade linguística nacional. Assim, na China atual, putonghua é a língua oficial, e há um empenho forte do governo para que ele passe a ser de fato (por já o é de direito, pelo menos na RPC), língua nacional.27 Podemos perceber que li-dar com acentuado plurilinguismo em chinês, buscando um monolinguismo e a unificação linguística do país não é tarefa simples. Atualmente, na RPC, puton-ghua já é língua veicular no ensino. Na RAEM, entretanto, a definição da língua veicular de ensino é mais complexa, como podemos concluir a partir da análise do artigo 37 da lei 09/2006, a Lei de Bases do Sistema Educativo não Superior:

1. As escolas oficiais devem adoptar uma das línguas oficiais como língua veicular e proporcionar aos alunos a oportunidade de aprender a outra língua;2. as escolas particulares podem adoptar como línguas veicula-res quer as línguas oficiais, quer outras línguas;

23 Macau é conhecida como a Las Vegas do Oriente, a Cidade dos Sonhos.24 CALVET, L-J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007. p. 88.25 Op. cit., p. 87.26 A modalização está sendo aqui empregada, porque, mais adiante, vamos mostrar como a

busca dessa essa unidade está sendo sustentada.27 Usamos o conceito de língua nacional como formulado por Guimarães 2003, p. 48: ‘é a

língua de um povo, enquanto língua que o caracteriza, que dá a seus falantes uma relação de pertencimento a este povo’.

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3. a adopção de outras línguas, pelas escolas particulares, fica sujeita a avaliação prévia e ao reconhecimento pelo serviço responsável pela Educação da existência de condições adequadas para este efeito;4. as escolas particulares que adoptam outras línguas como lín-gua veicular devem proporcionar aos alunos a oportunidade de aprenderem, no mínimo, uma das línguas oficiais.

As especificidades no estabelecimento da língua veicular de ensino podem ser justificadas pelos dados estatísticos sobre a composição da população da RAEM, segundo a sua língua ‘corrente’28 reproduzidos na figura a seguir (Tabela.1).

Tabela 1: População residente segundo a ‘língua corrente’ (2006)

28 Disponível em: < http://www.dsec.gov.mo/>. Acesso em: 4 abr. 2009.

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Os dados apresentados na tabela 1 são coerentes com os divulgados no final de 2007, em relação ao número de funcionários públicos da RAEM, segundo a sua língua materna (SAFP, 2007, p. 170).29 O documento afirma que ‘os efectivos de língua materna chinesa aumentaram gradualmente nos úl-timos dez anos, verificando-se um aumento de +26,8% relativamente a 1998 [...] quanto aos efectivos de língua materna portuguesa, têm vindo a decrescer desde 1998, sendo que em 2007 se encontram – 44,2% de efectivos desta língua materna, relativamente aos existentes em 1998”.

Neste mesmo documento oficial, o quadro 85 - Evolução da estrutura de língua materna do documento Recursos Humanos da Administração Pública da RAEM 2007 - apresenta os dados distribuídos em três categorias: línguas chi-nesa, portuguesa e ‘outra’. Em nota de rodapé, é feito o esclarecimento de que nesta última categoria incluem-se ‘a partir do ano 2000 as línguas Japonesa, Filipina, Cambojana, Francesa, Checa, Russa, Alemã, Malaia, Napalesa, Ingle-sa e’ (sic).30 O fato de a citação das línguas ser feita através de notas de rodapé em si configura o desvendamento da heterogeneidade linguística da RAEM.

O decréscimo da presença portuguesa nos quadros do governo pode ser avaliado como um dos efeitos do Despacho Governamental 113, segundo o qual a administração da RAEM passaria a considerar no âmbito de sua polí-tica “o desenvolvimento da utilização da língua chinesa como um dos instrumentos da melhoria das relações entre a Administração e o público utente” (SAFP, Idem, p. 1) - ênfase adicionada. A despeito do bilinguismo oficial, o chinês é prevalente e alguns documentos são disponibilizados ao público somente na versão oficial chinesa. Mas há também casos em que só está disponível a versão em inglês.31

29 SAFP (Serviço de Administração Pública de Macau). A Administração de Macau e as Línguas Oficiais no Período de Transição. Departamento de Recursos Humanos do SAFP, Macau, 2007.

30 É curioso observar que a frase da citação está incompleta no documento original. Essa in-completude produz também efeitos de sentido. Ajuda a comprovar uma intensa e significa-tiva situação de heterogeneidade. Espera-se que, no planejamento da política linguística a ser implementada na RAEM no futuro, o papel dessas línguas nessa heterogeneidade linguística da região seja otimizado.

31 Como exemplo, podemos citar o documento Lei de Proteção do Patrimônio Cultural da República da China (Disponível em: <http://www.macauheritage.net/pt/Decree/Decree.aspx>. Acesso em: 30 maio 2009; e o Regulamento de um concurso de trabalhos em esta-tística promovido pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos da RAEM, no qual, segundo as normas do certame, estava prevista a entrega de trabalhos em chinês, inglês e

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A flagrante diversidade aqui apresentada configura um território linguís-tico bastante complexo. As implicações dela decorrente em termos de política linguística instigam uma investigação cuidadosa. Pina Cabral & Lourenço32 afirmam que “Macau é um território complexo. Não se pode afirmar que nele existam nem uma nem duas culturas identificáveis. Essa complexidade cul-tural é estruturada por dois eixos – um étnico, o outro linguístico. Esses dois eixos não são porém correspondentes”.

