a liberdade senequiana como questÃo educacional · tradição estóica teve de enfrentar ......
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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.02007
A LIBERDADE SENEQUIANA COMO QUESTÃO EDUCACIONAL
PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)
Lúcio Aneu Sêneca, filósofo, político, orador, coloca-se entre os grandes nomes do
mundo intelectual da Antiguidade Clássica latina. Sua preocupação em entender e explicar
a condição humana para orientar e apontar caminhos para os homens fez dele uma das
vozes romanas mais importantes e significativas em matéria de pedagogia. Em suas
reflexões sobre o ideal formativo, concedeu lugar de destaque à liberdade, que, para ele,
estava intimamente vinculada à questão da sabedoria. Assim ele exortava Lucílio, seu
discípulo preferido: “te libertará a sabedoria, a única liberdade autêntica” (Cartas a
Lucílio, 37,4). Na opção por trilhar o difícil caminho para a perfeição humana, a liberdade
era considerada a primeira condição para quebrar as correntes que prendiam o homem a
uma realidade incapaz de satisfazer a sua alma.
Quando se discute o conceito de liberdade estóica, faz-se necessário ter sempre em
conta o sentido que frequentemente lhe foi atribuído por essa escola, tendo em vista sua
finalidade ética. Assim, o entendimento de tal conceito não foi outra coisa senão a
liberdade da alma em relação aos brilhos e acenos do mundo exterior, das situações
passageiras, dos eventos contingentes. Nesse caso, o indivíduo deveria se submeter ao que
estava rigorosamente determinado (GARCÍA BORRÓN, 1956).
Sêneca expressou a necessidade dessa submissão em forma de alerta a Lucílio: “O
destino conduz a quem com ele consente, e a quem não, o arrasta” (Cartas a Lucílio,
107,11). A consciência dessa proposição e, como resultado, sua aceitação, configuravam-
se como a liberdade estóica.
É passível encontrar no pensamento estóico algumas proposições que podem ser
entendidas como contraditórias, dadas a rigidez com que alguns de seus representantes as
apresentaram e a flexibilidade que outros lhe deram ao tratar da questão.
Um exemplo é a independência que foi atribuída ao sábio, a qual, de alguma forma,
desvia-se das determinações implacáveis do fatum (destino), ao que parece, em dissonância
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com os primeiros princípios da escola. Outro exemplo é o da liberdade que caracteriza o
sábio, da liberdade que lhe é inerente.
A questão da liberdade, seria, portanto, um dos grandes problemas enfrentados pela
escola estóica, que punha em tela que a prática da liberdade respaldava o homem, caso
quisesse negar ou acatar as leis naturais, trilhar os caminhos do bem ou seguir os caminhos
do mal.
Epicteto proclamava a possibilidade de o homem optar por uma dessas
possibilidades; Sêneca responsabilizava o próprio homem por não buscar a virtude ao
longo da vida. Ele foi sentencioso ao afirmar: “somos piores ao morrer do que ao nascer. E
nisso o defeito é nosso, não da natureza” (Cartas a Lucílio, 22,15).
Sêneca não se limitou a isso, colocando que o homem, capitaneado por sua vontade
e alavancado por um modelo concebido como ideal, poderia conquistar a condição de
sábio. Esse processo o levaria a um estágio superior de desenvolvimento e de
perfectibilidade, se comparado ao de seu nascimento (ULLMANN, 1991); por isso, o
homem se investia do direito de cobrar o reconhecimento da Natureza por essa existência
virtuosa por ele conquistada.
Nesse sentido, Sêneca posicionava-se da forma seguinte:
O homem que o conseguir (sabedoria) deve sentir-se justamente orgulhoso; deve dar graças aos deuses e, entre esses, a si mesmo; deve fazer a natureza sentir-se devedora por ele ter existido. E de pleno direito o fará, já que lhe restituiu uma vida melhor do que quando da natureza a recebeu (Cartas a Lucílio, 93, 8).
Esse pensamento constituiu-se como um dos maiores e difíceis problemas que a
tradição estóica teve de enfrentar e tratar, especialmente tendo em vista a contradição que
nele se apresentava: liberdade/destino. Em um mundo regido por determinações e por
fatalidades, não podia haver espaço para o exercício da liberdade (MARTÍN SÁNCHEZ,
1985), à medida que esta seria uma prática que se contrapunha aos desígnios do destino,
que é inflexível, imutável, definitivo.
