a lei e o corpo

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1 A Lei e o Corpo Antoinette Chauvenett* ciências sociais podem nos tornar muito sábios ou muito hábeis, quando se trata de encontrar os meios que nos permitirão atingir qualquer objetivo a que P9ssamos nos propor. Mas elas admitem que não nos são de nenhuma serventia tão logo se trate de distinguir entre objetivos legítimos ou ilegítimos, justos ou injustos. São instrumentos e nada além disso. Nasceram para servir a todos os poderes, a todos os interesses, sejam eles quais forem. "J Afmnar a proposição sociológica segundo a qual a doença é um fato cultural, analisável enquanto fato social total, é admitir a arbitrariedade dessa noção e dos fenômenos por ela encobertos. Atualmente, esta arbitrariedade surge para nós em função da revolução epistemológica que a doença experimentou ao longo de várias décadas e, principalmente, em função de sua explosão. O isolamento da categoria doença, as teorias explicativas que dão conta dela, as manifestações e os sinais selecionados para diferenciá-la da não-doença, as filosofias e as ideologias que servem como lugar às suas representações, estão imersas atualmente em grande confusão. A extensão desse conceito a fatos que ultrapassam o campo de sua aplicação tradicional- o corpo - nos leva a constatar o desuso da noção de doença, * Antoinette Chauvenet, socióloga, Centre d'Étude des Mouvements Sociaux, CNRS, Maison des Sciences de I'Homme, 54 Boulevard Raspail, 75270, Paris. Tradução do original LA loi et /es corps feita por Silvia Alexim Nunes. STRAUSS L., D,oÍ( "UlureI er hlstoire, Plon, 1954, p. 16.

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Page 1: A Lei e o Corpo

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A Lei e o Corpo Antoinette Chauvenett

~Nossas ciecircncias sociais podem nos tornar muito saacutebios ou muito haacutebeis quando se trata de encontrar os meios que nos permitiratildeo atingir qualquer objetivo a que P9ssamos nos propor Mas elas admitem que natildeo nos satildeo de nenhuma serventia tatildeo logo se trate de distinguir entre objetivos legiacutetimos ou ilegiacutetimos justos ou injustos Satildeo instrumentos e nada aleacutem disso Nasceram para servir a todos os poderes a todos os interesses sejam eles quais forem J

Afmnar a proposiccedilatildeo socioloacutegica segundo a qual a doenccedila eacute um fato cultural analisaacutevel enquanto fato social total eacute admitir a arbitrariedade dessa noccedilatildeo e dos fenocircmenos por ela encobertos Atualmente esta arbitrariedade surge para noacutes em funccedilatildeo da revoluccedilatildeo epistemoloacutegica que a doenccedila experimentou ao longo de vaacuterias deacutecadas e principalmente em funccedilatildeo de sua explosatildeo O isolamento da categoria doenccedila as teorias explicativas que datildeo conta dela as manifestaccedilotildees e os sinais selecionados para diferenciaacute-la da natildeo-doenccedila as filosofias e as ideologias que servem como lugar agraves suas representaccedilotildees estatildeo imersas atualmente em grande confusatildeo A extensatildeo desse conceito a fatos que ultrapassam o campo de sua aplicaccedilatildeo tradicional- o corpo - nos leva a constatar o desuso da noccedilatildeo de doenccedila

Antoinette Chauvenet socioacuteloga Centre dEacutetude des Mouvements Sociaux CNRS Maison des Sciences de IHomme 54 Boulevard Raspail 75270 Paris Traduccedilatildeo do original LA loi et es corps feita por Silvia Alexim Nunes

STRAUSS L DoIacute( UlureI er hlstoire Plon 1954 p 16

Vol I Nuacutemero I 199114 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ao lado do conceito de doenccedila explicativo de fenoacutemenos bem circunscritos e sustentado por uma profissatildeo em situaccedilatildeo de monopoacutelio aparecem outros esquemas explicativos que se apoacuteiam em numerosos sinais utilizam conceitos como marginalidade seguranccedila risco necessidade proteccedilatildeo garantia e sauacutede e satildeo postos em praacutetica pelas profissotildees recentemente aparecidas

O recurso a tais conceitos contribui para o alargamento e a explosatildeo da noccedilatildeo de doenccedila pondo fim a uma certa ordem estabelecida pela filosofia da ontologia vitalista Segundo esta filosofia o ser vivo defmia em seu proacuteprio niacutevel suas normas de funcionamento equiliacutebrio e evoluccedilatildeo Esta filosofia conferia ao ser vivo assim como agrave doenccedila um estatuto autoacutenomo e separado Ela assinalava ao mesmo tempo um lugar isolado agrave medicina na batalha histoacuterica no seio da qual tomou forma a filosofia social de onde procedem o estatuto da pessoa e do papel social

O Direito foi o lugar de elaboraccedilatildeo desta filosofia Ele foi por sua vez a instacircncia de formalizaccedilatildeo das regras positivas do funcionamento social e de sua sanccedilatildeo e o lugar de enunciaccedilatildeo dos princiacutepios universais responsaacuteveis pela justiccedila social e pelos intercacircmbios sociais funcionando como o disse Claude Lefort como sistema simboacutelico e como princiacutepio gerador de uma democracia Este lugar privilegiado do Direito necessita de uma concepccedilatildeo objetiva da Razatildeo Ela procedia da afirmaccedilatildeo dupla do direito natural e da razatildeo natural

A explosatildeo da noccedilatildeo de doenccedila traduz um fato contemporacircneo marcante a penetraccedilatildeo das ciecircncias sociais e das ciecircncias do homem no campo que defmia a doenccedila e a raacutepida expansatildeo de profissotildees que fundam sua praacutetica nos conhecimenshytos positivos que produzem estas ciecircncias Traduz sobretudo uma nova perspecshytiva cultural do corpo da pessoa e do papel social Hoje em dia as ciecircncias do ser vivo as ciecircncias do homem e as ciecircncias sociais satildeo partes ligadas na defmiccedilatildeo cultural da responsabilidade individual e do campo do exerciacutecio da liberdade das pessoas Esta defmiccedilatildeo dependia da competecircncia dos juristas as ciecircncias do homem tendem a reservar ao Direito um papel de priacutencipe Assiste-se com efeito jaacute haacute vaacuterios dececircnios ao decliacutenio do Direito e da lei juriacutedica impessoal e geral em proveito de uma extensatildeo de direitos especiais de um direito estatutaacuterio e do direito regulamentar Este decliacutenio eacute paralelo ao desenvolvimento das ciecircncias sociais e das ciecircncias do ser vivo agrave sua participaccedilatildeo crescente agrave defmiccedilatildeo da Lei Constatashyse que estas ciecircncias ocupam atualmente posiccedilatildeo que lhes permite estabelecer normas relativas ao relacionamento conjugal ou ao relacionamento entre geraccedilotildees e que a sauacutede eacute o resultado suposto da observaccedilatildeo de prescriccedilotildees muacuteltiplas em mateacuteria de higiene ou de modo de vida A pedagogia natildeo escapa a esse tipo de normalizaccedilatildeo

