a liberdade senequiana como questÃo educacional · tradição estóica teve de enfrentar ......

13
1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.02007 A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM) Lúcio Aneu Sêneca, filósofo, político, orador, coloca-se entre os grandes nomes do mundo intelectual da Antiguidade Clássica latina. Sua preocupação em entender e explicar a condição humana para orientar e apontar caminhos para os homens fez dele uma das vozes romanas mais importantes e significativas em matéria de pedagogia. Em suas reflexões sobre o ideal formativo, concedeu lugar de destaque à liberdade, que, para ele, estava intimamente vinculada à questão da sabedoria. Assim ele exortava Lucílio, seu discípulo preferido: “te libertará a sabedoria, a única liberdade autêntica” (Cartas a Lucílio, 37,4). Na opção por trilhar o difícil caminho para a perfeição humana, a liberdade era considerada a primeira condição para quebrar as correntes que prendiam o homem a uma realidade incapaz de satisfazer a sua alma. Quando se discute o conceito de liberdade estóica, faz-se necessário ter sempre em conta o sentido que frequentemente lhe foi atribuído por essa escola, tendo em vista sua finalidade ética. Assim, o entendimento de tal conceito não foi outra coisa senão a liberdade da alma em relação aos brilhos e acenos do mundo exterior, das situações passageiras, dos eventos contingentes. Nesse caso, o indivíduo deveria se submeter ao que estava rigorosamente determinado (GARCÍA BORRÓN, 1956). Sêneca expressou a necessidade dessa submissão em forma de alerta a Lucílio: “O destino conduz a quem com ele consente, e a quem não, o arrasta” (Cartas a Lucílio, 107,11). A consciência dessa proposição e, como resultado, sua aceitação, configuravam- se como a liberdade estóica. É passível encontrar no pensamento estóico algumas proposições que podem ser entendidas como contraditórias, dadas a rigidez com que alguns de seus representantes as apresentaram e a flexibilidade que outros lhe deram ao tratar da questão. Um exemplo é a independência que foi atribuída ao sábio, a qual, de alguma forma, desvia-se das determinações implacáveis do fatum (destino), ao que parece, em dissonância

Upload: buihanh

Post on 11-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

1

doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.02007

A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL

PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)

Lúcio Aneu Sêneca, filósofo, político, orador, coloca-se entre os grandes nomes do

mundo intelectual da Antiguidade Clássica latina. Sua preocupação em entender e explicar

a condição humana para orientar e apontar caminhos para os homens fez dele uma das

vozes romanas mais importantes e significativas em matéria de pedagogia. Em suas

reflexões sobre o ideal formativo, concedeu lugar de destaque à liberdade, que, para ele,

estava intimamente vinculada à questão da sabedoria. Assim ele exortava Lucílio, seu

discípulo preferido: “te libertará a sabedoria, a única liberdade autêntica” (Cartas a

Lucílio, 37,4). Na opção por trilhar o difícil caminho para a perfeição humana, a liberdade

era considerada a primeira condição para quebrar as correntes que prendiam o homem a

uma realidade incapaz de satisfazer a sua alma.

Quando se discute o conceito de liberdade estóica, faz-se necessário ter sempre em

conta o sentido que frequentemente lhe foi atribuído por essa escola, tendo em vista sua

finalidade ética. Assim, o entendimento de tal conceito não foi outra coisa senão a

liberdade da alma em relação aos brilhos e acenos do mundo exterior, das situações

passageiras, dos eventos contingentes. Nesse caso, o indivíduo deveria se submeter ao que

estava rigorosamente determinado (GARCÍA BORRÓN, 1956).

Sêneca expressou a necessidade dessa submissão em forma de alerta a Lucílio: “O

destino conduz a quem com ele consente, e a quem não, o arrasta” (Cartas a Lucílio,

107,11). A consciência dessa proposição e, como resultado, sua aceitação, configuravam-

se como a liberdade estóica.

É passível encontrar no pensamento estóico algumas proposições que podem ser

entendidas como contraditórias, dadas a rigidez com que alguns de seus representantes as

apresentaram e a flexibilidade que outros lhe deram ao tratar da questão.