Nessa linha de raciocínio, a exortação “viver conforme a natureza” também
converteu a propagada liberdade estóica em nada além de uma sequência do fluir da
necessidade vital.
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A tentativa de se preservar o conceito de liberdade, não nos moldes em que era
entendida, significava dotá-la um caráter objetivo, considerando a liberdade como uma
demanda necessária do fatum/destino. Contudo, sua essência permanecia imutável ainda
que com um novo conteúdo. Acatando as determinações do destino, o homem sábio não se
opunha ao fatum, mas, sim, o aceitava com naturalidade, como algo necessário
(ULLMANN, 1996) ao bom ordenamento da própria vida e do cosmo, porque tinha um
papel a cumprir, atribuído pela Natureza.
Para dar destaque à preocupação que o homem deveria ter em relação ao destino,
Sêneca exortou Lucílio:
Que o destino nos encontre sempre prontos, sempre de boa vontade. Uma alma verdadeiramente grande é aquela que se confia ao destino. Mesquinho e degenerado, pelo contrário, é o homem que tenta resistir que ajuíza mal da ordem do universo e que acha preferível corrigir os deuses do que emendar-se a si próprio!”(Cartas a Lucílio, 107,12).
O homem que compreendesse a necessidade de ser levado/guiado pelas exigências
da necessidade poderia se fazer um homem feliz. Já aquele que não chegasse a essa
compreensão e se posicionasse contra o que estava projetado e firmado, teria como
resposta o sofrimento da infelicidade, certo para essa situação/comportamento. A rigor,
liberdade tinha uma sintonia fina com a necessidade, assim como com a fatalidade e o
determinismo (ULLMANN, 1996). Todavia, para Sêneca, o homem ideal deveria crer e ser
um defensor da liberdade, exercendo-a de maneira plena, de modo a convertê-la naquilo
que se constitui a vontade do destino. Ser livre, por conseguinte, implicava aceitar a
necessidade de submissão àquilo que estava previsto. Daí a aceitação senequiana do dogma
estóico que se refere ao destino (MARTÍN SÁNCHEZ, 1985).
Neste sentido, a liberdade, segundo Sêneca, deveria ser meta traçada pelo homem,
objetivo a ser conquistado, já que se constituiria para ele, ao que parece, a essência da
perfeição humana. “A liberdade é a nossa meta, é o prêmio das nossas canseiras” (Cartas a
Lucílio, 51,9).
Para uma melhor compreensão do conceito de liberdade defendido por Sêneca,
parece significativa uma visita a algumas das reflexões contidas em suas Cartas a Lucílio.
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Dessas reflexões foram levantados quatro fragmentos, dos quais os três primeiros
trazem traços de similitude, enquanto o quarto trata expressamente de um ponto
considerado de fundamental importância para a correta discussão do problema.
No primeiro fragmento, a definição de liberdade aparece nos seguintes termos:
Sabes em que consiste a liberdade? Em não ser escravo de nada, de nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual para igual com a fortuna. Se algum dia eu sentir que ela tem mais força do que eu, mesmo assim, essa força será inútil (Cartas a Lucílio, 51,9).
Relacionando liberdade à escravidão em seus diversos aspectos, Sêneca
encaminhou a discussão para uma das questões que mais o preocupavam: o assentamento
das bases para uma liberdade interior contraposta ao determinismo universal da fortuna
(GARCÍA GARRIDO, 1969).
Esta condição somente se realizaria quando a alma conquistasse a vitória sobre seus
senhores e algozes, os que lhe tinham tirado a felicidade: “Deixaremos de ser movidos pelo
desejo ou pelo medo. Não nos perturbará, não nos corromperá o prazer, não nos assustarão
nem a morte nem os deuses” (Cartas a Lucílio, 75, 17).
Com isso, o que Sêneca quis ensinar foi que a liberdade, mesmo exigindo a
obediência ao Logos divino, não tinha o sentido de servilidade e/ou escravidão aos deuses,
mas sim o de integração da vontade humana com a da divina, de forma a configurar um
todo harmônico, conforme o projeto da Natureza.