Tudo isso nos obriga a considerar a doenccedila como uma categoria histoacuterica ligaud a um ceno quadro soacutecio-cultural E a anaacutelise desse viacutenculo que nos deve

A Lei e o Corpo 15

pennitir dar conta da transfonnaccedilatildeo dessa categoria Parece-nos necessaacuterio pesquishysar como essa irrupccedilatildeo das ciecircncias do homem e do ser vivo no campo da doenccedila tomou-se hoje em dia um jogo consideraacutevel para a epistemologia da medicina e para seu objeto Porque parece-nos igualmente necessaacuterio compreender em quais condiccedilotildees se faz atualmente a abertura da noccedilatildeo de doenccedila abertura que coloca a medicina em posiccedilatildeo de aplicar uma nova compreensatildeo cultural do relacionamento do homem com a sua pessoa com as leis que estabelecem as ciecircncias da qual ela faz parte Que filosofia social que ideacuteia de eacutetica e de justiccedila estatildeo na base dessa posiccedilatildeo Que estatuto da razatildeo e do conhecimento elas adquiriram que ideacuteia de Histoacuteria e de sentido ela veicula

Podia causar arrependimento o abandono durante muito tempo da batalha poliacutetica do Direito e dos direitos do homem porque seu papel como sistema simboacutelico e filosoacutefico foi negado ou subestimado Mas parece urgente natildeo abandonar a batalha poliacutetica aberta pela extensatildeo do recurso agraves ciecircncias do homem e do ser vivo dentro da gestatildeo do social e da cena poliacutetica

Se essas questotildees pareciam desmesuradamente ambiciosas parece-nos neshycessaacuterio ao menos colocaacute-las justamente no seu conjunto e em suas principais interrelaccedilotildees a fim de natildeo pennanecer aprisionadas em categorias tomadas obsoletas nem restritos a uma especializaccedilatildeo que perdeu sua razatildeo de ser jaacute que o que estaacute aqui emjogo satildeo perturbaccedilotildees soacutecio-culturais que atravessam o conjunto do universo social e cultural

I - DOENCcedilA NORMA E SENTIDO

1 O arbitraacuterio cultural da noccedilatildeo de doenccedila

A antropologia nos ensina que assim como a lei juriacutedica natildeo eacute um produto necessaacuterio da vida em sociedade em nenhuma cultura a doenccedila pode ser concebida enquanto realidade bioloacutegica em si

- Assim a doenccedila pode natildeo ser diferenciada de outros infortuacutenios eacute o caso entre os Ogori na Nigeacuteria 2

- Quando existe uma certa ideacuteia da doenccedila as representaccedilotildees que os inshydiviacuteduos tecircm de suas causas podem basear-se na observaccedilatildeo de sinais fiacutesicos (ou sintomas) ou serem totalmente independentes em relaccedilatildeo a eles Os Gnau na Nova Guineacute por exemplo classificam as doenccedilas natildeo em funccedilatildeo de suas manifestaccedilotildees mas a partir de suas causas A causa e o remeacutedio dependem de um sistema de

2 Ver GILLIES E Causal Crileria in African Classification ofDisease Snrinl AIrps) ana Medlcme Academic Press 1976

Vol 1 Nuacutemero 1 199116 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

evidecircncias distinto dos estados do corpo Os Gnau satildeo maus conhecedores de ervas Eles natildeo utilizam ervas especiacuteficas cujo uso estaria ligado a sinais cliacutenicos observados Por outro lado utilizam uma multiplicidade de plantas por ocasiatildeo de rituais de tratamento embora poucas delas entrem em contata com o corpo Sejam elas comidas ou aplicadas ao corpo seu uso depende da identificaccedilatildeo da causa e estaacute ligado a um saber complexo sobre as relaccedilotildees existentes entrc as plantas e os espiacuteritos Estas causas pertencem agrave ordem da magia da bmxaria e dos espiacuteritos3

- A explicaccedilatildeo do sintorna pode depender vaacuterias ordens de explicaccedilatildeo Entre os Azande por exemplo a explicaccedilatildeo pela hruxaria coexiste com uma

explicaccedilatildeo de caraacuteter empiacuterico 4 A ideologia social deternlIacutena que tudo o que se relaciona com os hmnens tem uma (ausa humana Quando um indiviacuteduo cai doente ou morre algueacutem desejou quis ou provocou sua doenccedila ou sua morte Esta visatildeo das coisas natildeo impede quc aos Azande faccedilam remeacutedios especiacuteficos para as doenccedilas identificadns remeacutedios cuja composiccedilatildeo estaacute ligada agraves doenccedilas conhecidas pelos seus sintomas Do mesmo modo as classificaccedilotildees das doenccedilas podem ser conshystruiacutedas a partir de criteacuterios dependentes de niacuteveis muacuteltiplos de interpretaccedilocirces que podem se acumular se excluir ou se opor

Estas poucas indicaccedilotildees propostas pela antropologia mostram a necessidade de considerar a doenccedila como uma categoria cultural relativa Esta relatividade se manifesta em diferentes niacuteveis

Por um lado quando a ideacuteia doenccedila diferenciada de outros infortuacutenios as interpretaccedilotildees podem ignorar totalmente os estados do corpo Este eacute apenas um receptaacuteculo em um sistema de relaccedilotildees que liga os homens ao mundo vegetal e ao mundo simboacutelico Entre Zande ao contraacuterio assim como entre osWolofs por exemplo a coesatildeo e a ordem social estatildeo diretamente inscritas no corpo dos indiviacuteduos Tudo o que diz respeito aos estados do corpo coloca elujogo as relaccedilotildees sociais e o simbolisnlo da sociedade

A ZempleniS mostra de que forma entre os Wolofs a existecircncia de operashydores simboacutelicos - por exemplo a ideacuteia de possessatildeo por um ancestral inscreve a ameaccedila de desintegraccedilatildeo de um grupo social a linhagem nesse caso no corpo dos indi viacuteduos Eacute a apreensatildeo da doenccedila ou da magia que sanciona a norma de