Um exemplo é a independência que foi atribuída ao sábio, a qual, de alguma forma,

desvia-se das determinações implacáveis do fatum (destino), ao que parece, em dissonância

Page 2: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

2

com os primeiros princípios da escola. Outro exemplo é o da liberdade que caracteriza o

sábio, da liberdade que lhe é inerente.

A questão da liberdade, seria, portanto, um dos grandes problemas enfrentados pela

escola estóica, que punha em tela que a prática da liberdade respaldava o homem, caso

quisesse negar ou acatar as leis naturais, trilhar os caminhos do bem ou seguir os caminhos

do mal.

Epicteto proclamava a possibilidade de o homem optar por uma dessas

possibilidades; Sêneca responsabilizava o próprio homem por não buscar a virtude ao

longo da vida. Ele foi sentencioso ao afirmar: “somos piores ao morrer do que ao nascer. E

nisso o defeito é nosso, não da natureza” (Cartas a Lucílio, 22,15).

Sêneca não se limitou a isso, colocando que o homem, capitaneado por sua vontade

e alavancado por um modelo concebido como ideal, poderia conquistar a condição de

sábio. Esse processo o levaria a um estágio superior de desenvolvimento e de

perfectibilidade, se comparado ao de seu nascimento (ULLMANN, 1991); por isso, o

homem se investia do direito de cobrar o reconhecimento da Natureza por essa existência

virtuosa por ele conquistada.

Nesse sentido, Sêneca posicionava-se da forma seguinte:

O homem que o conseguir (sabedoria) deve sentir-se justamente orgulhoso; deve dar graças aos deuses e, entre esses, a si mesmo; deve fazer a natureza sentir-se devedora por ele ter existido. E de pleno direito o fará, já que lhe restituiu uma vida melhor do que quando da natureza a recebeu (Cartas a Lucílio, 93, 8).

Esse pensamento constituiu-se como um dos maiores e difíceis problemas que a

tradição estóica teve de enfrentar e tratar, especialmente tendo em vista a contradição que

nele se apresentava: liberdade/destino. Em um mundo regido por determinações e por

fatalidades, não podia haver espaço para o exercício da liberdade (MARTÍN SÁNCHEZ,

1985), à medida que esta seria uma prática que se contrapunha aos desígnios do destino,

que é inflexível, imutável, definitivo.

Nessa linha de raciocínio, a exortação “viver conforme a natureza” também

converteu a propagada liberdade estóica em nada além de uma sequência do fluir da

necessidade vital.

Page 3: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

3

A tentativa de se preservar o conceito de liberdade, não nos moldes em que era

entendida, significava dotá-la um caráter objetivo, considerando a liberdade como uma

demanda necessária do fatum/destino. Contudo, sua essência permanecia imutável ainda

que com um novo conteúdo. Acatando as determinações do destino, o homem sábio não se

opunha ao fatum, mas, sim, o aceitava com naturalidade, como algo necessário

(ULLMANN, 1996) ao bom ordenamento da própria vida e do cosmo, porque tinha um

papel a cumprir, atribuído pela Natureza.

Para dar destaque à preocupação que o homem deveria ter em relação ao destino,

Sêneca exortou Lucílio:

Que o destino nos encontre sempre prontos, sempre de boa vontade. Uma alma verdadeiramente grande é aquela que se confia ao destino. Mesquinho e degenerado, pelo contrário, é o homem que tenta resistir que ajuíza mal da ordem do universo e que acha preferível corrigir os deuses do que emendar-se a si próprio!”(Cartas a Lucílio, 107,12).

O homem que compreendesse a necessidade de ser levado/guiado pelas exigências

da necessidade poderia se fazer um homem feliz. Já aquele que não chegasse a essa

compreensão e se posicionasse contra o que estava projetado e firmado, teria como

resposta o sofrimento da infelicidade, certo para essa situação/comportamento. A rigor,

liberdade tinha uma sintonia fina com a necessidade, assim como com a fatalidade e o

determinismo (ULLMANN, 1996). Todavia, para Sêneca, o homem ideal deveria crer e ser

um defensor da liberdade, exercendo-a de maneira plena, de modo a convertê-la naquilo

que se constitui a vontade do destino. Ser livre, por conseguinte, implicava aceitar a

necessidade de submissão àquilo que estava previsto. Daí a aceitação senequiana do dogma

estóico que se refere ao destino (MARTÍN SÁNCHEZ, 1985).