Por meio da subordinação aos ditames da razão, o homem que se quisesse sábio
compartilharia da verdade e da vontade do Logos divino. Este mesmo homem, a exemplo
dos deuses, tinha consciência de estar ligado intimamente e insoluvelmente às
decisões/determinações estabelecidas pelo destino; executor das imposições da razão, não
tentaria contestá-las, mas sim aceitá-las de forma tranquila (MARTÍN SANCHEZ, 1985).
O homem, ao ser tocado pela liberdade, ao quebrar os grilhões que aprisionam sua
vida, também é cingido pelo bem maior, “[...] não conhece bem que seja maior do que o
bem que ele pode dar a si mesmo, para quem a verdadeira volúpia é o desprezo das
volúpias” (Sobre a vida feliz, IV, 2).
Nosso pensador colocava, assim, a libertação das influências externas como uma
possibilidade para a regeneração do homem; porém afirmava que essa regeneração
somente seria possível com base em condições objetivas e claras, ou seja, em um
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posicionamento firme, forte e decisivo diante das adversidades que se apresentavam e na
definição de um referencial concreto e prático que indicasse o caminho do Supremo Bem.
Essa situação favorecia a harmonização entre o mundo da bem-aventurança e o mundo de
sua escravização (ARTIGAS, 1952).
Para Sêneca, se vinculasse sua liberdade a exigências projetivas do mundo, o
homem poderia se perder no desconhecido; o inverso aconteceria se, em um encontro
consigo mesmo, ele buscasse o recolhimento. Exterioridade e interioridade não eram, para
o autor, duas formas de existência moral, mas duas existências, duas dimensões do homem
livre.
Limitar-se à exterioridade significava uma liberdade ilusória, uma pretensa
onipotência, posto que, aparentemente, o homem tudo pode, tudo sabe, tudo domina, mas,
na realidade, está preso aos domínios da fantasia. Da mesma maneira, a interioridade
imediata e simples, sem passar pelo mundo, a interioridade que não é conquistada
reflexivamente na transcendência da exterioridade, levaria o homem a um novo
desconhecido, ao esvaziamento da substância da alma por carência de impressão e sentido
vital.
Assim, para ele, o processo de interiorização da vida seria impossível sem a
conquista natural da vivência da exterioridade no mundo, ou seja, o dentro não se realizaria
sem a realização do fora. Em outras palavras, era inerente à liberdade a associação dessas
dimensões: a realização de si no mundo é uma co-realização que transcende para a unidade
reflexiva do espírito (CEREZO, 1966).
Nesse sentido, para Sêneca, a liberdade ganhou a condição de equidade, que se
traduzia na dignidade e respeito ao homem, a ponto de ele colocá-la em igualdade com a
fortuna ou, até mesmo, conceder-lhe poderes superiores aos dela.
Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos os homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nos próprios: sermos donos de nós mesmos é um bem inestimável! (Cartas a Lucílio, 75, 18).
Neste segundo segmento, Sêneca contrapôs a liberdade àquelas preocupações não
comprometidas com a honestidade, pois, em sua concepção, o homem deixava de ser livre
quando atendia aos anseios que considerava ilícitos (GARCIA GARRIDO, 1969). Até
mesmo as ações honestas e retas, caso fossem motivadas pela felicidade que elas
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proporcionam, não seriam procedimentos corretos nem verdadeiros, pois não estariam
comprometidas com o bem e sim com a própria satisfação. Elas seriam o oposto da
liberdade, que requer tanto dedicação quanto esforço para se chegar à honestidade, ou seja,
ao domínio pleno da virtude. A gratificação e a satisfação possibilitadas pela virtude
deveriam ser consideradas como resultado e não como a consumação do Supremo Bem
(LEÓN SANZ, 1997). A partir dessa orientação, o exercício da liberdade pressupunha o
senhorio de si mesmo por parte do próprio homem.