A complexidade atestada pelos autores é cada vez mais acentuada em fun-ção do acelerado crescimento da indústria do turismo, que provocou, em con-sequência, um aumento do número de imigrantes. Eles acorrem ao território do jogo e dos cassinos, mesmo como simples visitantes, chegando somente para um feriadão ou fim de semana. Só em 2008, a RAEM recebeu 22.907.700 visitantes.33 Embora o processo de imigração seja acompanhado de perto pelo governo, os dados apresentados confirmam a intensificação desse processo em progressão geométrica. Eles deixam evidente que as questões relativas à gestão linguística da RAEM são desproporcionais ao tamanho do território (29 km2) e da sua população, estimada em 31/12/2008 em 549.200 habitantes.

Neste contexto plurilíngue existe reconhecimento público da importân-cia do inglês como língua de sobrevivência e de trabalho. O anúncio de vaga para jornalistas que falem inglês na página da TDM (Rede de Televisão da RAEM) pode ser usado como exemplo: ‘TDM invites applications for English language journalists. For more information contact [email protected]’.34 Em en-trevista relativa ao funcionamento da rede de TV, publicada no jornal Hoje

português. Entretanto, o regulamento só foi disponibilizado na internet na versão chinesa (Disponível em : <http://www.dsec.gov.mo/File/UStatContest.aspx>). Apesar de os ícones para acesso ao regulamento em português e em inglês estarem disponíveis, ao serem acessa-dos no período de 10 a 30 de maio de 2009, a informação obtida foi a seguinte: “A página não está disponível na versão linguística seleccionada”. Já o regulamento do Concurso de Investigação sobre a História e Cultura de Macau só foi disponibilizado na versão chinesa. Mas o documento A conservação do patrimônio urbano: Uma visão de Macau só foi disponibili-zado na versão em inglês. Disponível em: <http://www.macauheritage.net/pt/Knowledge/Knowledge.aspx>. Acesso em: 31 ago. 2009.

32 CABRAL, João de Pina; LOURENÇO, Nelson. Em terra de tufões: dinâmicas da etnicidade macaense. Instituto Cultural de Macau, 1993. p. 19.

33 Disponível em: <http://www.dsec.gov.mo/getAttachment/5d680d62-5024-4af1-8197-8a6852209caf/P_MN_PUB_2009_Y.aspx>. Acesso em: 16 maio 2009.

34 Disponível em: <http://portugues.tdm.com.mo/index.phtml> . Acessos em: 17 e 30 maio 2009.

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Macau (13/05/2009), podemos dimensionar como os jornalistas locais lidam com a ‘barreira linguística’: ultrapassa-na com o inglês. “[...] o canal faz serviço público em língua portuguesa e também já em inglês [...] A novela da Globo35 tem um grande impacto, que ultrapassa o público português, dado que houve a opção de a legendar em inglês” (ênfase adicionada).36

E esse processo parece irreversível, se analisarmos o status dessa língua no cenário internacional. O inglês é considerado língua veicular internacional em várias instituições locais, durante reuniões gerais e eventos realizados em várias instituições de ensino. O inglês funciona, ainda, junto com o chinês, como lín-gua ‘oficial’ de trabalho na comunicação oral e escrita nessas instituições. E in-teressante registrar, entretanto, uma lenta e paulatina opção pelo uso da língua chinesa nesses círculos, visto que ela tem sido veicular em alguns importantes eventos ocorridos em Macau, como conferências e mesmo ‘job presentations’.37

Um outro aspecto merece destaque no que se refere ao funcionamento linguístico do inglês na RAEM é que, apesar do grande avanço no setor de turismo, a proficiência de grande parte da população nesta língua não é ainda a desejável, fato facilmente constatável quando se tenta falá-la na RAEM.38 Os motoristas de táxi e mesmo recepcionistas de hotéis existentes na região não são proficientes em inglês, o que muitas vezes torna a comunicação bastante comprometida ou até impossibilitada. Uma estratégia de sobrevivência lin-guística bastante comum entre os visitantes, e mesmo residentes estrangeiros

35 A novela a que o texto se refere é Paraíso Tropical.36 Dado colhido em Hoje Macau, em 13/05/2009, p. 7.37 Na Conference on Public Governance and Regional Governmental Cooperation, realizada na

Universidade de Macau no dia 15 de maio de 2009, de acordo com o programa, dos 47 trabalhos apresentados, apenas 6 foram em inglês.

38 Embora pesquisadores já vislumbrem algumas mudanças no cenário educacional e linguís-tico em Hong Kong (ex-‘colônia’ inglesa), em relação à proficiência em inglês, como re-portam Tong (2008) e Clem (2008), não se pode afirmar ainda que este fato ocorra em Macau do mesmo modo, considerando-se a especificidade do atual contexto linguístico da RAEM. (TONG, Nora. Decline in English Standards alarming. In South China Morning Post. 05/05/2007, p. E 3; CLEM, W. ‘Time to give trilingual a try, says professor’. Entrevista com Andy Kirkpatrick. South China Morning Post de 07 de junho de 2008, p. E4). Na verdade, o próprio governo da RAEM parece assumir a carência de guias turísticos com domínio de línguas estrangeiras, conforme podemos depreender pela leitura da reportagem publicada no Jornal Tribuna de Macau de 03/04/2009, p. 5. Registre-se, entretanto, uma clara tendência de aumento na oferta e na demanda por cursos de línguas estrangeiras na RAEM, notadamente pelos cursos oferecidos pelas instituições de ensino locais.