Neste sentido, a liberdade, segundo Sêneca, deveria ser meta traçada pelo homem,

objetivo a ser conquistado, já que se constituiria para ele, ao que parece, a essência da

perfeição humana. “A liberdade é a nossa meta, é o prêmio das nossas canseiras” (Cartas a

Lucílio, 51,9).

Para uma melhor compreensão do conceito de liberdade defendido por Sêneca,

parece significativa uma visita a algumas das reflexões contidas em suas Cartas a Lucílio.

Page 4: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

4

Dessas reflexões foram levantados quatro fragmentos, dos quais os três primeiros

trazem traços de similitude, enquanto o quarto trata expressamente de um ponto

considerado de fundamental importância para a correta discussão do problema.

No primeiro fragmento, a definição de liberdade aparece nos seguintes termos:

Sabes em que consiste a liberdade? Em não ser escravo de nada, de nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual para igual com a fortuna. Se algum dia eu sentir que ela tem mais força do que eu, mesmo assim, essa força será inútil (Cartas a Lucílio, 51,9).

Relacionando liberdade à escravidão em seus diversos aspectos, Sêneca

encaminhou a discussão para uma das questões que mais o preocupavam: o assentamento

das bases para uma liberdade interior contraposta ao determinismo universal da fortuna

(GARCÍA GARRIDO, 1969).

Esta condição somente se realizaria quando a alma conquistasse a vitória sobre seus

senhores e algozes, os que lhe tinham tirado a felicidade: “Deixaremos de ser movidos pelo

desejo ou pelo medo. Não nos perturbará, não nos corromperá o prazer, não nos assustarão

nem a morte nem os deuses” (Cartas a Lucílio, 75, 17).

Com isso, o que Sêneca quis ensinar foi que a liberdade, mesmo exigindo a

obediência ao Logos divino, não tinha o sentido de servilidade e/ou escravidão aos deuses,

mas sim o de integração da vontade humana com a da divina, de forma a configurar um

todo harmônico, conforme o projeto da Natureza.

Por meio da subordinação aos ditames da razão, o homem que se quisesse sábio

compartilharia da verdade e da vontade do Logos divino. Este mesmo homem, a exemplo

dos deuses, tinha consciência de estar ligado intimamente e insoluvelmente às

decisões/determinações estabelecidas pelo destino; executor das imposições da razão, não

tentaria contestá-las, mas sim aceitá-las de forma tranquila (MARTÍN SANCHEZ, 1985).

O homem, ao ser tocado pela liberdade, ao quebrar os grilhões que aprisionam sua

vida, também é cingido pelo bem maior, “[...] não conhece bem que seja maior do que o

bem que ele pode dar a si mesmo, para quem a verdadeira volúpia é o desprezo das

volúpias” (Sobre a vida feliz, IV, 2).

Nosso pensador colocava, assim, a libertação das influências externas como uma

possibilidade para a regeneração do homem; porém afirmava que essa regeneração

somente seria possível com base em condições objetivas e claras, ou seja, em um

Page 5: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

5

posicionamento firme, forte e decisivo diante das adversidades que se apresentavam e na

definição de um referencial concreto e prático que indicasse o caminho do Supremo Bem.

Essa situação favorecia a harmonização entre o mundo da bem-aventurança e o mundo de

sua escravização (ARTIGAS, 1952).

Para Sêneca, se vinculasse sua liberdade a exigências projetivas do mundo, o

homem poderia se perder no desconhecido; o inverso aconteceria se, em um encontro

consigo mesmo, ele buscasse o recolhimento. Exterioridade e interioridade não eram, para

o autor, duas formas de existência moral, mas duas existências, duas dimensões do homem

livre.

Limitar-se à exterioridade significava uma liberdade ilusória, uma pretensa

onipotência, posto que, aparentemente, o homem tudo pode, tudo sabe, tudo domina, mas,

na realidade, está preso aos domínios da fantasia. Da mesma maneira, a interioridade

imediata e simples, sem passar pelo mundo, a interioridade que não é conquistada

reflexivamente na transcendência da exterioridade, levaria o homem a um novo

desconhecido, ao esvaziamento da substância da alma por carência de impressão e sentido

vital.

