a leitura e a base nacional comum curricular … · nos estudos culturais e em autores que tratam...

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA A LEITURA E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC): UMA ABORDAGEM PELA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS Mestranda: Minéia Carine Huber Orientadora: Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian Frederico Westphalen, dezembro de 2017

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES –

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A LEITURA E A BASE NACIONAL COMUM

CURRICULAR (BNCC): UMA ABORDAGEM

PELA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Mestranda: Minéia Carine Huber

Orientadora: Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian

Frederico Westphalen, dezembro de 2017

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Minéia Carine Huber

A LEITURA E A BASE NACIONAL COMUM

CURRICULAR (BNCC): UMA ABORDAGEM

PELA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian, como requisito parcial para conclusão do curso de Mestrado em Letras

Frederico Westphalen, dezembro de 2017

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a dissertação de mestrado

A LEITURA E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC): UMA

ABORDAGEM PELA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Elaborada por Minéia Carine Huber

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________

Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian – URI (Orientadora)

_____________________________________________ Prof. Dr. Anselmo Peres Alós - UFSM

(1ᵃ arguidor)

____________________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Nogaro - URI

(2ᵃ arguidor)

____________________________________________ Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros - URI

(3ᵃ arguidor)

Frederico Westphalen, dezembro de 2017

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AGRADECIMENTOS

Ao finalizar este trabalho de dissertação, após muita dedicação e estudo, com

muito carinho e de forma muito especial, quero agradecer a todos que de alguma

forma estiveram ao meu lado e me incentivaram...

À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos, que possibilitou a realização

do Mestrado em Letras.

Aos meus familiares, em especial meus pais Clerio e Nadia, que desde muito

nova me incentivaram a estudar, ensinaram a ser alguém que acredita na

importância do conhecimento e do trabalho para uma vida honrada, honesta e digna,

estiveram ao meu lado dando apoio e tendo paciência comigo. E, acima de tudo, por

serem um exemplo de trabalho, dedicação e perseverança.

Ao meu namorado Mateus, pelo incentivo, desde os tempos do início da

faculdade, para que eu buscasse o Mestrado, pelas palavras de força ao longo da

realização da dissertação “você vai conseguir” “eu acredito em você”, pelo apoio em

todos os momentos, entendendo minhas ausências e acreditando, às vezes até mais

que eu, no meu potencial.

À minha orientadora, Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian, sem a qual seria

impossível a realização deste trabalho. Sua paciência, carinho, conhecimento e

orientação foram cruciais na realização deste trabalho. Um carinho imenso por essa

orientadora, também minha orientadora na graduação em Letras, por ter sempre as

palavras certas e necessárias e por me inspirar na busca dos meus objetivos.

Aos amigos de todos os momentos, aos mais novos ou mais antigos, mais ou

menos próximos, pelo estímulo e apoio. Todos foram essenciais, mas cito duas

amigas que se tornaram irmãs do coração: Claudia, colega da graduação para a

vida, companheira de estudos, trabalhos, mates, alegrias e tristezas, um ombro

amigo para rir e chorar, tendo sempre palavras de incentivo e carinho ou silêncios

que dizem mais que palavras e Sheila, uma amizade que dispensa comentários,

indispensável para muitos momentos, sejam de alegria ou tristeza, uma amiga para

todas as horas, que compartilhou comigo o sonho de realizar mestrado, sonho que

para ambas se tornou realidade, amiga que acompanhou minhas angústias, prazos,

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objetivos, alegrias, apresentações, publicações durante o mestrado, estando perto

ou longe geograficamente.

À URI, de maneira geral, por possibilitar meus estudos e ser uma instituição

séria e comprometida com os estudantes e a comunidade. Além disso, pelas bolsas

de estudo durante a graduação, que me cativaram à pesquisa, o que foi

determinante para a meu objetivo de buscar o mestrado. Cito aqui a professora

Marinês, coordenadora do curso de Letras da URI, por acreditar no meu trabalho e

dedicação no período da graduação.

Ao PPGL – Mestrado em Letras – por tudo que conquistei, pelo conhecimento

e enriquecimento pessoal e acadêmico.

Às secretárias do PPGL, pelos e-mails, recados, informações e ajudas em

geral, sempre dispostas e atenciosas, ajudando em todos os momentos.

Aos professores do PPGL, em nome da coordenadora, Profa. Dra. Maria

Thereza Veloso, por possibilitarem a reflexão, a busca por respostas, o

questionamento e por serem uma inspiração na busca pelo conhecimento. Esses

profissionais que, com muito comprometimento e carinho, apontaram caminhos,

possibilidades e uma imensidão de leituras, necessárias para que eu pudesse

desenvolver meu espírito de pesquisa.

Aos colegas do mestrado, por compartilharem conhecimentos, realizar trocas

e pelos momentos de alegria e descontração, colegas que ocupam um lugar muito

especial em meu coração.

Aos colegas de trabalho, por palavras de incentivo. Aos meus alunos, por

serem fonte de inspiração para questionamentos e problemas de pesquisa.

À Comissão Examinadora da Banca de Qualificação, pelos inúmeros

apontamentos, sugestões, críticas e contribuições, todos úteis para a finalização da

pesquisa, que possibilitaram um trabalho melhor e mais consistente.

Enfim, a todos os citados e tantos não citados, mas fundamentais. Vocês

foram muito importantes nesta etapa de minha vida.

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RESUMO

Esta dissertação apresenta um estudo teórico-crítico sobre leitura e sobre a interpretação dessa na Base Nacional Comum Curricular. Realiza-se estudo da Base Nacional Comum Curricular com vistas a estabelecer uma discussão sobre a abordagem da leitura prevista nesse documento, embasado nos Estudos Culturais e em autores que tratam da leitura de uma perspectiva cultural. O estudo apresenta relevância pelo cunho social e educacional, pois se abordam temas de interesse social e da escola. O campo dos Estudos Culturais busca produzir conhecimento útil, repensando politicamente a leitura, pois surge como uma forma de estudar e conhecer a sociedade e as diferentes manifestações em seu contexto, o que implica a leitura nas suas relações sociais, culturais e políticas. Além disso, a cultura está diretamente ligada ao poder e, ao mesmo tempo, em que ela atua como local de diferença ela também é uma forma de luta de classe contra o poder autoritário. Assim, é necessário saber realizar uma leitura adequada do mundo, com o objetivo de aprimorarmo-nos pessoal e culturalmente. Abordar leitura pelo viés da cultura é uma tarefa para muitos segmentos sociais, entre eles a escola, que tem o papel de receber os alunos e construir o conhecimento em uma perspectiva emancipatória e libertadora. Assim, as reflexões abordadas a respeito de leitura e cultura também se voltam para o que é disseminado nas escolas e nos documentos que embasam o ensino. Nesse sentido, destaca-se a necessidade e relevância de tornar objeto de estudo um documento que tem o objetivo de nortear os conteúdos e a finalidade do que é ensinado nas escolas em nível nacional, com foco na formação leitora e cultural. O estudo está ancorado em reflexões sobre os índices insatisfatórios de leitura dos estudantes, apontados pela pesquisa Retratos da leitura no Brasil, dos anos de 2011 e 2015. Com base no exposto, objetiva-se realizar uma revisão teórica sobre leitura, a partir dos Estudos Culturais; repensar os conceitos existentes sobre leitura e cultura, considerando a vasta gama de modalidades de leitura e manifestações culturais que se realiza nos dias de hoje; estudar analiticamente e discutir a formação cultural e leitora proposta na Base Nacional Comum Curricular, com base nos Estudos Culturais, a fim de apontar elementos importantes presentes ou não no documento, pressupondo a formação de um leitor cultural que pense sobre si mesmo, desenvolvendo capacidades para intervir criticamente sobre o mundo, e que possa repensar sua própria cultura e estabelecer diálogos com a do outro. O trabalho pauta-se em pesquisa teórica bibliográfica, seguida de um estudo analítico de base documental. Assim, primeiramente parte-se da revisão teórica, embasada nos Estudos Culturais, para posteriormente realizar a análise da parte que trata da área das linguagens da Base Nacional Comum Curricular, ancorado em uma perspectiva hermenêutica. Dentre os autores consultados destacam-se: Stuart Hall, Ana Carolina Escosteguy, Richard Johnson, Jesus Martín-Barbero, Eduardo Restrepo, Néstor Garcia Canclini, Bell Hooks, Douglas Kellner, Paulo Freire, Henry Giroux, Maria Da Glória Bordini, Antonio Candido, Hilton Japiassu, Tania Franco Carvalhal, Roland Barthes, Eneida Leal Cunha, Ivani Catarina Arantes Fazenda, Marisa Cristina Vorraber Costa, Rosa Maria Hessel Silveira, Luis Henrique Sommer e Carlos Magno Gomes. Ao propor este estudo, em que se repensa a leitura como prática social e em uma perspectiva cultural, busca-se apontar questões importantes a respeito da abordagem da leitura na Base Nacional e questionar se o documento apresenta planejamento e significados calcados na complexa realidade em que o leitor de hoje se insere. Palavras-chave: Educação. Leitura. Estudos Culturais. BNCC.

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ABSTRACT

This thesis presents a theoretical-critical study on reading and on interpretation of it on the Base Nacional Comum Curricular (Portuguese for the National Common Curricular Basis, a Brazilian political regulation). We perform a study on the Base Nacional Comum Curricular aiming to stablish a discuss on the approach of reading taken on this document, following the perspective of the Cultural Studies, as well as other authors who study reading in a cultural perspective. This study presents relevancy due to its social and educational approach, as it goes on themes of social and school interest. The study field of Cultural Studies seeks to produce useful knowledge, rethinking reading in a political way, as it arises as a way of studying and knowing society and different manifestations around it, which implies reading on their social, cultural and political relations. Despite, culture is directly connected to power and, at the same time it acts as a local of difference, it is also one way of stablishing a class conflict against the authoritarian power. Thus, it is necessary to know how to adequately read the world, aiming to turn ourselves into better people both in personal and in cultural ways. Approaching reading through culture is a task to many social segments, among them school, which acts as the role of welcoming students and building knowledge in an emancipatory and freeing perspective. So, our reflections on reading and culture also go along what is spread in schools and on the documents that are basis for the teaching and learning process. In this sense, we highlight the necessity and the relevancy of turning the document in an object of study, considering it has the objective of guiding contents and the finality of what is taught in Brazilian schools, focusing reading and cultural education. Our study is rooted on reflections upon the unsatisfactory index of students’ reading, which is pointed out by the research Retratos da leitura no Brasil, both on 2011 and on 2015. In view of the above findings, we aim to perform a theoretical review on reading, since Cultural Studies; to rethink the existing concepts on reading and culture, considering the wide amount of modalities of reading and cultural manifestations that are performed nowadays; to study and to discuss in an analytical way cultural formation and reading education that are present on the Base Nacional Comum Curricular, on the perspective of the Cultural Studies, in order to point out important elements that are presented or not on that document, considering the education of a cultural reader who thinks about him or herself, while developing capacities to interfere critically on their world, and who will be able to rethink their own culture and to stablish dialogues with other ones. This work is a theoretical bibliographic research, followed by an analytical study with documental basis. This way, first we perform a theoretical review, based on the Cultural Studies, so then we can perform the analysis of what is present on the Languages part of the Base Nacional Comum Curricular, following a hermeneutic perspective. Among the authors consulted are: Stuart Hall, Ana Carolina Escosteguy, Richard Johnson, Jesus Martín-Barbero, Eduardo Restrepo, Néstor Garcia Canclini, Bell Hooks, Douglas Kellner, Paulo Freire, Henry Giroux, Maria Da Glória Bordini, Antonio Candido, Hilton Japiassu, Tania Franco Carvalhal, Roland Barthes, Eneida Leal Cunha, Ivani Catarina Arantes Fazenda, Marisa Cristina Vorraber Costa, Rosa Maria Hessel Silveira, Luis Henrique Sommer and Carlos Magno Gomes. While promoting this study, in which we rethink reading as a social practice and in a cultural perspective, we aim to point out important questions on the approach of reading on the Base Nacional and to question whether or not the document presents planning and meanings based on the complex reality in which the reader of today is inserted. Keywords: Education. Reading. Cultural Studies. BNCC.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA LEITURA NO BRASIL17

2 OS ESTUDOS CULTURAIS E A LEITURA ........................................................... 25

2.1 Uma introdução aos Estudos Culturais .......................................................... 26

2.2 A leitura na perspectiva dos Estudos Culturais ............................................. 34

3 O CONCEITO DE CULTURA NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS 44

4 UM OLHAR SOBRE A BNCC: QUAL A CONCEPÇÃO DE LEITURA QUE

EMBASA O DOCUMENTO? .................................................................................... 56

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 96

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 105

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INTRODUÇÃO

A leitura desenvolve habilidades imprescindíveis ao ser humano, necessárias

à sua formação tanto pessoal quanto social, “[...] capacitando o ser humano a

pensar e agir com liberdade, ainda que mediado pela fantasia e pelo imaginário, a

leitura sinaliza o perigo para sociedades ou indivíduos autoritários” (ZILBERMAN,

2001, p.38). Dessa forma, o ato de ler é uma forma de emancipação e um meio para

fugir da alienação, algo necessário para não ser explorado e enganado em

sociedades com sistemas autoritários. A leitura leva à libertação e torna possível a

viagem para diferentes lugares, segundo a autora.

Marcel Proust (2016) destaca que a leitura não pode ser equiparada a uma

conversa com algum amigo, mesmo que seja um muito sábio. Isso não está ligado

ao grau de sabedoria entre um livro e um amigo, mas sim à maneira como ocorre a

comunicação. A leitura é uma forma particular de tomada de conhecimento de outro

pensamento, diferente da conversação que é imediata e em que estão presentes as

manifestações corporais, como o tom de voz e os gestos. Na leitura, o sujeito está

sozinho e continua a gozar da força intelectual usufruída na solidão, pode parar,

pensar, retomar e realizar reflexões da forma mais apropriada.

Essas ponderações a respeito da leitura nos levam também à reflexão da

presença da cultura na vida das pessoas. A cultura é definida por Hall (2003) como

sendo as relações entre elementos de um modo de vida global, não é uma prática,

nem apenas a soma descritiva dos costumes e culturas populares das sociedades.

Ela é perpassada “[...] por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-

relacionamento das mesmas” (p. 136). Cultura é uma forma característica de energia

humana que é reveladora de si mesma.

A cultura e a leitura estão atreladas, já que todas as manifestações culturais

precisam ser lidas pelas pessoas para serem compreendidas. Também pelo fato de

que estamos sempre submersos em manifestações culturais. Assim, é necessário

saber realizar uma leitura adequada do mundo, com o objetivo de aprimorarmo-nos

pessoal e culturalmente.

Abordar leitura pelo viés da cultura é uma tarefa para muitos segmentos

sociais, entre eles a escola, que tem o papel de receber os alunos e construir o

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conhecimento em uma perspectiva emancipatória e libertadora. Assim, as reflexões

abordadas a respeito de leitura e cultura também se voltam para o que é

disseminado nas escolas e os documentos que embasam o ensino. Com base nas

considerações abordadas, desenvolve-se este trabalho, em que é realizado um

estudo teórico sobre leitura, embasado nos Estudos Culturais, e em alguns autores

que tratam da leitura de uma perspectiva cultural. A partir do aporte teórico, realiza-

se o estudo da Base Nacional Comum Curricular com vistas a estabelecer uma

discussão sobre o conteúdo previsto nesse documento.

A pesquisa começou a ser pensada e está ancorada nos seguintes

questionamentos: como a leitura e uma visão de cultura são abordadas no campo

dos Estudos Culturais? E, a leitura é abordada na Base Nacional Comum Curricular

de modo a contemplar o desenvolvimento cultural e leitor dos sujeitos de acordo

com o campo dos Estudos Culturais?

Para o desenvolvimento da pesquisa, têm-se os seguintes objetivos: de forma

geral, discutir e estudar a formação cultural e leitora proposta na Base Nacional

Comum Curricular, com base nos Estudos Culturais, a fim de apontar elementos

importantes presentes ou não no documento, pressupondo a formação de um leitor

cultural que pense sobre si mesmo, desenvolvendo capacidades para intervir

criticamente sobre o mundo, e que possa repensar sua própria cultura e estabelecer

diálogos com a do outro.

De forma específica, os objetivos são: realizar uma revisão teórica sobre

leitura, a partir dos Estudos Culturais, para destacar o instrumental teórico e crítico

necessário ao entendimento desses conceitos; repensar os conceitos existentes

sobre leitura e cultura, considerando a vasta gama de modalidades de leitura e

manifestações culturais que se realiza nos dias de hoje, com os diferentes suportes

e interfaces do mundo contemporâneo, seja escrito, falado, desenhado, gravado,

etc., a fim de elucidar que tudo a nossa volta é leitura e que estamos sempre

envolvidos na cultura; estudar analiticamente a Base Nacional Comum Curricular

com base nas ideias advindas dos Estudos Culturais, com a finalidade de repensar o

que se propõe sobre leitura nesses documentos, tendo em vista as diferentes

manifestações culturais da sociedade brasileira.

Para justificar este trabalho, algumas informações e discussões são

importantes. O cenário da educação brasileira é problemático. Essa afirmação não é

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nenhuma novidade, pois o país não apresenta índices satisfatórios em questão de

leitura no que diz respeito à desenvoltura de seus estudantes nem dos professores.

Isso pode ser comprovado com os resultados da pesquisa Retratos da leitura no

Brasil, promovida pelo Instituto Pró-Livro, em 2011, e organizada por Zoara Failla.

Esta afirma que “[...] os títulos da maioria dos artigos compõem um ‘retrato’ do

comportamento leitor do brasileiro bastante pessimista, enfatizando a redução no

número de leitores.” (2011, p. 27-28).

Essa realidade não reflete apenas os níveis educacionais, mas todos os

aspectos sociais, como segurança, saúde, economia, etc., porque um país que não

tem a educação com qualidade não consegue um desenvolvimento completo. Dessa

forma, para existir uma nação rica em conhecimento e desenvolvimento é

necessária uma educação de qualidade, sobretudo com níveis bons de leitura.

A mesma pesquisa, Retratos da leitura no Brasil, realizada em 2015, traz

números muito desalentadores. Um item que explicita isso é a menção a

dificuldades para ler, já que, em 2015, 20% afirmaram ler muito devagar, 11%

declararam não ter concentração suficiente para ler, 7% não compreendem a maior

parte do que leem, 10% não sabem ler e 24% não têm paciência para ler. Embora o

número de não ter dificuldade de leitura ser de 33%, ainda é pouco se comparado

aos demais números. Outro número da pesquisa no quesito leitura está ao apontar

que 4% dos entrevistados não sabem ler, 23% não gostam de ler, 43% gostam um

pouco de ler e apenas 30% gostam muito de ler. Entretanto, por se tratar de uma

pesquisa, em que os entrevistados podem se sentir pouco à vontade para dizer que

não gostam de ler, é possível que esse número de 30% que gostam muito de ler na

prática seja menor. Embora tenha um aumento no número dos que gostam de ler e

diminuição dos que não sabem ler de 2007 para 2015, ainda é uma evolução fraca e

pouco representativa.

Falar em educação de qualidade em um país que não a tem como prioridade

significa abordar um assunto com muitos desdobramentos, que, entretanto, deve ser

discutido, uma vez que é com a reflexão e a problematização que se vislumbram

mudanças nesse cenário. Foi após refletir sobre o exposto que este trabalho

começou a ser pensado, reiterando a importância na discussão sobre o ensino no

Brasil. Além disso, sendo um trabalho de conclusão de curso de Pós-Graduação, em

nível de Mestrado, que tem compromisso social e relação direta com a sociedade,

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torna-se importante um direcionamento para algo que é demandado pela sociedade

e que esteja relacionado com impacto social.

Justifica-se também a escolha do tema pela necessidade de que os sujeitos

sejam, de fato, leitores de diferentes textos e suportes e culturalmente possam

conhecer diferentes manifestações culturais e respeitá-las, sem considerar que haja

hierarquia entre elas. Isso porque vivemos em um mundo repleto de conexões

culturais, em que geralmente não há mais barreiras entre lugares, pessoas, culturas,

etnias, já que, com um clique, ao navegar na internet é possível acessar uma

infinidade de eventos, fatos e também encontrar pessoas de diferentes lugares e,

portanto, de diferentes locus culturais.

A escolha do tema também está ancorada em um fato social e político

ocorrido pouco antes do início da elaboração deste projeto: a tentativa de acabar

com o Ministério da Cultura, proposta no governo do presidente interino Michel

Temer, em maio de 2016. O Ministério, criado em 1985, pelo então presidente José

Sarney, representa uma conquista da identidade democrática do país. A tentativa de

acabar com esse Ministério mostrou-se como uma ação despótica, que reflete o

atraso do Brasil, prova de como certos governos não estão preocupados com a

cultura nacional e, também, com a formação do ser humano. A tentativa não se

concretizou, mas é necessário discutir o tema para que futuramente isso não volte a

acontecer.

Destaca-se também, como justificativa da presente investigação, o fato de os

documentos oficiais do Ministério da Educação, como PCNs (1997), pregarem que o

aluno precisa ser pluricultural, ou seja, ter conhecimento e contato com diversas

culturas. Isso abarca ter conhecimento de um número variado de textos,

experiências, saber dialogar em diferentes contextos, escrever textos de forma

autoral em diferentes plataformas, interpretar o maior número de manifestações

culturais possíveis.

Essa releitura crítica dos documentos é necessária para realmente termos

uma educação emancipatória, que prepare o aluno para a vida social e cultural, pois

nem sempre há coerência em muitos materiais didáticos que chegam às escolas.

Esses materiais não apresentam os requisitos necessários, o que se agrava ao

considerarmos a formação dos docentes que trabalharão ou trabalham com leitura.

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Ao realizar a leitura é possível que nos deparemos com diferentes

personagens, lugares e situações que levam o leitor para um mundo novo, que pode

ser muito diferente do mundo ao qual está habituado. Essa propriedade da leitura,

de transportar o leitor para o novo e diferente, é o que faz dela uma prática

libertadora, na medida em que, por um determinado período, esse leitor pode

vivenciar experiências novas e muito mais satisfatórias que as habituais e, além

disso, encontrar refúgio das atividades rotineiras. Assim, o ato de ler torna-se uma

atividade prazerosa que auxilia na ampliação dos horizontes do sujeito leitor. Dessa

forma, de acordo com Marisa Lajolo:

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria verdade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista. (1984, p. 59).

Ler é atribuir sentido, significação com base nas vivências e nas leituras já

realizadas e entregar-se a essa leitura, demonstrando a afinidade com o conteúdo,

ou rebelando-se contra ela, por não ter havido empatia. De acordo com Zoara Failla

(2011), o livro somente ganha sentido e vida quando aberto pelo sujeito leitor. Esse

leitor nunca terá uma história completa, por mais que essa narrativa seja detalhada,

pois quem irá preencher lacunas e atribuir sentido é o leitor, assim texto e leitor

tornam-se íntimos e este último tem um papel fundamental.1

É importante destacar mais uma vez: não é só o livro que pode ser lido, aliás,

a questão é muito mais ampla, o livro é apenas um dos suportes possíveis para

realização da leitura, já que a leitura está em todas as manifestações do homem,

principalmente as culturais. É preciso considerar que a leitura digital demanda

inúmeras habilidades, além daquelas que o suporte do livro exige. Segundo

Santaella (2004), o leitor de hipermídia mobiliza mecanismos e habilidades muito

distintas do leitor do livro impresso, que também são distintas do espectador de

cinema ou televisão. Dessa forma, visualiza-se uma convergência de leituras e

1 Leitura implica atribuição de sentido pelo leitor com base em seu contexto histórico e cultural, suas vivências e experiências de mundo. Essa perspectiva está ligada à Estética da Recepção, surgida no final da década de 1960, que teve as primeiras ponderações, também sendo os seus fundadores, os autores Iser e Jauss. A Estética da Recepção atém-se aos efeitos de sentido que determinada obra pode provocar no leitor, ou seja, todo texto será interpretado e recebido de forma diferente, por leitores de tempos também diferentes, de acordo com Iser (1996) e Jauss (1979).

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possibilidades que, se bem aproveitadas pelo leitor, auxiliam o seu desenvolvimento

intelectual, ampliam seu conhecimento e incrementam sua participação e recepção

na cultura.

O estudo apresenta relevância pelo cunho social e educacional, pois se

abordam temas de interesse social e da escola. A pesquisa é desenvolvida na

terceira linha de estudo, Leitura, Linguagem e Ensino, do Mestrado em Letras –

Literatura Comparada (URI) Campus de Frederico Westphalen, que tem como

objetivo investigar a leitura, a formação do leitor e as diferentes manifestações

culturais em uma perspectiva crítica e transformadora da realidade social. Nesse

sentido, escolheu-se o campo dos Estudos Culturais como viés teórico, pela relação

que estabelece com a Literatura Comparada, por sua natureza interdisciplinar.

Assim, no campo dos Estudos Culturais, segundo Richard Johnson (2010),

deve-se produzir conhecimento útil. Dessa forma, não se trata de estudar por

estudar e sim repensar politicamente a leitura, no sentido de visão social, pois os

Estudos Culturais surgem como uma forma de estudar e conhecer a sociedade e as

diferentes manifestações em seu contexto e não fora dele, o que implica uma

relação com o social e político. Nesse campo de estudos, fica claro que os

processos culturais estão relacionados com o contexto e, assim, com as relações de

poder, formação de classe e as divisões na sociedade. Além disso, a cultura está

diretamente ligada ao poder e ao mesmo tempo em que ela atua como local de

diferença ela também é uma forma de luta de classe contra o poder autoritário.

O objeto de estudo deste trabalho é a Base Nacional Comum Curricular pela

perspectiva dos Estudos Culturais, mais especificamente a abordagem da leitura.

Nesse sentido, destaca-se a necessidade e relevância de tornar objeto de estudo

um documento que tem o objetivo de nortear os conteúdos e a finalidade do que é

ensinado nas escolas em nível nacional, com foco na formação leitora e cultural.

O trabalho apresenta pesquisa teórica bibliográfica seguida de um estudo

analítico de base documental. O estudo do documento, Base Nacional Comum

Curricular, está ancorado em uma perspectiva hermenêutica, já que esta possibilita

“[...] à educação fazer valer a polissemia dos discursos e criar um espaço de

compreensão mútua entre os envolvidos.” (HERMANN, 2002, p. 95).

Assim, amparando-se na hermenêutica de Gadamer (1999), cria-se um

horizonte de compreensão e interpretação do documento com base em um contexto

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de sentido (JÚNIOR; LOPES, 2014), ou seja, parte-se da revisão teórica para a

interpretação e compreensão do documento em forma de estudo analítico. O

amparo na perspectiva hermenêutica está relacionado ao fato de que esta procura

se afirmar como uma racionalidade, conforme Cruz (2010), pois surge de uma época

em que a procura pelo saber seguia procedimentos formais, não adequados às

ciências humanas. A hermenêutica busca, justamente, propor um exercício

metodológico adequado às ciências humanas.

O estudo analítico da Base Nacional Comum Curricular ocorre em sua

terceira versão, especificamente na parte que trata “A Etapa Do Ensino

Fundamental” na “Área de Linguagens”, das páginas 59 a 150. Esse documento, a

BNCC, “[...] é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e

progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver

ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 7).

A BNCC começou a ser elaborada em 2015, quando ocorreu a consulta

pública para a elaboração da primeira versão da Base. Em 2016, ela passa para o

papel, tendo em março a sua primeira versão e em junho debates para a segunda

versão. Ainda em 2016, em agosto, começa a ser redigida a terceira versão que é

entregue em abril de 2017 pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional

de Educação (CNE) para parecer e projeto de resolução sobre a BNCC. O estudo do

documento é realizado nesta terceira versão.