Este entendimento, ao que tudo indica, passava pela importância capital que Sêneca
atribuía ao homem e pela possibilidade da conquista pessoal do seu senhorio e do combate
vitorioso da dignidade realizado pelo artifex vitae (artífice da vida), cujo resultado era
concebido como o Supremo Bem. Era precisamente essa possibilidade de conquista que,
segundo Sêneca, revestia o homem da dignidade plena; era ela que dava fundamento para
sua ousada declaração a respeito da superioridade humana sobre os demais seres e uma
equivalência com os deuses: “[...] ficarás muito à frente do resto da humanidade e os
deuses pouco se distanciarão de ti” (Cartas a Lucílio, 53, 11). O que Sêneca expunha como
ideal não era a inteligência penetrante do Cosmo ou suas leis, mas o ethos que afirma a
personalidade daquele que domina, do que se torna senhor de si mesmo, da sua própria
vida (GARCÍA-BORRÓN, 1956) para encaminhá-la para a felicidade plena.
A liberdade consiste em saber sobrepor o espírito acima das injúrias; em fazer de si mesmo a fonte de onde provém tudo quanto causa satisfação; em despegar-se das coisas exteriores de sorte a não viver preocupado, seja pelo medo de riscos desdenhosos, seja de línguas destemperadas (A Constância do Sábio, XXIII,2).
Com esse terceiro fragmento, Sêneca exorta o homem a cuidar do equilíbrio,
conquista resultante da sobreposição do espírito àquilo que pode pôr em risco a liberdade
ideal que se pretende alcançar.
Evidenciam-se aqui duas questões: a primeira é a forma como Sêneca entendeu o
conceito de liberdade, ou seja, a independência em relação aos demais homens; a segunda
é a condição de fruição que o filósofo atribuiu à liberdade interior, manancial da máxima
felicidade (GARCIA GARRIDO, 1969). No que diz respeito à primeira questão, pode-se
buscar referência em sua afirmativa: "[...] será escravo de muitos quem for escravo do
próprio corpo" (Cartas a Lucílio, 11,1). Esse raciocínio fundamentava-se no fato de o
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homem não ser o único no mundo e de relacionar suas necessidades na esfera física aos
laços de servidão com os demais homens (ARTIGAS, 1952). Para Sêneca, não havia
escravidão pior, mais torpe e vergonhosa do que a escravidão voluntária. O homem, em
sua materialidade, pode ser submetido, mas a sua alma, pelas virtualidades que encerra,
não pode ficar presa desse cárcere.
Mesmo assim, era comum e aceito que homens, motivados por fatores externos,
assumissem esse tipo de escravidão, contrariamente aos projetos da Natureza (BARREDA,
1966).
A acomodação a opiniões que não eram suas impedia o homem de traçar metas que
o conduzissem a um comportamento reto, justo e adequado a uma pauta pessoal única, pois
são muitas as exigências que se estabelecem com essa relação. “Pergunta por aqueles cujos
nomes se aprendem de cor e verás que eles são identificados pelas características
seguintes: este é servidor daquele, que o é de um outro ninguém pertence a si próprio”
(Sobre a brevidade da vida, 11, 4).
A solução para este problema seria o afastamento das influências, para que, livre, o
homem pudesse agir e julgar com base na razão.
Quando a alma comanda o corpo, essa situação não se configura, pois alma e
deuses, no entendimento senequiano, eram da mesma natureza. Tinham em comum a
razão, fonte de força e de perfeição, responsável pela virtude e pela felicidade.
A segunda questão está vinculada não a uma liberdade garantida pelo direito
público, mas à liberdade como direito natural, ou seja, à liberdade, à independência, à
autonomia advindas do interior, libertadoras do medo da morte, da pobreza, dos vícios e de
tudo o que se originasse dos desejos do corpo. Não se tratava, também, de uma liberdade
de caráter psicológico, subjetiva ou relacionada às posses e à necessidade de atender às
suas exigências (SANGALI, 1998).
Para Sêneca, esta liberdade poderia abrir fendas em um mundo em que as
necessidades e as dificuldades eram duramente impostas ao homem. Destarte, ao não se
submeter à ação da fortuna e aceitar as leis impostas pela natureza, das quais a mais radical
e cruel, para o nosso pensador, era a degradação a que estava submetida a condição
humana (homo servus, homo aeger, homo victus - homem escravo, homem doente, homem
vencido), o homem teria condições de ser plenamente livre (USCATESCU, 1965), para
usufruir da verdadeira liberdade.
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Destes insuportáveis tiranos que são as paixões — e que ora nos governam alternadamente, ora em conjunto — te libertará a sabedoria, e única liberdade autêntica (Cartas a Lucílio, 37,4).