3 Ver LEWIS G Social A nthropology and Medicine Academiacutec Press 1976

Ver Evans-Pritchard EE Sorcellerie orades magie chez les Azandeacute Gallimard Pariacutes 1972

5 ZEMPLENI A Mal de soi mal de autre AutremenL Gueacuterir pnur ormalisir n2 4 pp 7gt 76

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comportamento entre os iguais sociais a interpretaccedilatildeo maacutegica dos males do indiviacuteduo eacute tambeacutem o meio de nivelamento de suas relaccedilotildees com os seus iguais ou um procedimento de normalizaccedilatildeo de seus comportamentos sociais Mas tratashyse de um procedimento sutil que se apodera da anguacutestia do doente - uma sanccedilatildeo aleatoacuteria - para fazecirc-lo r~assumir em toda a sua afetividade as normas de conduta que garantem a manutenccedilatildeo da estrutura da sociedade

Por outro lado a doenccedila como outras adversidades pode estar em relaccedilatildeo direta com uma perturbaccedilatildeo ou uma ruptura da ordem social Ela eacute entatildeo a sanccedilatildeo de uma infraccedilatildeo moral e de um delito Assim a doenccedila pode ser a marca da lei no corpo Mas a relaccedilatildeo da lei com o corpo pode dispensar a doenccedila eacute o que ocorre com o castigo corporal com a tortura iniciatoacuteria com a tatuagem ou ainda com o sacrifiacutecio humano Segundo P Clastres6 pela tortura iniciatoacuteria o iniciado novo sujeito da lei consolida o corpo social carregando natildeo mais sozinho mas como todo sujeito a marca da lei A funccedilatildeo da tortura iniciatoacuteria eacute marcar o corpo A sociedade dita sua lei aos seus membros inscreve o texto da lei na superfiacutecie dos corpos Pois a lei que funda a vida social da tribo natildeo pode ser esquecida por ningueacutem No mesmo sentido aquele que incitou o corpo social agrave destruiccedilatildeo atraveacutes de um ato do qual eacute reconhecido como culpado pode ser colocado fora da lei em um espaccedilo separado fechado que o arranca do corpo social (prisatildeo campo de reclusatildeo ) Nesses casos a marcaccedilatildeo espacial pode ser redobrada por uma marcaccedilatildeo sobre a pessoa o indiviacuteduo pode ele mesmo inscrever a lei sobre seu corpo seja pela morte pela loucura pela doenccedila ou pela tatuagem indiferenteshymente P Clastres7 citando Martchenko (Mon Teacutemoignage) diz que nas colocircnias penais da Moldaacutevi a triacuteplice alianccedila entre a lei a escrita e o corpo levada ao seu ponto extremo de estreitamento abole a proacutepria necessidade da maacutequina Ou melhor eacute o prisioneiro que se transforma em maacutequina de escrever a lei e que a inscreve sobre seu proacuteprio corpo Para enunciar-se a dureza da lei encontra a matildeo o corpo do proacuteprio culpado-viacutetima

A violaccedilatildeo da norma pode chegar a uma outra forma extrema de castigo que se conclui pela morte do culpado onde nenhuma matildeo nenhuma doenccedila intervecircm M Mauss8 evoca o caso na Austraacutelia em que o sujeito que morre natildeo se considera ou natildeo se sabe doente e se acha apenas por motivos coletivos precisos em um estado proacuteximo da morte Este estado coincide geralmente com uma ruptura de

6 CLASTRES P La socieacuteteacute contre lEtat Ed de Minuit Paris 1974

7 CLASTRES P La socieacuteteacute contre [Etat op cito

Vol 1 Nuacutemero 1 199118 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

A Lei e o Corpo 19

ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

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como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

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Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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Ao lado do conceito de doenccedila explicativo de fenoacutemenos bem circunscritos e sustentado por uma profissatildeo em situaccedilatildeo de monopoacutelio aparecem outros esquemas explicativos que se apoacuteiam em numerosos sinais utilizam conceitos como marginalidade seguranccedila risco necessidade proteccedilatildeo garantia e sauacutede e satildeo postos em praacutetica pelas profissotildees recentemente aparecidas

O recurso a tais conceitos contribui para o alargamento e a explosatildeo da noccedilatildeo de doenccedila pondo fim a uma certa ordem estabelecida pela filosofia da ontologia vitalista Segundo esta filosofia o ser vivo defmia em seu proacuteprio niacutevel suas normas de funcionamento equiliacutebrio e evoluccedilatildeo Esta filosofia conferia ao ser vivo assim como agrave doenccedila um estatuto autoacutenomo e separado Ela assinalava ao mesmo tempo um lugar isolado agrave medicina na batalha histoacuterica no seio da qual tomou forma a filosofia social de onde procedem o estatuto da pessoa e do papel social

O Direito foi o lugar de elaboraccedilatildeo desta filosofia Ele foi por sua vez a instacircncia de formalizaccedilatildeo das regras positivas do funcionamento social e de sua sanccedilatildeo e o lugar de enunciaccedilatildeo dos princiacutepios universais responsaacuteveis pela justiccedila social e pelos intercacircmbios sociais funcionando como o disse Claude Lefort como sistema simboacutelico e como princiacutepio gerador de uma democracia Este lugar privilegiado do Direito necessita de uma concepccedilatildeo objetiva da Razatildeo Ela procedia da afirmaccedilatildeo dupla do direito natural e da razatildeo natural

A explosatildeo da noccedilatildeo de doenccedila traduz um fato contemporacircneo marcante a penetraccedilatildeo das ciecircncias sociais e das ciecircncias do homem no campo que defmia a doenccedila e a raacutepida expansatildeo de profissotildees que fundam sua praacutetica nos conhecimenshytos positivos que produzem estas ciecircncias Traduz sobretudo uma nova perspecshytiva cultural do corpo da pessoa e do papel social Hoje em dia as ciecircncias do ser vivo as ciecircncias do homem e as ciecircncias sociais satildeo partes ligadas na defmiccedilatildeo cultural da responsabilidade individual e do campo do exerciacutecio da liberdade das pessoas Esta defmiccedilatildeo dependia da competecircncia dos juristas as ciecircncias do homem tendem a reservar ao Direito um papel de priacutencipe Assiste-se com efeito jaacute haacute vaacuterios dececircnios ao decliacutenio do Direito e da lei juriacutedica impessoal e geral em proveito de uma extensatildeo de direitos especiais de um direito estatutaacuterio e do direito regulamentar Este decliacutenio eacute paralelo ao desenvolvimento das ciecircncias sociais e das ciecircncias do ser vivo agrave sua participaccedilatildeo crescente agrave defmiccedilatildeo da Lei Constatashyse que estas ciecircncias ocupam atualmente posiccedilatildeo que lhes permite estabelecer normas relativas ao relacionamento conjugal ou ao relacionamento entre geraccedilotildees e que a sauacutede eacute o resultado suposto da observaccedilatildeo de prescriccedilotildees muacuteltiplas em mateacuteria de higiene ou de modo de vida A pedagogia natildeo escapa a esse tipo de normalizaccedilatildeo