Esse documento torna-se referência obrigatória para a Educação Infantil e

Ensino Fundamental. Visa nortear o que é ensinado nas escolas em nível nacional,

sendo uma referência dos objetos de aprendizado para orientar a elaboração do

currículo escolar sem desconsiderar as diferenças sociais e regionais, sempre

focando nas competências e habilidades. Além da Educação Infantil e Ensino

Fundamental, a Base também engloba o Ensino Médio, mas a versão que trata

desse nível não é objeto de estudo desse trabalho.

Neste trabalho, de pesquisa bibliográfica com análise de base documental, os

Estudos Culturais embasam teoricamente e criticamente a pesquisa. Assim, no

primeiro capítulo, intitulado “Breves considerações sobre o problema da leitura no

Brasil”, se faz uma revisão do problema da leitura no Brasil ao longo de algumas

décadas; em seguida, “Os Estudos Culturais e a leitura”, realiza-se a

contextualização dos Estudos Culturais, seu percurso histórico desde o seu início na

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Inglaterra até a chegada na América Latina e o significado que assume a leitura

nesse contexto, considerada uma prática social; no terceiro capítulo, “O conceito de

cultura na perspectiva dos Estudos Culturais”, é realizada uma contextualização de

cultura, entendida como manifestação e espaço de luta e como processo que

protagoniza a produção de significados na sociedade; e no quarto capítulo, “Um

olhar sobre a BNCC: qual a concepção de leitura que embasa o documento?”, é

feita a leitura crítica da Base Nacional Comum Curricular, embasada politicamente

nos Estudos Culturais.

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1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA LEITURA

NO BRASIL

Em A formação da leitura no Brasil, Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1996),

abordam o histórico da leitura no Brasil. Segundo as autoras, o processo de

formação do leitor no país é inconcluso, visto que a mulher, o estudante, as minorias

vão entrando no processo de forma gradativa. Além disso, a formação de um público

leitor acontece tardiamente, se considerado todo o processo de colonização,

escravidão e o desenvolvimento tardio de instituições culturais e de ensino no

contexto brasileiro. Assim, as autoras afirmam que:

Vários fatores, menos ou mais, antes ou depois, criaram o espaço social necessário para transformar um certo número de pessoas associadas a certas práticas em leitores: o individualismo da sociedade burguesa, a visão de mundo antropocêntrica estimulada pela Renascença e difundida pela filosofia humanista, o progresso tecnológico que facultou o desenvolvimento da imprensa, a expansão da escola e do pensamento pedagógico apoiado na alfabetização, o fortalecimento de instituições culturais como a universidade, bibliotecas, academias de escritores. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996, p. 9).

Nesse contexto, o leitor passa a se emancipar e encena a situação de

libertação da sociedade brasileira e o encaminhamento a uma modernização social.

Isso não quer dizer que a “[...] leitura seja uma prática sólida no Brasil” (LAJOLO;

ZILBERMAN, 1996, p. 10), nem que as instituições responsáveis pela leitura estejam

livres de críticas, mas indica que avanços ocorreram e foram fundamentais para uma

consolidação do público leitor, com suas especificidades, no país. De acordo com as

autoras, mesmo que a leitura não seja algo sólido, “[...] o leitor é vitorioso.” (1996, p.

10), pois passa a demonstrar sua força e seus interesses.

Configurou-se um ambiente de leitores a partir do momento em que a escola

passa a se expandir e um grande número de pessoas são alfabetizadas, em parte

pelos interesses econômicos, com a expansão das indústrias e consolidação de

novas redes de relações sociais, pela necessidade de pessoas mais instruídas para

trabalhar em novos meios profissionais, como as indústrias mais modernas. Dessa

forma, a leitura, de alguma forma, sempre está atrelada socialmente a práticas

diversas, sejam elas culturais ou econômicas.

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No Brasil, o fortalecimento de uma sociedade leitora passa a se delinear com

mecanismos de produção e circulação de livros por volta de 1840, no Rio de Janeiro,

conforme Lajolo e Zilberman (1996). Esse processo continuou acontecendo, e

acontece até hoje, e durante a década de 70, durante o período militar, segundo as

autoras (1996), se intensificou e consolidou uma literatura mais voltada para

denúncias, as mais diversas, mas principalmente aquelas voltadas ao poder

autoritário, responsável por repressão, censura, perseguição política e mortes.

Segundo Rösing e Zilberman (2016) foi por volta das décadas de 1960 e 1970

que a leitura passou a ser um interesse de pesquisadores e educadores. Isso por

que, nessa época, vivenciava-se a “[...] idade do ouro” (2016, p. 8) para o livro e o

impresso. Mas com o aparecimento do computador e mais tarde o uso da internet e

o celular, já nos anos 1990, especulava-se o fim do livro, que perderia espaço para

os novos suportes. Passados muitos anos, com a evolução ainda mais acentuada

dos meios de comunicação, internet e celular, testemunhamos novas configurações

de textos, mas não o fim do livro e nem o fim da leitura.

Considerada como “[...] uma descoberta de mundo, procedida segundo a

imaginação e a experiência individual” (ZILBERMAN, 1984, p. 21), a leitura

proporciona ao sujeito conhecer o novo, através das possibilidades de viagem e

conhecimento de outras culturas, lugares e pessoas. Além disso, a leitura não

começa do nada, ela requer a entrega do sujeito leitor, por meio da imaginação e da

relação com os conhecimentos adquiridos e outras leituras já realizadas. Assim, o

ato de ler pode emancipar o sujeito e possibilitar uma interação com outras pessoas

e com o mundo que o cerca. Entretanto, é importante destacar que além de poder

emancipar, a leitura também pode alienar o sujeito, visto que leitores que usam a

leitura como forma de conhecimento para fins extremos, como para perpetuar

preconceitos, muitas vezes ditados por determinadas leituras ligadas ao fanatismo e

à intolerância, provavelmente irão seguir as ideias dessas leituras e promover

também a intolerância e o preconceito. Dessa forma, destaca-se que, embora a

leitura seja um ato necessário ao desenvolvimento do ser humano, ela sempre vai

depender da natureza crítica de quem interpreta, ou seja, do leitor e sua formação

cultural.

Segundo Zilberman “[...] a ação de ler caracteriza toda a relação racional

entre o indivíduo e o mundo que o cerca” (1984, p. 17), dessa forma a leitura efetiva

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a interação entre o sujeito e o mundo. Essa interação é necessária ao ser humano,

pois, caso contrário, o homem não seria um ser capaz de dialogar com seus

semelhantes e não teria a capacidade de conviver harmoniosamente em sociedade.

Michel Pêcheux (1988), na perspectiva da Análise do Discurso, assinala que a

leitura mobiliza do leitor muitas relações. Essa leitura produzida é resultado da inter-

relação do sujeito leitor com outros sujeitos e o texto funciona como mediador dessa

relação.

Assim, a faculdade de leitura está relacionada a essa capacidade que o ser

humano tem de usar a linguagem e, com isso, pensar e raciocinar. Mas, além disso,

o mais importante é o fato de que a leitura, a forma como se lê e não o que se lê,

pode fazer com que tenhamos condições de exercitar a alteridade, ou seja, de

sermos capazes de nos colocar no lugar do outro. Porém, isso vai depender da

forma como o sujeito lê, se fará uma leitura crítica e, consequentemente, ser um

leitor crítico e não um sujeito que encontra na leitura subsídios para a intolerância e

o preconceito. De acordo com Zilberman, há um “[...] vínculo íntimo e umbilical que

toda ação de ler estabelece não somente com o mundo dos objetos, mas

principalmente com a linguagem” (1984, p. 18), ou seja, ler está diretamente ligado à

linguagem. Sendo assim, as leituras podem ter sentidos diferentes para os leitores,

pois está associada à linguagem, que se manifesta de diferentes formas entre os

indivíduos.

Conforme afirma Kleiman (2004, p. 100) “[...] o texto é o ponto de partida e o

ponto de chegada no processo de aprendizagem da linguagem”, dessa forma, toda

atividade de aprendizagem da linguagem está relacionada ao texto, que é entendido

aqui de uma forma ampla, não apenas o escrito, mas tudo que manifesta o uso da

linguagem humana, seja falada, cantada, pintada, escrita, etc., conforme salientam

os Referenciais Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul, que afirmam que o

texto é:

Produto e materialização de uma atividade de linguagem. Um texto é um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência. Em outras palavras, um texto só é texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global, seja ele escrito, falado, pintado, cantado, dançado, etc. Ao mesmo tempo, só encontra tal unidade e ganha sentido na vinculação com um contexto. Assim, o texto é resultado da atividade humana interacional (discursiva), que se dá entre sujeitos com uma interação responsiva. (2009, p. 44).

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Do exposto, entende-se o texto como uma atividade ligada às ações humanas

em diferentes períodos históricos e em determinados contextos. Ele se materializa

de diferentes formas e só é entendido como tal quando pode ser interpretado em um

contexto de ação humana. Se o texto é considerado tudo que possui uma

significação, então a leitura também é algo amplo, compreendendo desde textos

escritos, telas pintadas, discursos políticos, músicas e tantas outras manifestações

culturais.

O desenvolvimento de atividades relativas a essas leituras pode tornar um

leitor proficiente e tornar possível a compreensão da sociedade em que se vive,

conforme destaca Zilberman, ao afirmar que “[...] a conquista da habilidade de ler é o

primeiro passo para a assimilação dos valores da sociedade” (1984, p. 16). Assim,

para entender como a sociedade se organiza, quais os valores nela presentes e a

forma com que acontecem as relações humanas é necessário saber ler de forma

crítica e atenta, para perceber as distintas manifestações expressas. Com isso, é

necessário estar atento ao fato de que a leitura também pode construir e perpetuar

estereótipos, sendo indispensável realizar leituras críticas e não se tornar passivo a

essas leituras.

Conforme exposto, a leitura está presente em todos os lugares da vida social,

requerendo novas e diversas habilidades, de acordo com o meio em que se

sistematiza. Essa ideia corresponde ao fato de que “[...] uma das funções da leitura

é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem caráter

universal”, de acordo com Harold Bloom (2001, p. 17). Essa constatação é possível

porque a leitura pode transformar os sujeitos leitores em seres mais críticos e

reflexivos e essa transformação está relacionada com questões que vão além do

sujeito que lê, mas ultrapassam barreiras, já que a leitura possibilita o conhecimento.

Mas essa transformação vai depender do contexto e da forma como a leitura é

conduzida, ou seja, é necessária uma mediação para que o sujeito leitor seja

conduzido à reflexão sobre o que está lendo e assim possa praticar sua criticidade e

buscar a transformação.

De acordo com Fregonezi, “[...] o professor que trabalha com leitura tem

necessidade de uma reflexão sobre o conceito de leitura” (2003, p. 35), ou seja, não

se trata apenas de levar um texto para a sala de aula, é necessário saber o que é

leitura para assim saber como abordá-la. O docente precisa ter em mente que leitura

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não se trata apenas da palavra escrita, mas engloba os domínios da palavra e da

imagem em movimento, dos gestos, das figuras, dos números, enfim, de sistemas

que abarcam ideologias e que estas movimentam realidades. A respeito disso, os

Referenciais Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul afirmam que a leitura

pressupõe o ato de

[...] (re)agir e posicionar-se criticamente frente a diferentes textos. Ler envolve combinar letras, sons, imagens, gestos, relacionando-os com significados possíveis, lançar mão do conhecimento prévio para participar da construção dos sentidos possíveis do texto, agir conforme a expectativa de leitura criada pelo contexto de comunicação e ser crítico em relação à ideologia implícita, reconhecendo que qualquer texto atualiza um ponto de vista, pois tem um autor. Para atribuir sentidos possíveis ao texto, o leitor precisa, simultaneamente, decodificá-lo, participar dele, usá-lo e analisá-lo. Essas ações ocorrem sempre de forma integrada, e não ordenada, no ato da leitura. Ensinar a ler ou formar leitores significa, portanto, criar oportunidades para a prática de todas essas ações desde as primeiras etapas escolares [...] (2009, p. 39).

Assim, a leitura envolve muitas facetas. Pois se trata de uma interação entre o

leitor e o texto e o reconhecimento de que todo texto foi escrito por alguém que

possui um ponto de vista, e escreveu a partir de seu locus enunciativo, de seu

contexto social, cultural e histórico. A identificação desse contexto e do ponto de

vista utilizado na escrita é crucial para a compreensão do texto em sentido amplo.

Atuar nessa perspectiva em sala de aula faz do professor um mediador de leitura e

não um mero reprodutor de conceitos e de textos pré-determinados.

Além disso, a leitura, quando leva em consideração as ponderações

mencionadas na última citação, está cumprindo seu papel de forma mais profícua,

pois dá importância a “combinar letras, sons, imagens, gestos, relacionando-os com

significados possíveis” e não considera apenas o texto escrito e com um só

significado. Destaca-se também o fato de que a leitura, nessa perspectiva, leva o

leitor a perceber que todo texto é elaborado por alguém, com determinado ponto de

vista. Assim, essa leitura pode estar carregada de ideologias, que devem se

reconhecidas pelo leitor. Além disso, o leitor é quem vai atribuir sentidos ao texto,

participando deste e realizando sua análise.

O processo de consolidação de um público leitor, a partir do século XVIII,

conforme destaca Zilberman (1984), foi um fenômeno cultural de grande proporção,

pois possibilitou que um grande número de pessoas passasse a ter condições de ler

e assim poderia converter-se em um mercado ativo e exigente. Nesse processo,

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também participa a escola, que é um dos atores, dentre outros, dos processos que

envolve a leitura. Nesse espaço, com o “[...] domínio generalizado da habilidade de

ler” (1984, p. 13) aparece a democratização do saber, que traz à tona a cultura de

massa, com leituras para o grande público.

Com a democratização do saber, Zilberman “[...] alerta contra os perigos da

leitura” (1984, p. 13), pois esta era considerada uma ameaça às classes dominantes,

porque se a maioria da população fosse leitora assídua as pessoas se tornariam

críticas, e isso não era do interesse daqueles que governavam. Se pensarmos em

linhas gerais, ainda hoje temos configurações parecidas, com políticas públicas que

pretendem limitar a realidade do jovem a apenas serem meros trabalhadores ao

saírem do Ensino Médio e não seres pensantes. Além disso, a isso se somam outras

tantas situações que, de certa forma, mantêm o povo brasileiro ainda pouco

instruído.

Dessa forma, a leitura é vista como uma ferramenta para a liberdade do

sujeito e funciona como uma arma para a libertação do preconceito, assim ela

assume sua “[...] índole emancipadora” e “[...] ponte para a liberdade e a ação

libertadora” (ZILBERMAN, 1984, p. 14). Ler, nesse sentido, não é um instrumento

apenas para adquirir uma informação, mas é uma forma de prazer, de

autoconhecimento, de liberdade, de crítica e de descobertas. Essa é a propriedade

que fornece ao ato de ler a sua importância. Porém, destaca-se que embora

considere-se que a leitura possa não ser sempre uma ação libertadora, vindo a

tornar-se, dependendo do leitor, uma prática de exclusão, conforme os Estudos

Culturais e suas proposições, a prática da leitura está constantemente atrelada à

cidadania e às modificações que através dela podem ocorrer. Assim, não se nega

que as afirmações de Zilberman (1984) são importantes, mas a perspectiva cultural

da leitura é a mais aceita neste trabalho, pois é abordada como uma prática social,

ligada ao contexto em que ela se desenvolve.

Ao abordar que “[...] a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e

a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1989, p. 13), o

autor nos faz refletir sobre a intensa relação entre a aprendizagem da palavra e o

próprio conhecimento de mundo. Nessa relação, a leitura da palavra apenas ocorre

após a leitura de mundo, após o sujeito conhecer o que o cerca. No momento em

que a leitura da palavra se torna algo conhecido, para sua continuidade e

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aperfeiçoamento é necessária a leitura de mundo, porque a leitura nunca é solitária,

ela está presente de forma viva no contexto.

Freire (1989) destaca a importância do ato de ler distanciando-se do momento

escritor e voltando-se para a infância, para expor a compreensão do ato de ler o

mundo desde criança. Nesse distanciamento, o autor destaca que as suas primeiras

leituras foram as coisas que percebia ao seu redor. Assim, os textos, as palavras e

as letras daquele contexto “[...] se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de

sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas

relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais” (p. 9). Nesse sentido,

percebe-se que a leitura primeira é a de mundo, após vem a da palavra e de textos.

Nessa primeira leitura, a relação que se estabelece entre as leituras e o contexto é o

início da própria compreensão de mundo e da realidade que nos cerca.

Destacando elementos de sua infância e seu percurso no ato da leitura, Freire

(1989) salienta que, enquanto criança, fazia leituras dos comportamentos dos

animais de sua casa, das conversas mais sérias das pessoas mais velhas, com suas

crenças, gostos, receios, valores e menções as almas penadas, motivo de medo

para o autor enquanto criança. Mas na medida em que foi conhecendo seu próprio

mundo e fazendo a leitura desse mundo os seus medos foram diminuindo. Isso nos

leva a pensar no momento que se inicia na leitura, que é muito antes da palavra

escrita, e não se encerra com a aprendizagem desta.

O que ocorre é que a leitura primeira é a do mundo que nos cerca e isso inclui

todas as manifestações possíveis de serem percebidas desde a infância. Com a

aprendizagem da escrita e da palavra, a leitura se amplia, mas nunca se acaba, pois

novas formas de leitura e objetos a serem lidos podem ser apreendidos ao longo da

vida, como uma nova música, uma obra de arte totalmente diferente do que já se

conhecia, uma manifestação cultural, etc. Nesse sentido, Freire (1989) aponta que:

[...] é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das

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mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. (p. 11).

Com o excerto, depreende-se que ler o mundo é uma condição necessária

para iniciar a leitura da palavra. Essa leitura de mundo na infância não prejudica em

nada o desenvolvimento do indivíduo, apenas o auxilia em seu percurso de

aprendizagem. No caso do autor, o apoio dos pais na sua aprendizagem foi um

ponto importante, em que ele aprendeu com eles as palavras, mas estas eram de

seu mundo, daquilo que a ele fazia sentido e continha significância.

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2 OS ESTUDOS CULTURAIS E A LEITURA

Os Estudos Culturais apontam que os processos culturais estão relacionados

com o contexto e, assim, com as relações de poder, formação de classe e as

divisões na sociedade. Além disso, a cultura está diretamente ligada ao poder e ao

mesmo tempo em que ela atua como local de diferença ela também é uma forma de

luta de classe e contra o poder autoritário.

No campo dos Estudos Culturais, segundo Richard Johnson (2010), deve-se

produzir conhecimento útil. Dessa forma, quando se pensa a partir dos Estudos

Culturais, objetiva-se repensar a leitura da perspectiva política. A partir de uma visão

social, os Estudos Culturais surgem como uma forma de estudar e conhecer a

sociedade e as diferentes manifestações em seu contexto e não fora dele, o que

implica uma relação com o social e o político.

Abordado como um campo sem fronteiras por Cunha (2009), os Estudos

Culturais não possuem um foco somente cultural, mas político também. Interessa

levar em consideração elementos determinantes da sociedade e da cultura de forma

engajada politicamente, tendo como base as diferentes manifestações culturais

presentes na sociedade. Assim, torna-se um campo que propicia uma análise de

diversos elementos, com um cunho social e político. Dessa forma, os Estudos

Culturais:

São capazes de produzir e avalio que vêm produzindo perguntas, questionamentos, desafios e estímulos às Letras – aos nossos objetos, às nossas práticas, aos nossos sistemas de classificação e aos valores que os formam -, que não deveriam se considerados, em nenhum grau,

desprezíveis. (CUNHA, 2009, p. 22).

Conforme o exposto, os Estudos Culturais vêm produzindo e podem produzir

ainda mais perguntas e desafios às Letras. Isso nos leva a perceber que a área

propõe o desafio, a busca por novos horizontes e o impulso do trabalho voltado às

aspirações políticas e sociais. Assim, torna-se um meio para se pensar o próprio

trabalho que se faz nas Letras, mais especificamente com a leitura, voltando-se não

só para alguns textos, mas para as mais variadas manifestações culturais dos

diferentes grupos sociais no que diz respeito às linguagens.

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2.1 Uma introdução aos Estudos Culturais

O campo dos Estudos Culturais surgiu como uma invenção britânica, de

acordo com Escosteguy (2010) e se difundiu pelo mundo. Não se trata de uma

disciplina, mas de uma área, um campo, em que várias questões e fatores interagem

tendo como foco principal os aspectos culturais da sociedade. Seu início é datado

entre os anos 1950 e 1960, e seus precursores, conforme Escosteguy (2010), foram

Richard Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson, os quais escreveram três

textos iniciadores e essenciais ao início dos Estudos Culturais: As Utilizações da

Cultura (1957); Cultura e Sociedade (1958) e Formação da Classe Operária Inglesa

(1963) respectivamente.

Esse campo surge, segundo Escosteguy (2010), de forma organizada,

através do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Inglaterra. Após os três

precursores citados, “Os Estudos Culturais foram consolidados e popularizados

pelos estudos do inglês Stuart Hall que dirigiu o Centro de Estudos Culturais

Contemporâneos entre 1969 e 1979”, de acordo com Cunha (2008, p. 2).

Escosteguy (2010) assinala que Stuart Hall, na direção do Centro, incentivou

o desenvolvimento dos estudos de campo feitos em contato direto e prolongado com

a cultura dos grupos sociais, análises dos meios de comunicação de massa e

investigações de práticas de resistência dentro de subculturas. Considerada no

princípio, por muitos, como sendo mais política do que analítica, a proposta dos

Estudos Culturais desde o seu início deixa clara a sua intenção de não ser apenas

uma forma de análise, mas sim um instrumento de luta social e denúncia através

dos meios culturais. Enquanto movimento cultural e social:

Mais tarde, no período pós-68, os Estudos Culturais transformaram-se numa força motriz da cultura intelectual, de esquerda. Assim, enquanto movimento intelectual tiveram um impacto teórico e político que foi além dos muros acadêmicos, pois, na Inglaterra, constituíram-se numa questão de militância e num compromisso com mudanças sociais radicais. (ESCOSTEGUY, 2010, p. 142).

Além de seu cunho social de denúncia e luta, logo após o seu surgimento, os

Estudos Culturais transformaram-se em um mecanismo de busca por

transformações da cultura intelectual e de esquerda. Tornaram-se um campo com

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compromissos com o social e na busca por mudanças na sociedade. Também de

acordo com a autora (2010), aproximaram-se do campo das práticas sociais e dos

processos históricos, preocupando-se com os produtos da cultura popular e dos

meios de comunicação de massa, como jornal, televisão e rádio, que sinalizavam os

rumos da cultura contemporânea. Escosteguy afirma ainda que:

Em primeiro lugar, deve-se acentuar o fato de que os Estudos Culturais devem ser vistos tanto do ponto de vista político, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto sob ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um novo campo de estudos. Sob o ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser vistos como sinônimos de correção política, podendo ser identificados como a política cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimento. Sob a perspectiva teórica, refletem a insatisfação com os limites de algumas disciplinas, propondo, então, a interdisciplinaridade. (2010, p. 136-137).

Nesse sentido, adentrar no campo dos Estudos Culturais significa,

politicamente, buscar conhecer os diferentes movimentos sociais, mas em uma

perspectiva de mudança, luta por igualdade de direitos e deveres e denúncia social.

Teoricamente, significou a busca pela construção de um campo de estudo novo, que

abarcasse tudo o que fosse necessário para tratar de cultura e que estivesse

diretamente ligado ao social. Além disso, propunha a realização da

interdisciplinaridade, visto que abordar disciplinas isoladas faz o trabalho ser

fragmentado e não contempla todos os anseios culturais, sociais e políticos. Isso

leva a um trabalho que articule os conteúdos estudados com as relações de poder

na sociedade, conforme afirma Cunha:

O exame das práticas culturais do ponto de vista de sua articulação com as relações de poder, o esforço para teorizar e apreender as mútuas determinações entre formas culturais e forças históricas, a prioridade da intervenção cultural sobre a crônica das mudanças culturais são vontades dos Estudos Culturais que começam a ter ou vêm tendo repercussão na abordagem da literatura. (2009, p. 24).

Conforme o fragmento acima, a cultura está articulada com as relações de

poder. Assim, a literatura não pode desconsiderar este fato, considerando, além

disso, as diversas mudanças ocorridas na sociedade. Dessa forma, a cultura é

analisada em uma perspectiva mais engajada socialmente. Isso também ocorre com

a leitura, que é a base das manifestações culturais. Tem-se nesse contexto, a leitura

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e a cultura em uma perspectiva social e voltadas para a realidade em suas

diferentes relações de poder.

Expõe-se, acima, que a literatura não pode desconsiderar as relações de

poder, as mudanças sociais e as diferentes determinações de cultura. Isso se

relaciona diretamente com a noção que se tem de leitura, uma vez que tudo pode e

deve tornar-se objeto de leitura por um sujeito atento e crítico. Dessa forma, a leitura

não pode ser vista através de um olhar ingênuo, mas realista, reflexivo e crítico, já

que pode sinalizar, pela sua precariedade, alienação, ou, pela sua desenvoltura,

libertação, com a apropriação de forma engajada e humanizada.

O poder traz à mente imediatamente aquele que o possui, sendo uma pessoa

ou um grupo, e também uma força física ou moral, geralmente vinculada ao político.

Porém, ele está presente nas relações humanas, de acordo com Foucault (2004), ao

descrever que este só funciona em cadeia, em rede. Os indivíduos sempre estão em

posição de exercer ou sofrer sua ação. Sendo algo que passa pelos indivíduos, o

que existe são relações de domínio. Com seus mecanismos, ele tem força e controla

os indivíduos, mas para exercer-se nesses mecanismos ele se organiza em torno de

um saber e esse saber atua como uma disciplina a ser seguida pelas pessoas, que

assim sempre estão nas relações de poder.

Concebidos desde o princípio como um campo interdisciplinar, conforme

Schulman (2010), os Estudos Culturais são difíceis de definir de forma sucinta e

isso, segundo a autora, era intencional para Hall. Nesse sentido, o campo orgulha-se

de não ter que depender e seguir nenhuma doutrina ou método previamente

instituído. Pelo contrário, são concebidos “[...] como sendo altamente contextuais –

como um modo de análise variável, flexível, crítico” (2010, p. 180). Investigam uma

ampla variedade de questões relacionadas à cultura e utilizam os mais variados

meios, sendo, por isso, um campo com a potencialidade de relacionar o textual,

cultural, social e político e realizar uma análise da sociedade através de mecanismos

culturais.

Já foi destacado que os Estudos Culturais propõem a interdisciplinaridade

para acabar com o limite entre disciplinas, de acordo com Escosteguy (2010). Nesse

sentido, teorizamos a interdisciplinaridade, sobre o que Hilton Japiassu (1976, p. 40)

afirma “[...] nada mais há que nos obrigue a fragmentar o real em compartimentos

estanques ou em estágios superpostos, correspondendo às velhas fronteiras de

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nossas disciplinas”, pois hoje não há mais conhecimentos em gavetas, fechados e

fragmentados.

É importante situar os Estudos Culturais como uma área que preza pela

interdisciplinaridade, o que nos leva a refletir sobre a complexidade dos fenômenos

que se estabelecem nesse campo. Quanto a isso, é interessante destacar o que

afirma Edgar Morin (1998), ao abordar a complexidade como um estudo para romper

com o pensamento simplificador e fragmentado em disciplinas isoladas, sem

questionamentos sobre esse isolamento, de acordo com Salles e Matos (2017).

Morin (1998) traz uma contribuição significativa às áreas do conhecimento, tendo

como princípio o pensamento que liga os saberes, não os tratando como lacunas.