No quarto fragmento Sêneca põe em evidência a possibilidade de o homem se
libertar por meio da sabedoria.
Com estas coordenadas, entrecruzam-se e conectam-se a liberdade e a sabedoria,
cria-se uma relação de identidade entre essas duas instâncias.
Os conceitos de liberdade expressos nos fragmentos acima levam à compreensão
que Sêneca tinha a respeito das possibilidades de superação das três formas de escravidão
que conduziam o homem a um estado de precariedade e indigência em relação ao corpo,
aos demais homens e à fortuna. Como sentenciou o pensador: “Desgraçado de ti, que serás
servo dos homens, das coisas, da vida — pois a vida não passa de servidão se nos faltar a
força para morrer!” (Cartas a Lucílio, 77,15).
A liberdade, nos dizeres senequianos, deveria ser pensada e organizada no sentido
de superar a escravidão humana, que é, essencialmente, a escravidão da alma (GARCIA
GARRIDO, 1969). Com base nesse entendimento, Sêneca proclamou a necessidade de
uma batalha final, pois não havia nada de “[...] insolência em tentarmos subir ao lugar
donde descemos” (Cartas a Lucílio, 92,30). Por isso, ele considerava necessário que o
homem retornasse ao seu lugar de origem, à natureza, mas a natureza no seu estado mais
puro, o espaço da razão universal. O homem não podia se deixar enganar, pois o caminho
para esse retorno, por meio do processo formativo, era acidentado e difícil e poderia
surpreender a qualquer momento, o que não significava ser impossível alcançá-lo/vencê-lo:
pelo contrário, ele levava ao exercício da liberdade, condição ideal para o homem
concebido por Sêneca (ARTIGAS, 1952).
Esta preocupação trazia consigo duas dimensões de liberdade: a simples liberdade e
a liberdade vivida.
Para Sêneca, a morte, o inimigo invencível, convertia-se no melhor e maior aliado
do homem, já que tornava possível que ele rompesse com o acaso mais inexorável, abria
para o homem as portas para a liberdade e, quem sabe, o acesso à imortalidade (GARCIA-
BORRÓN, 1956), às grandes personalidades, aos grandes benfeitores da humanidade que
estavam à disposição do homem a toda hora, em qualquer lugar.
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Assim, o homem poderia transformar sua morte: de evento que despertava medo ela
seria um evento de consumação da liberdade, cujos reflexos poderiam ser benfazejos e
exemplares. Por isso, Sêneca entendia que meditar sobre a morte era meditar também sobre
a liberdade. O aprendizado que trazia a meditação sobre a morte criava as condições para a
prática da liberdade. Este evento, natural ou provocado, era um momento privilegiado para
se desviar das volubilidades da fortuna. Destarte, ele entendia que é na ocasião da morte
que se evidenciam as virtudes do homem que se fez sábio: tranquilidade, segurança,
abnegação, submissão ao destino, desprendimento da vida, subordinação à vontade divina,
dentre outras. Importa destacar que ele se referia ainda a situações específicas em que se
aconselhava abrir mão da vida, como ato radical de preservar a própria liberdade. A morte
provocada (suicídio) era exortada como mecanismo de libertação para o homem: aquele
que, diante da adversidade, como ter sua dignidade humana e a sua prática da virtude
afetadas, poderia optar por deixar a vida a submeter-se a uma vida não comprometida com
a dignidade (MARTÍN SANCHEZ, 1985). Esse bem conquistado num longo e difícil
processo formativo não lhe permitia qualquer procedimento que não fosse esse.
Desse modo, como a morte se alinhava à ruptura da cadeia servil, estava
relacionada à primeira dimensão; a liberdade vivida, por sua vez, vinculava-se à realização
da segunda dimensão.
Com isso, a vida aparecia como a condição de realização da legítima liberdade do
homem, fator de felicidade plena, à qual o homem podia ter acesso desde que se
predispusesse a conquistá-la (LÉON SANZ, 1997).
Com base nesse entendimento, Sêneca postulava que o homem que se pretendia
sábio devia ter por meta o acatamento do seu destino e, assim procedendo, garantiria a
realização suprema de sua liberdade. Com isso, viabilizava-se uma adequação do seu
comportamento à razão divina, processo esse que encaminhava o homem a conciliatio de si
com o mundo, ou seja, promovia a interação e a harmonia completas do eu e o mundo.