Tudo isso nos obriga a considerar a doenccedila como uma categoria histoacuterica ligaud a um ceno quadro soacutecio-cultural E a anaacutelise desse viacutenculo que nos deve

A Lei e o Corpo 15

pennitir dar conta da transfonnaccedilatildeo dessa categoria Parece-nos necessaacuterio pesquishysar como essa irrupccedilatildeo das ciecircncias do homem e do ser vivo no campo da doenccedila tomou-se hoje em dia um jogo consideraacutevel para a epistemologia da medicina e para seu objeto Porque parece-nos igualmente necessaacuterio compreender em quais condiccedilotildees se faz atualmente a abertura da noccedilatildeo de doenccedila abertura que coloca a medicina em posiccedilatildeo de aplicar uma nova compreensatildeo cultural do relacionamento do homem com a sua pessoa com as leis que estabelecem as ciecircncias da qual ela faz parte Que filosofia social que ideacuteia de eacutetica e de justiccedila estatildeo na base dessa posiccedilatildeo Que estatuto da razatildeo e do conhecimento elas adquiriram que ideacuteia de Histoacuteria e de sentido ela veicula

Podia causar arrependimento o abandono durante muito tempo da batalha poliacutetica do Direito e dos direitos do homem porque seu papel como sistema simboacutelico e filosoacutefico foi negado ou subestimado Mas parece urgente natildeo abandonar a batalha poliacutetica aberta pela extensatildeo do recurso agraves ciecircncias do homem e do ser vivo dentro da gestatildeo do social e da cena poliacutetica

Se essas questotildees pareciam desmesuradamente ambiciosas parece-nos neshycessaacuterio ao menos colocaacute-las justamente no seu conjunto e em suas principais interrelaccedilotildees a fim de natildeo pennanecer aprisionadas em categorias tomadas obsoletas nem restritos a uma especializaccedilatildeo que perdeu sua razatildeo de ser jaacute que o que estaacute aqui emjogo satildeo perturbaccedilotildees soacutecio-culturais que atravessam o conjunto do universo social e cultural

I - DOENCcedilA NORMA E SENTIDO

1 O arbitraacuterio cultural da noccedilatildeo de doenccedila

A antropologia nos ensina que assim como a lei juriacutedica natildeo eacute um produto necessaacuterio da vida em sociedade em nenhuma cultura a doenccedila pode ser concebida enquanto realidade bioloacutegica em si

- Assim a doenccedila pode natildeo ser diferenciada de outros infortuacutenios eacute o caso entre os Ogori na Nigeacuteria 2

- Quando existe uma certa ideacuteia da doenccedila as representaccedilotildees que os inshydiviacuteduos tecircm de suas causas podem basear-se na observaccedilatildeo de sinais fiacutesicos (ou sintomas) ou serem totalmente independentes em relaccedilatildeo a eles Os Gnau na Nova Guineacute por exemplo classificam as doenccedilas natildeo em funccedilatildeo de suas manifestaccedilotildees mas a partir de suas causas A causa e o remeacutedio dependem de um sistema de

2 Ver GILLIES E Causal Crileria in African Classification ofDisease Snrinl AIrps) ana Medlcme Academic Press 1976

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evidecircncias distinto dos estados do corpo Os Gnau satildeo maus conhecedores de ervas Eles natildeo utilizam ervas especiacuteficas cujo uso estaria ligado a sinais cliacutenicos observados Por outro lado utilizam uma multiplicidade de plantas por ocasiatildeo de rituais de tratamento embora poucas delas entrem em contata com o corpo Sejam elas comidas ou aplicadas ao corpo seu uso depende da identificaccedilatildeo da causa e estaacute ligado a um saber complexo sobre as relaccedilotildees existentes entrc as plantas e os espiacuteritos Estas causas pertencem agrave ordem da magia da bmxaria e dos espiacuteritos3

- A explicaccedilatildeo do sintorna pode depender vaacuterias ordens de explicaccedilatildeo Entre os Azande por exemplo a explicaccedilatildeo pela hruxaria coexiste com uma

explicaccedilatildeo de caraacuteter empiacuterico 4 A ideologia social deternlIacutena que tudo o que se relaciona com os hmnens tem uma (ausa humana Quando um indiviacuteduo cai doente ou morre algueacutem desejou quis ou provocou sua doenccedila ou sua morte Esta visatildeo das coisas natildeo impede quc aos Azande faccedilam remeacutedios especiacuteficos para as doenccedilas identificadns remeacutedios cuja composiccedilatildeo estaacute ligada agraves doenccedilas conhecidas pelos seus sintomas Do mesmo modo as classificaccedilotildees das doenccedilas podem ser conshystruiacutedas a partir de criteacuterios dependentes de niacuteveis muacuteltiplos de interpretaccedilocirces que podem se acumular se excluir ou se opor

Estas poucas indicaccedilotildees propostas pela antropologia mostram a necessidade de considerar a doenccedila como uma categoria cultural relativa Esta relatividade se manifesta em diferentes niacuteveis

Por um lado quando a ideacuteia doenccedila diferenciada de outros infortuacutenios as interpretaccedilotildees podem ignorar totalmente os estados do corpo Este eacute apenas um receptaacuteculo em um sistema de relaccedilotildees que liga os homens ao mundo vegetal e ao mundo simboacutelico Entre Zande ao contraacuterio assim como entre osWolofs por exemplo a coesatildeo e a ordem social estatildeo diretamente inscritas no corpo dos indiviacuteduos Tudo o que diz respeito aos estados do corpo coloca elujogo as relaccedilotildees sociais e o simbolisnlo da sociedade

A ZempleniS mostra de que forma entre os Wolofs a existecircncia de operashydores simboacutelicos - por exemplo a ideacuteia de possessatildeo por um ancestral inscreve a ameaccedila de desintegraccedilatildeo de um grupo social a linhagem nesse caso no corpo dos indi viacuteduos Eacute a apreensatildeo da doenccedila ou da magia que sanciona a norma de

3 Ver LEWIS G Social A nthropology and Medicine Academiacutec Press 1976

Ver Evans-Pritchard EE Sorcellerie orades magie chez les Azandeacute Gallimard Pariacutes 1972