O necessário é um engajamento, segundo Japiassu (1976), na pesquisa das

aproximações, interações e dos métodos comuns às diferentes e diversas

especialidades, que levem a um trabalho que abarque todas as possibilidades e faça

todas as relações possíveis. Nesse sentido, Douglas Kellner (2001) afirma que os

Estudos Culturais combinam teoria social, análise cultural, história, filosofia e

intervenções políticas, superando, assim, a divisão em blocos de trabalho.

Japiassu (1976) destaca que a interdisciplinaridade se apresenta na forma de

um tríplice protesto: primeiro, contra um saber fragmentado em diversas

especialidades, em que cada uma se fecha e, assim, foge do verdadeiro

conhecimento; segundo, contra o divórcio existente entre a universidade,

compartimentada, dividida e setorizada, e a sociedade, dinâmica e concreta, mas

que ao mesmo tempo limita os indivíduos a funções repetitivas como forma de

alienação e impedindo-os de desenvolverem suas potencialidades; e em terceiro,

contra o conformismo e as ideias impostas ou recebidas. Nesse sentido, entende-se

que, para o autor, a interdisciplinaridade objetiva romper as barreiras entre as

disciplinas, encorajar os estudos sem ideias impostas e incentivar os indivíduos a

atuar sem medo de usar suas potencialidades.

De acordo com Fazenda (1994), a interdisciplinaridade não é uma categoria

de conhecimento, mas sim uma categoria de ação, ela nos conduz a um exercício

de conhecimento: o perguntar e o duvidar. Além disso, “[...] a interdisciplinaridade é

a arte do tecido que nunca deixa ocorrer o divórcio entre seus elementos, entretanto,

de um tecido bem traçado e flexível” (p. 29) e ela se desenvolve a partir do

desenvolvimento das próprias disciplinas. Sem abordar motivações, a

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interdisciplinaridade opõe-se a tradicional organização do saber de forma

fragmentada e aborda uma reflexão sobre as relações de interdependência e

conexões entre os saberes em disciplinas. Dessa forma:

[...] a interdisciplinaridade se define e se elabora por uma crítica das fronteiras das disciplinas, de sua compartimentação, proporcionando uma grande esperança de renovação e de mudança no domínio da metodologia das ciências humanas. Poderíamos dizer que o objetivo ideal a ser alcançado não é outro senão o de descobrir, nas ciências humanas, as leis estruturais de sua constituição e de seu funcionamento, isto é, seu denominador comum. (JAPIASSU, 1976, p 54).

Fazenda destaca que a condição primeira para efetivação da

interdisciplinaridade é o desenvolvimento da sensibilidade, em que se tenha uma

formação “[...] que pressuponha um treino na arte de entender e esperar, um

desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação.” (2002, p. 8). A questão

metodológica é indiscutível, mas ela não é um fim, já que a interdisciplinaridade não

se ensina ou se aprende, mas se vive, se exerce. Ou seja, é necessário que o

sujeito disponha de condições no mundo que o rodeia para que aconteça o

desenvolvimento da sensibilidade e o impulso à imaginação.

A interdisciplinaridade responde a uma série de demandas surgidas ao longo

dos tempos, de acordo com Japiassu (1976). Elas podem ser destacadas como um

auxílio à ciência, pela necessidade de criar um fundamento ao surgimento de novas

disciplinas, uma reivindicação estudantil contra o saber cortado, pois a realidade é

global é multidimensional, a precisão por uma formação profissional que não seja

voltada apenas para uma especialidade e a demanda social por novos temas de

estudo que não sejam fechados nas disciplinas já existentes. Pensando assim, o

estudo cultural “[...] opera com uma concepção interdisciplinar que utiliza teoria

social, economia, política, história, comunicação, teoria literária e cultural, filosofia e

outros discursos teóricos” (KELLNER, 2001, p. 42).

Os Estudos Culturais são uma invenção britânica e, quando abordados na

América Latina, passam a ter uma configuração própria, sendo chamados inclusive

de Estudos Culturais latino-americanos, de acordo com Eduardo Restrepo (2015). O

autor afirma que os Estudos Culturais não chegaram ao contexto latino-americano e

então passaram a ser estudados e incorporados aos estudos locais. O que ocorreu

foi que muito antes de chegarem à América Latina, esses estudos já estavam sendo

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realizados aqui, com uma configuração própria do contexto local. O teórico destaca

a presença de textos e autores de finais do século XIX e início do século XX, que já

abordavam a necessidade de pensar a partir do contexto local, nas diferenças, nas

necessidades nacionais, na modernização, etc. Dessa forma, pode-se afirmar que:

Os Estudos Culturais surgiram como num campo interdisciplinar no mundo anglofalante nos anos cinquenta e sessenta, como parte de um movimento de democratização da cultura. Na América Latina, o uso do conceito de Estudos Culturais é muito mais recente. Ainda que parta da tradição britânica, também tem sua origem em uma tradição que remonta à ensaística do século XIX (SZURMUK; McKEE IRWIN, 2009, apud

RESTREPO, 2015, p. 22).

Com isso, o ponto de partida são as ideias britânicas, mas a configuração é

particular, ou seja, é do contexto latino-americano, em que as inquietações a

respeito da democratização da cultura remontam origens desde o final do século

XIX. Restrepo (2015) destaca que alguns autores “[...] consideram como parte dos

Estudos Culturais algumas intervenções como a gestão cultural e qualquer tipo de

articulação com movimentos sociais (sobretudo com os movimentos étnicos)” (p. 22),

assim, trata-se de estudo voltado para o social, em que se pensa a realidade e

articula-se com os anseios sociais.

Uma preocupação latente é a de não apresentar os Estudos Culturais latino-

americanos como uma extensão ou cópia dos estudos britânicos dos anos sessenta

ou estadunidense dos anos oitenta e noventa. Não os deixar reduzidos a uma forma

tardia em outras partes do mundo, conforme Restrepo (2015), pois muito antes

desses estudos na Europa e Estados Unidos, muitos latino-americanos já estavam

fazendo algum tipo de Estudos Culturais. Muitos desses autores afirmam que eram

praticantes desse tipo de estudo, muito antes da existência da etiqueta no mundo.

Nesse sentido, Martín-Barbero destaca que:

Nós fazíamos Estudos Culturais há muito tempo. [...] Não comecei a falar de cultura porque chegaram a mim coisas de fora. [...] A gente não se ocupava dos meios: estávamos na festa, na casa, na cantina, no estádio. O primeiro que abriu para mim certa contextualização foi Gramsci, e logo descobri, numa viagem de estudos, Thompson, Raymond Williams, Richard Hoggart, os três pais dos Estudos Culturais ingleses. Conheci-os em fins dos anos setenta. […] Fazíamos Estudos Culturais muito antes que esta etiqueta aparecesse [...] A América Latina não se incorporou aos Estudos Culturais quando a etiqueta virou moda; a história, aqui, é muito distinta (MARTÍN-BARBERO, 1996, p. 4-5).

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Os Estudos Culturais não foram uma moda incorporada pelos intelectuais

latino-americanos. A preocupação destes com as questões culturais é anterior à

existência da etiqueta do nome dos Estudos Culturais. O interesse por questões

sociais do seu próprio lugar já era algo praticado no contexto local, mas de forma

diferente. Porém, não se pode confundir estudos sobre cultura com Estudos

Culturais, pois “[...] não é suficiente que se fale de cultura – nem quando se pensa a

cultura em suas articulações políticas e em uma posição que vai além das

disciplinas – para que a abordagem seja inscrita nos Estudos Culturais”

(RESTREPO, 2015, p. 23), porque não se pode confundir com pensamento crítico

cultural.

Assim, Follari (2003) adverte que antes de os Estudos Culturais chegarem até

a América Latina o que na realidade se praticava aqui era estudo sobre a cultura,

feitos pelos mesmos autores que depois se vincularam aos Estudos Culturais. O que

ocorria é que se falava de cultura desde antes, na visão do autor, mas de outra

maneira. Com o uso da etiqueta, Estudos Culturais, passou a se pensar e estudar a

questão cultural, política e econômica com um pensamento crítico, por isso:

O uso de “Estudos Culturais” não foi – tampouco é – casual. Reflete uma urgência cada vez mais evidente nos países andinos de nomear um campo intelectual dirigido ao renovado pensamento crítico inter e transdisciplinar, às relações íntimas entre cultura, política e economia. (WALSH apud RESTREPO, 2015, p. 28).

Assim, é um campo que estuda a cultura vinculada com outros fatores sociais.

Esse campo apresenta uma configuração própria na América Latina, com seus

anseios e relações. Escosteguy (1998) destaca que os Estudos Culturais se

encontraram com movimentos sociais, como o feminismo e aqueles relacionados às

questões de gênero, raça e etnia. É um campo que busca no social seu objeto de

estudo, estudando a cultura relacionada às questões sociais, já que muitos textos

culturais populares estão implicados nos conflitos políticos e sociais, conforme

Kellner (2001).

Além disso, Escosteguy disserta que os Estudos Culturais contribuem para

repensar e revisar o próprio sentido de comunicação. Esta deve ser vista como um

“[...] processo sociocultural básico onde se destaca a ação de todos os sujeitos

envolvidos na produção de sentido” (2006, p. 13). Com isso, não é visualizar a

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comunicação focando apenas nas tecnologias em termos instrumentais, mas “[...]

compreender a comunicação como constitutiva de práticas sociais, portanto, da

estruturação da sociedade” (2006, p. 13). Dessa forma, o olhar para o campo da

comunicação também merece uma investigação que reconheça as práticas sociais

envolvidas no processo e um exame das práticas socioculturais mediadas pelas

tecnologias de comunicação.

Em se tratando de objeto de estudo Ríos (apud COSTA, SILVEIRA E

SOMMER, 2003) afirma que qualquer coisa que possa ser lida como um texto

cultural e que apresente um significado simbólico sócio-histórico que acione

formações discursivas pode ser estudado no viés dos Estudos Culturais. Na questão

da educação os Estudos Culturais apresentam uma aproximação, visto que esta

também é uma área de militância e de atuação política, de acordo com Costa,

Silveira e Sommer (2003). Os autores destacam que no Brasil as contribuições mais

importantes dos Estudos Culturais em educação são as que possibilitam:

[...] a extensão das noções de educação, pedagogia e currículo para além dos muros da escola; a desnaturalização dos discursos de teorias e disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilidade de dispositivos disciplinares em ação na escola e fora dela; a ampliação e complexificação das discussões sobre identidade e diferença e sobre processos de subjetivação. Sobretudo, tais análises têm chamado a atenção para novos temas, problemas e questões que passam a ser objeto de discussão no currículo e na pedagogia. (p. 56).

Com base no excerto acima, percebe-se que a escola não pode estar focada

apenas nos acontecimentos dentro de seus muros, que os discursos e teorias

devem ser vistos criticamente e relacionados com o contexto social, as questões

polêmicas precisam ser levadas para a escola e pensadas, discutidas para reflexão.

A vivência social precisa fazer parte da escola. As questões que norteiam a vida

social e política dos sujeitos devem ser estudadas para serem conduzidas à reflexão

no espaço escolar. Isso faz surgir novos temas, que estão mais próximos da

realidade dos estudantes. Wortmann, Costa e Silveira (2015) também destacam a

necessidade de expansão dos Estudos Culturais em educação no Brasil, visto que

suas contribuições são importantes e tornam-se indispensáveis para uma educação

de fato comprometida e relacionada com o verdadeiro social e cultural dos

estudantes.

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2.2 A leitura na perspectiva dos Estudos Culturais

Os Estudos Culturais tratam a leitura como um meio de prática social e

inclusão, mas convém lembrar sempre que a leitura é, antes de tudo, fruição. Assim,

primeiramente apresenta-se a noção de leitura que norteia nosso estudo e a seguir

as relações entre leitura e o campo dos Estudos Culturais.

Conforme Barthes (1987), todo texto que se apresenta ao leitor não está

completo, ele não existe sozinho, mas precisa da atuação do leitor, com seu

conhecimento de mundo e suas experiências prévias de leitura, para atribuir-lhe

sentido. Nesse sentido, entende-se que o que o leitor lê foi escrito com prazer pelo

escritor, mas isso não assegura que o leitor tenha o mesmo prazer, pois tal leitor

está em um espaço de fruição, que é diferente do espaço do escritor. Com isso, cria-

se a possibilidade “[...] de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute:

que os dados não estejam lançados, que haja um jogo” (p. 9). Assim, o texto

possibilita ao leitor a atribuição de sentido, a relação com outras leituras e

experiências, como um jogo, em que o leitor tem o papel fundamental. O autor

afirma que:

[...] não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação à integridade do texto; a própria avidez do conhecimento nos leva a sobrevoar ou a passar por cima de certas passagens (pressentidas como “aborrecidas”) para encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota (que são sempre suas articulações – o que faz avançar a revelação do enigma ou do destino): saltamos impunemente (ninguém nos vê) as descrições, as explicações, as considerações, as conversações. (BARTHES, 1987, p. 17).

Do exposto, entende-se que o leitor, com sua experiência e expectativa, fará

uma leitura integral ou passará algumas partes com maior ou menor intensidade e

atenção. Isso se relaciona com os interesses do leitor ou com seu nível de

conhecimento e entendimento do que está lendo. Esta situação acontece pela busca

do leitor pelas partes que lhe interessam, que lhe satisfaçam, que são revelações.

Com isso o leitor deixa de lado explicações e considerações que desconsidera, não

vê como importantes. Essa postura do leitor aponta o seu papel na atribuição de

sentidos aos textos.

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A leitura apresenta dois regimes, segundo Barthes (1987), uma vai direto,

depressa, ignorando os jogos da linguagem, a outra não deixa passar nada, é

aquela que se faz com aplicação e arrebatamento, focando em cada ponto do texto

e a ele conferindo significância. O autor destaca que este segundo regime de leitura

é o que convém ao texto moderno, pois não é devorando que se alcançará o prazer

da leitura, mas sim “[...] aparar com minúcia, redescobrir, para ler esses autores de

hoje, o lazer das antigas leituras: sermos leitores aristocráticos” (p. 20). Ou seja, é

necessário desfrutar da leitura, com calma, para atribuir sentido e ter o prazer em

estar lendo um texto.

As leituras proporcionam prazer, adoração, raiva, entre outros tantos

sentimentos. Cada indivíduo terá sua percepção, e ela sempre será única, pois está

relacionada à expectativa de cada leitor. Mas duas categorias de textos são

apontadas por Barthes para indicar sensações distintas e que podem ser sentidas

pelos leitores de forma compartilhada, mas nunca igual, são elas:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1987, p. 21-22).

De acordo com a passagem, apreende-se que o texto de prazer é aquele que

não rompe barreiras, mas sim contenta o leitor, geralmente ele é buscado pelo leitor,

que o procura pelo prazer da leitura, ele vem da cultura e não tira o leitor de sua

zona de conforto. Já o texto de fruição desconforta, tira o leitor de sua zona de

conforto e lhe causa até ira, pois mexe com seus gostos e desejos e faz pensar e

refletir sobre questões que ao leitor podem parecer imutáveis, mas não são.

Em relação ao texto Barthes (1987) afirma que “[...] não existe por trás do

texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um

sujeito e um objeto”. (p. 24), ou seja, a relação entre escritor e leitor não é de

submissão de um ao outro, mas uma troca, em que o leitor dará sentido ao que lê.

Nessa relação, a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem, conforme o

autor.

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Assim, tem-se a escritura como uma concepção de leitura de uma relação

estabelecida entre texto e o leitor, em que o texto não tem origem nem fim, ele está

aberto para cada leitor, pois o texto apresenta pluralidade, não há como decifrá-lo.

Sobre a relação entre leitor e escritor, Barthes (2004) destaca que para nascer o

leitor, morre o autor, com isso a escritura começa quando o autor é desligado. O

autor é aquele que escreve e sofre com o texto e morre, já o escritor é aquele que

nasce com o texto. Assim, não é o autor que fala, mas sim a linguagem, já que o

texto nada mais é do que “[...] a lista aberta dos fogos da linguagem” (BARTHES,

1987, p. 25). Sobre o texto, o autor disserta que:

Alguns querem um texto (uma arte, uma pintura) sem sombra, cortada da “ideologia dominante”; mas é querer um texto sem fecundidade, sem produtividade, um texto estéril [...]. O texto tem necessidade de sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de sujeito: fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias; a subversão deve produzir seu próprio claro-escuro. (1987, p. 44).

Todo texto, seja escrito ou não, apresenta uma sombra, que é a

representação, as ideologias, os sujeitos, etc. Isso é necessário para um texto com

profundidade, com conteúdo e com algo para o sujeito leitor pensar, refletir, fazer

relações e relacionar com outros textos já lidos e nos quais contêm muitas

ideologias. Barthes (1987) entende que não existe uma ideologia, mas muitas

ideologias. Segundo o autor, há a ideologia dominante e muitas outras. Estas outras

ideologias, na falta de outra opção, podem ou não tomar de empréstimo a ideologia

dos que dominam. Dessa forma, pode-se afirmar que a ideologia dominante é

sempre aquela que concentra as ideias dos que dominam.

Por outro lado, Gramsci (2011) apresenta outra concepção de ideologia,

abordando que diferentes classes sociais também possuem suas ideologias, ou

seja, a classe dominada pode apresentar igualmente a sua ideologia. Sendo assim,

os diferentes grupos sociais presentes na sociedade possuem pessoas pensantes

politicamente e que possuem projetos de vida e sociedade. Dessa forma, a ideologia

para Gramsci faz parte da realidade concreta dos grupos sociais, havendo algumas

mais críticas e outras mais conservadoras. A ideologia pode apresentar uma função

de organização na vida social de diversos grupos na sociedade, principalmente nas

classes mais populares, ela é um aspecto de dominação de classe, sendo

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instrumento para a classe dominante garantir seu poder e para as classes populares

tomarem consciência de sua subordinação e de que são um grupo com ideias

compatíveis e, portanto, também possuem sua ideologia, de acordo com Gramsci

(2011).

O interesse pelo autor dos textos sempre foi grande, em detrimento do

interesse pelo leitor. Tanto isso é verdade que “[...] procura-se estabelecer o que o

autor quis dizer e de modo algum o que o leitor entende” (BARTHES, 2004, p. 28). É

comum encontrar em livros e materiais didáticos a menção a esse questionamento,

do que o autor quis dizer. O leitor, assim, fica em segundo plano, quando na

verdade, ele é o mais importante, pois é ele que dá sentido ao lido e faz existir a

leitura, por ser o seu leitor. Barthes aponta que deveria ser falado em “texto-leitura”

(2004, p. 27), pois ele só existe se alguém o ler, um leitor, se existir o ato da leitura.

Porém, é natural uma supervalorização do autor, do lugar de onde partiu a

obra, e uma censura ao lugar para onde vai a obra, que é a leitura. Isso faz existir

uma ideia de que o autor é proprietário da obra, que tem direito sobre o leitor. Este é

canalizado para uma saída, um sentido, segundo Barthes (2004). O leitor associa o

texto com outras ideias e significações, o que pode ser diferente de um leitor para

outro. Por isso, não tem como se pensar em “‘O texto apenas o texto’, dizem-nos,

mas apenas o texto, isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste

romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que nem o

dicionário nem a gramática podem dar conta” (p. 28).

Quando se propõe a leitura, o que de imediato vem à mente é o texto escrito,

mas, conforme Barthes (2004), o verbo ler é tão transitivo que chega a ser saturado

de objetos diretos, pois:

[...] leio textos, imagens, cidades, rostos, gestos, cenas, etc. Esses objetos são tão variados que não posso unificá-los sob nenhuma categoria substancial, nem mesmo formal; apenas posso encontrar neles uma unidade intencional: o objeto que eu leio é fundado apenas pela minha intenção de ler; ele é simplesmente: para ler (p. 32).

Nesse sentido, leitura é toda prática de relações em que se possibilita

atribuição de sentido, que estimula o pensamento e o desejo de conhecer. Ler não

deve ser um ato por obrigação, algo que se considera sempre igual ou unificar em

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categorias. Não. Ler é algo dinâmico e vivo, que pode ser realizado em tantos

“objetos diretos” (BARTHES, 2004, p. 32) possíveis e de interesse das pessoas.

Assinala Proust (2016) que “Se o gosto pelos livros aumenta com a

inteligência, seus perigos, como vimos, diminuem com ela” (p. 47), ou seja, a leitura

não será prejudicial, ou o risco será menor, nos sujeitos com inteligência. Isso

acontece pelo fato de que uma pessoa com maior grau de discernimento das

situações sabe utilizar a leitura às suas atividades e necessidades pessoais, fazendo

dela uma nobre distração e também uma enobrecedora atividade.

O ato de ler pode parecer uma atividade que traz o desinteresse, pelas

inúmeras paradas que se faz, o olhar para o lado, etc., mas essa atitude pode

significar, de acordo com Barthes, um apaixonar-se pelo lido, em que se levanta a

cabeça, mas se volta ao texto, já que “É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa,

pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre” (2004, p.

26).

Proust (2016), ao abordar a leitura, retoma as palavras de Descartes, para

quem “A leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as pessoas mais

virtuosas dos séculos passados que foram seus autores” (2016, p. 24). Nesse

sentido, ler não é uma atividade solitária, pois é possível ter contato com outras

pessoas, mesmo que não seja presencialmente, conhecer lugares, costumes,

culturas diferentes, aprender coisas novas e interessantes.

Conforme Proust, “Enquanto a leitura for para nós a iniciadora cujas chaves

mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta de moradas em que não

conseguiríamos penetrar, seu papel em nossa vida será salutar” (2016, p. 35). A

leitura faz despertar em cada um de nós habilidades que sem ela não seriam

possíveis de serem alcançadas. Ler, independente do que for, nos fortifica e nos

proporciona desafiarmos a nós mesmos na busca por novas experiências e

conhecimentos.

Proust traz as palavras de Ruskin para tratar sobre a leitura do texto escrito.

Este disserta que não temos condições de escolher quem gostaríamos de conhecer.

Certas experiências são cobiçadas por muitas pessoas, como conversar alguns

minutos com uma autoridade, ouvir um poeta famoso ou fazer uma pergunta a um

profissional da ciência, mas serão experiências rápidas, passageiras e raras. Porém,

em bibliotecas podemos dizer que “[...] reis e homens de Estado esperam

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pacientemente não para conceder uma audiência, mas para obtê-la” (2016, p. 25),

ou seja, na leitura podem-se realizar objetivos de ter experiências não possíveis de

serem vivenciadas fora das páginas do livro. Ao fazer isso, é possível aprender, ter

novas experiências, ouvir o que reis e homens de Estado têm a dizer, etc.

Tendo em vista os pressupostos tratados no subcapítulo anterior, a respeito

dos Estudos Culturais, reflete-se sobre o papel da leitura e como ela se desenvolve

nesse campo. Visualizou-se que é um campo rico em possibilidades de estudo,

assim, também a leitura nessa perspectiva ganha novas proporções, na medida em

que abre horizontes e reforça seu poder de transformação.

Johnson, ao abordar o “texto”, declara que este não pode ser mais estudado

por ele próprio e nem por efeitos sociais que pensa que ele produz, mas sim “[...]

pelas formas subjetivas ou culturais que ele efetiva e torna disponíveis” (2010, p.

75). Para o autor, o texto é apenas um meio nos Estudos Culturais, é um material

bruto que fornece muito a ser abstraído. Dessa forma, o objeto último não é o texto,

e sim “[...] a vida subjetiva das formas sociais em cada momento de sua circulação,

incluindo suas corporificações textuais” (2010, p. 75).

Pensando a leitura em uma perspectiva em que o texto em si não é o mais

importante e sim as relações que estabelece e as formas culturais que aborda,

Gomes (2010) afirma que o leitor tem um papel de destaque e a leitura faz parte de

um processo de formação de cidadania, incluindo abordagens culturais e

especificidades do texto. Assim, a leitura, na perspectiva dos Estudos Culturais,

torna-se eficiente quando acrescenta aos elementos estéticos uma reflexão sobre a

prática inclusiva e aceitação da diferença e diversidade cultural, de acordo com Hall

(2006). Gomes ainda afirma que:

Tanto a memória cultural como a recepção do leitor crítico são abordados como partes do processo de leitura. O leitor passa a ser um co-autor quando aplica às representações literárias as novas abordagens de pertencimento das identidades pós-modernas. (2010, p. 31).

Conforme o exposto, a memória cultural e a recepção do leitor também são

parte do processo de leitura, com isso a leitura não é um processo isolado, mas faz

parte de uma conjuntura social. Nessa conjuntura, o leitor é um sujeito ativo quando

aplica sua configuração de identidade às leituras que faz.

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Costa, Silveira e Sommer (2003) destacam que, para Stuart Hall, a questão

linguística é um ponto importante a ser pensado, visto que para os Estudos Culturais

é necessário pensar as questões da cultura através das metáforas da linguagem e

da textualidade. Assim, os discursos precisam ser lidos com atenção para que não

escape nada ao pensamento crítico, pois eles podem esconder significações

importantes. Isso porque a própria noção de texto e textualidade ganha uma

configuração de fonte de significados amplos e multiplicidade dos significados.

Quanto aos locais em que ocorre a educação, é possível afirmar que ela se

dá em diferentes espaços, sendo a escola um deles. Isso porque, também somos

educados por imagens, filmes, textos escritos, propagandas, jornais, televisão, seja

onde for que eles se exponham. Diferentes visões e abordagens de gênero,

sexualidade e cidadania chegam até nós no dia a dia. Com isso, Costa, Silveira e

Sommer (2003) se referem a um currículo cultural, que diz respeito às

representações de mundo, da sociedade e do próprio eu que são postas em

circulação e o conjunto de saberes e valores que estão sendo ensinados por elas.

Isso leva à preocupação de Giroux, que destaca sobre a importância do“[...] estudo

da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma como

eles estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade, o futuro

e as diversas definições do eu.” (1995, p. 98).

Assim, o sentido de texto também é alargado, abarcando sons, imagens e

dispositivos em computadores e na Internet, tratando-se de textos culturais,

produtores de sentidos. Isso está relacionado ao fato de que os alunos estão em

contato com todos esses dispositivos e a educação não pode ignorar isso e precisa

compreender a dimensão dessa atuação na vida dos estudantes. Costa, Silveira e

Sommer acentuam essas questões afirmando que “Se nos EC [Estudos Culturais], a

cultura é uma arena, um campo de luta em que o significado é fixado e negociado,

as escolas, sua maquinaria, seus currículos e práticas são parte desse complexo.”

(2003, p. 58, grifo do autor).

O papel do professor deixa de ser o de mero transmissor de conhecimento e

informações, e seu papel deve ser focado em serem produtores culturais, em que as

práticas pedagógicas privilegiem experiências em que os estudantes possam

enxergar o caráter socialmente construído “[...] de seus conhecimentos e

experiências, num mundo extremamente cambiante de representações e valores”

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(GIROUX, 1995, p. 101). Esse papel do professor, no que diz respeito à leitura, não

deve ser conferido somente aos profissionais da área de português e literatura, mas

de todos os professores, de todas as áreas, já que a leitura deve ser uma proposta

da escola, em sentido amplo, com foco na cidadania.

Em relação aos textos, Canclini (2008) destaca que a educação e a formação

de leitores e espectadores críticos costumam frustrar-se pela persistência de

desigualdades sociais e econômicas, mas também porque ainda há um

desdobramento de políticas culturais voltadas para um cenário anterior ao digital. O

autor disserta que há uma insistência pela formação de leitores de livros e não se

contempla outras linguagens, enquanto a indústria está unindo as linguagens e

combinando espaços. Isso é um desacordo que apenas prejudica o desenvolvimento

de leitores culturais em todos os sentidos.