Assim, para ele, o processo de interiorização da vida seria impossível sem a

conquista natural da vivência da exterioridade no mundo, ou seja, o dentro não se realizaria

sem a realização do fora. Em outras palavras, era inerente à liberdade a associação dessas

dimensões: a realização de si no mundo é uma co-realização que transcende para a unidade

reflexiva do espírito (CEREZO, 1966).

Nesse sentido, para Sêneca, a liberdade ganhou a condição de equidade, que se

traduzia na dignidade e respeito ao homem, a ponto de ele colocá-la em igualdade com a

fortuna ou, até mesmo, conceder-lhe poderes superiores aos dela.

Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos os homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nos próprios: sermos donos de nós mesmos é um bem inestimável! (Cartas a Lucílio, 75, 18).

Neste segundo segmento, Sêneca contrapôs a liberdade àquelas preocupações não

comprometidas com a honestidade, pois, em sua concepção, o homem deixava de ser livre

quando atendia aos anseios que considerava ilícitos (GARCIA GARRIDO, 1969). Até

mesmo as ações honestas e retas, caso fossem motivadas pela felicidade que elas

Page 6: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

6

proporcionam, não seriam procedimentos corretos nem verdadeiros, pois não estariam

comprometidas com o bem e sim com a própria satisfação. Elas seriam o oposto da

liberdade, que requer tanto dedicação quanto esforço para se chegar à honestidade, ou seja,

ao domínio pleno da virtude. A gratificação e a satisfação possibilitadas pela virtude

deveriam ser consideradas como resultado e não como a consumação do Supremo Bem

(LEÓN SANZ, 1997). A partir dessa orientação, o exercício da liberdade pressupunha o

senhorio de si mesmo por parte do próprio homem.

Este entendimento, ao que tudo indica, passava pela importância capital que Sêneca

atribuía ao homem e pela possibilidade da conquista pessoal do seu senhorio e do combate

vitorioso da dignidade realizado pelo artifex vitae (artífice da vida), cujo resultado era

concebido como o Supremo Bem. Era precisamente essa possibilidade de conquista que,

segundo Sêneca, revestia o homem da dignidade plena; era ela que dava fundamento para

sua ousada declaração a respeito da superioridade humana sobre os demais seres e uma

equivalência com os deuses: “[...] ficarás muito à frente do resto da humanidade e os

deuses pouco se distanciarão de ti” (Cartas a Lucílio, 53, 11). O que Sêneca expunha como

ideal não era a inteligência penetrante do Cosmo ou suas leis, mas o ethos que afirma a

personalidade daquele que domina, do que se torna senhor de si mesmo, da sua própria

vida (GARCÍA-BORRÓN, 1956) para encaminhá-la para a felicidade plena.

A liberdade consiste em saber sobrepor o espírito acima das injúrias; em fazer de si mesmo a fonte de onde provém tudo quanto causa satisfação; em despegar-se das coisas exteriores de sorte a não viver preocupado, seja pelo medo de riscos desdenhosos, seja de línguas destemperadas (A Constância do Sábio, XXIII,2).

Com esse terceiro fragmento, Sêneca exorta o homem a cuidar do equilíbrio,

conquista resultante da sobreposição do espírito àquilo que pode pôr em risco a liberdade

ideal que se pretende alcançar.

Evidenciam-se aqui duas questões: a primeira é a forma como Sêneca entendeu o

conceito de liberdade, ou seja, a independência em relação aos demais homens; a segunda

é a condição de fruição que o filósofo atribuiu à liberdade interior, manancial da máxima

felicidade (GARCIA GARRIDO, 1969). No que diz respeito à primeira questão, pode-se

buscar referência em sua afirmativa: "[...] será escravo de muitos quem for escravo do

próprio corpo" (Cartas a Lucílio, 11,1). Esse raciocínio fundamentava-se no fato de o

Page 7: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

7

homem não ser o único no mundo e de relacionar suas necessidades na esfera física aos

laços de servidão com os demais homens (ARTIGAS, 1952). Para Sêneca, não havia

escravidão pior, mais torpe e vergonhosa do que a escravidão voluntária. O homem, em

sua materialidade, pode ser submetido, mas a sua alma, pelas virtualidades que encerra,

não pode ficar presa desse cárcere.

Mesmo assim, era comum e aceito que homens, motivados por fatores externos,

assumissem esse tipo de escravidão, contrariamente aos projetos da Natureza (BARREDA,

1966).