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não falantes de cantonês, é a de carregarem consigo cartões indicativos das direções desejadas (como o reproduzido na figura 1).

Figura 1: Cartão distribuído aos hóspedes do Hotel Lisboa

Diante dos dados de realidade apresentados até agora, algumas perguntas se colocam: Como se deu o processo de imposição do monolinguismo em português em Macau? Por que andando pelas ruas da RAEM podemos cons-tatar que as estratégias de silenciamento implementadas no Brasil não podem ser identificadas claramente em Macau?

Em Macau se fala português ...(?)

No discurso social, entendido como “tudo o que se diz, tudo o que se escreve em uma sociedade dada, tudo que se imprime, tudo que se fala hoje na ‘mídia eletrônica’ [...] o conjunto não necessariamente sistêmico nem fun-cional do dizível, discursos instituídos e temas providos de aceitabilidade e de capacidade de migração em um momento histórico de uma sociedade dada” (ANGENOT, 1984, p. 20)39, a língua se corporifica, ganha visibilidade. Mas, quando é silenciada, esse processo afeta diretamente a constituição identitária dos sujeitos falantes dessa língua.

39 ANGENOT, M. Le discours social: problématique d’ensemble’, em Le discours social et ses usages. Quebec, 1984, apud ORLANDI, 1992.

Eles são mostrados aos moto-ristas de táxi, para que os passageiros possam ser conduzidos ao lugar de destino. É inclusive hábito de alguns residentes terem consigo um peque-no folder com cartões dos locais a que geralmente vão, para evitar o constrangimento de não saberem fa-lar cantonês.

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No caso da RAEM, uma conjugação de fatores históricos, sociais e políticos nos leva a pensar numa relação contraditoriamente intrínseca entre a imposição do português e a sua presença e seu funcionamento na RAEM de hoje. O primei-ro deles é própria constituição do povo chinês e de sua sólida cultura, que vêm resistindo há mais de cinco mil anos de história em um contexto alta e fortemen-te marcado por valores tradicionais, valores estes que os chineses entrevistados denominam de ‘condicionamento’. Pela leitura do artigo 4o. da Lei 09/2006, que define os objetivos gerais da educação da RAEM, pode ser identificada a forte presença desses valores, em expressões como: ‘amor a Pátria e por Macau’, ‘boas qualidades morais’, observância da disciplina e cumprimento da lei’, ‘responsa-bilidade perante a Pátria e Macau’; ‘cumprimento dos seus deveres de cidadão, cultivando os valores morais dignos’; ‘respeito pelo próximo’, ‘convívio harmo-nioso’; ‘respeito pelo próximo’. Questionados sobre a origem desses valores e dessa forte herança moral, durante a coleta de dados para a presente pesquisa, houve unanimidade entre os entrevistados ao atribuírem esta herança ao Confu-cionismo, como podemos observar pela análise das SDs40 reproduzidas a seguir:

SD1: “Não temos história de expressar o que sentimos e pen-samos [...] praticamos portanto a cultura tradicional chinesa ah, todo o componente cultural é o Confucionismo, portanto no dia-a-dia ainda somos muito condicionados pelos princípios confucionistas [...] uma série de princípios, de formas sociais que nos orientam, nos formam, nos condicionam’ (Entrevistado 1 – ênfase adicionada).SD2: “Tem vários aspectos confucionistas. Eu só posso dizer um, por exemplo, uma das nossas tradições é respeitar os velhos, amar as crianças, valorizando a família [...] o cuidado, a aten-ção, valor a família e valor a amizade”. (Entrevistado 2)

O segundo fator a ser mencionado, mas nem por isso menos importante, é a imperiosa necessidade chinesa de integração nacional também pela língua.

40 A sigla SD refere-se a recortes discursivos colhidos no corpus, do qual fazem parte entrevistas gravadas totalizando duração superior a cinco horas. Foram feitas em abril de 2009 com es-trangeiros, falantes nativos de português e chineses, falantes de português língua estrangeira, todos residentes na RAEM.

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A China que hoje se abre ao mundo, que mantém relações comerciais com países do Oriente e principalmente do Ocidente, precisa falar uma só língua. Como se sabe, a língua chinesa (notadamente em sua forma escrita) com seus inúmeros caracteres, é reconhecida como muito difícil de se aprender como segunda língua ou língua estrangeira41 e mesmo como língua materna. Para que possam dominá-la, aos três anos (ou mesmo antes disso), as crianças co-meçam a travar os primeiros contatos com a escrita.42