5 ZEMPLENI A Mal de soi mal de autre AutremenL Gueacuterir pnur ormalisir n2 4 pp 7gt 76

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comportamento entre os iguais sociais a interpretaccedilatildeo maacutegica dos males do indiviacuteduo eacute tambeacutem o meio de nivelamento de suas relaccedilotildees com os seus iguais ou um procedimento de normalizaccedilatildeo de seus comportamentos sociais Mas tratashyse de um procedimento sutil que se apodera da anguacutestia do doente - uma sanccedilatildeo aleatoacuteria - para fazecirc-lo r~assumir em toda a sua afetividade as normas de conduta que garantem a manutenccedilatildeo da estrutura da sociedade

Por outro lado a doenccedila como outras adversidades pode estar em relaccedilatildeo direta com uma perturbaccedilatildeo ou uma ruptura da ordem social Ela eacute entatildeo a sanccedilatildeo de uma infraccedilatildeo moral e de um delito Assim a doenccedila pode ser a marca da lei no corpo Mas a relaccedilatildeo da lei com o corpo pode dispensar a doenccedila eacute o que ocorre com o castigo corporal com a tortura iniciatoacuteria com a tatuagem ou ainda com o sacrifiacutecio humano Segundo P Clastres6 pela tortura iniciatoacuteria o iniciado novo sujeito da lei consolida o corpo social carregando natildeo mais sozinho mas como todo sujeito a marca da lei A funccedilatildeo da tortura iniciatoacuteria eacute marcar o corpo A sociedade dita sua lei aos seus membros inscreve o texto da lei na superfiacutecie dos corpos Pois a lei que funda a vida social da tribo natildeo pode ser esquecida por ningueacutem No mesmo sentido aquele que incitou o corpo social agrave destruiccedilatildeo atraveacutes de um ato do qual eacute reconhecido como culpado pode ser colocado fora da lei em um espaccedilo separado fechado que o arranca do corpo social (prisatildeo campo de reclusatildeo ) Nesses casos a marcaccedilatildeo espacial pode ser redobrada por uma marcaccedilatildeo sobre a pessoa o indiviacuteduo pode ele mesmo inscrever a lei sobre seu corpo seja pela morte pela loucura pela doenccedila ou pela tatuagem indiferenteshymente P Clastres7 citando Martchenko (Mon Teacutemoignage) diz que nas colocircnias penais da Moldaacutevi a triacuteplice alianccedila entre a lei a escrita e o corpo levada ao seu ponto extremo de estreitamento abole a proacutepria necessidade da maacutequina Ou melhor eacute o prisioneiro que se transforma em maacutequina de escrever a lei e que a inscreve sobre seu proacuteprio corpo Para enunciar-se a dureza da lei encontra a matildeo o corpo do proacuteprio culpado-viacutetima

A violaccedilatildeo da norma pode chegar a uma outra forma extrema de castigo que se conclui pela morte do culpado onde nenhuma matildeo nenhuma doenccedila intervecircm M Mauss8 evoca o caso na Austraacutelia em que o sujeito que morre natildeo se considera ou natildeo se sabe doente e se acha apenas por motivos coletivos precisos em um estado proacuteximo da morte Este estado coincide geralmente com uma ruptura de

6 CLASTRES P La socieacuteteacute contre lEtat Ed de Minuit Paris 1974

7 CLASTRES P La socieacuteteacute contre [Etat op cito

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comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

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ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 3: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 15

pennitir dar conta da transfonnaccedilatildeo dessa categoria Parece-nos necessaacuterio pesquishysar como essa irrupccedilatildeo das ciecircncias do homem e do ser vivo no campo da doenccedila tomou-se hoje em dia um jogo consideraacutevel para a epistemologia da medicina e para seu objeto Porque parece-nos igualmente necessaacuterio compreender em quais condiccedilotildees se faz atualmente a abertura da noccedilatildeo de doenccedila abertura que coloca a medicina em posiccedilatildeo de aplicar uma nova compreensatildeo cultural do relacionamento do homem com a sua pessoa com as leis que estabelecem as ciecircncias da qual ela faz parte Que filosofia social que ideacuteia de eacutetica e de justiccedila estatildeo na base dessa posiccedilatildeo Que estatuto da razatildeo e do conhecimento elas adquiriram que ideacuteia de Histoacuteria e de sentido ela veicula

Podia causar arrependimento o abandono durante muito tempo da batalha poliacutetica do Direito e dos direitos do homem porque seu papel como sistema simboacutelico e filosoacutefico foi negado ou subestimado Mas parece urgente natildeo abandonar a batalha poliacutetica aberta pela extensatildeo do recurso agraves ciecircncias do homem e do ser vivo dentro da gestatildeo do social e da cena poliacutetica

Se essas questotildees pareciam desmesuradamente ambiciosas parece-nos neshycessaacuterio ao menos colocaacute-las justamente no seu conjunto e em suas principais interrelaccedilotildees a fim de natildeo pennanecer aprisionadas em categorias tomadas obsoletas nem restritos a uma especializaccedilatildeo que perdeu sua razatildeo de ser jaacute que o que estaacute aqui emjogo satildeo perturbaccedilotildees soacutecio-culturais que atravessam o conjunto do universo social e cultural

I - DOENCcedilA NORMA E SENTIDO

1 O arbitraacuterio cultural da noccedilatildeo de doenccedila

A antropologia nos ensina que assim como a lei juriacutedica natildeo eacute um produto necessaacuterio da vida em sociedade em nenhuma cultura a doenccedila pode ser concebida enquanto realidade bioloacutegica em si

- Assim a doenccedila pode natildeo ser diferenciada de outros infortuacutenios eacute o caso entre os Ogori na Nigeacuteria 2

- Quando existe uma certa ideacuteia da doenccedila as representaccedilotildees que os inshydiviacuteduos tecircm de suas causas podem basear-se na observaccedilatildeo de sinais fiacutesicos (ou sintomas) ou serem totalmente independentes em relaccedilatildeo a eles Os Gnau na Nova Guineacute por exemplo classificam as doenccedilas natildeo em funccedilatildeo de suas manifestaccedilotildees mas a partir de suas causas A causa e o remeacutedio dependem de um sistema de

2 Ver GILLIES E Causal Crileria in African Classification ofDisease Snrinl AIrps) ana Medlcme Academic Press 1976

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evidecircncias distinto dos estados do corpo Os Gnau satildeo maus conhecedores de ervas Eles natildeo utilizam ervas especiacuteficas cujo uso estaria ligado a sinais cliacutenicos observados Por outro lado utilizam uma multiplicidade de plantas por ocasiatildeo de rituais de tratamento embora poucas delas entrem em contata com o corpo Sejam elas comidas ou aplicadas ao corpo seu uso depende da identificaccedilatildeo da causa e estaacute ligado a um saber complexo sobre as relaccedilotildees existentes entrc as plantas e os espiacuteritos Estas causas pertencem agrave ordem da magia da bmxaria e dos espiacuteritos3