A acomodação a opiniões que não eram suas impedia o homem de traçar metas que

o conduzissem a um comportamento reto, justo e adequado a uma pauta pessoal única, pois

são muitas as exigências que se estabelecem com essa relação. “Pergunta por aqueles cujos

nomes se aprendem de cor e verás que eles são identificados pelas características

seguintes: este é servidor daquele, que o é de um outro ninguém pertence a si próprio”

(Sobre a brevidade da vida, 11, 4).

A solução para este problema seria o afastamento das influências, para que, livre, o

homem pudesse agir e julgar com base na razão.

Quando a alma comanda o corpo, essa situação não se configura, pois alma e

deuses, no entendimento senequiano, eram da mesma natureza. Tinham em comum a

razão, fonte de força e de perfeição, responsável pela virtude e pela felicidade.

A segunda questão está vinculada não a uma liberdade garantida pelo direito

público, mas à liberdade como direito natural, ou seja, à liberdade, à independência, à

autonomia advindas do interior, libertadoras do medo da morte, da pobreza, dos vícios e de

tudo o que se originasse dos desejos do corpo. Não se tratava, também, de uma liberdade

de caráter psicológico, subjetiva ou relacionada às posses e à necessidade de atender às

suas exigências (SANGALI, 1998).

Para Sêneca, esta liberdade poderia abrir fendas em um mundo em que as

necessidades e as dificuldades eram duramente impostas ao homem. Destarte, ao não se

submeter à ação da fortuna e aceitar as leis impostas pela natureza, das quais a mais radical

e cruel, para o nosso pensador, era a degradação a que estava submetida a condição

humana (homo servus, homo aeger, homo victus - homem escravo, homem doente, homem

vencido), o homem teria condições de ser plenamente livre (USCATESCU, 1965), para

usufruir da verdadeira liberdade.

Page 8: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

8

Destes insuportáveis tiranos que são as paixões — e que ora nos governam alternadamente, ora em conjunto — te libertará a sabedoria, e única liberdade autêntica (Cartas a Lucílio, 37,4).

No quarto fragmento Sêneca põe em evidência a possibilidade de o homem se

libertar por meio da sabedoria.

Com estas coordenadas, entrecruzam-se e conectam-se a liberdade e a sabedoria,

cria-se uma relação de identidade entre essas duas instâncias.

Os conceitos de liberdade expressos nos fragmentos acima levam à compreensão

que Sêneca tinha a respeito das possibilidades de superação das três formas de escravidão

que conduziam o homem a um estado de precariedade e indigência em relação ao corpo,

aos demais homens e à fortuna. Como sentenciou o pensador: “Desgraçado de ti, que serás

servo dos homens, das coisas, da vida — pois a vida não passa de servidão se nos faltar a

força para morrer!” (Cartas a Lucílio, 77,15).

A liberdade, nos dizeres senequianos, deveria ser pensada e organizada no sentido

de superar a escravidão humana, que é, essencialmente, a escravidão da alma (GARCIA

GARRIDO, 1969). Com base nesse entendimento, Sêneca proclamou a necessidade de

uma batalha final, pois não havia nada de “[...] insolência em tentarmos subir ao lugar

donde descemos” (Cartas a Lucílio, 92,30). Por isso, ele considerava necessário que o

homem retornasse ao seu lugar de origem, à natureza, mas a natureza no seu estado mais

puro, o espaço da razão universal. O homem não podia se deixar enganar, pois o caminho

para esse retorno, por meio do processo formativo, era acidentado e difícil e poderia

surpreender a qualquer momento, o que não significava ser impossível alcançá-lo/vencê-lo:

pelo contrário, ele levava ao exercício da liberdade, condição ideal para o homem

concebido por Sêneca (ARTIGAS, 1952).

Esta preocupação trazia consigo duas dimensões de liberdade: a simples liberdade e

a liberdade vivida.

Para Sêneca, a morte, o inimigo invencível, convertia-se no melhor e maior aliado

do homem, já que tornava possível que ele rompesse com o acaso mais inexorável, abria

para o homem as portas para a liberdade e, quem sabe, o acesso à imortalidade (GARCIA-

BORRÓN, 1956), às grandes personalidades, aos grandes benfeitores da humanidade que

estavam à disposição do homem a toda hora, em qualquer lugar.