Um terceiro fator a ser mencionado no trato com a complexa diversi-dade linguística chinesa é a operacionalização do complicado status político, representado pela equação: um país, dois sistemas. Na verdade, analisando a situação linguística atual da RAEM, podemos afirmar que o governo chinês trabalha com uma equação ainda mais complexa: um Estado = várias lín-guas/culturas = uma língua oficial /nacional = uma nação = dois sistemas políticos. Na equação apresentada, ao Estado é a RPC; a língua oficial/nacional é o putonghua; a nação é a RPC, cuja evolução histórica não deixa ocultar as lutas de minorias, que hoje se congregam em um país que aos poucos vai se abrindo à multiculturalidade. Os dois sistemas políticos são o capitalismo e o socialismo. Nas RAEs, que gozam de relativa autonomia administrativa e política, essa aparente e contraditória conjunção fica ainda mais explícita. Descrevendo a RAEM de hoje, Sympson (2008, p. 1054)43 assim se expressa: “socialismo e capitalismo, colonialismo e pós-colonialis-mo, globalização e provincianismo, planejamento e privatização, o velho e o novo, realidade e mito, sonho e realidade”.44 Em uma análise preliminar, o elemento que parece equilibrar a equação ‘um país, dois sistemas’ e que é o eixo unificador nacional, o pilar dessa complexa rede de múltiplas interfe-

41 Para superar esta reconhecida dificuldade, criou-se o pin yin, ‘um sistema de latinização da língua chinesa’, com a ‘função de ajudar na aprendizagem dos caracteres, servir ao ensino do chinês como língua estrangeira” (CALVET, op. cit., p. 89). Em linhas gerais, essa estratégia “visava à simplificação de caracteres, isto é, à redução dos traços que os formam; consta de uma lista de ‘515 caracteres simplificados e de 54 elementos constitutivos cuja composição simplificou indirectamente todos os caracteres integrados” (GROSSO, op. cit., p.17).

42 Dado colhido em questionários diagnósticos e em conversas informais realizadas durante o de-senvolvimento do Projeto Mesa de Conversação em Português, desenvolvido na Universidade de Macau, do qual participam alunos do Curso de Licenciatura em Estudos Portugueses.

43 SYMPSON, T. Macao, capital of the 21st century?”.In: Environment and planning D: society and space. v. 26, p. 1053-1079, 2008.

44 Tradução livre feita pela autora do presente texto.

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rências – é a herança confucionista, retratada nas SD 1, 2 e 3. Outro fator a ser destacado é a grande controvérsia que existe quanto à colonização de Macau. Mesmo que governada pelos portugueses, estes nunca tiveram a so-berania plena sobre a região. Havia sempre um mandarim chinês, ‘extramu-ros’, acompanhando o processo e interferindo, ainda que indiretamente, na administração portuguesa.45 Para os portugueses residentes na RAEM, Ma-cau também não foi colônia portuguesa. Mas, na análise discursiva de textos de alguns pesquisadores de Macau, essa certeza fica um pouco abalada. Na introdução de sua consistente pesquisa sobre Macau, Santos & Gomes46 afirmam que “a presença de Portugal em Macau foi, de facto e de direito, sempre negociada com a China”. Mas nessa mesma página em que a afirma-ção acima é feita, o sentido de colônia escapa, através do uso de expressões como ‘presença colonial tumultuosa, multissecular e multicontinental’; ‘uma colonização mitigada’; ‘A especificidade desse processo de colonização haveria por força de refletir-se no processo de descolonização’; ‘Ao contrário do que sucedeu em quase todos os processos de descolonização, em Macau a descolo-nização não consiste na concessão de direito à autodeterminação ao povo de Macau’ (ênfase adicionada).

Se levarmos em consideração, contudo, o conceito de colonização lin-guística (MARIANI, 2007), podemos estar nos direcionando a um consenso, ainda que parcial, sobre o processo ocorrido em Macau: não se pode negar que os portugueses adotaram medidas que se caracterizam como estratégias de colonização da região, a qual foi frustrada, é bem verdade. Na fala dos entre-vistados, o sentido de colonização escapa, quando descrevem esse período da história de Macau:

SD 3: “O problema aqui [...] é que isto [Macau] não é uma old colony, não é o Brasil [...] [Macau] ... nem sequer classi-ficou que foi uma colônia e foi uma colônia no pior sentido de colônia. Macau tinha o estatuto de território chinês sob ad-ministração portuguesa. Este eufemismo marca muito [...]. É

45 Houve mesmo um período, no século XVIII, em que um mandarim veio morar em Macau (CAVALHEIRO, 2008).

46 SANTOS, B. S.; GOMES, C. Macau, o pequeníssimo dragão. Porto: Edições Afrontamento, 1998. p. 5.

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mais claro uma colônia. Aqui não foi assim [...] é uma colônia especial, uma colônia de trânsito [...] esta colônia foi um sítio de passagem [...] é uma colônia particular no sentido de que a língua nunca foi a do colonizador.” (Entrevistado 3; ênfase adicionada).