Assim, o homem ideal senequiano deveria ter ciência de que as determinações do destino
eram, tinham sido e seriam indistintas do querer humano. Para além, também deveria ter
ciência de que poderia assumir duas posturas diante do destino: negá-lo sem êxito ou
submeter-se a ele de forma voluntária. Como não poderia ser diferente, esse homem
idealizado acataria aquilo que o destino lhe tinha reservado. Como era esse o projeto da
Natureza, a liberdade não era nada mais do que a subordinação à necessidade, amor fati
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(amor pelo destino). Assim, o homem sábio entregar-se-ia ao destino como realização
plena de sua liberdade (MARTÍN SANCHEZ, 1985), já que lutar contra seus decretos se
configuraria como uma ação improcedente, própria daqueles desinformados e não
comprometidos com o papel que lhe fora reservado. Submeter-se ao destino constituia um
exercício de liberdade plena.
Sêneca mesmo em sintonia com a doutrina estóica, expressava manifesta ou
implicitamente um conceito de liberdade, de certo modo, destoante. Para ele, liberdade
tinha o sentido de valor pleno (maximum), mais importante do que a própria vida: sem
liberdade, a vida se tornava indigna. Desse modo, a maior felicidade para o homem seria
poder afirmar e mostrar sua condição de ser livre. O conceito de livre tinha, em Sêneca, o
mesmo sentido que teve para outros grandes nomes do estoicismo, qual seja, ser livre
queria dizer estar desprovido de paixões, de repentinos desenganos das insignificantes
solicitações do mundo. Apesar disso, ser livre, na visão senequiana, pressupunha um
sentido mais profundo: o de senhorio de si mesmo, de suas ações físicas e não apenas
morais, o domínio da sua vida concreta e real, a sua independência, a sua não-
obrigatoriedade; livre humanamente e não metafisicamente como na doutrina estóica
(GARCÍA BORRÓN, 1956).
Com isto, Sêneca evidenciava que a regra suprema da moral era submeter-se à
racionalidade. A submissão à ordem universal, cuja inexorabilidade era racionalmente
reconhecida, deveria ser espontânea. Por esse caminho, favorecido pela preocupação
formativa, chegava-se ao summum bonus (supremo bem). Esse deveria ser o objetivo maior
do homem: reorganizar sua vida tendo em vista a felicidade (GARCÍA GARRIDO, 1969),
o que passava pelo processo formativo. O homem, nos dizeres senequianos, estava apto a
trilhar esse caminho, pois a natureza o dotara das condições necessárias para tal.
Amparado por esses referenciais, Sêneca aliou-se ao conjunto de pensadores que
não precisavam de um grande exercício do pensamento para conhecer, ou seja, que se
fundamentavam em um pensar dialético. Outra particularidade senequiana era de não se
envolver profundamente na vida, de não se submeter aos seus inúmeros negócios,
atividades relacionadas até mesmo com seus próprios anseios, ou seja, qualquer coisa que
o desviasse da rota do pensamento. Com essas características, Sêneca assumiu um papel
próprio de um mediador, que se situava entre a vida e o pensamento, entre o logos
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teorizado e explicado pela filosofia grega como o fundamento de todas as coisas e a vida
humilde, simples e misteriosa.
Desse modo, Sêneca encarnava a concretização de um bem que era requisitado
intensamente, a realização de um desejo presente em todos os homens, apesar de sua
preocupação primeira ser direcionada aos setores aristocratas da sociedade romana, os
quais não estavam isentos e imunes aos reflexos da sua franca decadência de valores
morais e éticos.
Em seu magistério mediador, Sêneca deixava o domínio da sabedoria pura para se
voltar não apenas para seus pares, já que seu pensamento contemplava as necessidades do
homem simples, da rua. Indistintamente do setor e da condição social dessas pessoas, seu
olhar assumia um caráter de preocupação e benevolência, o que o levou a um firme
propósito de lhes oferecer não aquilo que já era de seu domínio/conhecimento, mas
efetivamente aquilo de que eram carentes, de que tinham necessidade, tendo em vista a
condição de conflito promovida pela sociedade carente de seu tempo. Esta forma de pensar
e de olhar, que correspondia a uma avaliação pela pura razão, pode por em risco a
integridade desse mesmo pensar e desse mesmo olhar, já que se pode considerar que ele se
orientava para uma forma de “medicina”, para não dizer “curandeirismo”: ele estaria
propondo ao homem um remédio, para não dizer elixir, que não tinha outra propriedade
senão a de aliviar e consolar o homem que entendia como enfermo, submetido e
escravizado pelas agruras de sua época.