O leitor e espectador são definidos de forma distinta. O primeiro está mais

voltado para o texto, a literatura e o sistema editorial, e o segundo está voltado mais

para o cinema, a televisão e a música, em que disposições diversas são mobilizadas

para assistir um filme, ligar a televisão ou estar em uma sala de concerto. Porém, se

abordado o internauta, este é um agente multimídia, que lê, ouve e combina

materiais diversos, procedentes da leitura e dos espetáculos, de acordo com

Canclini (2008). Essa integração de ações e de linguagens redefiniu o local onde se

aprendiam as principais habilidades e a autonomia do campo educacional, de

acordo com o autor, ou pelo menos, na prática deveria isso já ter acontecido.

De acordo com Hall (2006), no contexto dos Estudos Culturais a leitura se

torna eficiente no momento que acrescenta aos elementos estéticos o debate de

uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da diversidade cultural. Com

isso, o leitor precisa ser consciente de seu papel e reconhecer que sua visão não é a

única e é primordial o respeito e aceitação das diferentes manifestações culturais.

Nesta proposta, tanto a memória cultural como a recepção do leitor crítico são

abordados como partes do processo de leitura. Assim, torna-se um elemento

fundamental a memória cultural no processo de leitura, conforme Bauman (2005) e

Hall (2006).

O leitor tem um papel de destaque no campo dos Estudos Culturais, conforme

Gomes (2010), já que a leitura é um processo de formação da cidadania com a

inclusão de novas abordagens culturais, conhecidas através da leitura de diferentes

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formas. Nesse sentido, a partir do contato com o texto o “[...] gosto pela leitura pode

ser despertado como uma prática de reflexão social.” (p. 28) na medida em que o

leitor se insere em um contexto e pratica sua cidadania ao ler e realizar a reflexão

sobre o social. Dessa forma, “[...] o convite à reflexão social pode ser uma das

saídas para associar leitura, prazer e formação da consciência crítica do leitor” (p.

28) e, assim, a prática de leitura associa elementos estéticos com elementos

ideológicos em uma leitura crítica da realidade. Nesse sentido:

Com a aplicação de conceitos referentes ao leitor e à leitura, articulamos um método de leitura que valorize a experiência do leitor como cidadão. O leitor precisa desenvolver uma consciência crítica que reconheça as fronteiras identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual. Ele deve deixar para trás as velhas performances preconceituosas de identificação social para legitimar a diferença como prática de aprendizagem contínua. Assim, o lugar da leitura é um espaço para a formação de cidadãos conscientes da diferença como uma possibilidade cultural de relacionamento. (GOMES, 2010, p. 33).

O leitor precisa desenvolver seu lado crítico para que a leitura seja uma

prática social. Como nos Estudos Culturais está presente a interdisciplinaridade, o

debate em torno da leitura interdisciplinar pede uma postura politizada por parte de

professores e alunos. Mas, primeiramente, o leitor deve compreender as

especificidades do texto, segundo Gomes (2010). Com isso, a prioridade nesse

ensino é a questão de “[...] ‘como’ os elementos culturais estão representados na

ficção” (p. 29), abordando um leitor politizado, que passe por uma pedagogia

inclusiva, que privilegia a formação cultural do leitor.

O leitor cultural, destacado por Gomes (2010), “[...] analisa como a identidade

dos personagens foi representada esteticamente no texto selecionado, levando em

conta questões de gênero, de classe, de raça ou de orientação sexual” (p. 32). Para

isso, o texto precisa de uma leitura que interprete os significados estéticos e sociais

e relacione o texto lido com suas heranças culturais. Essas heranças são

fundamentais ao leitor, pois este deve explorar uma perspectiva comparatista entre o

que leu e o seu passado cultural, de modo que “[...] cada obra cultural é a visão de

um momento, e devemos justapor essa visão às várias revisões que ela gerou.”

(SAID, 1995, p. 105).

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A leitura interdisciplinar2 necessita um leitor atento aos artifícios do jogo

narrativo para poder desfrutar a grande quantidade de citações sociais e culturais

que os textos, literários ou não, trazem. Quando o leitor realiza a leitura, “[...] o que

está sendo lido pode ser interpretado a partir dos códigos culturais e artísticos que

foram usados para a construção da narrativa.” (GOMES, 2010, p. 32). Assim, o leitor

mobiliza diferentes questões que foram utilizadas na elaboração do texto e realiza a

interpretação, com base no seu conhecimento prévio e nas suas experiências

culturais. Com isso, a questão da identidade é “[...] construída multiplamente ao

longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas.”

(HALL, 2000, p. 108). Nesse sentido, o texto é herança de uma coletividade.

O exposto sobre a leitura neste capítulo manifesta que ela é pensada como

uma prática social, portanto, presente de forma direta e ativa na sociedade, sendo

um processo de formação de cidadania e, portanto, pensado a partir de sua

perspectiva cultural. Sendo assim, a leitura existe em consonância com a cultura,

pois esta é a representação das práticas vividas pelas pessoas, é tudo aquilo que

produz sentido. Dessa forma, abordar leitura é também abordar cultura, pois a leitura

existe sempre em um contexto cultural. Nesse sentido, expõe-se no próximo capítulo

a noção de cultura que embasa a abordagem de leitura deste trabalho.

2 Embora seja difícil definir um termo tão amplo, busca-se uma definição em Olga Pombo ao afirmar que “a interdisciplinaridade é um conceito que invocamos sempre que nos confrontamos com os limites do nosso território de conhecimento, sempre que topamos com uma nova disciplina cujo lugar não está ainda traçado no grande mapa dos saberes, sempre que nos defrontamos com um daqueles problemas imensos cujo princípio de solução sabemos exigir o concurso de múltiplas e diferentes perspectivas” (2008, p. 15). Nesse sentido, a interdisciplinaridade é entendida neste trabalho como algo presente em todos os momentos em que os limites das disciplinas são abalados, ou seja, ocorre o cruzamento ou aproximação de disciplinas. Está presente em diferentes manifestações sociais e

contribui para o enriquecimento cognitivo e analítico dos indivíduos.

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3 O CONCEITO DE CULTURA NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS

A noção de cultura até a década de 1960 abarcava apenas a seleção de

produções eleitas pelo cânone, como também a literatura só se aplicava às obras

consagradas pelo cânone. Conforme Bordini (2006), “[...] esses eram os domínios a

serem cultivados, expandidos e difundidos, tarefa entregue às diversas instâncias do

sistema cultural, com ênfase aos vários níveis de educação formal e informal” (p.

11), ou seja, cultura e literatura eram termos ligados às grandes obras e

manifestações, aquilo que uma classe dominante economicamente tinha acesso e

consumia. As pessoas se distinguiam por serem cultos ou incultos, de acordo com o

volume de leitura, o conhecimento, a habilidade na fala e na escrita e diferentes

conhecimentos científicos.

Essa realidade era voltada às elites, que tinham condições financeiras para

sustentar tais distinções. Porém, com as mudanças significativas na sociedade, as

definições de cultura sofreram alterações. Hoje, tudo está mais facilmente ao

alcance, o homem é mais individualista e solitário, mesmo com tanta tecnologia. Não

é mais tão simples distinguir um produto cultural de outro, pois tudo está muito

atrelado. É possível ler um romance policial como literatura de arte, de acordo com

Bordini (2006), como também é possível ter na estante um peixe esculpido em

madeira por um índio como objeto artístico. Assim, temos a configuração da

Existência de múltiplas culturas, distribuídas em tribos e facções, regiões, cidades e bairros, ou até na esquina ou no condomínio, cada uma com sua especificidade e necessidades, determina uma alteração radical no campo dos estudos literários. A proliferação de manifestações lingüísticas [sic] que aspiram ao estado de arte verbal, lado a lado e rivalizando com formas expressivas não verbais ou semiverbais, também desdobrando-se e espalhando-se numa velocidade eletrônica, põe em causa a delimitação do objeto das teorias literárias, confundindo cada vez mais com outros produtos culturais que reivindicam semelhantes poderes de significação estética. (BORDINI, 2006, p. 12).

Dessa forma, o que se entende por cultura mudou completamente, pois há

várias manifestações e elas estão espalhadas por toda parte, pode ser em um

bairro, na cidade ou outras delimitações. Com isso, diferentes formas culturais

espalham-se e atingem um número cada vez maior de pessoas, demonstrando o

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poder que a cultura tem. As significações estéticas também mudaram, uma vez que

as representações atuais são diferentes, em muitos casos, das representações

passadas. Tais ponderações também são encontradas em Carvalhal ao afirmar que

“[...] temos de evocar que os pilares que sustentam as duas formas de atuação

crítica – literatura e cultura – são conceitos que se redimensionam e se recodificam

nessa transição do milênio” (2003, p. 212).

Reconhece-se, hoje, que há diversidade cultural, mesmo que isso não seja

respeitado. Esse reconhecimento, nas palavras de Hooks (2013), foi uma revolução

necessária para a aceitação e respeito a muitos grupos sociais e a afirmação desses

grupos sociais em diferentes espaços. Embora ainda não completamente aceita, a

diversidade cultural é uma realidade que ultrapassa os limites do querer ou aceitar

daqueles que resistem a ela.

Essa não aceitação ocorre, pois há aqueles que acreditam que essa

diversidade confronta seu conhecimento e vai significar uma perda de autoridade.

Segundo Hooks (2013), “[...] certas pessoas acham que todos os que apoiam a

diversidade cultural querem substituir uma ditadura do conhecimento por outra,

trocar um bloco de pensamento por outro. Talvez seja essa a percepção mais

errônea da diversidade cultural” (2013, p. 49). A diversidade é justamente a

aceitação de que não existe apenas uma ideia e manifestação, mas várias e que há

espaço para todos. Nunca será substituir algo que já existe por outro, mas aceitar e

abarcar todas as dimensões possíveis, como forma de integrar as dimensões da

diferença com respeito e sem discriminação.

As questões apontadas auxiliam no entendimento de que os Estudos

Culturais abarcam um número elevado de manifestações culturais para estudos e

análise. Nas décadas passadas, os estudos no geral voltavam-se para as

manifestações culturais ditas cultas e canônicas, excluindo um grande número de

manifestações. Nesse sentido, a afirmação de Souza voltada à literatura também se

estende para as demais manifestações culturais. A autora afirma que:

[...] não se trata mais de considerar a literatura na sua condição de obra esteticamente concebida, ou de valorizar critérios de literariedade, mas de interpretá-la como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou de problematizar temas de interesse atual. (1998, p, 20).

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Dessa forma, hoje o mais importante não é o aspecto estético e dizer se a

obra é boa ou não se pertence ao cânone ou não. O mais importante é se o produto

cultural, seja escrito, falado, desenhado, esculpido, etc., provoca a reflexão do leitor,

se tem relação com o social e pensa sobre a realidade atual, que é o interesse das

pessoas. A questão não se aplica apenas à literatura, mas a todas as manifestações

culturais, uma vez que estamos sempre imersos em cultura. Essas manifestações

possibilitam reflexões variadas e um meio crítico de ver a sociedade atual e suas

relações sociais, políticas e de poder. Essas reflexões nos Estudos Culturais levam

a algumas premissas apontadas por Johnson, que afirma:

A primeira (premissa) é que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda é que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades. E a terceira, que se deduz das outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e de

lutas sociais. (2010, p. 12-13, grifo do autor).

Tais premissas de Johnson são importantes para situar a cultura e os

processos culturais em um panorama social e político. O primeiro apontamento do

autor afirma justamente que os processos culturais estão vinculados com as

relações sociais e, assim, com todas as manifestações e reivindicações dos mais

variados grupos sociais. O segundo apontamento é a ligação da cultura com o

poder, visto que grupos com melhores condições sociais tendem a afirmar sua

superioridade através dos objetos culturais que disseminam e consomem. E o

terceiro apontamento é justamente uma dedução dos dois primeiros, que a cultura é

um espaço de luta social e de reflexão sobre as relações sociais. O autor destaca

ainda que os Estudos Culturais são parte dos próprios circuitos que buscam

descrever, pois:

Eles podem, tal como os conhecimentos acadêmicos e profissionais, policiar a relação entre o público e o privado ou eles podem criticá-la. Eles podem estar envolvidos na vigilância da subjetividade dos grupos subordinados ou nas lutas para representá-los mais adequadamente do que antes. Eles podem se tornar parte do problema ou parte da solução. É por isso que, à medida que nos voltamos para as formas particulares de Estudos Culturais, nós precisamos fazer perguntas não apenas sobre objetos, teorias e métodos, mas também sobre os limites e os potenciais políticos das diferentes posições em torno do circuito. (2010, p. 51-52).

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Com o exposto visualizam-se mais pontos importantes a respeito dos Estudos

Culturais. Como estão implicados em relações de poder eles são parte dos próprios

circuitos. Assim, podem estar relacionados de diferentes formas com as

manifestações culturais e sociais e tornarem-se uma solução ou um problema.

Ainda, o foco não deve ser apenas a análise dos objetos e teorias, mas também um

questionamento sobre os limites e potenciais políticos envolvidos nos processos em

que os Estudos Culturais estão inseridos.

Escosteguy disserta que o significado de cultura foi ampliado e passou “[...] de

textos e representações para práticas vividas” (2010, p. 143), focando tudo aquilo

que produz sentido. O ponto inicial volta-se para as relações de poder na sociedade

nas estruturas sociais e o contexto histórico como formas de compreensão da

atuação dos meios de comunicação de massa e o deslocamento da noção de

cultura de sua tradição elitista para as práticas cotidianas e populares. Assim, o

conceito de cultura amplia-se e abarca um número maior de grupos sociais e

manifestações, antes totalmente ignorados pela tradição elitista, já que os Estudos

Culturais “[...] compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução

social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da

hegemonia” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 146-147).

Os Estudos Culturais vêm para dar conta não apenas de análise e estudo de

obras no campo estético e teórico, mas fazer uma análise dessas obras, aqui

referindo-se a textos e todas as manifestações culturais, tendo como pano de fundo

a configuração social, com suas relações de classe e de poder, em uma análise

política da situação. Nesse sentido, o interesse primordial é “[...] fazer com que

categorias literárias e preocupações estéticas sejam relacionadas com questões

sociais” (JOHNSON, 2010, p. 16).

Isso nos leva à análise profunda das relações sociais nos objetos culturais,

tornando a cultura um meio para conhecer a sociedade e identificar pontos cruciais

que dizem respeito ao poder e a política. Assim, não são apenas as manifestações

culturais tradicionalmente conhecidas, caracterizadas e canonizadas que podem ser

analisadas. Todas as manifestações sociais apresentam focos de cultura que podem

ser examinados em uma perspectiva crítica, de denúncia social, tal como pondera

Johnson, ao dissertar que:

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“Todas as práticas” sociais podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, podem ser examinadas pelo trabalho que elas fazem – subjetivamente. Isto vale, por exemplo, para o trabalho fabril, para organizações sindicais, para a vida nos – e em torno dos – supermercados, assim como para alvos óbvios, como “a mídia” (unidade enganadora?) e seus modos (principalmente domésticos) de consumo. (2010, p. 30).

Nesse sentido tudo o que acontece no âmbito social pode ser objeto de

análise do ponto de vista cultural, seja um objeto cultural ou uma prática social,

trabalhista (no caso uma fábrica) ou comunicativa (no caso da imprensa). Com essa

configuração, a cultura torna-se um espaço de luta, não apenas de lazer, beleza e

apreciação. Seu ponto mais forte está em no poder de fomentar a reflexão e com

isso a luta social.

Os Estudos Culturais, de acordo com Ana Carolina Escosteguy (2010), foram

uma invenção britânica, mas hoje, em sua forma contemporânea, tornaram-se um

fenômeno internacional. Independente daquilo que tornam seu objeto de

investigação, os conhecimentos públicos ou o domínio privado da cultura, os

Estudos Culturais “[...] estão necessariamente e profundamente implicados em

relações de poder” (JOHNSON, 2010, p. 51), sendo um meio de análise de todo o

contexto social.

Dessa forma, os Estudos Culturais deixam claro que os processos culturais

estão relacionados com o contexto e, assim, com as relações de poder, formação de

classe e as divisões na sociedade. Além disso, a cultura está diretamente ligada ao

poder e ao mesmo tempo em que ela atua como local de diferença ela também é

uma forma de luta de classe e contra o poder autoritário.

As narrativas são concebidas como diálogos de várias culturas, em que cada

leitor tem sua própria leitura, ancorada em sua cultura, conforme Barthes (2004). O

autor de um texto apresenta a sua visão de mundo, sob vários aspectos, em que

estão presentes várias ideologias e aspectos sociais. A leitura que o leitor fará desse

texto não será de acordo com o ponto de vista do autor, pois este já morreu, mas

sim será do ponto de vista do sujeito leitor e sua experiência leitora e sua cultura.

Stuart Hall (2003) aponta que os Estudos Culturais nasceram em um espaço

de rupturas significativas, com velhas correntes de pensamento sendo rompidas e

elementos novos e velhos sendo reagrupados em uma nova gama de tema. Isso faz

mudar as formas como as questões são propostas e os rumos que elas tomam.

Essas mudanças não refletem só nos resultados do trabalho intelectual, mas

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também a maneira como os desenvolvimentos e as verdadeiras transformações

históricas são apropriadas no pensamento e “É por causa dessa articulação

complexa entre pensamento e realidade histórica, refletida nas categorias sociais do

pensamento e na contínua dialética entre ‘poder’ e ‘conhecimento’, que tais rupturas

são dignas de registro” (p. 131).

Nesse espaço de rupturas, o que se destacou foi a crítica prática, como

destaca Hall (2003), em que ocorreu o interesse em “[...] ler a cultura da classe

trabalhadora em busca de valores e significados incorporados em seus padrões e

estruturas: como se fossem certos tipos de textos” (p. 132). Mas esse trabalho

representou um desvio radical, pois aplicou o método a uma cultura viva e rejeitou

termos do debate cultural tradicional em torno da distinção entre alta e baixa cultura,

visto que uma cultura não é melhor que a outra, elas são diferentes, porque surgem

e se disseminam em ambientes próprios.

O termo cultura, desde o início dos Estudos Culturais, era um local de

convergência e um conceito considerado complexo, pois é um local de interesses

convergentes e não uma ideia lógica e clara. Hall (2003) descreve que isso é uma

riqueza exatamente pela contínua tensão e as inúmeras possibilidades que ela

suscita.

Porém, mesmo com esse espaço de convergência, o termo cultura apresenta

uma variedade de conceitos. Uma delas é de Raymond Williams e abordada por Hall

(2003) em que cultura é dada como a soma das descrições disponíveis pelas quais

as sociedades dão sentido e refletem suas experiências comuns. Essa definição

está ligada ao campo das ideias, mas em um espaço de reformulação.

A concepção de cultura á, em si mesma, socializada e democratizada. Não consiste mais na soma de o “melhor que foi pensado e dito”, considerado como os ápices de uma civilização plenamente realizada — aquele ideal de perfeição para o qual, num sentido antigo, todos aspiravam. Mesmo a “arte” — designada anteriormente como uma posição de privilégio, uma pedra-de-toque dos mais altos valores da civilização — e agora redefinida como apenas uma forma especial de processo social geral: o dar e tomar significados e o lento desenvolvimento dos significados comuns; isto e, uma cultura comum. (HALL, 2003, p. 135).

Nesse sentido, cultura não pode ser considerada apenas o que certos grupos

consideram como sendo o melhor que já foi feito, como sendo o melhor da

civilização. Cultura deixa de ser um espaço de privilégio para ser um espaço

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democrático e uma forma de processo social, em que o mais importante são os

significados e o desenvolvimento de pontos em comum dentro de cada grupo social.

Ainda abordando as considerações de Williams, Hall (2003) afirma que a

nossa maneira de ver as coisas é a própria maneira de viver e que o

compartilhamento de significados comuns, ou propósitos e atividades comuns e a

oferta, recepção e comparação de novos significados são as situações que nos

levam às tensões, ao crescimento e à mudança. Nesse sentido, não há como isolar

as descrições literárias e compará-las com outras coisas. Isso porque, a arte é parte

da sociedade, não existe fora dela. Ela é uma atividade, como a produção, o

comércio, a política, etc. e para ser estudada adequadamente deve ser estudada

ativamente, como uma atividade de energia humana.

Nas palavras de Hall (2003), a primeira ênfase, apontada por Williams,

levanta e retrabalha a conotação do próprio termo cultura, como o domínio das

ideias. Já a segunda ênfase está voltada ao aspecto antropológico e se refere às

práticas sociais. Essa segunda ênfase aponta a cultura como um modo de vida

global, em que se pensa nas relações entre elementos e práticas sociais que

normalmente se apresentam isolados, mas que na realidade estão interligados por

aspectos culturais.

Assim, a cultura é definida por Hall (2003) como sendo as relações entre

elementos de um modo de vida global, não é uma prática, nem apenas a soma

descritiva dos costumes e culturas populares das sociedades. Ela é perpassada “[...]

por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das

mesmas” (p. 136). Cultura é uma forma característica de energia humana que é

reveladora de si mesma.

A análise da cultura, para Hall (2003), começa com a descoberta de padrões

característicos. Esses padrões não serão descobertos na arte, produção, comércio

ou política, que são tratados como atividades isoladas, mas sim no estudo das

relações entre esses padrões e o que essas relações produzem. Nesse sentido, o

objetivo de análise da cultura é entender como as inter-relações de todas as práticas

sociais e padrões são vividas e experimentadas em um dado período pelas pessoas.

Assim, o esboço dos Estudos Culturais está no paradigma dominante, já que:

Ele se opõe ao papel residual e de mero reflexo atribuído ao “cultural”. Em suas várias formas, ele conceitua a cultura como algo que se entrelaça a

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todas as práticas sociais; e essas práticas, por sua vez, como uma forma comum de atividade humana: como práxis sensual humana, como a atividade através da qual homens e mulheres fazem a história (HALL, 2003, p. 142).

Dessa forma, a cultura é entendida como um aspecto importante de

conhecimento da própria sociedade, já que está ligada a todas as práticas sociais e

essas práticas são as próprias atividades humanas, das quais as pessoas vivem e

fazem tanto as suas histórias, como a história da própria sociedade. A cultura é

percebida como um diálogo entre o ser e a consciência social, que são inseparáveis,

sendo definida:

[...] cultura ao mesmo tempo como os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de existência e respondem a estas, e também como as tradições e práticas vividas através das quais esses entendimentos são expostos e nos quais estão incorporados (HALL, 2003, p. 142).

Quando se pensa em cultura no Brasil sabe-se que se trata de um país

cultural, com muitas manifestações, etc., mas Mello (1963) traz uma reflexão válida

que estabelece relação entre cultura e subdesenvolvimento tanto no Brasil como em

toda a América Latina. O autor aponta que houve uma mudança de perspectiva na

forma de se pensar a questão do desenvolvimento nacional marcada por duas

noções distintas. Até 1930, aproximadamente, predominava a noção de país novo

no Brasil, que não se realizou completamente, mas que possuía uma expectativa de

desenvolvimento pelas possibilidades futuras. Isso marcava uma grandeza ainda

não realizada. Já após 1930, e ainda hoje, pode-se dizer, a noção é de país

subdesenvolvido, sem grandes modificações na distância que separa de países

mais ricos. Isso marca a pobreza e o que falta. Embora ocorreram mudanças nos

últimos anos que possibilitaram melhoras na vida dos brasileiros, ainda é pouco

significativo. Juntamente com essa perspectiva desenvolvimentista está a questão

cultural, já que a cultura é fruto do contexto.

Candido (1989), embora não acredite que as consequências dessa distinção

sejam válidas, toma ela em si para compreender certos aspectos da criação literária

na América Latina. O teórico afirma que no princípio da literatura brasileira se

exaltava a terra, a natureza, pois era bela, e isso se vinculava com a ideia de pátria.

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Isso conduzia a uma literatura “[...] que compensava o atraso material e a debilidade

das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do

exotismo razão de otimismo social” (p. 140). Até esse ponto, a beleza da terra de

certa forma camuflava os problemas sociais e o atraso, mas com a consciência do

subdesenvolvimento o que se evidenciou foi a realidade precária e um pessimismo

no presente e para o futuro. Essa consciência passou a levar a questão para a luta,

tomando reformulação política, no sentido de fazer algo para mudar.

Candido (1989) disserta que a literatura brasileira copiava modelos europeus

e que os escritores faziam obras imaginando um leitor ideal, imaginavam então

alguém com mais propensão a ser europeu do que ser brasileiro, pois este, ainda

em parte analfabeto, não tinha a erudição necessária para compreender as obras.

Assim, visualizava-se o quanto culturalmente o Brasil permaneceu, e ainda

permanece, ligado a padrões estrangeiros, mas é necessário destacar que:

Sabemos, pois, que somos parte de uma cultura mais ampla, da qual participamos como variedade cultural. E que, ao contrário do que supunham por vezes ingenuamente os nossos avós, é uma ilusão falar em supressão de contatos e influências. Mesmo porque, num momento em que a lei do mundo é a inter-relação e a interação, as utopias da originalidade isolacionista não subsistem mais no sentido de atitude patriótica, compreensível numa fase de formação nacional recente, que condicionava

uma posição provinciana e umbilical. (CANDIDO, 1989, p. 148).

Nos Estudos Culturais, a cultura não é algo isolado, ela está presente na

sociedade juntamente com determinantes sociais, econômicos e políticos e não é

possível analisá-la isoladamente sem considerar tais fatores, pois ela acontece em

um meio social perpassado por esses fatores. A cultura é a identidade das

sociedades, é a forma pela qual as pessoas participam de determinadas ações e

situações sociais, mostrando sua realidade, seus valores e ocupando seu lugar no

âmbito social, dessa forma:

A cultura, em seu sentido mais amplo, é uma forma de atividade que implica alto grau de participação, na qual as pessoas criam sociedades e identidades. A cultura modela os indivíduos, evidenciando e cultivando suas potencialidades e capacidades de fala, ação e criatividade (KELLNER, 2001, p. 11).

Assim, a cultura implica a participação social, em que as pessoas criam suas

identidades e podem conviver cada uma com sua identidade e cultura, respeitando-

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se e compartilhando experiências. A cultura é necessária ao indivíduo pelo poder

que confere a este, proporcionando sua ação no meio em que vive, não

isoladamente, mas juntamente com outros que compartilham da cultura, com os

mesmos anseios e ideias.

No campo dos Estudos Culturais, a cultura não é considerada como variável

entre melhor e pior, entre correta e incorreta ou outras separações simplistas. O que

interessa para o campo são as relações que a cultura estabelece com outros

campos sociais e a bandeira de luta e resistência contra a dominação, diferenciação

e subordinação de uma cultura com outra cultura. Além disso, não se considera uma

manifestação em detrimento de outra, por exemplo, considerar apenas o escrito

como bom e desconsiderar outras manifestações, visto que todas são constituintes

da subjetividade e da cultura de um povo. Com essa abordagem:

[...] os estudos culturais podem ser distinguidos dos discursos e das teorias idealistas, textualistas e extremistas que só reconhecem as formas lingüísticas [sic] como constituintes da cultura e subjetividade. Os estudos culturais, ao contrário, são materialistas porque se atêm às origens e aos efeitos materiais da cultura e aos modos como a cultura se imbrica no processo de dominação ou resistência (KELLNER, 2001, p. 49).

Com o exposto, o autor nos faz refletir sobre o papel que a cultura alcança no

âmbito social. Com isso, visualiza-se que como a cultura é parte do contexto social

seu estudo também deve ser articulado com questões e teorias sociais, já que é

necessário compreender as estruturas e a dinâmica da sociedade para então

adentrar no conhecimento e entendimento da esfera cultural e como ela se constitui,

de acordo com Kellner (2001).