SD 4: “Entrevistador: Você pode dizer por quê? [os portugueses não aprenderam chinês?] Entrevistado: Pode desligar? [o grava-dor]”. (Entrevistado 2)

SD 5: E, portanto, na escola, éramos penalizados porque não podíamos falar chinês. Quando alguém falava chinês todos caí-am em cima. [...] Macau nunca foi uma colônia no verdadeiro sentido da palavra, como foi Angola, como foi Moçambique, como foi o Brasil, mas havia uma administração e a adminis-tração de certo modo também era penalizadora [...]. Portanto havia o sentido, o sentido de colono, era do chinês [...]”. (Entre-vistado 4; ênfase adicionada)

SD 6: “Eles são de fora ... eh, essa idéia de que Macau era colô-nia deles. Por que é então que nós íamos aprender a língua de-les? [...] Pois claro, eh, mas isso [dizer que os portugueses não consideravam Macau uma colônia] é argumento deles [dos portugueses]. Você tem que ver quem disse isso, é, então a séria história de Macau não é, então sempre houve divergências e convergências [...] Os chineses desde então têm divergências so-bre a história de Macau. Como é que se escreve? Cada um tem o seu conceito, o seu ponto de vista, de sua atitude, e sua po-sição, então não se faz esta história no papel, no livro, não ... Os chineses crêem então que Macau foi ocupada... então foi ocupada pelos portugueses, mas esse [risos] mas isto custa aos portugueses aceitar [...] mas sim, eles [os chineses] eram os donos da terra, claro, então, não havia essa acusação tão evidente, tão violenta não havia, não havia”. ( Entrevistado 5; ênfase adicionada).

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A figura do colonizador é caracterizada nas SDs como aquele que chega para explorar e vai embora – ‘essa colônia foi um sítio de passagem’. Foi assim em outras colônias. Segundo as SDs, foi assim também em Macau. O colo-nizador é aquele que impõe, que silencia, através da imposição de sua língua. O pedido do entrevistado 2 para que o gravador fosse desligado, ao comentar sobre a presença do português e de suas práticas em Macau, marca fortemente esse processo de silenciamento, registrado em sua memória discursiva.47

O silenciamento pode ser observado também na história que não é es-crita ‘no papel, no livro’, objeto cultural que desloca os acontecimentos das cabeças das pessoas e os registra fisicamente na memória; onde esses fatos se corporificam, se materializam, tornam-se evidentes, visíveis. Através desses objetos culturais, a memória fica materializada, conforme afirma Davalon (1999, p. 35):48

[...] os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes) são ‘operadores de memória social, trabalham no sentido de entre-cruzar memória coletiva (lembrança, conservação do passado, foco da tradição, monumento de reminiscência e história (qua-dro dos acontecimentos, conhecimento, documento histórico).

No discurso jurídico, predominante durante o processo de colonização linguística, a relação com a escrita também é marcada fortemente. ‘Vale o escrito’. Isso é prevalente. Indiscutível. Em Macau, ele foi materializado em língua portuguesa durante mais de quatro séculos.

Numa relação colonizador/colonizado marcada pela ‘coexistência’ de culturas, o silenciamento imposto ao cantonês na esfera administrativa/judi-ciária não pode, entretanto, ser negado. Numa sociedade estratificada como o era Macau (cf. SDs 5 e 6), como os cidadãos chineses comuns poderiam ter acesso a serviços públicos? Como poderiam conhecer as leis, segundo as quais sua vida estava sendo governada, se elas estavam escritas em português? Tinham que recorrer aos tradutores, cuja presença nos órgãos do governo,

47 Foi acordado que a entrevista seria gravada antes de seu início. Mesmo assim, nesse momento, para falar dos portugueses e de suas práticas, o entrevistado pediu que o gravador fosse desligado.

48 DAVALON, J. A imagem, uma arte de memória? In: NUNES, J. H. (Org). Papel da memó-ria. Campinas, SP: Pontes, 1999. p. 23-32.

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apesar de obrigatória, passou por inúmeras regulamentações e processos buro-cráticos, o que indiretamente, pode ter interferido na regularidade e qualidade de sua oferta à população.49

É inegável que, de fato, houve coexistência entre chineses e portugueses, entendido também este uso do prefixo como a de existência de vidas paralelas. Nos documentos oficiais, como por exemplo, o Texto Preliminar da Lei de Sal-vaguarda do Patrimônio Cultural, essa convivência é qualificada como: “harmo-niosa e profícua coexistência de culturas que aqui convergem há mais de 400 anos” (p. 1). Mas, conforme a SD 5 pôde comprovar, essa coexistência significou e significa, na realidade, de modo diferente, embora não contraditório, para os entrevistados, como podemos observar também nas SDs reproduzidas a seguir:

SD 7: “Nós em chinês também temos ... água do Rio não inun-da, não invade a água do poço. Poxa, então, cada um né, fica no seu canto,de forma pacífica, uma vida pacífica. Então por isso, né, Macau sempre foi considerada como terra de harmonia... essa harmonia é muito superficial porque por trás, porque no fundo dessa harmonia nunca houve interação de propósitos”. (Entrevistado 5; ênfase adicionada)

SD 8: Eu penso que a maioria portuguesa continua a sentir-se demasiadamente português porque continuam a ir a restau-rantes portugueses, a comer comida portuguesa, visitam-se uns aos outros e portanto vivem num gueto. Vivem completamente separadamente separados [...] fala-se muito em intercâmbio

49 Cf. Atas do Workshop de Tradução e Interpretação no Novo Milênio, publicação do Instituto Politécnico de Macau (2002). Para ilustrar essa projetada carência, podemos citar uma carta de representante do governo local, justificando-se por só ter divulgado na versão chinesa um alerta sobre uso de determinado medicamento, uma vez que ‘a versão portuguesa só podia ser divulgada depois de concluída sua tradução’. Esse exemplo ilustra a carência nos dias de hoje (Carta publicada em Hoje Macau, 19/03/2009, p.11.) Registre-se que os serviços de tradução estão disponíveis ao cidadão residente de Macau a preços tabelados pelo governo local. As questões relativas à necessidade de tradução do português para o chinês de toda a produção jurídica compilada durante os quatro séculos de administração portuguesa e à tra-dução para o português dos atuais documentos produzidos em chinês e os impactos desses processos na vida do cidadão da RAEM suscitam questões identitárias muito instigadoras, que extrapolam, entretanto, o objetivo do presente trabalho.