Sêneca pode ser concebido como o último representante dos sábios da Antiguidade
e, ao mesmo tempo, com um prenúncio do “intelectual”, ou seja, o último sábio antigo e o
primeiro intelectual da era moderna, que invariavelmente se envolvia com o poder.
Entretanto, nosso pensador tem um conteúdo que extrapola a rotulação de ser sábio e/ou
intelectual, ele representa algo mais do que o consagrado para essas personagens. Ele foi o
sábio, vale enfatizar, que inter-relacionou medicina com curanderismo, psicologia com
magistério, sempre tendo como meta o apoio/amparo ao homem
desolado/desamparado/negado. Com isso, Sêneca, em sua maturidade intelectual, com
estas preocupações e práticas, assumiu também o papel de uma figura paternal
(ZAMBRANO, 1992), uma vez que ele sempre está à disposição daqueles que o procuram
a todo momento, quer no seu tempo quer para além dele.
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Ao final, vale lembrar que, nas reflexões destinadas à explicação e à orientação do
homem, mesmo quando sua preocupação estava voltada para o setor privilegiado da
sociedade romana, Sêneca não se ateve a essa esfera e, por isso, ganhou expressão de
universalidade e perenidade. Assim, não ficou circunscrito ao seu tempo e conquistou
espaço em outros tempos, a exemplo da Idade Média, quando influenciou pensadores
cristãos.
Ecos das reflexões senequianas podem ser encontrados em personagens como
Tertuliano, São Jerônimo e Santo Agostinho, que reconheceram o conteúdo do seu
pensamento e, em alguns casos, até mesmo assumiram partes do seu pensar para
fundamentar o Cristianismo. Vai ao encontro dessa afirmação a suposta/falsa
correspondência estabelecida por Sêneca e Paulo de Tarso. Outras personalidades de
destaque na medievalidade, como Martim de Braga, Abelardo, e Godofredo de São Vítor,
encontraram e destacaram em obras senequianas referenciais para suas exortações para que
os cristãos se dedicassem a uma vida de virtuosidade.
Novo interesse pelo seu pensar foi despertado pelo Renascimento, quando se
alavancou a atenção dos humanistas pela cultura clássica. Nessa galeria, podem-se situar
Petrarca e Bocaccio. Reformistas, como Calvino, buscaram em Sêneca coordenadas morais
para alicerçar suas doutrinas e para dar novos ares ao Cristianismo.
Montaigne, em sua admiração por Sêneca, postulou e defendeu o seu
reconhecimento como mensageiro de uma virtuosidade plena. Diderot, por seu turno,
mesmo com alguns equívocos históricos, escreveu a elogiada biografia do pensador
romano. O interesse por Sêneca não foi diferente nos séculos XIX e XX, quando se
publicaram numerosos estudos sobre os mais diversos aspectos de seu pensamento,
especialmente os da ética, da moral, da política, do direito e da pedagogia.
Apesar de todas as conquistas cientifico - tecnológicas feitas na Modernidade, o
homem não está isento de buscar respostas para perguntas relacionadas às questões
fundamentais da sua existência. É nessas indagações sobre o verdadeiro sentido da vida,
sobre a importância da relação com o outro, sobre a postura a ser tomada ante ao poder,
sobre como reagir diante das dificuldades que a vida oferece e, ainda, sobre o
encaminhamento a ser dado na esfera pessoal e coletiva, que Sêneca poderá continuar
sendo um referencial para o aperfeiçoamento da condição humana (MANJARRÉS, 2001).
Isso faz dele um educador atemporal. Por isso, a recorrente busca pelo pensamento
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senequiano, evidenciando seu caráter perene e atual, sedimentou a possibilidade de se
encontrar em suas lições elementos que parecem atuais, particularmente em relação ao
fenômeno educativo e à solução que oferece aos problemas da existência humana.
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