O termo cultura, de acordo com Costa, Silveira e Sommer (2003), deixa de

ser um conceito recheado de distinções, hierarquias e elitismos segregacionistas,

para tornar-se um outro eixo, recheado de significados em que são visíveis inúmeros

leques de sentidos, sempre cambiantes e versáteis. A cultura deixa de ser,

gradativamente, do “[...] domínio exclusivo da erudição, da tradição literária e

artística, de padrões estéticos elitizados e passa a contemplar, também, o gosto das

multidões” (p. 36). Ganha um sentido plural, culturas, com novas e diferentes

possibilidades de sentido. Os autores destacam que para Stuart Hall, na ótica dos

Estudos Culturais, as sociedades capitalistas se configuram como espaços de

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desigualdade, no que se refere à etnia, sexo, gerações e classe, sendo a cultura o

ponto em que estão estabelecidas e contestadas tais distinções.

Nesse sentido, é na esfera cultural que ocorre a luta pela significação, em que

os grupos subordinados tentam combater as imposições de significados que

perpetuam os interesses daqueles que detêm o poder. Dessa forma, “[...] os textos

culturais são o próprio local onde o significado é negociado e fixado” (COSTA;

SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 38), ou seja, as manifestações culturais funcionam

como instrumento de perpetuação de valores, mas ao mesmo tempo de luta e

resistência.

Martín-Barbero (1997) destaca que ocorreu uma redefinição de cultura e que

é fundamental compreender a sua natureza comunicativa. Ou seja, não se trata mais

de mera circulação de informações, em que o receptor apenas decodifica a

mensagem, mas sim um processo de produção de significações. Esse desafio da

indústria cultural aparece no cruzamento de linhas, que registram a questão cultural

no interior do político e a comunicação no interior da cultura.

Costa, Silveira e Sommer (2003) dissertam que para analistas

contemporâneos da cultura ocorreu uma revolução cultural ao longo do século XX,

em que os domínios do que se costumava considerar como cultura se expandiram e

se diversificaram. Para os autores a cultura não pode mais ser concebida como uma

acumulação de saberes no campo estético, intelectual ou espiritual, ela “[...] precisa

ser estudada e compreendida tendo-se em conta a enorme expansão de tudo que

está associado a ela, e o papel constitutivo que assumiu em todos os aspectos da

vida social” (p. 38).

Essa mudança foi denominada virada cultural, pela possibilidade de mudança

de pensamento em relação às manifestações culturais. Assim, inúmeras

possibilidades entram para o foco da cultura e podem ser analisados como

representação social, como um noticiário, imagens, gráficos de livros ou músicas.

Estes não são apenas manifestações culturais, mas “[...] são artefatos produtivos,

são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e operam nas arenas

culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas”

(COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 38). Como práticas de representação,

produzem e disseminam sentidos, atuando nas esferas culturais, em que os

significados precisam ser analisados. De acordo com Hall:

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[...] a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da mudança histórica do novo milênio. Não devemos nos surpreender, então, que as lutas pelo poder deixem de ter uma forma simplesmente física e compulsiva para serem cada vez mais simbólicas e discursivas, e que o poder em si assuma, progressivamente, a forma de uma política cultural. (1997, p. 20).

Pelas palavras de Hall (1997), entende-se que a cultura é um fator importante

de mudança do nosso tempo, sendo um elemento dinâmico e imprevisível. Sendo

um campo importante, passa a ser um espaço de luta, já que as lutas pelo poder

não são mais medidas na força física, mas sim no campo das ideias e discursos e

no plano simbólico. Isso faz surgir uma política cultural, em que há um espaço de

luta e disseminação de valores em que os significados são importantes para

entendimento da realidade e quebra de paradigmas.

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4 UM OLHAR SOBRE A BNCC: QUAL A CONCEPÇÃO DE LEITURA QUE EMBASA O DOCUMENTO?

Realizada a contextualização bibliográfica teórica sobre leitura e cultura na

perspectiva dos Estudos Culturais nos dois capítulos anteriores, chegamos ao

terceiro capítulo deste trabalho de dissertação em que é realizado um estudo

analítico de base documental da Base Nacional Comum Curricular pelo viés dos

referenciais levantados. Assim, o enfoque deste capítulo tem a Base Nacional como

objeto de estudo à luz das contribuições dos Estudos Culturais, no que tange às

noções previamente levantadas sobre leitura e sobre cultura.

Esse documento, a BNCC, “[...] é um documento de caráter normativo que

define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os

alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica”

(BRASIL, 2017, p. 7). Nesse sentido, destaca-se a necessidade e relevância de

tornar objeto de estudo um documento que tem o objetivo de nortear os conteúdos e

a finalidade do que é ensinado nas escolas em nível nacional, com foco na formação

leitora e cultural. O documento afirma seu compromisso social já em seu texto de

apresentação, no site do governo que apresenta a Base, no qual lemos que

A Base estabelece conhecimentos, competências e habilidades que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade básica. Orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a Base soma-se aos propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.3

A Base Nacional Comum Curricular é um documento com 396 páginas,

dividida da seguinte forma: “Apresentação”, com informações gerais sobre o

processo de constituição e elaboração do documento; “Introdução” e seus

subcapítulos, com informações sobre o documento, marcos legais, pacto

interfederativo, fundamentos pedagógicos e as competências4 gerais do documento;

3 Texto de apresentação pode ser consultado no endereço: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ 4 A noção de competência ao longo deste trabalho é entendida de acordo com Perrenoud (2000), para o qual competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações, ou

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“A estrutura da BNCC”, com explicações sobre suas divisões e estruturação; “A

etapa da educação infantil” e seus subcapítulos, com informações e

contextualizações sobre a Educação Infantil no documento e na Educação Básica,

os direitos de aprendizagem e desenvolvimento nessa etapa de ensino, os campos

de experiência, os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento e a transição da

educação infantil para o Ensino Fundamental; “A etapa do ensino fundamental” e

seus subcapítulos, com o ensino fundamental no contexto da Educação Básica; e as

áreas de ensino: “A área de Linguagens”, “A área de Matemática”, “A área de

Ciências da Natureza” (Ciências) e “A área de Ciências Humanas” (Geografia e

História).

Embora o estudo seja realizado em um recorte na Área de Linguagens,

destaca-se uma contextualização de toda a estruturação da área no documento,

com extensão da página 59 a 220. Assim, “A área de Linguagens” apresenta

primeiramente as Competências específicas de Linguagens para o Ensino

Fundamental e, a seguir, está organizada da seguinte forma:

- Língua Portuguesa:

- Competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino

Fundamental;

- Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – Anos Iniciais: unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades;

- Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – Anos Finais: unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades.

- Arte:

- Competências específicas de Arte para o Ensino Fundamental;

- Arte no Ensino Fundamental – Anos Iniciais: unidades temáticas, objetos de

conhecimento e habilidades;

- Arte no Ensino Fundamental – Anos Finais: unidades temáticas, objetos de

conhecimento e habilidades.

- Educação Física:

- Competências específicas de Educação Física para o Ensino Fundamental;

seja, dispor de saberes associados a condições pessoais para utilizar informações adquiridas no dia a dia com o objetivo de resolver diferentes situações.

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- Educação Física no Ensino Fundamental – Anos Iniciais: unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades;

- Educação Física no Ensino Fundamental – Anos Finais: unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades.

- Língua Inglesa:

- Competências específicas de Língua Inglesa para o Ensino Fundamental,

- Língua Inglesa no Ensino Fundamental – Anos Finais: unidades temáticas,

objetos de conhecimento e habilidades.

Nosso estudo analítico da Base Nacional Comum Curricular ocorre

especificamente na parte que trata “A Etapa Do Ensino Fundamental” na “Área de

Linguagens”, das páginas 59 a 150, com exceção de “Língua Portuguesa no Ensino

Fundamental – Anos Iniciais: unidades temáticas, objetos de conhecimento e

habilidades”, das páginas 67 a 114, por considerarmos que, devido à extensão, não

seria possível dar conta do estudo nos Anos Iniciais e Anos Finais. O estudo se

concentra nos seguintes tópicos: “Competências específicas de Linguagens para o

Ensino Fundamental”, “Língua Portuguesa”, “Competências específicas de Língua

Portuguesa para o Ensino Fundamental”, e “Língua Portuguesa no Ensino

Fundamental – Anos Finais: unidades temáticas, objetos de conhecimento e

habilidades”.

Amparando-se na hermenêutica, cria-se um horizonte de compreensão e

interpretação do documento com base em um contexto de sentido, ou seja, parte-se

da revisão teórica para a interpretação e compreensão do documento em forma de

estudo analítico.

Na “Apresentação” destaca-se que a Base começou a ser elaborada em

2015, quando ocorreu a consulta pública para a elaboração da primeira versão. Em

2016, ela passa para o papel, tendo em março a sua primeira versão e em junho

debates para a segunda versão. Ainda em 2016, em agosto, começa a ser redigida

a terceira versão que é entregue em abril de 2017 pelo Ministério da Educação

(MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para parecer e projeto de

resolução sobre a BNCC. O estudo do documento é realizado nesta terceira versão.

Na “Introdução” do documento define-se este como tendo um caráter

normativo que define, de forma progressiva, as aprendizagens essenciais que todos

os alunos devem desenvolver ao longo de sua jornada escolar. É orientada pelos

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princípios éticos, políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares

Nacionais da Educação Básica (DCN), e “[...] soma-se aos propósitos que

direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a

construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.” (BRASIL, 2017, p. 7).

Não se nega a importância de existir um documento norteador para a

educação, porém é necessário ter cuidado ao ser abordado como tendo “caráter

normativo”. O que se relaciona com norma e com regra traz sempre um caminho

pré-determinado, ou seja, algo traçado do início ao fim, mas no que tange à

educação, leitura e cultura sabe-se que as questões são mais amplas e não podem

ser reduzidas a normas pré-determinadas. Assim, retoma-se Costa, Silveira e

Sommer (2003) que se referem a um currículo cultural, que diz respeito às

representações de mundo, da sociedade e do próprio eu que são postas em

circulação e o conjunto de saberes e valores que estão sendo ensinados por elas.

Nesse sentido, percebe-se que não há preocupação como prioridade na questão

cultural no documento, pois ao abordar a regra, a norma, deixa de lado a

possibilidade de um currículo com foco cultural, em que são pensadas questões

realmente presentes e relevantes socialmente.

Além disso, o documento destaca “aprendizagens essenciais”, mas o que

realmente é essencial? Considerando a realidade, a sociedade, as relações de

classe e de poder? Sabe-se que a realidade social brasileira em muitos contextos é

problemática, com pobreza, violência, exploração, falta de serviços básicos, como

saúde e esgoto e a avalanche de casos de corrupção, desvios de dinheiro público e

descaso com a população. Com isso, o que é essencial para um estudante, que vive

em uma área carente de serviços básicos e que sofre constantemente com a

violência, dos anos finais do Ensino Fundamental aprender?

Este estudante, que muitas vezes tem na escola o seu primeiro contato com a

possibilidade de visualizar um mundo novo, deveria encontrar mecanismos que o

levassem à percepção do próprio ambiente em que vive, sua própria realidade.

Assim, retoma-se as palavras de Giroux, que destaca a importância do“ [...] estudo

da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma como

eles estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade, o futuro

e as diversas definições do eu” (1995, p. 98). Nesse sentido, a aprendizagem

essencial a esse aluno está relacionada ao destacado por Giroux (1995), aquilo que

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pensa as relações sociais, os valores, o futuro, as definições do eu e não conteúdos

historicamente construídos que não promovam a reflexão desse aluno e a

possibilidade de fugir ou lutar para modificar a realidade em que vive.

O documento defende que é uma referência para formulação de currículos e

das propostas pedagógicas de todo o país, além de integrar a política nacional da

Educação Básica e contribuir com outras políticas e ações “[...] referentes à

formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e

aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento

da educação” (BRASIL, 2017, p. 8). O próprio documento disserta que se espera

que a Base ajude a superar a fragmentação das políticas educacionais, fortaleça a

colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da

educação, garantindo o direito dos alunos a aprender e se desenvolver

desenvolvendo sua cidadania.

É importante um documento que seja referência para a formulação de

currículos, mas ele deve ser de fato útil para esse fim. Mas ao abordar que visa

contribuir para a “oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da

educação” menciona algo complicado, pois a infraestrutura é um ponto muito amplo,

abarcando estruturas precárias de escolas, transportes, estradas e todo um contexto

de sociedade, envolvendo as condições em que as famílias vivem, os valores

presentes, etc. É claro que a infraestrutura é indispensável para a educação, mas o

posicionamento do documento em tentar contribuir para o melhoramento da oferta

de infraestrutura parece muito distante do alcance da Base.

Também se destaca que a educação ocorre em diferentes espaços, sendo a

escola um deles. Isso porque, também somos educados por imagens, filmes, textos

escritos, propagandas, jornais, televisão, seja onde for que eles se exponham.

Diferentes visões e abordagens de gênero, sexualidade e cidadania chegam até nós

no dia a dia. Com isso, o documento deveria abordar uma preocupação maior não

apenas com infraestrutura própria da escola, mas sim fora dela, inclusive nos outros

espaços em que ocorre a educação e onde se constroem diferentes visões e

abordagens da realidade. Isso torna-se necessário, pois a escola não é mais a única

detentora do conhecimento, mas sim um dos lugares sociais que deve priorizar

ações em prol de uma sociedade mais tolerante, justa, igualitária e que carregue a

bandeira da alteridade.

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Nesta questão, os Estudos Culturais têm muito a contribuir, já que a educação

também é uma área de militância e de atuação política, de acordo com Costa,

Silveira e Sommer (2003). Os autores destacam que no Brasil as contribuições mais

importantes dos Estudos Culturais em educação são as que possibilitam:

[...] a extensão das noções de educação, pedagogia e currículo para além dos muros da escola; a desnaturalização dos discursos de teorias e disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilidade de dispositivos disciplinares em ação na escola e fora dela; a ampliação e complexificação das discussões sobre identidade e diferença e sobre processos de subjetivação. Sobretudo, tais análises têm chamado a atenção para novos temas, problemas e questões que passam a ser objeto de discussão no currículo e na pedagogia. (p. 56).

Com isso, percebe-se que a escola deve estar atenta a todos os processos

sociais ligados direta ou indiretamente a ela, sendo questões de poder, classes

sociais, preconceito, questões de gênero, realidade dos alunos, etc. questões estas

que são pouco abordadas na Base. A vivência social precisa fazer parte da escola.

Isso faz surgir novos temas, que estão mais próximos da realidade dos alunos.

Wortmann, Costa e Silveira (2015) também destacam a necessidade de expansão

dos Estudos Culturais em educação no Brasil, visto que suas contribuições são

importantes e tornam-se indispensáveis para uma educação de fato comprometida e

relacionada com o verdadeiro social e cultural dos estudantes.

Além disso, o “pleno desenvolvimento da educação” é estabelecido com base

em que fatores? O que seria esse pleno desenvolvimento? São conceitos

importantes, mas precisam ser mais desenvolvidos. O desenvolvimento de um

indivíduo está muito ligado ao seu contexto social. A diversidade cultural faz com

que as pessoas sejam diferentes, tenham objetivos e sonhos diferentes, então falar

em pleno desenvolvimento parece que leva a um espaço indicado por alguém ou

alguma entidade como ideal, quando sabemos que a realidade não é ou não deveria

ser assim. Cada pessoa se desenvolve conforme o contexto, os estímulos e as

possibilidades diante de si. Com isso retoma-se que “[...] a leitura do mundo precede

sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura

daquele” (FREIRE, 1989, p. 13), ou seja, o pleno desenvolvimento liga-se

primeiramente à leitura do mundo e a sua continuidade mesmo após a leitura da

palavra. Nessa relação, a leitura da palavra apenas ocorre após a leitura de mundo,

após o sujeito conhecer o que o cerca. No momento em que a leitura da palavra se

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torna algo conhecido, para sua continuidade e aperfeiçoamento é necessária a

leitura de mundo, porque a leitura nunca é solitária, ela está presente de forma viva

no contexto.

Em “Os marcos legais que embasam a BNCC” menciona-se a Constituição

Federal de 1988, em seu Artigo 205, ao determinar que a educação “[...] direito de

todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a

colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL,

1988). Além disso, menciona-se que a Constituição já orientava a definição de uma

base ao estabelecer no Artigo 210 que “serão fixados conteúdos mínimos para o

ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos

valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). Assim, a Base

ampara-se na Constituição Federal, justificando e defendendo sua existência.

Porém, “respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” são

pontos pouco visíveis na Base, já que esses aspectos são mencionados no

documento de forma genérica e, na prática, sabemos que são objetos de ensino que

demandam habilidades por parte do professor. O documento deixa claro que cada

região vai adaptar seu currículo, mas em nenhum momento no próprio documento

há menção aos espaços em que esses pontos possam ser inseridos. Isso é uma

questão polêmica, já que não abordando e não aprofundando como inseri-los, o

proposto termina por negar a importância que tais aspectos apresentam na

constituição da coletividade e da consciência de pertencimento aos diferentes

espaços. Nesse sentido, Costa, Silveira e Sommer acentuam essas questões

afirmando que “Se nos EC [Estudos Culturais], a cultura é uma arena, um campo de

luta em que o significado é fixado e negociado, as escolas, sua maquinaria, seus

currículos e práticas são parte desse complexo.” (2003, p. 58, grifo do autor).

Assim, o ideal seria existir uma possibilidade de currículo apontada pela Base

que possibilitasse o respeito e a reflexão sobre as manifestações e valorizasse os

valores próprios de cada comunidade, os valores regionais. Nesse sentido, uma

alternativa seria a criação de uma base feita pelos professores de cada região,

adequada às suas realidades e não a centralização “do saber” por um grupo

minoritário que apenas diz o que deve ser feito ou supõe a realidade regional.

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Também a Base menciona a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação),

que afirma, respectivamente, no Inciso IV de seu Artigo 9º e no Artigo 26:

[...] cabe à União estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum. (BRASIL, 1996). [...] os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996).

Com o exposto, entende-se que a LDB defende uma formação básica comum

em matéria de currículo e o que é diversificado, como também expõe a Constituição,

assim, de acordo com a Base “[...] as competências e diretrizes são comuns, os

currículos são diversos.” (BRASIL, 2017, p. 9). Também a LDB defende que os

conteúdos curriculares devem desenvolver as competências, com o foco nas

aprendizagens essenciais e não apenas nos currículos. A Base disserta que essas

duas noções defendidas pela LDB são suas “noções fundantes.” (BRASIL, 2017, p.

9).

A Base defende que com embasamento nos artigos da LDB dá-se uma

orientação da concepção do conhecimento curricular contextualizado na realidade

local, social e individual da escola e dos estudantes, o que foi o norte das diretrizes

curriculares traçadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) ao longo da

década de 1990, bem como de sua revisão e substituição nos anos 2000 quando

ampliou e organizou o conceito de contextualização como “[...] a inclusão, a

valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural,

resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade”, conforme

destaca o Parecer CNE/CEB nº 7/2010.

O objetivo da BNCC de citar o Conselho Nacional e a LDB com suas

considerações é importante e necessário para demonstrar a integração e ação

conjunta dos diferentes documentos. Mas sendo a Base um documento voltado aos

currículos, deveria expor as orientações de forma incisiva nos objetos de ensino e

nas habilidades, e realmente oriunda da inserção de pensamento calcado em cada

realidade regional, o que é pouco visível. Novamente a questão da realidade local,

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social e individual da escola e dos estudantes e “[...] a inclusão, a valorização das

diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural, resgatando e

respeitando as várias manifestações de cada comunidade”. São pontos pouco

explorados e se observarmos os seguintes objetos de ensino e habilidades

“Reconstrução das condições de produção e recepção de textos - (EF06LP10)

Analisar funções sociocomunicativas de diferentes gêneros textuais. / Reflexão

sobre o conteúdo temático do texto - (EF06LP11) Identificar o tema e as ideias

principais do texto, sintetizando-os por meio de esquemas” (BRASIL, 2017, p. 117-

118) percebemos que a questão de pluralidade e diversidade cultural passa longe de

ser abordada.

Essa falta de abordagem torna os currículos que serão embasados na BNCC

fracos e mais distantes de atenderem às necessidades relacionados ao respeito e

valorização das diferentes manifestações culturais, já que se reconhece, hoje, que

há diversidade cultural, mesmo que isso não seja respeitado. Esse reconhecimento,

nas palavras de Bell Hooks (2013), foi uma revolução necessária para a aceitação e

respeito a muitos grupos sociais e a afirmação desses grupos sociais em diferentes

espaços. Embora ainda não completamente aceita, a diversidade cultural é uma

realidade que ultrapassa os limites do querer ou aceitar daqueles que resistem a ela

e, nesse sentido, a Base deveria corroborar e promover essa ideia de aceitação e

respeito à diversidade.

A BNCC também menciona o Plano Nacional de Educação (PNE), que reitera

a necessidade de estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa

[União, Estados, Distrito Federal e Municípios], diretrizes pedagógicas para a

educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos

de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do Ensino

Fundamental e Médio, respeitadas as diversidades regional, estadual e local

(BRASIL, 2014). Assim, a Base defende que o Pacto reitera a importância de uma

base nacional comum curricular com foco na aprendizagem.

Em “A BNCC e o pacto interfederativo” há a defesa da igualdade e da

equidade. Disserta-se que como o Brasil é um país com autonomia dos entes

federados, diversidade cultural acentuada e desigualdades sociais a equidade na

educação demanda currículos diferenciados, por isso não se propõe um currículo

nacional. Assim, se reconhece a presença de várias culturas que formam a

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identidade brasileira e que a diversidade é inerente ao conjunto dos alunos “[...]

inclusive no que diz respeito às experiências que trazem para o ambiente escolar e

aos modos como aprendem” (BRASIL, 2017, p. 11).

Há um paradoxo na questão abordada, pois o documento reconhece as

diversidades culturais e as desigualdades, mas nos objetos de ensino e nas

habilidades isso praticamente não aparece. Não apresenta uma possibilidade de

como inserir essas questões nos currículos. Com isso, não se propõe a reflexão

sobre temas importantes na sociedade e que fazem os sujeitos refletirem sobre suas

realidades. Destaca-se, de acordo com Hall (2006), que no contexto dos Estudos

Culturais a leitura se torna eficiente no momento que acrescenta aos elementos

estéticos o debate de uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da

diversidade cultural. Com isso, o leitor precisa ser consciente de seu papel e

reconhecer que sua visão não é a única e é primordial o respeito e aceitação das

diferentes manifestações culturais. Nesta proposta, tanto a memória cultural como a

recepção do leitor crítico são abordados como partes do processo de leitura. Nesse

sentido, a memória cultural no processo de leitura é um elemento fundamental,

segundo Bauman (2005) e Hall (2006).

O destaque de Hall (2006) nos faz refletir sobre as muitas questões que a

Base deixou de abordar, não propondo a questão da aceitação da diferença e da

diversidade, não criando condições para que o leitor reconheça que sua visão não é

a única. Isso pode ser exemplificado no eixo educação literária, no 9º ano, em que

se apresenta como uma habilidade “(EF09LP41) Analisar temas, categorias,

estruturas, valores e informações em textos literários e outras manifestações

artísticas (obras de cinema, teatro, artes visuais e midiáticas e música)” (BRASIL,

2017, p. 149), é um dos poucos pontos em que se aborda a palavra “valores” e se

percebe que a “análise” proposta é apenas do que o texto, seja escrito ou não,

apresenta, e não uma reflexão sobre o lido.

Destaca-se que, apesar de ter um eixo na Base, a literatura tem pouco

espaço, pois não está relacionada com os outros eixos de modo a propor a

interdisciplinaridade. Além disso, ele é mal elaborado e curto, deixando de

contemplar aspectos importantes ligados à educação literária. Assim, percebe-se

que o documento tem toda a sua abordagem ligada à língua portuguesa, mais

especificamente, com a linguística, deixando o textual e a literatura de lado. Isso

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demonstra que há pouco diálogo entre o literário e a língua, parecendo haver uma

concepção de leitura limitada à concepção sistêmico-funcional linguística. Do

mesmo modo, o ensino de leitura ao longo dos eixos, e principalmente no eixo de

educação literária, é instrumental e não visa um leitor literário, que leia por prazer,

que se prepare para a diferença.

A Base afirma que a instituição escolar seja aberta à pluralidade e à

diversidade e que todos tenham o mesmo acesso e direitos, independente “[...] de

aparência, etnia, religião, sexo ou quaisquer outros atributos, garantindo que todos

possam aprender” (BRASIL, 2017, p. 11). Assim, a Base defende que a equidade

“[...] reafirma seu compromisso de reverter a situação de exclusão histórica que

marginaliza muitos grupos minoritários – como os indígenas e os quilombolas – e as

pessoas que não puderam estudar ou completar sua escolaridade na idade própria”

(BRASIL, 2017, p. 11) e reafirma seu compromisso com os alunos com deficiência e

a necessidade de práticas pedagógicas inclusivas, conforme estabelecido na Lei

Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). Dessa forma,

a BNCC defende um regime de colaboração entre ela e os currículos para assegurar

a igualdade e equidade com foco sempre na aprendizagem e respeito.

Na leitura do documento, percebe-se que a Base aponta em seu “pacto

interfederativo” aspectos de pluralidade e sua preocupação em reverter situações

históricas de exclusão de grupos sociais, mas o que ela apresenta nas unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades é limitado. Com relação à área de

português, esse aspecto é inexistente. Fazendo uma pesquisa pelas palavras afro-

brasileira e indígena na parte de Língua Portuguesa não há nenhum resultado. Nas

disciplinas de Artes, Educação Física, História e Geografia a pesquisa tem

resultados, mas a abordagem nem sempre é ampla e propondo uma reflexão. Em

Artes, uma das habilidades relacionadas com essa questão é:

(EF69AR34) Analisar e valorizar o patrimônio cultural, material e imaterial, de culturas diversas, em especial a brasileira, incluindo suas matrizes indígenas, africanas e europeias, de diferentes épocas, e favorecendo a construção de vocabulário e repertório relativos às diferentes linguagens artísticas. (BRASIL, 2017, p. 169).

Também apresenta na descrição da disciplina de História o seguinte:

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A inclusão dos temas obrigatórios definidos pela legislação vigente, tais como a história da África e das culturas afro-brasileira e indígena, devem ultrapassar a dimensão puramente retórica e permitir que se defenda o estudo dessas populações como artífices da própria história do Brasil. A relevância da história desses grupos humanos reside na possibilidade de os estudantes compreenderem o papel das alteridades presentes na sociedade brasileira e se comprometerem com ela. (BRASIL, 2017, p. 351).

Embora demonstrada a presença da questão afro-brasileira e indígena no

documento, visualiza-se que isso não ocorre na disciplina de Língua Portuguesa. Ao

não abordar a questão nesta disciplina, a Base deixa de considerar a quantidade de

textos, manifestações culturais, manifestações de linguagem, etc. que tratam da

questão afro-brasileira e indígena. A existência de textos em diferentes momentos

históricos que apresentam tanto a história, a cultura, os valores e a reflexão sobre

esses povos e tantos outros povos que compõem a sociedade brasileira são

valiosos para o trabalho em sala de aula, pois podem levar os alunos a conhecer

mais esses povos, sua cultura, seu jeito de viver, sua luta pelo combate ao

preconceito e a necessidade de respeitar, valorizar e reconhecer a importância

desses povos para a constituição da identidade brasileira.

Além disso, a inserção da questão afro-brasileira e indígena é assegurada por

lei, Lei nº 10.639/200344 e Lei nº 11.645/200845, e, portanto, deveria ter uma

abordagem em um campo como o da Língua Portuguesa, um espaço de análise,

interpretação e reflexão de textos, reconhecimento de discursos, visualização de

diferentes linguagens e manifestações culturais e estudo da literatura. Ou seja, um

espaço de tantas possibilidades de reflexão com os estudantes, que pode

possibilitar debates e mudança de ponto de vista através do colocar-se no lugar do

outro e sentir sua humanidade, reconhecendo que deve haver respeito e tolerância.