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cultural. Eu não falaria em coexistência cultural, mas em coe-xistência pacífica. Não tem.. repara... Nós vamos a um templo chinês não há referência ao Cristianismo. Vamos a uma igreja cristã, não está lá nada chinês. [...] Portanto não houve grande, não houve grande interpenetração cultural [...] Havia uma certa segregação, havia uma certa consciência de classe e de estatuto social e dentro dos portugueses havia diferença também. O Clube Militar só podia ser frequentado por militares ou pessoas com licen-ciatura. As outras pessoas não podiam frequentar o Clube Militar”. (Entrevistado 4; ênfase adicionada)

A ‘coexistência pacífica’50 mencionada na SD 8 pode ser explicada pe-los sólidos princípios e valores morais que pautam a conduta moral dos chi-neses, que saltam aos olhos, nas relações interpessoais. Eles “são muito po-lidos, são muito polidos na sua convivência”,51mas “essa harmonia é muito superficial”.52Os efeitos de sentido produzidos pelas vozes que falam nas SDs reproduzidas acima encontram eco nas figuras 2 e 3, reproduzidas a seguir:

Figura 2: Placa indicativa da Travessa dos Fatiões durante a administração portuguesa

50 Mencione-se um fato para fazer o contraponto: missas são realizadas em algumas igrejas católicas da região, faladas e cantadas em chinês, revelando concretamente essa coexistência de culturas que os documentos oficiais atestam. Essas práticas podem ser interpretadas como resultado inevitável dos processos de fricções linguístico-culturais vividos em Macau. A aná-lise desses processos extrapola, entretanto, os objetivos do presente texto.

51 Fala de um dos entrevistados, estrangeiro residente da RAEM, falante nativo de português.52 Fala de um dos entrevistados, residente da RAEM de nacionalidade chinesa, falante de por-

tuguês língua estrangeira.

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Figura 3: Atual placa da Travessa dos Fatiões durante a administração chinesa

Os vestígios da placa antiga, afixada durante a administração portu-guesa (fig. 2), permanecem ao lado da placa atual (fig. 3). O muro em que ambas ainda podem ser vistas constitui hoje um importante objeto cultural de Macau53. Ele é o testemunho de que a memória viva da cidade, ainda presente nas cabeças dos habitantes, dos historiadores está também corpori-ficada neste/através deste documento histórico. Se compararmos a placa da figura 3 com outras ainda existentes na cidade, como por exemplo, as que estão afixadas nos prédios que compõem o Patrimônio Cultural de Macau reconhecido pela UNESCO, podemos observar um processo inverso: em vez de retiradas, as placas ‘originais’ foram mantidas, mesmo agora que a RAEM seja administrada pelos chineses, como podemos observar pelas fi-guras 4 e 5, reproduzidas a seguir, constituídas de fotos tiradas no Largo do Leal Senado na RAEM, em maio de 2009:

Figura 4: Rua de São Domingos

53 Cf. DAVALON, op. cit

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Figura 5: Rua do Dr. Soares

As práticas discursivas subjacentes aos processos de remoção e manuten-ção das placas que nomeiam as ruas da cidade são também prova concreta de que o processo de implantação da toponímia em Macau mobilizou um jogo de forças, de resistências e de interesses:

[...] as culturas dos diferentes grupos se encontram em maior ou menor posição de força (ou de fraqueza) em relação as outras. Mas mesmo o mais fraco, não se encontra jamais to-talmente desarmado no jogo cultural. [...] falar de cultura ‘dominante’ de cultura ‘dominada’ ‘e então recorrer a metáfo-ras; na realidade o que existe são grupos sociais que estão em relação de dominação uns com os outros” (CUCHE, 2002, p. 144-145) .54

A despeito de tão longo período de monolinguismo em português,

não se pode negar que, em Macau, a língua predominante sempre foi e ainda é o cantonês e a convivência dessa língua com o português se deu de modo singular em relação ao que ocorreu com as línguas ‘nativas’ em outras regiões colonizadas por Portugal. Como decorrência desse processo peculiar ocorrido em Macau, o que se constata hoje é o uso inusitado da língua portuguesa fora do âmbito legal (nas leis), como podemos observar na figura a seguir.

54 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2002.

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Figura 6: Letreiro de identificação de estabelecimento comercial em Macau55

Identifica-se um estranhamento quanto ao uso do léxico português. A foto mostra a placa identificadora de um estabelecimento comercial situado na Rua João de Araújo, na RAEM.

É uma rua de oficinas e de lojas que vendem peças de automóveis. A estranha denominação em português exibida na placa pode ser interpretada como resultante de um uso artificial de uma língua imposta. Durante o go-verno luso todos os estabelecimentos comerciais deveriam ter uma denomi-nação em português.56 Assim, as placas identificadoras foram confeccionadas com esse uso artificial da língua, fato que colabora para a comprovação da

55 O que está coberto é ‘Iao Iat’ (nome do estabelecimento). O resto é ‘Centro de Beleza dos Au-tomóveis’. Agradeço à professora Sónia Ao Sio Heng pela tradução do texto para o português.