- A explicaccedilatildeo do sintorna pode depender vaacuterias ordens de explicaccedilatildeo Entre os Azande por exemplo a explicaccedilatildeo pela hruxaria coexiste com uma

explicaccedilatildeo de caraacuteter empiacuterico 4 A ideologia social deternlIacutena que tudo o que se relaciona com os hmnens tem uma (ausa humana Quando um indiviacuteduo cai doente ou morre algueacutem desejou quis ou provocou sua doenccedila ou sua morte Esta visatildeo das coisas natildeo impede quc aos Azande faccedilam remeacutedios especiacuteficos para as doenccedilas identificadns remeacutedios cuja composiccedilatildeo estaacute ligada agraves doenccedilas conhecidas pelos seus sintomas Do mesmo modo as classificaccedilotildees das doenccedilas podem ser conshystruiacutedas a partir de criteacuterios dependentes de niacuteveis muacuteltiplos de interpretaccedilocirces que podem se acumular se excluir ou se opor

Estas poucas indicaccedilotildees propostas pela antropologia mostram a necessidade de considerar a doenccedila como uma categoria cultural relativa Esta relatividade se manifesta em diferentes niacuteveis

Por um lado quando a ideacuteia doenccedila diferenciada de outros infortuacutenios as interpretaccedilotildees podem ignorar totalmente os estados do corpo Este eacute apenas um receptaacuteculo em um sistema de relaccedilotildees que liga os homens ao mundo vegetal e ao mundo simboacutelico Entre Zande ao contraacuterio assim como entre osWolofs por exemplo a coesatildeo e a ordem social estatildeo diretamente inscritas no corpo dos indiviacuteduos Tudo o que diz respeito aos estados do corpo coloca elujogo as relaccedilotildees sociais e o simbolisnlo da sociedade

A ZempleniS mostra de que forma entre os Wolofs a existecircncia de operashydores simboacutelicos - por exemplo a ideacuteia de possessatildeo por um ancestral inscreve a ameaccedila de desintegraccedilatildeo de um grupo social a linhagem nesse caso no corpo dos indi viacuteduos Eacute a apreensatildeo da doenccedila ou da magia que sanciona a norma de

3 Ver LEWIS G Social A nthropology and Medicine Academiacutec Press 1976

Ver Evans-Pritchard EE Sorcellerie orades magie chez les Azandeacute Gallimard Pariacutes 1972

5 ZEMPLENI A Mal de soi mal de autre AutremenL Gueacuterir pnur ormalisir n2 4 pp 7gt 76

A Lei e o Corpo 17

comportamento entre os iguais sociais a interpretaccedilatildeo maacutegica dos males do indiviacuteduo eacute tambeacutem o meio de nivelamento de suas relaccedilotildees com os seus iguais ou um procedimento de normalizaccedilatildeo de seus comportamentos sociais Mas tratashyse de um procedimento sutil que se apodera da anguacutestia do doente - uma sanccedilatildeo aleatoacuteria - para fazecirc-lo r~assumir em toda a sua afetividade as normas de conduta que garantem a manutenccedilatildeo da estrutura da sociedade

Por outro lado a doenccedila como outras adversidades pode estar em relaccedilatildeo direta com uma perturbaccedilatildeo ou uma ruptura da ordem social Ela eacute entatildeo a sanccedilatildeo de uma infraccedilatildeo moral e de um delito Assim a doenccedila pode ser a marca da lei no corpo Mas a relaccedilatildeo da lei com o corpo pode dispensar a doenccedila eacute o que ocorre com o castigo corporal com a tortura iniciatoacuteria com a tatuagem ou ainda com o sacrifiacutecio humano Segundo P Clastres6 pela tortura iniciatoacuteria o iniciado novo sujeito da lei consolida o corpo social carregando natildeo mais sozinho mas como todo sujeito a marca da lei A funccedilatildeo da tortura iniciatoacuteria eacute marcar o corpo A sociedade dita sua lei aos seus membros inscreve o texto da lei na superfiacutecie dos corpos Pois a lei que funda a vida social da tribo natildeo pode ser esquecida por ningueacutem No mesmo sentido aquele que incitou o corpo social agrave destruiccedilatildeo atraveacutes de um ato do qual eacute reconhecido como culpado pode ser colocado fora da lei em um espaccedilo separado fechado que o arranca do corpo social (prisatildeo campo de reclusatildeo ) Nesses casos a marcaccedilatildeo espacial pode ser redobrada por uma marcaccedilatildeo sobre a pessoa o indiviacuteduo pode ele mesmo inscrever a lei sobre seu corpo seja pela morte pela loucura pela doenccedila ou pela tatuagem indiferenteshymente P Clastres7 citando Martchenko (Mon Teacutemoignage) diz que nas colocircnias penais da Moldaacutevi a triacuteplice alianccedila entre a lei a escrita e o corpo levada ao seu ponto extremo de estreitamento abole a proacutepria necessidade da maacutequina Ou melhor eacute o prisioneiro que se transforma em maacutequina de escrever a lei e que a inscreve sobre seu proacuteprio corpo Para enunciar-se a dureza da lei encontra a matildeo o corpo do proacuteprio culpado-viacutetima

A violaccedilatildeo da norma pode chegar a uma outra forma extrema de castigo que se conclui pela morte do culpado onde nenhuma matildeo nenhuma doenccedila intervecircm M Mauss8 evoca o caso na Austraacutelia em que o sujeito que morre natildeo se considera ou natildeo se sabe doente e se acha apenas por motivos coletivos precisos em um estado proacuteximo da morte Este estado coincide geralmente com uma ruptura de

6 CLASTRES P La socieacuteteacute contre lEtat Ed de Minuit Paris 1974

7 CLASTRES P La socieacuteteacute contre [Etat op cito

Vol 1 Nuacutemero 1 199118 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

A Lei e o Corpo 19

ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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evidecircncias distinto dos estados do corpo Os Gnau satildeo maus conhecedores de ervas Eles natildeo utilizam ervas especiacuteficas cujo uso estaria ligado a sinais cliacutenicos observados Por outro lado utilizam uma multiplicidade de plantas por ocasiatildeo de rituais de tratamento embora poucas delas entrem em contata com o corpo Sejam elas comidas ou aplicadas ao corpo seu uso depende da identificaccedilatildeo da causa e estaacute ligado a um saber complexo sobre as relaccedilotildees existentes entrc as plantas e os espiacuteritos Estas causas pertencem agrave ordem da magia da bmxaria e dos espiacuteritos3