Page 9: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

9

Assim, o homem poderia transformar sua morte: de evento que despertava medo ela

seria um evento de consumação da liberdade, cujos reflexos poderiam ser benfazejos e

exemplares. Por isso, Sêneca entendia que meditar sobre a morte era meditar também sobre

a liberdade. O aprendizado que trazia a meditação sobre a morte criava as condições para a

prática da liberdade. Este evento, natural ou provocado, era um momento privilegiado para

se desviar das volubilidades da fortuna. Destarte, ele entendia que é na ocasião da morte

que se evidenciam as virtudes do homem que se fez sábio: tranquilidade, segurança,

abnegação, submissão ao destino, desprendimento da vida, subordinação à vontade divina,

dentre outras. Importa destacar que ele se referia ainda a situações específicas em que se

aconselhava abrir mão da vida, como ato radical de preservar a própria liberdade. A morte

provocada (suicídio) era exortada como mecanismo de libertação para o homem: aquele

que, diante da adversidade, como ter sua dignidade humana e a sua prática da virtude

afetadas, poderia optar por deixar a vida a submeter-se a uma vida não comprometida com

a dignidade (MARTÍN SANCHEZ, 1985). Esse bem conquistado num longo e difícil

processo formativo não lhe permitia qualquer procedimento que não fosse esse.

Desse modo, como a morte se alinhava à ruptura da cadeia servil, estava

relacionada à primeira dimensão; a liberdade vivida, por sua vez, vinculava-se à realização

da segunda dimensão.

Com isso, a vida aparecia como a condição de realização da legítima liberdade do

homem, fator de felicidade plena, à qual o homem podia ter acesso desde que se

predispusesse a conquistá-la (LÉON SANZ, 1997).

Com base nesse entendimento, Sêneca postulava que o homem que se pretendia

sábio devia ter por meta o acatamento do seu destino e, assim procedendo, garantiria a

realização suprema de sua liberdade. Com isso, viabilizava-se uma adequação do seu

comportamento à razão divina, processo esse que encaminhava o homem a conciliatio de si

com o mundo, ou seja, promovia a interação e a harmonia completas do eu e o mundo.

Assim, o homem ideal senequiano deveria ter ciência de que as determinações do destino

eram, tinham sido e seriam indistintas do querer humano. Para além, também deveria ter

ciência de que poderia assumir duas posturas diante do destino: negá-lo sem êxito ou

submeter-se a ele de forma voluntária. Como não poderia ser diferente, esse homem

idealizado acataria aquilo que o destino lhe tinha reservado. Como era esse o projeto da

Natureza, a liberdade não era nada mais do que a subordinação à necessidade, amor fati

Page 10: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

10

(amor pelo destino). Assim, o homem sábio entregar-se-ia ao destino como realização

plena de sua liberdade (MARTÍN SANCHEZ, 1985), já que lutar contra seus decretos se

configuraria como uma ação improcedente, própria daqueles desinformados e não

comprometidos com o papel que lhe fora reservado. Submeter-se ao destino constituia um

exercício de liberdade plena.

Sêneca mesmo em sintonia com a doutrina estóica, expressava manifesta ou

implicitamente um conceito de liberdade, de certo modo, destoante. Para ele, liberdade

tinha o sentido de valor pleno (maximum), mais importante do que a própria vida: sem

liberdade, a vida se tornava indigna. Desse modo, a maior felicidade para o homem seria

poder afirmar e mostrar sua condição de ser livre. O conceito de livre tinha, em Sêneca, o

mesmo sentido que teve para outros grandes nomes do estoicismo, qual seja, ser livre

queria dizer estar desprovido de paixões, de repentinos desenganos das insignificantes

solicitações do mundo. Apesar disso, ser livre, na visão senequiana, pressupunha um

sentido mais profundo: o de senhorio de si mesmo, de suas ações físicas e não apenas

morais, o domínio da sua vida concreta e real, a sua independência, a sua não-

obrigatoriedade; livre humanamente e não metafisicamente como na doutrina estóica

(GARCÍA BORRÓN, 1956).