56 O Código Comercial de 1888 estabelecia que o nome de todo estabelecimento comercial fosse escrito em português. Essa exigência foi confirmada pelo DIL 272/32, que tornou obri-gatório o uso da LP em ‘taboletas, cartazes, anúncios, programas e reclames’, bem como nas ‘listas de hotéis, restaurantes, casas de pasto e outros estabelecimentos similares, ainda que instalados em clubes ou casas de recreio sujeitos a fiscalização administrativa e policial’. Segundo o artigo 5o, o estabelecimento que não cumprisse o disposto não teria sua licença de funcionamento concedida. O DL 29773/39 ratificava essa mesma exigência. O Novo Código Comercial de Macau (1999) permite a escrita em chinês ou português, podendo ainda conter uma versão em inglês. Para aprofundamento da análise dos efeitos de sentido dessa reedição de medidas legislativas e desse funcionamento do português em Macau ver PACHECO, Denise G. Análise discursiva de materiais linguageiros produzidos em Macau: o entrecruza-mento de vozes do Ocidente e do Oriente e a construção de uma aparente homogeneização da memória linguístico-cultural. Texto apresentado no II SILMEP, Évora, Portugal, 2009.

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hipótese de frustrada tentativa de colonização linguística, pela imposição de uma língua sem significado algum para a população. Esses exemplos ajudam a comprovar a implementação de estratégias políticas, concretizada pela impo-sição da nomeação em português. Apesar de ter sido bem sucedida em outras colônias, o mesmo não ocorreu em Macau, como pudemos comprovar.

Alguns fatores poderiam ser apontados como os responsáveis para esse peculiar funcionamento do português na RAEM de hoje, mas o mais expres-sivo, segundo o ponto de vista de alguns dos entrevistados, foi a falta de uma política eficaz de ensino da língua, a qual só foi adotada tardiamente, quando o território estava na iminência de ser ‘devolvido’ a RPC, como mostram as SDs reproduzidas a seguir:

SD 9: “[...] eu cheguei no final da administração portuguesa, em uma altura em que se tomaram muitas deliberações que de-veriam ter sido tomadas antes em relação a língua portuguesa [...] fizeram um trabalho fabuloso nos últimos anos [antes da de-volução de Macau a RPC], só queria que ele tivesse sido feito antes [...]”. (Entrevistado 6 – ênfase adicionada).SD10: Materiais... não tínhamos livros. [...] Não houve política de ensino. A falta de material tem a ver com a maneira de ser dos portugueses [...] mais de 400 anos [...] mas nunca tiveram um plano perfeito [...] não tinham projeto, não tinham, não tinham.” (Entrevistado 5 – ênfase adicionada).

SD11: A política da língua começa 10 anos antes da passagem do poder [...]” (Entrevistado 1).

SD12: “Não tinha recursos [em Portugal]. Não tinha.Tínha-mos os manuais que acho que já conhecemos há muito tempo que é o Aprender Português, a Gramática Ativa eh... depois era do gênero inventar textos, inventar gravações [...]” [Entrevistado 7].

Na análise dos materiais de ensino e de manuais de português língua estrangeira (PLE) no Brasil, o processo de nacionalização do ensino teve im-plicações diretas na produção desses materiais, sendo um condicionante para

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a sua escassez naquele país.57 Eles também tiveram seus reflexos no discurso presente nos manuais de ensino e na constituição identitária do professor de PLE no Brasil, como Pacheco & Medeiros puderam comprovar.58 O que a leitura das SDs 9 e 12 deixa evidente é o fato de que mesmo em Portugal (e em Macau por extensão já que a influência portuguesa é ainda determinante nos rumos do português no território), essa tendência também pôde ser ob-servada, mesmo no final do século XX. Essas evidências são a comprovação de que a tentativa de colonização linguística portuguesa se deu, de modo muito mais intuitivo do que planejado, e que a língua/cultura chinesa não se deixou dominar pela língua de Camões, como ocorreu em outras colônias.

Considerações finais

Tomando como base a análise discursiva do material linguageiro cole-tado, o texto discutiu o registro da ocorrência de tentativa frustrada de colo-nização linguística em Macau e procurou demonstrar que sua existência está registrada na memória discursiva dos residentes da região; seu sentido escapa, embora ele não seja oficialmente admitido nem pelos portugueses nem pelos chineses. Mostrou ainda, concretamente, como pode ser interpretada a ten-tativa de silenciamento do cantonês durante a administração lusa. Os dados convidam-nos a um (re)estudo das especificidades da presença lusa em Macau e da sua influência no funcionamento das línguas que pode ser observado na RAEM hoje. O texto mostrou ainda que esse lado da história não está escrito, apesar de continuar fortemente se (re)vivificando na memória discursiva dos residentes de Macau - chineses que falam português como língua estrangeira e estrangeiros falantes nativos de português - é singularmente peculiar e mui-to importante, na medida que produz efeitos de sentido que instigam a (re)significação da pesquisa na área do discurso e da constituição do tecido social de Macau.

57 PACHECO, Denise. Ensino de Português para estrangeiros: dimensão histórica (2006). In: Luiz Carlos Travaglia et alii. (Org.). Linguística: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: Ed.UFU (CD).