Nesse sentido, relaciona-se a falta de abordagem da questão afro-brasileira e

indígena com o papel de destaque que o leitor tem no campo dos Estudos Culturais,

conforme Gomes (2010), já que a leitura é um processo de formação da cidadania

com a inclusão de novas abordagens culturais, conhecidas através da leitura de

diferentes formas. Ao não abordar essas questões, o leitor, que tem um papel de

destaque, deixa de aproveitar uma possibilidade oferecida pela leitura de formação

de cidadania e reconhecimento de diferentes grupos sociais. Além disso, conforme

Gomes (2010) a partir do contato com o texto o “[...] gosto pela leitura pode ser

despertado como uma prática de reflexão social.” (p. 28), na medida em que o leitor

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se insere em um contexto e pratica sua cidadania ao ler e realizando a reflexão

sobre o social.

Assim, “[...] o convite à reflexão social pode ser uma das saídas para associar

leitura, prazer e formação da consciência crítica do leitor.” (GOMES, 2010, p. 28) e

assim a prática de leitura associa elementos estéticos com elementos ideológicos

em uma leitura crítica da realidade. A inclusão da questão afro-brasileira e indígena

em Língua Portuguesa é uma possibilidade de reflexão social que a BNCC

desconsidera. Em relação a isso, Gomes (2010) afirma que a leitura deve valorizar a

experiência do leitor como cidadão, pois esse precisa desenvolver uma consciência

crítica de seu lugar atual, e não levar em consideração questões preconceituosas de

identificação social, para considerar a diferença como prática de aprendizagem. Isso

leva à formação de cidadãos conscientes da diferença como possibilidade cultural

de ampliação de conhecimento e respeito ao próximo.

O leitor precisa desenvolver seu lado crítico para que a leitura seja uma

prática social. Como um estudante dos anos finais pode refletir, pensar, praticar a

alteridade e deixar seus preconceitos de lado sem que seu lado crítico o e reflexivo

seja estimulado com textos? É uma questão a ser pensada e estimulada nas

escolas. Como nos Estudos Culturais está presente a interdisciplinaridade, o debate

em torno da leitura interdisciplinar pede uma postura politizada por parte de

professores e alunos. Mas, primeiramente, o leitor deve compreender as

especificidades do texto, segundo Gomes (2010). Com isso, a prioridade nesse

ensino é a questão de “[...] ‘como’ os elementos culturais estão representados na

ficção” (p. 29), abordando um leitor politizado, que passe por uma pedagogia

inclusiva, que privilegia a formação cultural do leitor e o leve a reconhecer a

diversidade cultural presente no Brasil e os diferentes grupos que formam a

identidade nacional.

Em “Base Nacional Comum Curricular e currículos”, defende-se que a Base e

os currículos “[...] reconhecem que a educação tem um compromisso com a

formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual,

física, afetiva, social, ética, moral e simbólica.” (BRASIL, 2017, p 12). Também

apresenta decisões necessárias que vão adequar as proposições da BNCC à

realidade dos sistemas ou das redes de ensino e das instituições escolares,

considerando o contexto e as características dos alunos, como: contextualizar os

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conteúdos dos componentes curriculares, identificando estratégias para apresentá-

los, com base na realidade do lugar e do tempo nos quais as aprendizagens estão

situadas; decidir sobre formas de organização interdisciplinar dos componentes

curriculares e fortalecer a competência pedagógica das equipes escolares;

selecionar e aplicar metodologias e estratégias didático-pedagógicas diversificadas,

para trabalhar com as necessidades de diferentes grupos de alunos, suas famílias e

cultura de origem, suas comunidades, seus grupos de socialização etc.; conceber e

pôr em prática situações e procedimentos para motivar e engajar os alunos nas

aprendizagens; construir e aplicar procedimentos de avaliação formativa de

processo ou de resultado e usar tais registros para melhorar o desempenho da

escola, dos professores e dos alunos; selecionar, produzir, aplicar e avaliar recursos

didáticos e tecnológicos; criar e disponibilizar materiais de orientação para os

professores; manter processos contínuos de aprendizagem sobre gestão

pedagógica e curricular. (BRASIL, 2017).

Essas decisões apresentadas pela Base para se adequar à realidade dos

sistemas ou das redes de ensino e das instituições escolares, considerando o

contexto e as características dos alunos são importantes e necessárias, mas são

distantes do que se apresenta nos objetos de ensino e nas habilidades, além de

esses pontos não serem mencionados em nenhum outro momento no documento.

Reflete-se sobre como contextualizar os conteúdos dos componentes curriculares,

identificando estratégias para apresentá-los, com base na realidade do lugar e do

tempo nos quais as aprendizagens estão situadas, na medida em que isso é um

aspecto necessário, mas se observarmos o exposto a seguir, das habilidades de

Língua Portuguesa, percebe-se que a abordagem é fraca:

(EF69LP07) Estabelecer expectativas (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da função do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero textual, suporte e universo temático, bem como sobre saliências textuais, recursos gráficos, imagens, dados da própria obra (índice, prefácio etc.), confirmando antecipações e inferências realizadas antes e durante a leitura de textos. (BRASIL, 2017, p. 119).

Essa contextualização de conteúdo não é possível de ser identificada na

habilidade apresentada, visto que não se situa a que realidade de aluno se aplica e

não se considera o tempo de aprendizagem de cada aluno. Além disso, a

abordagem textual é de mera análise de função, dos recursos, como prefácio, forma,

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suporte e universo temático, mas sem reflexão, relação com o social e

manifestações culturais. Nesse sentido, o próprio papel do professor não deve ser

mais o de mero transmissor de conhecimento, que apenas aborda os aspectos da

habilidade exposta acima, mas sim ser um produtor cultural, em que as práticas

pedagógicas privilegiem experiências em que os estudantes possam enxergar o

caráter socialmente construído “[...] de seus conhecimentos e experiências, num

mundo extremamente cambiante de representações e valores” (GIROUX, 1995, p.

101).

Mas para que o professor possa assumir seu papel de produtor cultural é

necessário que ele esteja preparado para práticas diárias em sala de aula que

contemplem questões de etnia, gênero, combate ao preconceito e à intolerância,

respeito aos direitos humanos, abordagem das minorias sociais, entre tantas outras

questões indispensáveis que precisam estar no contexto pedagógico. O que ocorre

é que essa preparação necessária ao professor nem sempre acontece, ou seja, nem

todos os professores têm preparo para abordar essas questões, muitos por não

terem uma formação que contemple essas questões, outros por não buscarem

conhecer o assunto. O resultado disso é a não abordagem desses assuntos em aula

e a falta de respeito e produção cultural.

Esse mundo cambiante de representações e valores não é considerado na

disciplina de Língua Portuguesa no documento. Isso é preocupante, pois nosso

mundo é assim, nossa sociedade está em constante transformação, que muda seus

valores e apresenta uma diversidade cultural enorme. O trabalho com a disciplina

nessa perspectiva deve considerar as diversas possibilidades de abordagem dos

textos, textos variados e podendo realizar reflexão em uma perspectiva de

construção de cidadania e transformação social.

Em “Base Nacional Comum Curricular e regime de colaboração” explica-se

que a Base dependerá do adequado funcionamento do regime de colaboração, com

cada ente federado com suas responsabilidades e a União continuando com seu

papel de coordenação e correção das desigualdades. Além disso:

A primeira tarefa de responsabilidade direta da União será a revisão da formação inicial e continuada dos professores para alinhá-las à BNCC. A ação nacional será crucial nessa iniciativa, já que se trata da esfera que responde pela regulação do ensino superior, nível no qual se prepara grande parte desses profissionais. Diante das evidências sobre o peso do professor na determinação do desempenho do aluno e da escola de

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educação básica, essa é uma condição indispensável para a implementação da BNCC. (BRASIL, 2017, p. 15).

Observa-se na questão da formação de professores um ponto polêmico. Em

cada ente federado é possível encontrar problemas relacionados com a questão

docente, seja por atrasos de salário, não pagamento do piso salarial,

desvalorização, salas lotadas, alunos sem respeito, estruturas problemáticas,

carência de materiais, falta de diálogo em decisões educacionais entre escolas e

órgão responsáveis por documentos e diretrizes, jogos políticos, etc. Todas essas

questões representam atrasos e diminuição da qualidade do ensino. Esses são

problemas já existentes e longe de serem resolvidos.

Conforme a citação anterior, caberá à união a revisão da formação inicial dos

professores em um diálogo com o ensino superior para um alinhamento com a Base.

Mas a questão é: com os tantos problemas relacionados com a questão docente não

resolvidos, como será essa revisão da formação? A discussão aqui não é a

necessidade ou não de revisão da formação, apesar de isso sempre ser algo

importante, mas sim a reflexão de que talvez aumentem os problemas em relação à

docência, visto que há profissionais na educação com uma formação tradicional,

outros que não possuem curso superior, outros que pouco ou nada conhecem de

documentos oficiais, outros trabalham em escolas muito precárias em que a

prioridade, às vezes, não é exatamente o ensino, e, portanto, são problemas que

deveriam ser sanados antes de uma revisão da formação alinhada à Base.

O documento pressupõe um professor longe de existir, pois, para ser possível

essa formação com o objetivo de alinhar à Base, é necessário um professor com

condições para que isso ocorra. Outra questão é o fato de a própria BNCC

apresentar problemas e, no caso da Língua Portuguesa, não tratar a leitura com seu

devido valor, em um foco social e ênfase na construção da cidadania dos indivíduos.

Então o objetivo da união é realizar uma formação alinhada a um documento com

pontos polêmicos e fracos, e isso torna-se mais uma vez um atraso e um empecilho

à qualidade da educação.

Em “Os fundamentos pedagógicos da BNCC”, defende-se que os conteúdos

curriculares estão a serviço do desenvolvimento das competências e que os direitos

de aprendizagem sejam assegurados a todos os alunos. Também descreve que hoje

há um olhar inovador sobre o processo educativo, com o questionamento do que

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aprender, para que aprender, como ensinar, como promover redes de aprendizagem

colaborativa e como avaliar o aprendizado. O novo cenário exige muito mais do que

o acúmulo de informações, mas sim a comunicação, a criatividade, a análise, a

crítica, a participação, etc. É necessário saber lidar com as informações cada vez

mais abundantes, aplicar conhecimento para resolver problemas e ter autonomia

para tomar decisões.

Os fundamentos do documento são bons e descrevem o que realmente é

importante na educação. Mas ao ler as unidades temáticas, os objetos de

conhecimento e as habilidades, os fundamentos descritos no parágrafo anterior não

ficam evidentes, ou seja, o currículo apresentado pela Base requer o

aprofundamento de muitos pontos. No conteúdo do 7º ano, na unidade temática

“Estratégias de Leitura”, são encontradas as seguintes habilidades:

(EF07LP07) Localizar, em texto, informação explícita relativa à descrição de determinado processo, objeto, fato, lugar ou pessoa. (EF07LP08) Selecionar e organizar informações explícitas e implícitas, em diferentes suportes de textos, para realizar ações e resolver problemas. (EF07LP09) Inferir informação pressuposta ou subentendida, com base na compreensão do texto. (EF07LP10) Relacionar tópicos discursivos, valores e sentidos veiculados por um texto a seu contexto de produção, de circulação e de recepção (objetivo da interação textual, suportes de circulação, lugar social do produtor, contexto histórico, destinatário previsto etc.). (EF07LP11) Elaborar paráfrases e resumos do texto lido, com base na organização das informações. (EF07LP12) Deduzir, pelo contexto semântico e linguístico, o significado de palavras e expressões desconhecidas. (EF07LP13) Interpretar verbetes de dicionário, identificando a estrutura, as informações gramaticais (significado de abreviaturas) e as informações semânticas. (EF07LP14) Distinguir, em segmentos descontínuos de textos, fato da opinião explícita enunciada em relação a esse mesmo fato. (EF07LP15) Estabelecer relações entre partes do texto, identificando substituições lexicais (de substantivos por sinônimos) ou pronominais (uso de pronomes anafóricos – pessoais, possessivos, demonstrativos), que contribuem para a continuidade do texto. (EF07LP16) Analisar, em diferentes textos, os efeitos de sentido decorrentes do uso de recursos linguístico-discursivos de prescrição, causalidade, sequências descritivas e expositivas e ordenação de eventos. (EF07LP17) Identificar, em textos, os efeitos de sentido do uso de estratégias de modalização e argumentatividade. (EF07LP18) Explorar o espaço reservado ao leitor nos órgãos de informação impresso ou on-line, destacando assuntos, temas, debates em foco, posicionando-se sobre eles. (EF07LP19) Analisar formas e conteúdos de textos publicados em suportes impressos e on-line e a sua relação com o leitor. (EF07LP20) Distinguir, em textos multimodais, relações de reiteração, complementação ou oposição entre informações visuais ou verbo-visuais e informações escritas. (BRASIL, 2017, p. 128- 129).

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É possível refletir se as habilidades citadas estão de acordo com um olhar

inovador sobre o processo educativo, pois apenas analisar e identificar efeitos de

sentido em textos não é nada de novo. Além disso, Johnson, ao abordar o “texto”,

declara que este não pode ser mais estudado por ele próprio e nem por efeitos

sociais que pensa que ele produz, mas sim “[...] pelas formas subjetivas ou culturais

que ele efetiva e torna disponíveis” (2010, p. 75). Para o autor, o texto é apenas um

meio nos Estudos Culturais, é um material bruto que fornece muito a ser abstraído.

Dessa forma, o objeto último não é o texto, e sim “[...] a vida subjetiva das formas

sociais em cada momento de sua circulação, incluindo suas corporificações textuais”

(2010, p. 75). Com isso, os efeitos de sentido nos textos devem ser abordados com

base nos processos culturais em que tais textos estão inseridos.

Ao pensar a leitura em uma perspectiva em que o texto em si não é o mais

importante, e sim as relações que estabelece e as formas culturais que aborda,

Gomes (2010) afirma que o leitor tem um papel de destaque e a leitura faz parte de

um processo de formação de cidadania, incluindo abordagens culturais e

especificidades do texto. Observa-se que os objetos de ensino e as habilidades

destacados na citação acima não contemplam essa propriedade da leitura, pois não

tem um foco nas formas culturais e não possibilita um processo de formação da

cidadania, já que é o espaço dedicado à leitura na área de português, porém

apresenta uma abordagem limitada, já que apenas “Distinguir, em segmentos

descontínuos de textos, fato da opinião explícita enunciada em relação a esse

mesmo fato” ou “Estabelecer relações entre partes do texto, identificando

substituições lexicais (de substantivos por sinônimos) ou pronominais (uso de

pronomes anafóricos – pessoais, possessivos, demonstrativos), que contribuem

para a continuidade do texto” não leva o leitor a um papel de destaque e nem aborda

as especificidades do texto. Assim, percebe-se que não há a presença da

perspectiva literária para fazer a interlocução com a Língua Portuguesa, pois o foco

é o texto em si e não as relações que estabelece com as formas culturais e com o

meio social.

Além disso, a leitura, na perspectiva dos Estudos Culturais, torna-se eficiente

quando acrescenta aos elementos estéticos uma reflexão sobre a prática inclusiva e

aceitação da diferença e diversidade cultural, de acordo com Hall (2006). No exposto

na citação do documento não se visualiza isso, não se depreende essa reflexão

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sobre a questão da inclusão, da diferença e da diversidade cultural, pontos tão

importantes para serem discutidos e pensados na escola, um espaço que deveria

ser de quebra de preconceitos e aceitação.

No documento se destaca o questionamento do que aprender, para que

aprender, como ensinar, como promover redes de aprendizagem colaborativa e

como avaliar o aprendizado, porém são aspectos não tão visíveis nos objetos de

ensino e nas habilidades. Quando se aborda a “Reconstrução das condições de

produção e recepção de textos” e a habilidade “Relacionar tópicos discursivos,

valores e sentidos veiculados por um texto a seu contexto de produção, de

circulação e de recepção [...]” e a “Reflexão sobre o conteúdo temático do texto” e a

habilidade “Elaborar paráfrases e resumos do texto lido, com base na organização

das informações” não se visualiza um questionamento sobre o que aprender, para

que aprender e como ensinar, além de não se dar um foco à leitura, mas sim sobre

questões estruturais do texto. Nesse sentido, para Freire (1989), a leitura não se

esgota na decodificação da palavra ou linguagem escrita, “[...] mas se antecipa e se

alonga na inteligência do mundo” (p. 9) e isso não se depreende nas habilidades

expostas, pois o que mais se propõe é a decodificação da palavra.

Ao abordar, no conteúdo do 7º ano, a questão da “Recuperação da

intertextualidade e estabelecimento de relações entre textos” com as habilidades

“Explorar o espaço reservado ao leitor nos órgãos de informação impresso ou on-

line, destacando assuntos, temas, debates em foco, posicionando-se sobre eles”,

“Analisar formas e conteúdos de textos publicados em suportes impressos e on-line

e a sua relação com o leitor” e “Distinguir, em textos multimodais, relações de

reiteração, complementação ou oposição entre informações visuais ou verbo-visuais

e informações escritas” a verdadeira intertextualidade na verdade não aparece, ou

seja, cita a recuperação da intertextualidade, mas as habilidades não possibilitam

isso, visto que apenas descrevem atividades de análise e exploração nos textos. O

que de fato deveria ser abordado ao se falar em interdisciplinaridade deveria ser,

conforme Japiassu (1976), o rompimento das barreiras entre as disciplinas,

encorajar os estudos sem ideias impostas e incentivar os indivíduos a atuar sem

medo de usar suas potencialidades.

Além disso, o trabalho com a interdisciplinaridade em sala de aula diz respeito

a um trabalho entre disciplinas e na mesma disciplina não haver barreiras entre os

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temas desenvolvidos, possibilitando, por exemplo, um estudo de textos em todas as

suas potencialidades. Nesse sentido, Fazenda (1994) disserta que não se trata de

uma categoria de conhecimento, mas sim uma categoria de ação, ela nos conduz a

um exercício de conhecimento: o perguntar e o duvidar, ou seja, uma atividade que

possibilita ao estudante refletir sobre o que está aprendendo e criar suas próprias

perguntas e respostas sobre o mundo. Destaca-se que “[...] a interdisciplinaridade é

a arte do tecido que nunca deixa ocorrer o divórcio entre seus elementos, entretanto,

de um tecido bem traçado e flexível” (p. 29) e ela se desenvolve a partir do

desenvolvimento das próprias disciplinas.

No conteúdo do 8º ano, aborda a “Recuperação da intertextualidade e

estabelecimento de relações entre textos”, com as seguintes habilidades:

(EF08LP18) Analisar, criticamente, as relações entre mídia, sociedade e cultura, e os efeitos das novas tecnologias na cognição e na organização social. (EF08LP19) Justificar formas e conteúdos de textos publicados em suportes impressos e on-line e a sua relação com o leitor. (BRASIL, 2017, p. 137).

Ao ler tais habilidades relacionadas com a interdisciplinaridade, reflete-se

sobre como é possível esta ser desenvolvida apenas analisando e justificando

detalhes em textos, já que, de acordo com Fazenda, a condição primeira para

efetivação da interdisciplinaridade é o desenvolvimento da sensibilidade, em que se

tenha uma formação “[...] que pressuponha um treino na arte de entender e esperar,

um desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação.” (2002, p. 8). A questão

metodológica é indiscutível, mas ela não é um fim, já que a interdisciplinaridade não

se ensina ou se aprende, mas se vive, se exerce. Assim, o ideal é possibilitar que o

aluno exerça sua imaginação e sensibilidade, sendo possível criar coisas novas

relacionadas com seu contexto e isso não fica evidente na abordagem do

documento.

É necessário que o sujeito disponha de condições no mundo que o rodeia

para que aconteça o desenvolvimento da sensibilidade e o impulso à imaginação.

Mas isso é algo que a BNCC não prevê, pois fala-se em formação crítica, reflexiva e

até formação discursiva, conhecimento prévio, mas não se prevê que o sujeito que

chega até a escola deva ter condições de desenvolvimento cultural, como acesso a

cinemas, museus, bibliotecas, etc. Ele chega, portanto, com uma enorme defasagem

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de leitura, pois não está habituado a ler na sua vivência social. Esse déficit aumenta

à medida que se tenta inseri-lo em mundos simbólicos mais complexos,

pressupostos para que aconteça a educação formal. Acontece então um

distanciamento maior ainda do aluno pelo gosto da leitura e pelo conhecimento.

No conteúdo do 9º ano, aborda a “Recuperação da intertextualidade e

estabelecimento de relações entre textos”, com as habilidades de “(EF09LP20)

Justificar diferenças ou semelhanças no tratamento dado a uma mesma informação

veiculada em textos diferentes” e “(EF09LP21) Avaliar, criticamente, a qualidade e a

validade da informação veiculada em diferentes textos” (BRASIL, 2017, p. 145).

Conforme as habilidades expostas, não é possível identificar um verdadeiro trabalho

interdisciplinar, o que não possibilita um leitor atento aos artifícios do jogo narrativo

para poder desfrutar a grande quantidade de citações sociais e culturais que os

textos, literários ou não, trazem.

Quando o leitor realiza a leitura, “[...] o que está sendo lido pode ser

interpretado a partir dos códigos culturais e artísticos que foram usados para a

construção da narrativa” (GOMES, 2010, p. 32). Assim, o leitor mobiliza diferentes

questões que foram utilizadas na elaboração do texto e realiza a interpretação, com

base no seu conhecimento prévio e nas suas experiências culturais. Com isso, a

questão da identidade é “[...] construída multiplamente ao longo dos discursos,

práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas” (HALL, 2000, p. 108).

Nesse sentido, o texto é herança de uma coletividade, mas essa propriedade não é

possível de ser desenvolvida com base nas habilidades anteriormente citadas, já

que apenas justificar semelhanças e diferenças no tratamento dado às informações

é um exercício mecânico, que não possibilita a criatividade e a imaginação do aluno.

No eixo escrita, descrito como “Práticas de produção de textos verbais, verbo-

visuais e multimodais de diversos gêneros textuais”, em que se propõe a diversidade

nas produções textuais, explorando não apenas textos escritos, na unidade temática

“Estratégias durante a produção do texto”, no conteúdo do 7º ano, estão presentes

os seguintes objetos de ensino e habilidades:

Texto argumentativo ou de reivindicação: (EF07LP21) Produzir textos argumentativos ou reivindicatórios sobre problemas que afetam a vida escolar ou a vida da comunidade, justificando pontos de vista e reivindicações. Texto publicitário:

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(EF07LP22) Produzir textos publicitários, relacionando elementos verbais e visuais, utilizando adequadamente estratégias discursivas de convencimento e criando título ou slogan que faça o leitor motivar-se a interagir com o texto produzido. Quadro, tabela e gráfico: (EF07LP23) Organizar, esquematicamente, informações oriundas de pesquisas, com ou sem apoio de ferramentas digitais, em quadros, tabelas ou gráficos. Procedimentos linguístico-gramaticais e ortográficos: (EF07LP24) Utilizar, ao produzir texto, conhecimentos linguísticos e gramaticais: modos e tempos verbais, concordância nominal e verbal, pontuação etc. Procedimentos estilístico-enunciativos: (EF07LP25) Utilizar, ao produzir texto, recursos de coesão referencial (léxica e pronominal) e sequencial e outros recursos expressivos adequados ao gênero textual. (BRASIL, 2017, p. 130-131).

Observa-se no exposto diferentes recursos e possibilidades de produção,

porém há mais um acúmulo de informações do que a possiblidade de estímulo da

criatividade e do senso crítico, o que contradiz os próprios fundamentos descritos no

documento. Nesse sentido, Freire (1989) destaca que a linguagem está diretamente

ligada com a realidade, elas se prendem em uma relação dinâmica, com isso

percebe-se que as proposições da citação não contemplam essa relação entre a

linguagem e a realidade em uma relação dinâmica.

Para compreender um texto, através de uma leitura crítica, é necessário

conhecer as relações entre o texto e o seu contexto de produção, a mesma situação

ocorre com a produção de texto. Com isso, a leitura estabelece uma relação com a

realidade que a cerca, na medida em que os textos são produzidos em um

determinado espaço social e com determinada visão de mundo, situações que

determinam não só o conteúdo do texto, mas também as suas posições ideológicas

e essas propriedades não são contempladas no exposto do documento.

A Base descreve uma concepção de conhecimento engajado e comprometido

com o desenvolvimento do ser e com a educação integral, entendida como formação

e desenvolvimento humano global, independentemente da jornada de trabalho, não

confundindo com escola em tempo integral. Assim, a Base está comprometida com

processos educativos que promovam aprendizagens “[...] sintonizadas com as

necessidades, as possibilidades e os interesses dos alunos e, também, com os

desafios da sociedade contemporânea, de modo a formar pessoas autônomas,

capazes de se servir dessas aprendizagens em suas vidas (BRASIL, 2017, p. 17). A

Base defende que os componentes curriculares estabelecidos por ela visam “[...] à

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aprendizagem e ao desenvolvimento global do aluno” (BRASIL, 2017, p. 17), a

superação da fragmentação disciplinar do conhecimento, o estímulo à aplicação dos

conhecimentos na vida real, o protagonismo do aluno e a contextualização para dar

sentido ao ensinado.

Em relação ao exposto, observa-se que os objetos de ensino e as habilidades

não privilegiam exatamente esse interesse dos alunos descrito acima, já que não

possibilita espaços em que se possa adaptar o que seja de interesse dos alunos e

algo voltado para os desafios da sociedade contemporânea, no entanto isso é

essencial. O que mais se aborda ainda é o texto escrito que, observado no interior,

sem o estabelecimento de relações com o mundo, se torna desinteressante para um

aluno com textos diversos disponíveis em tantos suportes. Mas em relação aos

textos, Canclini (2008) destaca que a educação e a formação de leitores e

espectadores críticos costumam frustrar-se pela persistência de desigualdades

sociais e econômicas, mas também porque ainda há um desdobramento de políticas

culturais voltadas para um cenário anterior ao digital. O autor disserta que há uma

insistência pela formação de leitores de livros e não se contempla outras linguagens,

enquanto a indústria está unindo as linguagens e combinando espaços. Isso é um

desacordo que apenas prejudica o desenvolvimento de leitores culturais em todos os

sentidos.

Além disso, ao abordar a superação da fragmentação disciplinar e manter as

disciplinas bem separadas em relação aos objetos de ensino e habilidades ocorre

um paradoxo e não possibilita a interdisciplinaridade, que é essencial pois responde

a uma série de demandas surgidas ao longo dos tempos, de acordo com Japiassu

(1976). Elas podem ser destacadas como um auxílio à ciência, pela necessidade de

criar um fundamento ao surgimento de novas disciplinas, uma reivindicação

estudantil contra o saber cortado, pois a realidade é global é multidimensional, a

precisão por uma formação profissional que não seja voltada apenas para uma

especialidade e a demanda social por novos temas de estudo que não sejam

fechados nas disciplinas já existentes. Pensando assim, o estudo cultural “[...] opera

com uma concepção interdisciplinar que utiliza teoria social, economia, política,

história, comunicação, teoria literária e cultural, filosofia e outros discursos teóricos.”

(KELLNER, 2001, p. 42). Mas esse diálogo é pouco visível na Base.

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A Base adota dez competências gerais, ancorada nos princípios éticos,

políticos e estéticos preconizados nas DCN, “[...] que se inter-relacionam e

perpassam todos os componentes curriculares ao longo da Educação Básica,

sobrepondo-se e interligando-se na construção de conhecimentos e habilidades e na

formação de atitudes e valores, nos termos da LDB.” (BRASIL, 2017, p. 18). Tais

competências são expostas a seguir em blocos e numeradas:

1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social e cultural para entender e explicar a realidade (fatos, informações, fenômenos e processos linguísticos, culturais, sociais, econômicos, científicos, tecnológicos e naturais), colaborando para a construção de uma sociedade solidária.