- A explicaccedilatildeo do sintorna pode depender vaacuterias ordens de explicaccedilatildeo Entre os Azande por exemplo a explicaccedilatildeo pela hruxaria coexiste com uma

explicaccedilatildeo de caraacuteter empiacuterico 4 A ideologia social deternlIacutena que tudo o que se relaciona com os hmnens tem uma (ausa humana Quando um indiviacuteduo cai doente ou morre algueacutem desejou quis ou provocou sua doenccedila ou sua morte Esta visatildeo das coisas natildeo impede quc aos Azande faccedilam remeacutedios especiacuteficos para as doenccedilas identificadns remeacutedios cuja composiccedilatildeo estaacute ligada agraves doenccedilas conhecidas pelos seus sintomas Do mesmo modo as classificaccedilotildees das doenccedilas podem ser conshystruiacutedas a partir de criteacuterios dependentes de niacuteveis muacuteltiplos de interpretaccedilocirces que podem se acumular se excluir ou se opor

Estas poucas indicaccedilotildees propostas pela antropologia mostram a necessidade de considerar a doenccedila como uma categoria cultural relativa Esta relatividade se manifesta em diferentes niacuteveis

Por um lado quando a ideacuteia doenccedila diferenciada de outros infortuacutenios as interpretaccedilotildees podem ignorar totalmente os estados do corpo Este eacute apenas um receptaacuteculo em um sistema de relaccedilotildees que liga os homens ao mundo vegetal e ao mundo simboacutelico Entre Zande ao contraacuterio assim como entre osWolofs por exemplo a coesatildeo e a ordem social estatildeo diretamente inscritas no corpo dos indiviacuteduos Tudo o que diz respeito aos estados do corpo coloca elujogo as relaccedilotildees sociais e o simbolisnlo da sociedade

A ZempleniS mostra de que forma entre os Wolofs a existecircncia de operashydores simboacutelicos - por exemplo a ideacuteia de possessatildeo por um ancestral inscreve a ameaccedila de desintegraccedilatildeo de um grupo social a linhagem nesse caso no corpo dos indi viacuteduos Eacute a apreensatildeo da doenccedila ou da magia que sanciona a norma de

3 Ver LEWIS G Social A nthropology and Medicine Academiacutec Press 1976

Ver Evans-Pritchard EE Sorcellerie orades magie chez les Azandeacute Gallimard Pariacutes 1972

5 ZEMPLENI A Mal de soi mal de autre AutremenL Gueacuterir pnur ormalisir n2 4 pp 7gt 76

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comportamento entre os iguais sociais a interpretaccedilatildeo maacutegica dos males do indiviacuteduo eacute tambeacutem o meio de nivelamento de suas relaccedilotildees com os seus iguais ou um procedimento de normalizaccedilatildeo de seus comportamentos sociais Mas tratashyse de um procedimento sutil que se apodera da anguacutestia do doente - uma sanccedilatildeo aleatoacuteria - para fazecirc-lo r~assumir em toda a sua afetividade as normas de conduta que garantem a manutenccedilatildeo da estrutura da sociedade

Por outro lado a doenccedila como outras adversidades pode estar em relaccedilatildeo direta com uma perturbaccedilatildeo ou uma ruptura da ordem social Ela eacute entatildeo a sanccedilatildeo de uma infraccedilatildeo moral e de um delito Assim a doenccedila pode ser a marca da lei no corpo Mas a relaccedilatildeo da lei com o corpo pode dispensar a doenccedila eacute o que ocorre com o castigo corporal com a tortura iniciatoacuteria com a tatuagem ou ainda com o sacrifiacutecio humano Segundo P Clastres6 pela tortura iniciatoacuteria o iniciado novo sujeito da lei consolida o corpo social carregando natildeo mais sozinho mas como todo sujeito a marca da lei A funccedilatildeo da tortura iniciatoacuteria eacute marcar o corpo A sociedade dita sua lei aos seus membros inscreve o texto da lei na superfiacutecie dos corpos Pois a lei que funda a vida social da tribo natildeo pode ser esquecida por ningueacutem No mesmo sentido aquele que incitou o corpo social agrave destruiccedilatildeo atraveacutes de um ato do qual eacute reconhecido como culpado pode ser colocado fora da lei em um espaccedilo separado fechado que o arranca do corpo social (prisatildeo campo de reclusatildeo ) Nesses casos a marcaccedilatildeo espacial pode ser redobrada por uma marcaccedilatildeo sobre a pessoa o indiviacuteduo pode ele mesmo inscrever a lei sobre seu corpo seja pela morte pela loucura pela doenccedila ou pela tatuagem indiferenteshymente P Clastres7 citando Martchenko (Mon Teacutemoignage) diz que nas colocircnias penais da Moldaacutevi a triacuteplice alianccedila entre a lei a escrita e o corpo levada ao seu ponto extremo de estreitamento abole a proacutepria necessidade da maacutequina Ou melhor eacute o prisioneiro que se transforma em maacutequina de escrever a lei e que a inscreve sobre seu proacuteprio corpo Para enunciar-se a dureza da lei encontra a matildeo o corpo do proacuteprio culpado-viacutetima

A violaccedilatildeo da norma pode chegar a uma outra forma extrema de castigo que se conclui pela morte do culpado onde nenhuma matildeo nenhuma doenccedila intervecircm M Mauss8 evoca o caso na Austraacutelia em que o sujeito que morre natildeo se considera ou natildeo se sabe doente e se acha apenas por motivos coletivos precisos em um estado proacuteximo da morte Este estado coincide geralmente com uma ruptura de

6 CLASTRES P La socieacuteteacute contre lEtat Ed de Minuit Paris 1974

7 CLASTRES P La socieacuteteacute contre [Etat op cito

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comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

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ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

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adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

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do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

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de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

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morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

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II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

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sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 17

comportamento entre os iguais sociais a interpretaccedilatildeo maacutegica dos males do indiviacuteduo eacute tambeacutem o meio de nivelamento de suas relaccedilotildees com os seus iguais ou um procedimento de normalizaccedilatildeo de seus comportamentos sociais Mas tratashyse de um procedimento sutil que se apodera da anguacutestia do doente - uma sanccedilatildeo aleatoacuteria - para fazecirc-lo r~assumir em toda a sua afetividade as normas de conduta que garantem a manutenccedilatildeo da estrutura da sociedade