58 PACHECO, Denise G.; MEDEIROS, Vanise.Materiais didáticos de Língua Portuguesa: reflexões acerca do lugar do professor. In: DAHER, Maria del Carmen; GIORGI, Maria C; RODRIGUES, Isabel C. Trajetórias em enunciação e discurso: práticas de formação docente, 49-61. São Carlos: Editora Claraluz., 2009. p. 49-61.

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Pêcheux59 prevê dois tipos de registro. O primeiro é aquele em que o registro não chega a ocorrer na memória e o outro é aquele em que ele ocorre, mas fica esquecido. Essas vozes que continuam ecoando na RAEM, (re)significam os acon-tecimentos que estão registrados nas cabeças das pessoas e clamam inscrição na memória, ressentem-se do registro escrito que as corporifique. Até nesse aspecto, Macau é peculiar. Sua situação fica no entremeio da classificação de Pêcheux. A análise discursiva das SDs apresentadas confirma que uma tentativa de coloni-zação linguística parece ter sido percebida/sentida em Macau, embora esse fato não seja admitido oficialmente. A discussão que se trava hoje na RAEM sobre a definição do Patrimônio Cultural (tangível e intangível) é, nesse sentido, bastante profícua, pois colabora para ‘reativar’, revivificar a memória discursiva da ‘cidade’ e de seus habitantes, buscando nela o que a representa e a (re)significa, sejam ‘lem-branças’ de herança chinesa ou estrangeira. Nesse aspecto, objetos culturais ainda não considerados para efeito de registro, aqueles em que a marca lusa pode ser identificada, ganham seu espaço, são descortinados, como a referência ao muro da Travessa dos Fatiões pôde comprovar. Muitos outros existem na RAEM.

Finalmente é importante destacar como a RAEM está desenvolvendo a dis-cussão sobre o estabelecimento de seu patrimônio cultural tangível e intangível, como uma excelente oportunidade de (re)discutir sua política linguística. Nesse sentido, registrem-se iniciativas como as de investimento no ensino de línguas es-trangeiras, ao lado de propostas de ofertas de ensino de línguas em risco de extin-ção, como o crioulo patuá.60 Essas estratégias de política linguística vão indiscuti-velmente colaborar para a formação de cidadãos multilíngues, o que, certamente, vai agilizar o posicionamento da região no competitivo intercâmbio comercial com outros países. Essas iniciativas ensejam ainda a (re)definição das bases que vão orientar a identificação do patrimônio cultural da RAEM, agora sim, (re)sig-nificado, considerando também essa heterogeneidade constitutiva do território, indiscutivelmente afetado por processos de fricções linguístico-culturais,61 a se-rem considerados pelos mentores e implementadores da política linguística local.

59 Pêcheux, 1999, p. 50.60 Proposta citada na manchete da edição de 22 de março de 2009 do Jornal Tribuna de Macau:

Escola Portuguesa poderá ter aulas extracurriculares de patuá.61 COX, M. I. P.; ASSIS-PETERSEN, A. A. Transculturalidade e transglossia: Para compreen-

der o fenômeno das fricções linguístico-culturais em sociedades contemporâneas sem nos-talgia. In: CAVALCANTI, Marilda; BORTONI-RICARDO, Stella M. Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. p. 23-43.

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Pacheco, Denise. A língua Portuguesa em Macau e os efeitos da frustada tentativa de colonização linguítica 66

Como se pôde perceber, apesar de ocuparem o mesmo espaço geográfico, nativos (chineses da RAEM) e forasteiros (outros chineses e estrangeiros em geral)62 parece terem conseguido de modo pacífico delimitar fronteiras para seus territórios. Ainda é cedo, porém, para delinearmos como vai continuar a se constituir a tessitura do tecido lingüístico que une a RAEM à RPC com vis-tas a conectá-la com o mundo e o papel do putonghua nesse contexto linguís-tico. Uma certeza: as implicações para o processo de constituição identitária dos habitantes da RAEM e da RPC são inevitáveis. Em função de sua hete-rogeneidade linguística esse também é um importantíssimo fator a observar. Mas fica para outra feita.

ABSTRACT

The present paper analyses the uniqueness of Macau in the propagation of the Portuguese language around the world, as a result of the unsuccessful attempt of the Portuguese linguistic colonization of this small Chinese territory. Based on the discursive analysis of linguistic materials, the paper discusses the constitution of the Macau linguistic territory and its borders, focusing on the funciotining of the Portuguese language in Macau.

KEY-WORDS: Macau; propagation of Portuguese lan-guage; language police.

Recebido em 10/05/2009 Aprovado em 24/08/2009

62 A inclusão de outros habitantes chineses no grupo de forasteiros pode soar estranha a quem não conheça de perto a vida na região, pois Macau é parte integrante do território chinês. Mas as duas RAEs – Macau e Hong Kong – têm suas especificidades em relação à RPC, inclusive sistemas políticos e moedas diferentes (Pataca e Hong Kong dólares, respectiva-mente). Os chineses que visitam as RAEs têm que passar pelos guichês de imigração, como os estrangeiros em geral. Todos esses fatos suscitam questões identitárias que pululam em Macau, interessantíssimas, mas que extrapolam os objetivos do presente texto.