Ao abordar os conhecimentos historicamente construídos o documento

reafirma a exclusão e a desigualdade social, visto que esses conhecimentos foram

construídos por uma sociedade excludente, que fez isso justamente para manter seu

posto de dominação e hierarquia. Ao propor isso, o documento apenas retoma um

discurso antigo e que não possibilita ao estudante, principalmente aquele

socialmente excluído, o estímulo da sua criticidade, criatividade, imaginação,

reflexão, diálogo e não lhe dá voz para expor sua realidade e o que pensa sobre o

mundo, assim, não se repensa a leitura em uma perspectiva política. Com isso, há

apenas uma transmissão de conhecimento, pois não se propõe possibilidades de

novos conhecimentos e nem de rever aqueles conhecimentos antigos, excludentes,

preconceituosos e pouco significativos. Nesse sentido, o ideal seria buscar

politicamente conhecer os diferentes movimentos sociais, mas em uma perspectiva

de mudança, luta por igualdade de direitos e deveres e denúncia social, entre tantas

outras questões, e valorizar o que de fato possibilita a igualdade e o respeito,

conforme a perspectiva dos Estudos Culturais.

Os verbos “valorizar” e “utilizar” também trazem limitações, pois o ideal seria

refletir, repensar e promover a reconstrução dos conhecimentos adquiridos, já que

vivemos hoje numa sociedade que se encontra, inclusive, numa crise moral e de

costumes, sociedade que vive uma guerra política e de classes, que vive uma crise

ética, que tem um passado e um presente de preconceito e de exploração, que

violenta, que é corrupta, que observa corrupção e miséria, que não sabe discernir

sobre tantas questões, em que se justifica o estupro pelas roupas curtas de uma

mulher, em que se discrimina homossexual em nome da moral e dos bons

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costumes, em que se recrimina determinados conteúdos às crianças, mas se

permite que elas sejam sexualizadas, maltratadas e abandonadas.

Essa sociedade necessita de reflexão, diálogo, de rever seus conceitos e

repensar suas atitudes. Não se pode generalizar, mas o coletivo acaba sofrendo as

consequências dessas atitudes, mesmo que elas sejam de apenas uma parcela das

pessoas. Sem repensar e refletir continuaremos tendo casos de homofobia, racismo,

estupro, preconceito e tantas outras questões. Nesse sentido, o que a Base propõe,

em grande parte, ainda está relacionada a um poder de determinadas classes e

grupos sociais, interessados em não discutir determinados assuntos. Esse poder, de

acordo com Foucault (2004), funciona em cadeia, em rede e atinge a todos. O poder

passa pelos indivíduos, assim o que existe são relações de poder.

Com seus mecanismos, o poder tem força e controla os indivíduos, mas para

exercer-se nesses mecanismos ele se organiza em torno de um saber e esse saber

atua como uma disciplina a ser seguida pelas pessoas, que assim sempre estão nas

relações de poder. Por se tratar de um documento voltado à educação em nível

nacional e dada a sua importância deveria privilegiar questões dos Estudos Culturais

como as descritas por Restrepo (2015) ao abordar “[...] algumas intervenções como

a gestão cultural e qualquer tipo de articulação com movimentos sociais (sobretudo

com os movimentos étnicos)” (p. 22), assim, estaria de acordo com o social, em que

se pensa a realidade e articula-se com os anseios sociais.

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e inventar soluções com base nos conhecimentos das diferentes áreas.

Em relação a esta competência, destaca-se o fato de privilegiar

exclusivamente o saber intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, em

uma referência apenas para aqueles conhecimentos considerados “úteis, bons e

necessários”, desconsiderando que existem tantas possibilidades de conhecimento

espalhadas em tantos espaços sociais, mas que são excluídos por não terem o seu

valor reconhecido por quem detêm o poder de dizer o que é bom ou ruim. Porém, é

necessário refletir sobre essa questão, pois muitas práticas sociais e processos

históricos, relacionados com a cultura popular e meios de comunicação de massa,

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de acordo com Escosteguy (2010) ficam fora dessa configuração apresentada pelo

documento.

Além disso, ao relacionar com os Estudos Culturais essa saber intelectual

também se torna conflitante, pois esse campo se orgulha de não ter que depender

de nenhuma doutrina, por se tratar, de acordo com Schulman (2010), “[...] como

sendo altamente contextuais – como um modo de análise variável, flexível, crítico”

(p. 180). Com isso o campo aborda uma ampla variedade de questões relacionadas

à cultura e utilizam os mais variados meios, sendo, por isso, um campo com a

potencialidade de relacionar o textual, cultural, social e político e realizar uma

análise da sociedade através de mecanismos culturais.

Assim, se pensada a questão intelectual a partir dos Estudos Culturais

percebe-se que muitas questões são deixadas de lado na Base, por desconsiderar o

que vem da cultura popular, os movimentos sociais, como o feminismo e aqueles

relacionados às questões de gênero, raça e etnia e a diversidade cultural. Nesse

sentido, Hooks (2013) disserta que muitos acreditam que a diversidade vai

confrontar seu conhecimento, significando uma perda de autoridade. A autora afirma

que “Certas pessoas acham que todos os que apoiam a diversidade cultural querem

substituir uma ditadura do conhecimento por outra, trocar um bloco de pensamento

por outro. Talvez seja essa a percepção mais errônea da diversidade cultural” (2013,

p. 49). A diversidade é justamente a aceitação de que não existe apenas uma ideia e

manifestação, mas várias e que há espaço para todos. Nunca será substituir algo

que já existe por outro, mas aceitar e abarcar todas as dimensões possíveis, como

forma de integrar as dimensões da diferença com respeito e sem discriminação.

Também se destaca o uso do “inventar soluções” na última competência

citada. Esse verbo parece muito vago, inventar é muito genérico, pois em questão

de educação, conhecimento e valores não se inventa nada a partir de nada, mas sim

se pensa, reflete, dialoga, analisa para então possibilitar soluções aos problemas.

3. Desenvolver o senso estético para reconhecer, valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também para participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural. 4. Utilizar conhecimentos das linguagens verbal (oral e escrita) e/ou verbo-visual (como Libras), corporal, multimodal, artística, matemática, científica, tecnológica e digital para expressar-se e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e, com eles, produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.

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5. Utilizar tecnologias digitais de comunicação e informação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas do cotidiano (incluindo as escolares) ao se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos e resolver problemas. 6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao seu projeto de vida pessoal, profissional e social, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

Em relação a essa competência, avalia-se como positiva a questão da

valorização da diversidade de saberes e vivências culturais e a menção à liberdade,

consciência crítica e responsabilidade. Porém, importante destacar um ponto que

talvez tenta ser mostrado como inocente ou necessário de ser destacado, mas que

pode não ser tão inocente, que é a questão das “relações próprias do mundo do

trabalho”. É importante que o estudante tenha conhecimento e saiba opinar sobre o

mundo do trabalho e que este pense em si no futuro, mas sendo um documento

voltado ao ensino fundamental, sabe-se que o aluno ainda tem uma caminhada para

realmente estar no mundo do trabalho.

O discurso que pode estar escondido nessas palavras é o de preparar o

estudante para o mundo do trabalho, desconsiderando seu percurso enquanto ser

humano livre e pensante, que precisa desenvolver suas habilidades de percepção

estética, crítica e reflexiva sobre o mundo. O ideal seria examinar as questões de

trabalho como práticas sociais de um ponto de vista cultural, tal como pondera

Johnson (2010), pois todas as manifestações sociais apresentam focos de cultura

que podem ser examinados em uma perspectiva crítica, de denúncia social.

Na sequência das competências gerais da Base:

7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos e a consciência socioambiental em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. 8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas e com a pressão do grupo. 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer.

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Os valores e o respeito descritos na competência acima são fundamentais, o

problema é que nos objetos de ensino e nas habilidades eles praticamente não

aparecem, ou seja, não se propõe, na parte descritivas de cada ano de ensino,

atividades que de fato possibilitem o respeito e tratem do preconceito. As atividades

em Língua Portuguesa não proporcionam um trabalho com textos variados, que

levem o aluno a refletir sobre o preconceito existente e sobre o quanto isso faz os

indivíduos sofrerem e deixa marcas negativas em seu desenvolvimento. Isso se

percebe nas habilidades de leitura do 6º ano, em que se apresenta “(EF06LP07)

Localizar e hierarquizar informações em textos. (EF06LP08) Selecionar e organizar

informações explícitas e implícitas, para realizar ações e resolver problemas.

(EF06LP09) Inferir informações em textos.” (BRASIL, 2017, p. 117). Essas

habilidades apenas incitam a busca, seleção organização e inferência de

informações em textos, mas não o diálogo, a reflexão e a noção de que fazemos

parte de uma coletividade em que cada um é diferente.

Com isso, sabe-se que hoje o mais importante não é o aspecto estético e

dizer se a obra é boa ou não, se pertence ao cânone ou não. O mais importante é se

o produto cultural, seja escrito, falado, desenhado, esculpido, etc., provoca a

reflexão do leitor, permitindo que esse estabeleça relações com a própria vida e

produza novos e diferentes significados. Essas manifestações possibilitam reflexões

variadas e um meio crítico de ver a sociedade atual e suas relações sociais, políticas

e de poder.

10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões, com base nos conhecimentos construídos na escola, segundo princípios éticos democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2017, p. 18-19).

Essa última competência traz uma lacuna ao abordar os “conhecimentos

construídos na escola”, pois não é só na escola que se constrói conhecimento, mas

em todos os espaços sociais, seja na família, na rua, na praça, em estabelecimentos

culturais e comerciais, etc. Ao abordar apenas o que “se constrói na escola”, passa a

mensagem de que está desconsiderando tudo o que o aluno já sabe, toda a

bagagem que ele traz consigo, sendo uma forma de preconceito ao que não é

produzido na escola. Assim, a visão apresentada pela BNCC é excludente e elitista,

pois a escola tradicionalmente aborda conhecimentos mais ligados às elites, e mais

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distantes daqueles excluídos socialmente. Com isso, desconsidera a questão

cultural com sua diversidade, pois a cultura é entendida como um aspecto

importante de conhecimento da própria sociedade, já que está ligada a todas as

práticas sociais e essas práticas são as próprias atividades humanas, das quais as

pessoas vivem e fazem tanto as suas histórias, como a história da própria

sociedade. A cultura é percebida como um diálogo entre o ser e a consciência

social, que são inseparáveis, sendo definida:

[...] cultura ao mesmo tempo como os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de existência e respondem a estas, e também como as tradições e práticas vividas através das quais esses entendimentos são expostos e nos quais estão incorporados (HALL, 2003, p. 142).

Assim, a cultura não é exclusiva de alguns grupos sociais, mas de todos. Ela

está em toda parte. Sendo assim, tudo o que é produzido por diferentes grupos

sociais é de importância para ser estudado, analisado e valorizado e não apenas o

que se dissemina na escola. Ao observar as habilidades de leitura do 6º ano

“(EF06LP10) Analisar funções sociocomunicativas de diferentes gêneros textuais.

(EF06LP11) Identificar o tema e as ideias principais do texto, sintetizando-os por

meio de esquemas.” (Brasil, 2017, p. 119) percebe-se que a prioridade realmente é

o que a escola apresenta como conhecimento, desconsiderando outras

potencialidades dos textos que podem ser da vivência dos alunos.

Ao definir essas dez competências, a BNCC explicita o compromisso da

educação brasileira por ela defendida com a formação humana integral e com a

construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. Mas deixa muitos

pontos com lacunas, por apresentar definições não condizentes com os reais

anseios e necessidades sociais.

Na “Estrutura da BNCC”, explica-se que o documento apresenta as etapas da

Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Esta última é o foco do estudo, que

apresenta as áreas do conhecimento e em cada uma há competências específicas

que devem ser promovidas ao longo dos nove anos. Elas explicitam como as dez

competências gerais do documento se expressam nas áreas. Para o seu

desenvolvimento, de forma específicas, cada componente curricular possui um

conjunto de habilidades. Elas relacionam-se a diferentes objetos de conhecimento,

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entendidos como conteúdos, conceitos e processos, que são organizados em

unidades temáticas. Cada uma é identificada com um código alfanumérico,

estruturado de acordo com a área e o ano ou bloco de ano e a posição da habilidade

no ano ou bloco de anos. Essas habilidades “[...] expressam as aprendizagens

essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos

escolares” (BRASIL, 2017, p. 27).

Em “A etapa do Ensino Fundamental”, especificamente “A área de

linguagens”, foco principal do estudo, expõe-se que as atividades humanas

costumam ser vistas ocorrendo no eixo da ação sobre as coisas, em que o homem

transforma a natureza, a produção, e no eixo da ação sobre os outros homens, a

comunicação, a relação entre sujeitos.

O documento aponta que se a linguagem é comunicação isso pressupõe

interação entre as pessoas que participam do ato comunicativo com e pela

linguagem. Esta não é uma criação em si, mas um sistema de sentidos múltiplos e

um processo discursivo. É pela linguagem que o homem se constitui sujeito social e

interage no mundo. Disserta que os “[...] conhecimentos humanos são sempre

construídos por formas de linguagem” (BRASIL, 2017, p. 59) e considera a esta

como sendo verbal (fala e escrita), não verbal (visual, gestual, corporal, musical) e

multimodal (integração de formas verbais e não verbais), ou seja, concede um

conceito amplo de linguagem. Nesse sentido, é necessário conhecer as estruturas

profundas da linguagem para compreender melhor os textos.

A Base aponta que os componentes da linguagem visam a compreensão de

que as “[...] práticas de linguagem são produtos culturais que organizam e

estruturam as relações humanas.” (BRASIL, 2017, p. 60). As práticas de linguagem

propiciam ao sujeito uma dimensão de conhecimento não acessível de outro modo,

dessa forma, destaca que “[...] a própria linguagem é objeto de reflexão e análise,

permitindo aos alunos a compreensão e a transformação do próprio objeto de

estudo” (BRASIL, 2017, p. 60). Além disso, afirma que:

O importante é que os alunos se apropriem das especificidades de cada linguagem, sem perder a visão do todo no qual elas estão inseridas, e observem que as particularidades têm sentidos construídos para determinados fins. Mais do que isso, é relevante que compreendam que as linguagens estão em constante processo de mutação e que todos participam deste processo direta ou indiretamente. (BRASIL, 2017, p. 60).

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O documento apresenta competências específicas de linguagens para o

Ensino Fundamental, as quais são: compreender as linguagens como um processo

de construção humana histórica e social, reconhecer as linguagens como

representação simbólica das experiências do ser humano na vida social,

desenvolver visão crítica das linguagens tendo como base a pluralidade das formas

de expressão, confrontar pontos de vista sobre as diferentes linguagens e partilhar

interesses, reconhecer as linguagens como parte do patrimônio cultural de uma

coletividade, respeitar e preservar as diferentes linguagens, usufruir do patrimônio

linguístico, artístico e de práticas com suas diferentes visões de mundo e interagir

pela linguagem e refletir sobre os contextos dos interlocutores.

Em “Língua Portuguesa” o documento descreve que o objetivo norteador da

área “[...] é garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários

para a participação social e o exercício da cidadania” (BRASIL, 2017, p. 63), isso

porque “[...] é por meio da língua que o ser humano pensa, comunica-se, tem acesso

à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de

mundo e produz conhecimento” (BRASIL, 2017, p. 63). O documento aponta as

dimensões oral e escrita da língua, em que a meta do trabalho deve ser que os

estudantes construam sentidos coerentes para textos orais e escritos e produzam

textos adequados a situações de interação diversas.

Essa visão voltada para a língua e os saberes linguísticos limita apenas aos

aspectos de construções da língua, enquanto que os saberes linguísticos envolvem

diretamente conhecimentos de outras práticas culturais que não só referente à

língua. É uma visão limitadora, que tende a ser interpretada como “ler bem” e

“escrever bem” basta. Entretanto, sabe-se que não é só isso, pois é necessário

compreender, interpretar, relacionar, desenvolver a leitura de imagens, discursos e

valores disseminados na sociedade, não apenas o que a língua possibilita. Nesse

sentido, aborda-se os Estudos Culturais que buscam não apenas uma análise

estética e teórica, mas sim fazer uma análise das obras, referindo-se a textos e

todas as manifestações culturais, tendo como pano de fundo a configuração social,

com suas relações de classe e de poder, em uma análise política da situação. Nesse

sentido, o interesse primordial é “[...] fazer com que categorias literárias e

preocupações estéticas sejam relacionadas com questões sociais” (JOHNSON,

2010, p. 16).

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A Base apresenta o texto como centro das práticas de linguagem, mas não

apenas o verbal, já que “Nas sociedades contemporâneas, textos não são apenas

verbais: há uma variedade de composição de textos que articulam o verbal, o visual,

o gestual, o sonoro – o que se denomina multimodalidade de linguagens.” (BRASIL,

2017, p. 63).

Para atender essa multiplicidade de modalidades e usos da língua escrita e

oral, e tendo sempre o texto como centro, a Base apresenta cinco eixos

organizadores, os quais são: oralidade, que inclui conhecimentos referentes a

diferença entre língua oral e escrita e os usos adequados conforme as situações,

além disso as variedades linguísticas; leitura, como o tema central, em que ocorre a

decodificação de palavras e textos e desenvolvimento de habilidades de

compreensão e interpretação de textos e identificação de gêneros textuais; escrita,

que compreende as práticas de produção de textos com coesão e coerência, em

diferentes situações comunicativas; conhecimentos linguísticos e gramaticais, com

reflexão sobre as estruturas linguísticas para expansão da capacidade de produzir e

interpretar textos; e, por fim, educação literária, com foco no conhecimento e

apreciação de textos literários, porém não se trata de ensinar literatura, mas

promover o contato com a literatura para a formação do leitor literário, capaz de

apreciar o que há de singular em um texto e vivenciar outros mundos. Destaca-se a

descrição do eixo leitura no documento:

A leitura é objeto historicamente reconhecido de aprendizagem em Língua Portuguesa. Se, para os outros componentes curriculares, ela é instrumento, em Língua Portuguesa é tema central. O eixo Leitura compreende a aprendizagem da decodificação de palavras e textos (o domínio do sistema alfabético de escrita), o desenvolvimento de habilidades de compreensão e interpretação de textos verbais e multimodais e, ainda, a identificação de gêneros textuais, que esclarecem a contextualização dos textos na situação comunicativa, o que é essencial para compreendê-los. São também constituintes essenciais desse eixo, por sua relevância para a compreensão e interpretação de textos, o desenvolvimento da fluência e o enriquecimento do vocabulário. (BRASIL, 2017, p. 64).

O documento abordou anteriormente a linguagem e a multimodalidade, porém

o foco é nos usos da língua escrita e oral, e tendo sempre o texto como centro, e na

descrição dos eixos, os cinco componentes focam essencialmente o texto escrito, o

que limita o desenvolvimento do estudante. O correto seria uma abordagem cultural

da língua e de todos os textos e manifestações presentes na sociedade, em uma

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perspectiva de análise e de repensar os valores, tendo como pano de fundo o social

e as relações entre as pessoas na sociedade. Com isso, retoma-se os Estudos

Culturais, em que a cultura não é considerada como variável entre melhor e pior,

mas o que interessa são as relações que a cultura estabelece com outros campos

sociais e a bandeira de luta e resistência contra a dominação, diferenciação e

subordinação de uma cultura com outra cultura.

Além disso, não se considera uma manifestação em detrimento de outra, por

exemplo, considerar apenas o escrito e a língua como bom e desconsiderar outras

manifestações, visto que todas são constituintes da subjetividade e da cultura de um

povo. Isso vai ao encontro das afirmações de Kellner (2001), ao abordar que os

Estudos Culturais não estão interessados nas teorias e discursos que só

reconhecem as formas linguísticas, pois o que interessa realmente são as origens e

os efeitos da cultura e como ela está imbricada nos processos sociais.

Com o exposto, percebe-se que a importância que a Base confere ao escrito

e para a língua não está de acordo com os anseios sociais abordados pelos Estudos

Culturais, visto que os processos relacionados à dominação ou resistência e o papel

das diferentes manifestações culturais na sociedade devem ser estudados em uma

perspectiva crítica e de rever valores e não apenas priorizar o escrito e a língua,

tradicionalmente voltados às elites.

Cada um dos eixos está organizado em unidades temáticas, objetos de

conhecimento e habilidades. As habilidades se segundo a continuidade das

aprendizagens ao longo dos anos, crescendo progressivamente. O documento

disserta que “[...] embora as habilidades estejam agrupadas por eixos

organizadores, as fronteiras entre eles são tênues, pois, no ensino, e também na

vida social, eles estão intimamente interligados” (BRASIL, 2017, p. 65). Assim,

apresenta-se as competências específicas de Língua Portuguesa, as quais são:

1. Reconhecer a língua como meio de construção de identidades de seus usuários e da comunidade a que pertencem. 2. Compreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso. 3. Demonstrar atitude respeitosa diante de variedades linguísticas, rejeitando preconceitos linguísticos. 4. Valorizar a escrita como bem cultural da humanidade. 5. Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo de linguagem adequado à situação comunicativa, ao interlocutor e ao gênero textual.

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6. Analisar argumentos e opiniões manifestados em interações sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se criticamente em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos humanos e ambientais. 7. Reconhecer o texto como lugar de manifestação de valores e ideologias. 8. Selecionar textos e livros para leitura integral, de acordo com objetivos e interesses pessoais (estudo, formação pessoal, entretenimento, pesquisa, trabalho etc.). 9. Ler textos que circulam no contexto escolar e no meio social com compreensão, autonomia, fluência e criticidade. 10.Valorizar a literatura e outras manifestações culturais como formas de compreensão do mundo e de si mesmo. (BRASIL, 2017, p. 66).

Em relação às competências de Língua Portuguesa, ao abordar a valorização

da escrita como bem cultural da humanidade apresenta um princípio excludente,

pois ensina a valorizar o mundo letrado, pressupondo que não tem valor diversas

sociedades que não são letradas, como muitas comunidades indígenas, por

exemplo. Sabendo que a língua e a leitura não existem sozinhas, mas são parte da

cultura e de processos culturais, destaca-se o valor cultural e a necessidade de uma

abordagem mais ampla ao falar em mundo letrado. Nesse sentido a cultura, de

acordo com Costa, Silveira e Sommer (2003), é um eixo recheado de significados

em que são visíveis inúmeros leques de sentidos, sempre cambiantes e versáteis,

mas nunca elitistas e segregacionistas. A cultura deixa de ser, gradativamente, do

“[...] domínio exclusivo da erudição, da tradição literária e artística, de padrões

estéticos elitizados e passa a contemplar, também, o gosto das multidões” (p. 36),

ou seja, não é apenas o universo letrado que tem valor.

Assim, é na esfera cultural que ocorre a luta pela significação, em que os

grupos subordinados tentam combater as imposições de significados que perpetuam

os interesses daqueles que detêm o poder. Dessa forma, “[...] os textos culturais são

o próprio local onde o significado é negociado e fixado” (COSTA; SILVEIRA;

SOMMER, 2003, p. 38), ou seja, as manifestações culturais funcionam como

instrumento de perpetuação de valores, mas ao mesmo tempo de luta e resistência

e essas manifestações são variadas e não apenas relacionada à língua. Martín-

Barbero (1997) destaca que ocorreu uma redefinição de cultura e que é fundamental

compreender a sua natureza comunicativa. Ou seja, não se trata mais de mera

circulação de informações, em que o receptor apenas decodifica a mensagem, mas

sim um processo de produção de significações, que pode ocorrer com a leitura de

tantos textos, verbais ou não.

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A competência número 9, que aborda a leitura de textos que circulam no

contexto escolar e no meio social com compreensão, autonomia, fluência e

criticidade, nos faz refletir se o documento pressupõe o leitor que a escola recebe,

quais os textos que esse aluno gosta de ler, quais ele já conhece e que suporte

tecnológico ele dispõe. Esse questionamento é necessário pois não há como cobrar

autonomia e fluência de algo que não se está habituado. Além disso, muitas vezes,

as atividades escolares não são significativas aos estudantes, pois não fazem parte

de seu contexto social e de suas vivências. Assim, é indispensável conhecer o aluno

e sua realidade e iniciar com aquilo que seja de seu conhecimento e de seu gosto

para despertar no aluno outros gostos, dúvidas e então inserir questões e textos

novos, imprescindíveis para ampliar seus horizontes.

Ainda sobre a competência 9, da leitura, o documento não apresenta quem é

o aluno, de onde ele vem e em que realidade de público foi pensado. O documento

se distancia da realidade da escola brasileira, prevendo que os alunos recebidos na

escola têm acesso a tecnologias ou a bibliotecas e poderão ter destreza ao realizar

todas as atividades e trabalhar com todos os textos apresentados. Nesse sentido, o

ideal não é imaginar o que o aluno precisa saber e com base nisso tentar

desenvolver com textos que se julga importantes essas habilidades, mas sim

conhecer o aluno, sua realidade e trabalhar em uma perspectiva apontada por Freire

(1989), em que destaca que as suas primeiras leituras foram as coisas que percebia

ao seu redor. Assim, os textos, as palavras e as letras daquele contexto “[...] se

encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia

apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais

velhos e com meus pais” (p. 9).

Dessa forma, a leitura primeira é a de mundo, após vem a da palavra e de

textos. Nessa primeira leitura, a relação que se estabelece entre as leituras e o

contexto é o início da própria compreensão de mundo e da realidade que nos cerca.

A leitura primeira é a do mundo que nos cerca e isso inclui todas as manifestações

possíveis de serem percebidas desde a infância. Com a aprendizagem da escrita e

da palavra, a leitura se amplia, mas nunca se acaba, pois novas formas de leitura e

objetos a serem lidos podem ser apreendidos ao longo da vida, como uma nova

música, uma obra de arte totalmente diferente do que já se conhecia, uma

manifestação cultural, etc.

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Em “Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – anos finais: unidades

temáticas, objetos de conhecimento e habilidades” o documento defende que será

dado um prosseguimento ao que foi ensinado ou retomar aprendizagens prévias.

Em relação aos eixos, deve-se desenvolver maior criticidade em diferentes situações

comunicativas, eleva-se o nível de complexidade dos textos, promove-se a

ampliação das estratégias de produção textual, bem como sua complexidade e

diversifica-se os gêneros textuais estudados.

Em relação ao exposto acima, no tocante à produção textual e diversidade de

gêneros textuais, parece que não há nada de novo, pois são fórmulas antigas

vestidas de novo discurso. Nesse sentido, sabendo da realidade de exclusão social,

se continuar um ensino que privilegie o que a escola vem fazendo não será possível

mudar esse quadro de exclusão. Com o ensino do jeito que está não se possibilita

um leitor cultural, destacado por Gomes (2010) como aquele que “[...] analisa como

a identidade dos personagens foi representada esteticamente no texto selecionado,

levando em conta questões de gênero, de classe, de raça ou de orientação sexual”

(p. 32). Para isso, o texto precisa de uma leitura que interprete os significados

estéticos e sociais e relacione o texto lido com suas heranças culturais.

Essas heranças são fundamentais ao leitor, pois este deve explorar uma

perspectiva comparatista entre o que leu e o seu passado cultural, de modo que “[...]

cada obra cultural é a visão de um momento, e devemos justapor essa visão às

várias revisões que ela gerou” (SAID, 1995, p. 105). Ou seja, os textos precisam ser

analisados não apenas estruturalmente, mas as diversas questões que eles

apresentam, identificando-se valores, preconceitos, etc. e isso é possível com uma

relação com o social e com a realidade de cada indivíduo. Além disso, o que o aluno

já sabe, que faz parte de sua herança cultural, ao ser comparado e analisado com o

novo, o que se apresenta como diferente, pode possibilitar ao estudante diferentes

visões e leituras. Porém, o que a Base apresenta ainda está longe de uma

perspectiva em que isso seja privilegiado, pois ainda o foco é a língua, ou seja, o

escrito, e a produção textual, e a leitura de fato não possui o espaço necessário.