Com isto, Sêneca evidenciava que a regra suprema da moral era submeter-se à

racionalidade. A submissão à ordem universal, cuja inexorabilidade era racionalmente

reconhecida, deveria ser espontânea. Por esse caminho, favorecido pela preocupação

formativa, chegava-se ao summum bonus (supremo bem). Esse deveria ser o objetivo maior

do homem: reorganizar sua vida tendo em vista a felicidade (GARCÍA GARRIDO, 1969),

o que passava pelo processo formativo. O homem, nos dizeres senequianos, estava apto a

trilhar esse caminho, pois a natureza o dotara das condições necessárias para tal.

Amparado por esses referenciais, Sêneca aliou-se ao conjunto de pensadores que

não precisavam de um grande exercício do pensamento para conhecer, ou seja, que se

fundamentavam em um pensar dialético. Outra particularidade senequiana era de não se

envolver profundamente na vida, de não se submeter aos seus inúmeros negócios,

atividades relacionadas até mesmo com seus próprios anseios, ou seja, qualquer coisa que

o desviasse da rota do pensamento. Com essas características, Sêneca assumiu um papel

próprio de um mediador, que se situava entre a vida e o pensamento, entre o logos

Page 11: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

11

teorizado e explicado pela filosofia grega como o fundamento de todas as coisas e a vida

humilde, simples e misteriosa.

Desse modo, Sêneca encarnava a concretização de um bem que era requisitado

intensamente, a realização de um desejo presente em todos os homens, apesar de sua

preocupação primeira ser direcionada aos setores aristocratas da sociedade romana, os

quais não estavam isentos e imunes aos reflexos da sua franca decadência de valores

morais e éticos.

Em seu magistério mediador, Sêneca deixava o domínio da sabedoria pura para se

voltar não apenas para seus pares, já que seu pensamento contemplava as necessidades do

homem simples, da rua. Indistintamente do setor e da condição social dessas pessoas, seu

olhar assumia um caráter de preocupação e benevolência, o que o levou a um firme

propósito de lhes oferecer não aquilo que já era de seu domínio/conhecimento, mas

efetivamente aquilo de que eram carentes, de que tinham necessidade, tendo em vista a

condição de conflito promovida pela sociedade carente de seu tempo. Esta forma de pensar

e de olhar, que correspondia a uma avaliação pela pura razão, pode por em risco a

integridade desse mesmo pensar e desse mesmo olhar, já que se pode considerar que ele se

orientava para uma forma de “medicina”, para não dizer “curandeirismo”: ele estaria

propondo ao homem um remédio, para não dizer elixir, que não tinha outra propriedade

senão a de aliviar e consolar o homem que entendia como enfermo, submetido e

escravizado pelas agruras de sua época.

Sêneca pode ser concebido como o último representante dos sábios da Antiguidade

e, ao mesmo tempo, com um prenúncio do “intelectual”, ou seja, o último sábio antigo e o

primeiro intelectual da era moderna, que invariavelmente se envolvia com o poder.

Entretanto, nosso pensador tem um conteúdo que extrapola a rotulação de ser sábio e/ou

intelectual, ele representa algo mais do que o consagrado para essas personagens. Ele foi o

sábio, vale enfatizar, que inter-relacionou medicina com curanderismo, psicologia com

magistério, sempre tendo como meta o apoio/amparo ao homem

desolado/desamparado/negado. Com isso, Sêneca, em sua maturidade intelectual, com

estas preocupações e práticas, assumiu também o papel de uma figura paternal

(ZAMBRANO, 1992), uma vez que ele sempre está à disposição daqueles que o procuram

a todo momento, quer no seu tempo quer para além dele.

Page 12: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

12

Ao final, vale lembrar que, nas reflexões destinadas à explicação e à orientação do

homem, mesmo quando sua preocupação estava voltada para o setor privilegiado da

sociedade romana, Sêneca não se ateve a essa esfera e, por isso, ganhou expressão de

universalidade e perenidade. Assim, não ficou circunscrito ao seu tempo e conquistou

espaço em outros tempos, a exemplo da Idade Média, quando influenciou pensadores

cristãos.

Ecos das reflexões senequianas podem ser encontrados em personagens como

Tertuliano, São Jerônimo e Santo Agostinho, que reconheceram o conteúdo do seu

pensamento e, em alguns casos, até mesmo assumiram partes do seu pensar para

fundamentar o Cristianismo. Vai ao encontro dessa afirmação a suposta/falsa

correspondência estabelecida por Sêneca e Paulo de Tarso. Outras personalidades de

destaque na medievalidade, como Martim de Braga, Abelardo, e Godofredo de São Vítor,

encontraram e destacaram em obras senequianas referenciais para suas exortações para que

os cristãos se dedicassem a uma vida de virtuosidade.