Em relação à língua, se expõe que um dos cinco eixos é dedicado aos

conhecimentos linguísticos e gramaticais, mas de forma muito isolada. O eixo é

descrito como “Práticas de análise linguística e gramatical (como estratégia para o

desenvolvimento produtivo das práticas de oralidade, leitura e escrita). Reflexão

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sobre os usos do léxico e de regularidades no funcionamento da língua falada e

escrita” (BRASIL, 2017, p. 130). Destaca-se os objetos de ensino e as habilidades

desse eixo, do 7º ano:

Regras ortográficas (EF07LP26) Escrever, corretamente, obedecendo as convenções da língua escrita. Derivação (EF07LP27) Formar, com base em palavras primitivas, palavras derivadas com os prefixos e sufixos mais produtivos no português. Estrutura da oração (EF07LP28) Reconhecer, em textos, o verbo como o núcleo das orações. (EF07LP29) Identificar, em orações de textos lidos ou de produção própria, verbos de predicação completa e incompleta: intransitivos e transitivos. (EF07LP30) Identificar, em textos lidos ou de produção própria, a estrutura básica da oração: sujeito, predicado, complemento (objetos direto e indireto). (EF07LP31) Identificar, em textos lidos ou de produção própria, adjetivos que ampliam o sentido do substantivo sujeito ou complemento verbal. (EF07LP32) Identificar, em textos lidos ou de produção própria, advérbios e locuções adverbiais que ampliam o sentido do verbo núcleo da oração. Oração e período (EF07LP33) Identificar, em textos lidos ou de produção própria, períodos compostos nos quais duas orações são conectadas por vírgula, ou por conjunções que expressem soma de sentido (conjunção “e”) ou oposição de sentidos (conjunções “mas”, “porém”). Concordância nominal e verbal (EF07LP34) Empregar as regras básicas de concordância nominal e verbal em situações comunicativas e na produção de textos. Processos de coesão (EF07LP35) Reconhecer recursos de coesão referencial: substituições lexicais (de substantivos por sinônimos) ou pronominais (uso de pronomes anafóricos – pessoais, possessivos, demonstrativos). (BRASIL, 2017, p. 130-131)

Entende-se que a questão gramatical é importante para escrever com

fluência, por exemplo, mas a preocupação exagerada apenas a isso faz com que se

perca tantas outras possibilidades oferecidas pelos textos e tantas manifestações

culturais que podem ser lidas em relação à realidade social e formação cultural. O

foco em aspectos gramaticais reforça a importância dada à língua bem falada e bem

escrita e, sabendo que são os grupos pertencentes às elites que têm domínio e

impõem determinados padrões a serem seguidos, isso faz com que os grupos que

não dominam esse bem falar e escrever permaneçam em situação de exclusão.

Desse modo, sabe-se que no processo de leitura estão envolvidos conhecimentos

diversos relacionados à língua, mas todos esses processos devem de fato ser

explorados. No tocante a isso, Freire (1989) disserta que os conteúdos gramaticais

não devem ser apresentados aos alunos como se fossem blocos isolados e

separados, mas sim nos próprios textos, de autores diversos e dos próprios

estudantes, em que estes possam aprender sua significância profunda e não fique

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em uma mera memorização mecânica. Também Costa, Silveira e Sommer (2003)

destacam que, para Stuart Hall, a questão linguística é um ponto importante a ser

pensado, pois para os Estudos Culturais é necessário pensar as questões da cultura

através das metáforas da linguagem e da textualidade.

Os conteúdos gramaticais devem se apresentar de modo que estimulem a

curiosidade dos alunos, de maneira dinâmica, acontecendo no corpo dos textos, o

que nem sempre ocorre nas salas de aula. Costa, Silveira e Sommer (2003)

destacam que, para Stuart Hall, a questão linguística é um ponto importante a ser

pensado, visto que para os Estudos Culturais é necessário pensar as questões da

cultura através das metáforas da linguagem e da textualidade, ou seja, a questão

gramatical sendo utilizada para entender os textos em suas metáforas e a própria

cultura. Assim, os discursos precisam ser lidos com atenção para que não escape

nada ao pensamento crítico, pois eles podem esconder significações importantes.

Isso porque a própria noção de texto e textualidade ganha uma configuração de

fonte de significados amplos e multiplicidade dos significados.

Ao abordar o eixo leitura descrição do eixo deixa claro que o objetivo é a

compreensão e interpretação de textos diversos, mas não cita o prazer da leitura, o

enriquecimento pessoal, a alteridade, etc. O eixo leitura é descrito da seguinte

forma:

Práticas de compreensão e interpretação de textos verbais, verbo-visuais e multimodais. Textos da atualidade, com assunto e tema apropriados à faixa etária dos alunos e nível de textualidade adequado: vocabulário com possibilidades de enriquecimento do léxico do aluno e recursos expressivos denotativos e conotativos. (BRASIL, 2017, p. 116).

Além de apresentar uma descrição do eixo de leitura com muitos elementos

importantes faltando, os objetos de ensino e as habilidades estão relacionados com

as questões estruturais dos textos, a identificação de informações e não possibilita

atividades de análise profunda, relação com o social, identificação de questões

relacionadas ao poder, igualdade dentre as classes, diversidade de gênero,

igualdades raciais e respeito ao próximo. Isso pode ser percebido com os objetos de

estudo do 6º ano, no eixo leitura:

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Reconstrução das condições de produção e recepção de textos Reflexão sobre o conteúdo temático do texto Reflexão sobre o léxico do texto Reflexão sobre a forma, a estrutura e a organização do texto Reflexão sobre os procedimentos estilístico-enunciativos do texto Avaliação dos efeitos de sentido produzidos em textos Recuperação da intertextualidade e estabelecimento de relações entre textos Fluência de leitura para a compreensão do texto Autodomínio do processo de leitura (BRASIL, 2017, p. 118).

O espaço destinado à leitura apresenta o foco de encontrar informações nos

textos e isso relega a leitura de fato para segundo plano. Assim, o eixo dedicado

exclusivamente para a leitura não apresenta preocupações com atividades que de

fato trabalhem a leitura em uma perspectiva social, de alteridade, de mudança social

e possibilidade de os sujeitos se manifestarem conforme a sua cultura. O termo

cultura, desde o início dos Estudos Culturais, era um local de convergência e um

conceito considerado complexo, pois é um local de interesses convergentes e não

uma ideia lógica e clara. Hall (2003) descreve que isso é uma riqueza exatamente

pela contínua tensão e as inúmeras possibilidades que ela suscita. Nesse sentido, a

leitura deve ser abordada em uma perspectiva cultural para fazer sentido aos

estudantes.

As opções de leitura na BNCC pouco abordam questões culturais e as

distintas manifestações existentes na sociedade, já que a leitura é tudo possível de

se atribuir um sentido, fazer relações, tudo que é interpretável, que estimula o

pensamento e a curiosidade e em uma instância mais elevada, a criticidade. Ler não

deve ser um ato por obrigação, algo que se considera sempre igual ou unificar em

categorias. Não. Ler é algo dinâmico e vivo, que pode ser realizado em tantos

“objetos diretos” (BARTHES, 2004, p. 32) possíveis e de interesse das pessoas.

O que o documento apresenta é muito pouco em se tratando de atividades de

leitura, em experiências que não sejam isoladas, em atividades que sejam culturais.

Em relação a isso, Escosteguy disserta que o significado de cultura foi ampliado e

passou “[...] de textos e representações para práticas vividas” (2010, p. 143),

focando tudo aquilo que produz sentido. Assim, o conceito de cultura amplia-se e

abarca um número maior de grupos sociais e manifestações, antes totalmente

ignorados pela tradição elitista, já que os Estudos Culturais entendem que a cultura

é agente de reprodução social, sendo complexa e ativa na construção da

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hegemonia, de acordo com Escosteguy (2010). Sendo assim, do ponto de vista

cultural tudo na sociedade é passivo de análise, por isso a cultura também é

considerada um espaço de luta, em que a reflexão e a luta social podem ser

fomentadas.

As experiências culturais e sociais vivenciadas pelos estudantes não são

abordadas na Base como ponto de partida para o desenvolvimento de habilidades

de leitura necessárias na sociedade hoje. Isso é um problema, pois cultura é uma

forma característica de energia humana que é reveladora de si mesma. Assim,

inúmeras possibilidades entram para o foco da cultura e podem ser analisados como

representação social, como um noticiário, imagens, gráficos de livros ou músicas.

Estes não são apenas manifestações culturais, mas “[...] são artefatos produtivos,

são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e operam nas arenas

culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas.”

(COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 38). Como práticas de representação,

produzem e disseminam sentidos, atuando nas esferas culturais, em que os

significados precisam ser analisados

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CONCLUSÃO

Ao chegar no final deste trabalho de dissertação, nos sentimos felizes por

poder desenvolver um estudo com tantos apontamentos e desdobramentos, que

podem dar vida a outros questionamentos, sempre em busca de conhecimento e

aprimoramento. A proposta deste trabalho consistiu em uma reflexão teórico-crítica

a respeito da leitura. Por entendermos que a leitura é o ponto central para o

indivíduo participar e agir no mundo, poder conhecer a si mesmo e ao outro e ser

capaz de refletir sobre sua própria existência e as tantas relações que são

estabelecidas socialmente que nos pautamos em torno deste tema.

A proposta apresentada leva em consideração a leitura como uma prática

social e em um viés cultural, isso porque entende-se que ler é mais que atribuir

sentido, decodificar palavras, compreender um texto, ter uma leitura fluente,

conhecer bem a língua e decorar listas de leituras. Ler é saber se posicionar no

mundo, respeitar o outro, conhecer o novo e aceitá-lo, mesmo em sua diferença,

compreender textos em diferentes suportes e em diferentes linguagens, interpretar

diferentes manifestações culturais, dialogar de forma harmoniosa com pessoas de

variadas culturas e opiniões e saber que a leitura é um processo de formação da

cidadania com a inclusão de novas abordagens culturais. Dessa forma, a leitura não

pode ser dissociada da cultura, pois esta é uma forma característica de energia

humana que é reveladora de si mesma. Assim, o ato de ler utiliza dessa energia

humana para conhecer não apenas os textos, sejam escritos, falados, em

movimento, visuais, etc., mas o próprio indivíduo.

Abordar leitura pelo viés da cultura é uma tarefa para muitos segmentos

sociais, entre eles a escola, que tem o papel de receber os alunos e construir o

conhecimento em uma perspectiva emancipatória e libertadora. Assim, as reflexões

abordadas a respeito de leitura e cultura também se voltam para o que é

disseminado nas escolas e os documentos que embasam o ensino.

Com base nas considerações abordadas, o propósito central do trabalho

consistiu em um estudo teórico sobre leitura, embasado nos Estudos Culturais, e em

alguns autores que tratam da leitura de uma perspectiva cultural. A partir do aporte

teórico-crítico, realizou-se estudo analítico de base documental da abordagem dada

à leitura na Base Nacional Comum Curricular com vistas a estabelecer uma

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discussão sobre o conteúdo previsto nesse documento pelo viés dos Estudos

Culturais.

A Base Nacional Comum Curricular “[...] é um documento de caráter

normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens

essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e

modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 7). Nesse sentido, destaca-se

a necessidade e relevância de tornar objeto de estudo um documento que tem o

objetivo de nortear os conteúdos e a finalidade do que é ensinado nas escolas em

nível nacional, com foco na formação leitora e cultural. Amparando-se na

hermenêutica, criou-se um horizonte de compreensão e interpretação do documento

com base em um contexto de sentido, ou seja, partiu-se da revisão teórica para a

interpretação e compreensão do documento em forma de estudo analítico.

Em relação ao documento analisado, em 2015 o I Seminário Interinstitucional

para a elaboração da Base é realizado e reúne assessores e especialistas. Em

outubro, tem início a consulta pública para a construção da primeira versão da

BNCC. Em março de 2016, a primeira versão do documento é finalizada. Em junho,

seminários com professores, gestores e especialistas abertos à participação pública

são realizados por todo o Brasil já para debater a segunda versão da BNCC. Em

agosto, começa a ser redigida a terceira versão, em um processo colaborativo com

base na versão 2. Em abril de 2017, o MEC entregou a versão final da Base

Nacional Comum Curricular (BNCC), que é a terceira versão do documento a qual foi

analisada, ao Conselho Nacional de Educação (CNE). A Base foi homologada pelo

ministro da Educação, Mendonça Filho, quarta-feira, 20 de dezembro de 2017. As

mudanças nas matrizes de referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica

(Saeb) passam a valer a partir de 2019.

O estudo apresenta relevância pelo cunho social e educacional, pois se

abordam temas de interesse social e da escola. A pesquisa é desenvolvida na

terceira linha de estudo, Leitura, Linguagem e Ensino, do Mestrado em Letras –

Literatura Comparada (URI) Campus de Frederico Westphalen, que tem como

objetivo investigar a leitura, a formação do leitor e as diferentes manifestações

culturais em uma perspectiva crítica e transformadora da realidade social. Nesse

sentido, escolheu-se o campo dos Estudos Culturais como viés teórico, pela relação

que estabelece com a Literatura Comparada, por sua tendência interdisciplinar.

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Neste trabalho objetivou-se realizar uma revisão teórica sobre leitura, a partir

dos Estudos Culturais; repensar os conceitos existentes sobre leitura e cultura,

considerando a vasta gama de modalidades de leitura e manifestações culturais que

se realiza nos dias de hoje; estudar analiticamente e discutir a formação cultural e

leitora proposta na Base Nacional Comum Curricular, com base nos Estudos

Culturais, a fim de apontar elementos importantes presentes ou não no documento,

pressupondo a formação de um leitor cultural que pense sobre si mesmo,

desenvolvendo capacidades para intervir criticamente sobre o mundo, e que possa

repensar sua própria cultura e estabelecer diálogos com a do outro.

Ao longo dos quatro capítulos desta dissertação, os desdobramentos foram

muitos e observou-se lacunas em relação a abordagem dada à leitura no documento

analisado. No primeiro capítulo, “Breves considerações sobre o problema da leitura

no Brasil”, verificou-se que o problema da leitura no Brasil não é algo novo e que o

processo de consolidação de um público leitor no contexto brasileiro sempre esteve

em passos lentos, o que mostra um cenário não só problemático na leitura e

educação, mas em um contexto social, pois índices de leitura desagradáveis

revelam sociedades despreparadas, vulneráveis e facilmente manipuladas.

No segundo capítulo, “Os Estudos Culturais e a leitura”, verificou-se que o

campo dos Estudos Culturais deixa claro que os processos culturais estão

relacionados com o contexto e, assim, com as relações de poder, formação de

classe e as divisões na sociedade. Além disso, a cultura está diretamente ligada ao

poder e ao mesmo tempo em que ela atua como local de diferença ela também é

uma forma de luta de classe e contra o poder autoritário. Nesse campo, a leitura, de

acordo com Hall (2006), torna-se eficiente no momento que acrescenta aos

elementos estéticos o debate de uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e

da diversidade cultural.

O leitor tem um papel de destaque no campo dos Estudos Culturais, conforme

Gomes (2010), já que a leitura é um processo de formação da cidadania com a

inclusão de novas abordagens culturais, conhecidas através da leitura de diferentes

formas. Nesse sentido, a partir do contato com o texto o “[...] gosto pela leitura pode

ser despertado como uma prática de reflexão social.” (p. 28), na medida em que o

leitor se insere em um contexto e pratica sua cidadania ao ler e realizando a reflexão

sobre o social. Dessa forma, “[...] o convite à reflexão social pode ser uma das

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saídas para associar leitura, prazer e formação da consciência crítica do leitor.” (p.

28) e assim a prática de leitura associa elementos estéticos com elementos

ideológicos em uma leitura crítica da realidade.

No terceiro capítulo, “O conceito de cultura na perspectiva dos Estudos

Culturais”, verificou-se que a cultura é tudo aquilo que produz sentido, sendo as

práticas vividas pelas pessoas no contexto social. Assim, a cultura é definida por

Hall (2003) como sendo as relações entre elementos de um modo de vida global,

não é uma prática, nem apenas a soma descritiva dos costumes e culturas

populares das sociedades. Ela é perpassada “[...] por todas as práticas sociais e

constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas” (p. 136). Cultura é uma forma

característica de energia humana que é reveladora de si mesma.

No quarto capítulo, “Um olhar sobre a BNCC: qual a concepção de leitura que

embasa o documento?”, verificou-se que a abordagem dada à leitura é fraca e não

atende aos propósitos advindos dos Estudos Culturais. O ato de ler no documento

ainda está centrado em decodificar textos, principalmente escritos, encontrar

informações em textos e em aspectos gramaticais abordados isoladamente. Assim,

constata-se que o documento não prevê um leitor crítico, reflexivo e que pense

sobre o mundo de forma consciente. O que ocorre é a chegada de um estudante à

escola com pouco acesso a manifestações culturais ou com defasagem de leitura e

ao tentar inseri-lo em mundos simbólicos mais complexos acontece então um

distanciamento maior ainda do aluno pelo gosto da leitura e pelo conhecimento.

O documento destaca “aprendizagens essenciais”, mas o que realmente é

essencial? Considerando a realidade, a sociedade, as relações de classe e de

poder? Sabe-se que a realidade social brasileira em muitos contextos é

problemática, com pobreza, violência, exploração, falta de serviços básicos, como

saúde e esgoto e a avalanche de casos de corrupção, desvios de dinheiro público e

descaso com a população. Com isso, o que é essencial para um estudante? A Base

não prevê.

O documento prevê o “pleno desenvolvimento da educação”, mas isso é

estabelecido com base em que fatores? O que seria esse pleno desenvolvimento?

São conceitos importantes, mas precisam ser mais desenvolvidos. O

desenvolvimento de um indivíduo está muito ligado ao seu contexto social. A

diversidade cultural faz com que as pessoas sejam diferentes, tenham objetivos e

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sonhos diferentes, então falar em pleno desenvolvimento parece que leva a um

espaço indicado por alguém ou alguma entidade como ideal, quando sabemos que a

realidade não é ou não deveria ser assim. Cada pessoa se desenvolve conforme o

contexto, os estímulos e as possibilidades diante de si.

Em relação à diversidade cultural, há um paradoxo na questão abordada, pois

o documento reconhece as diversidades culturais e as desigualdades, mas nos

objetos de ensino e nas habilidades isso praticamente não aparece. Não apresenta

uma possibilidade de como inserir essas questões nos currículos. Com isso, não se

propõe a reflexão sobre temas importantes na sociedade e que fazem os sujeitos

refletirem sobre suas realidades.

A Base aborda a questão dos valores presentes na sociedade, mas esse

mundo cambiante de representações e valores não é considerado na disciplina de

Língua Portuguesa no documento. Isso é preocupante, pois nosso mundo é assim,

nossa sociedade está em constante transformação, que muda seus valores e

apresenta uma diversidade cultural enorme. O trabalho com a disciplina nessa

perspectiva deve considerar as diversas possibilidades de abordagem dos textos,

textos variados e podendo realizar reflexão em uma perspectiva de construção de

cidadania e transformação social.

Observa-se na questão da formação de professores um ponto polêmico. Em

cada ente federado é possível encontrar problemas relacionados com a questão

docente, seja por atrasos de salário, não pagamento do piso salarial,

desvalorização, salas lotadas, alunos sem respeito, estruturas problemáticas,

carência de materiais, falta de diálogo em decisões educacionais entre escolas e

órgão responsáveis por documentos e diretrizes, jogos políticos, etc. Todas essas

questões representam atrasos e diminuição da qualidade do ensino. Esses são

problemas já existentes e longe de serem resolvidos. O documento pressupõe um

professor longe de existir, pois para ser possível essa formação com o objetivo de

alinhar à Base é necessário um professor com condições para que isso ocorra.

Outra questão é o fato de a própria BNCC apresentar problemas e, no caso da

Língua Portuguesa, não tratar a leitura com seu devido valor, em um foco social e

ênfase na construção da cidadania dos indivíduos. Então o objetivo da união é

realizar uma formação alinhada a um documento com pontos polêmicos e fracos, e

isso torna-se mais uma vez um atraso e um empecilho à qualidade da educação.

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Ao abordar os conhecimentos historicamente construídos o documento

reafirma a exclusão e a desigualdade social, visto que esses conhecimentos foram

construídos por uma sociedade excludente, que fez isso justamente para manter seu

posto de dominação e hierarquia. Ao propor isso, o documento apenas retoma um

discurso antigo e que não possibilita ao estudante, principalmente aquele

socialmente excluído, o estímulo da sua criticidade, criatividade, imaginação,

reflexão, diálogo e não lhe dá voz para expor sua realidade e o que pensa sobre o

mundo, assim, não se repensa a leitura em uma perspectiva política. Com isso, há

apenas uma transmissão de conhecimento, pois não se propõe possibilidades de

novos conhecimentos e nem de rever aqueles conhecimentos antigos, excludentes,

preconceituosos e pouco significativos.

Os verbos valorizar e utilizar, presentes nas competências básicas, também

trazem limitações, pois o ideal seria refletir, repensar e promover a reconstrução dos

conhecimentos adquiridos, já que vivemos hoje numa sociedade que se encontra,

inclusive, numa crise moral e de costumes, sociedade que vive uma guerra política e

de classes, que vive uma crise ética, que tem um passado e um presente de

preconceito e de exploração, que violenta, que é corrupta, que observa corrupção e

miséria, que não sabe discernir sobre tantas questões, em que se justifica o estupro

pelas roupas curtas de uma mulher, em que se discrimina homossexual em nome da

moral e dos bons costumes, em que se recrimina determinados conteúdos às

crianças, mas se permite que elas sejam sexualizadas, maltratadas e abandonadas.

Em relação ao saber intelectual, destaca-se o fato de privilegiar

exclusivamente o saber intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, em

uma referência apenas para aqueles conhecimentos considerados “úteis, bons e

necessários”, desconsiderando que existem tantas possibilidades de conhecimento

espalhadas em tantos espaços sociais, mas que são excluídos por não terem o seu

valor reconhecido por quem detêm o poder de dizer o que é bom ou ruim.

Em relação as questões de trabalho e vivências sociais, avalia-se como

positiva a questão da valorização da diversidade de saberes e vivências culturais e a

menção à liberdade, consciência crítica e responsabilidade. Porém, importante

destacar um ponto que talvez tenta ser mostrado como inocente ou necessário de

ser destacado, mas que pode não ser tão inocente, que é a questão das “relações

próprias do mundo do trabalho”. É importante que o estudante tenha conhecimento e

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saiba opinar sobre o mundo do trabalho e que este pense em si no futuro, mas

sendo um documento voltado ao Ensino Fundamental, sabe-se que o aluno ainda

tem uma caminhada para realmente estar no mundo do trabalho. O discurso que

pode estar escondido nessas palavras é o de preparar o estudante para o mundo do

trabalho, desconsiderando seu percurso enquanto ser humano livre e pensante, que

precisa desenvolver sua estética, criticidade, reflexão e discernimento sobre as

relações existentes no mundo. O ideal seria examinar as questões de trabalho como

práticas sociais de um ponto de vista cultural, pois todas as manifestações sociais

apresentam focos de cultura que podem ser examinados em uma perspectiva crítica,

de denúncia social.

O documento apresenta os “conhecimentos construídos na escola”, porém

não é só na escola que se constrói conhecimento, mas em todos os espaços sociais,

seja na família, na rua, na praça, em estabelecimentos culturais e comerciais, etc.

Ao abordar apenas o que se constrói na escola, passa a mensagem de que está

desconsiderando tudo o que o aluno já sabe, toda a bagagem que ele traz consigo,

sendo uma forma de preconceito ao que não é produzido na escola. Assim, a visão

apresentada pela BNCC é excludente e elitista, pois a escola tradicionalmente

aborda conhecimentos mais ligados às elites, e mais distantes daqueles excluídos

socialmente. Com isso, desconsidera a questão cultural com sua diversidade, pois a

cultura é entendida como um aspecto importante de conhecimento da própria

sociedade, já que está ligada a todas as práticas sociais e essas práticas são as

próprias atividades humanas, das quais as pessoas vivem e fazem tanto as suas

histórias, como a história da própria sociedade.

Aborda-se no documento a linguagem e a multimodalidade, porém o foco é

nos usos da língua escrita e oral, e tendo sempre o texto como centro, e na

descrição dos eixos, os cinco componentes focam essencialmente o texto escrito, o

que limita o desenvolvimento do estudante. O correto seria uma abordagem cultural

da língua e de todos os textos e manifestações presentes na sociedade, em uma

perspectiva de análise e de repensar os valores, tendo como pano de fundo o social

e as relações entre as pessoas na sociedade.

Entende-se que a questão gramatical é importante para escrever com

fluência, por exemplo, mas a preocupação exagerada apenas a isso na BNCC faz

com que se perca tantas outras possibilidades oferecidas pelos textos e tantas

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manifestações culturais que podem ser lidas em nossa sociedade. O foco em

aspectos gramaticais reforça a importância dada à língua bem falada e bem escrita

e, sabendo que são os grupos pertencentes às elites que têm domínio maior dessa

habilidade por sua questão econômica e social, isso faz com que os grupos que não

dominam esse bem falar e escrever permaneçam em situação de exclusão.

O espaço destinado à leitura apresenta o foco de encontrar informações nos

textos e isso relega a leitura de fato para segundo plano. Assim, o eixo dedicado

exclusivamente para a leitura não apresenta preocupações com atividades que de

fato trabalhem a leitura em uma perspectiva social, de alteridade, de mudança social

e possibilidade de os sujeitos se manifestarem conforme a sua cultura. As opções de

leitura na BNCC pouco abordam questões culturais e as distintas manifestações

existentes na sociedade, já que a leitura é tudo possível de se atribuir um sentido,

fazer relações, tudo que é interpretável, que estimula o pensamento e a curiosidade

e em uma instância mais elevada, a criticidade.

O que o documento apresenta é muito pouco em se tratando de atividades de

leitura, em experiências que não sejam isoladas, em atividades que sejam culturais.

As experiências culturais e sociais vivenciadas pelos estudantes não são abordadas

na Base como ponto de partida para o desenvolvimento de habilidades de leitura

necessárias na sociedade hoje.

Dessa forma, por se tratar de um documento norteador para o ensino em

nível nacional, a Base deveria apresentar a leitura em uma perspectiva cultural, ou

seja, uma prática social, de acordo com os Estudos Culturais, em que as diferentes

manifestações culturais estivessem presentes buscando a interdisciplinaridade.

Nesse sentido, se faz necessária a presença de elementos sociais no documento,

com o objetivo de compreender as próprias relações sociais e preparar os indivíduos

para leituras mais críticas e reflexão sobre o meio em que vivem.

Para finalizar, conclui-se que não há fórmulas mágicas para aprender a ler em

uma perspectiva de construção de cidadania, pois cada indivíduo é único, apresenta

seu próprio tempo, seus gostos, suas necessidades, sua imaginação e sua forma de

ver e estar na sociedade. Porém, quando a leitura é relacionada com atividades

mecânicas e pouco significativas, distantes de questões culturais e sociais, fica difícil

ela contribuir para a construção da cidadania. Sendo assim, a Base Nacional

Comum Curricular ainda tem o foco da leitura em questões pouco significativas aos

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estudantes e distantes da realidade social e cultural. Nesse sentido, reforça-se a

urgência em apresentar a leitura em uma perspectiva cultural e como forma de

prática social, na busca por melhorar os índices não apenas educacionais do país,

mas também os índices sociais, já que a leitura e o social sempre andam juntos.

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