Novo interesse pelo seu pensar foi despertado pelo Renascimento, quando se

alavancou a atenção dos humanistas pela cultura clássica. Nessa galeria, podem-se situar

Petrarca e Bocaccio. Reformistas, como Calvino, buscaram em Sêneca coordenadas morais

para alicerçar suas doutrinas e para dar novos ares ao Cristianismo.

Montaigne, em sua admiração por Sêneca, postulou e defendeu o seu

reconhecimento como mensageiro de uma virtuosidade plena. Diderot, por seu turno,

mesmo com alguns equívocos históricos, escreveu a elogiada biografia do pensador

romano. O interesse por Sêneca não foi diferente nos séculos XIX e XX, quando se

publicaram numerosos estudos sobre os mais diversos aspectos de seu pensamento,

especialmente os da ética, da moral, da política, do direito e da pedagogia.

Apesar de todas as conquistas cientifico - tecnológicas feitas na Modernidade, o

homem não está isento de buscar respostas para perguntas relacionadas às questões

fundamentais da sua existência. É nessas indagações sobre o verdadeiro sentido da vida,

sobre a importância da relação com o outro, sobre a postura a ser tomada ante ao poder,

sobre como reagir diante das dificuldades que a vida oferece e, ainda, sobre o

encaminhamento a ser dado na esfera pessoal e coletiva, que Sêneca poderá continuar

sendo um referencial para o aperfeiçoamento da condição humana (MANJARRÉS, 2001).

Isso faz dele um educador atemporal. Por isso, a recorrente busca pelo pensamento

Page 13: A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL · tradição estóica teve de enfrentar ... nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual ... o homem deixava de ser livre

13

senequiano, evidenciando seu caráter perene e atual, sedimentou a possibilidade de se

encontrar em suas lições elementos que parecem atuais, particularmente em relação ao

fenômeno educativo e à solução que oferece aos problemas da existência humana.

REFERÊNCIAS ARTIGAS, José. Séneca: La filosofia como forjacion del hombre. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Insituto “San José de Calasanz” de Pedagogía, 1952. BARREDA, José María Benabente. Una posible justificación teorética al espiritualismo de Séneca. In: Estudios sobre Séneca. Octava semana española de Filosofía. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Luis Vives y Sociedad Española de Filosofia, 1966, p.381-383. CEREZO GALÁN, Pedro. Tiempo y liberdad en Séneca. In: Estudios sobre Séneca. Octava semana de española de Filosofía. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Luis Vives de Filosofia y Sociedad Española de Filosofía, 1966, p.195-206. GARCÍA GARRIDO, José Luís. La filosofia de la educación de Lucio Anneo Seneca. Madrid: Editorial Magistério Espanol, 1969. GARCÍA-BORRÓN, Juan. El senequismo español. In: Estudios sobre Séneca. Octava semana española de Filosofía. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Luis Vives y Sociedad Española de Filosofía, 1966. LEÓN SANZ, Isabel Maria. Séneca (h. 4 a.C.-65 d.C.). Madrid: Ediciones del Oro, 1997. MANJARRÉS, Julio Mangas. Séneca e el poder de la cultura. Madrid: Editorial Debate, 2001. MARTÍN SÁNCHEZ, Maria A.-El ideal del sabio en Seneca. Salamanca: Universidade de Salamanca, 1983. SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Madrid: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. _____. Sobre a vida feliz. São Paulo: Nova Alenxandria, 2005. _____. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1998. . A constância do sábio. São Paulo: Escala, 2007. _____. Séneca, nuestro contemporáneo. Madrid: Editora Nacional, 1965. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O estoicismo romano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. USCATESCU, Jorge. Dimensión humanística del pensamiento de Séneca. In: Actas del Congreso Internacional de Filosofia en conmemoración de Séneca, en el XIX centenario de su muerte. Córdoba: Taurus Ediciones, 1965a, p.161-177. ZAMBANO, María. El pensamiento vivo de Séneca. Madrid: Ediciones Catedras, 1992.