Por outro lado a doenccedila como outras adversidades pode estar em relaccedilatildeo direta com uma perturbaccedilatildeo ou uma ruptura da ordem social Ela eacute entatildeo a sanccedilatildeo de uma infraccedilatildeo moral e de um delito Assim a doenccedila pode ser a marca da lei no corpo Mas a relaccedilatildeo da lei com o corpo pode dispensar a doenccedila eacute o que ocorre com o castigo corporal com a tortura iniciatoacuteria com a tatuagem ou ainda com o sacrifiacutecio humano Segundo P Clastres6 pela tortura iniciatoacuteria o iniciado novo sujeito da lei consolida o corpo social carregando natildeo mais sozinho mas como todo sujeito a marca da lei A funccedilatildeo da tortura iniciatoacuteria eacute marcar o corpo A sociedade dita sua lei aos seus membros inscreve o texto da lei na superfiacutecie dos corpos Pois a lei que funda a vida social da tribo natildeo pode ser esquecida por ningueacutem No mesmo sentido aquele que incitou o corpo social agrave destruiccedilatildeo atraveacutes de um ato do qual eacute reconhecido como culpado pode ser colocado fora da lei em um espaccedilo separado fechado que o arranca do corpo social (prisatildeo campo de reclusatildeo ) Nesses casos a marcaccedilatildeo espacial pode ser redobrada por uma marcaccedilatildeo sobre a pessoa o indiviacuteduo pode ele mesmo inscrever a lei sobre seu corpo seja pela morte pela loucura pela doenccedila ou pela tatuagem indiferenteshymente P Clastres7 citando Martchenko (Mon Teacutemoignage) diz que nas colocircnias penais da Moldaacutevi a triacuteplice alianccedila entre a lei a escrita e o corpo levada ao seu ponto extremo de estreitamento abole a proacutepria necessidade da maacutequina Ou melhor eacute o prisioneiro que se transforma em maacutequina de escrever a lei e que a inscreve sobre seu proacuteprio corpo Para enunciar-se a dureza da lei encontra a matildeo o corpo do proacuteprio culpado-viacutetima

A violaccedilatildeo da norma pode chegar a uma outra forma extrema de castigo que se conclui pela morte do culpado onde nenhuma matildeo nenhuma doenccedila intervecircm M Mauss8 evoca o caso na Austraacutelia em que o sujeito que morre natildeo se considera ou natildeo se sabe doente e se acha apenas por motivos coletivos precisos em um estado proacuteximo da morte Este estado coincide geralmente com uma ruptura de

6 CLASTRES P La socieacuteteacute contre lEtat Ed de Minuit Paris 1974

7 CLASTRES P La socieacuteteacute contre [Etat op cito

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comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

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ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

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de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

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morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 6: A Lei e o Corpo

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comunhatildeo seja pela magia seja pelo pecado com as potecircncias e as coisas sagradas cuja presenccedila normalmente o sustenta A consciecircncia eacute entatildeo completamente in vadida por ideacuteias e sentimentos que satildeo de origem inteiramente coleti va e que natildeo trazem nenhuma perturbaccedilatildeo mental individual fora da sugestatildeo coletiva Este indi viacuteduo se acha encantado ou em infraccedilatildeo e morte por esta razatildeo M Mauss evoca tambeacutem o caso dos neozelandeses entre os quais apenas a moralidade (e natildeo o encantamento ou o enfeiticcedilamento) eacute a causada maioria das mortes

Em outras palavras a funccedilatildeo desempenhada pelo corpo na sociedade eacute um fato cultural muito variaacutevel O objeto desta funccedilatildeo pode ser o sistema de representaccedilotildees simboacutelicas nas quais o corpo pode ocupar um lugar central ou marginal ou entatildeo a lei das relaccedilotildees sociais A doenccedila surge como uma categoria relativa Ela pode servir de causa ou de mediaccedilatildeo uma espeacutecie de objeto transicional do envolvimento do corpo no sistema de representaccedilotildees ou na lei social Em outros casos a relaccedilatildeo entre a lei social e a doenccedila pode ser direta Ela pode enfim quando natildeo se diferencia de outros infortuacutenios natildeo dar lugar a efeitos simboacutelicos ou sociais especiacuteficos

Queremos mostrar aqui a partir de um esboccedilo raacutepido da histoacuteria contemshyporacircnea da noccedilatildeo de doenccedila que parece estar sendo recriado um modelo no qual a doenccedila enquanto categoria especiacutefica dependia de um sistema de representaccedilotildees que excluiacutea o social e a questatildeo do sentido Hoje com a irrupccedilatildeo massiva das ciecircncias sociais em um novo campo de representaccedilotildees (o da sauacutede) articula-se um sistema de representaccedilotildees onde o sentido ocupa um lugar central senatildeo tiracircnico colocando diretamente emjogo a ordem e as relaccedilotildees sociais Nesta anaacutelise apoiarshynos-emos na obra de G Canguilhem Le normal et le pathologique9 que analisa a filosofia da corrente vitalista na medicina

2 Da autonomia do ser vivo agrave sauacutede como Nomos constitutivo da lei

a) A afirmaccedilatildeo de uma ontologia vitalista

Definir as estruturas patoloacutegicas como um conjunto - com a ideacuteia subjacente de que existe uma ordem entre fenocircmenos que natildeo tecircm a priori uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre si - para opocirc-lo ao normal eacute operar um corte da realidade que a organiza a partir de uma unidade Esta unidade eacute a normatividade do ser vivo Eis a afirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo vitalista o patoloacutegico soacute retira sua unidade do ser vi vo que defme no seu niacutevel as normas as cria as faz evoluir Uma vez enunciada a ontologia vital enquanto fonte de normatividade do ser vivo todos os dados da

9 CANGUILHEM G Le normal et le pathologiqu PUF Galien 1966

A Lei e o Corpo 19

ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 7: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 19

ordemsocial ou psicoloacutegica vecircm se subordinar a esta normatividade Se eacute verdade que o corpo humano eacute em um certo sentido o produto da atividade social natildeo eacute absurdo pensar que a estabilidade de certos traccedilos revelados pela meacutedia depende da fidelidade consciente a certas normas de vidaJO

b) A normatividade do ser vivo

Em G Canguilhem as noccedilotildees de norma vital e de meacutedia satildeo identificadas Eacute bem verdade que o autor nos diz que a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o afastamento em relaccedilatildeo agrave meacutedia eacute normal ou anormal Mas ele atribui um certo valor agrave meacutedia atraveacutes da noccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas constantes estas que realizam um optimum As constantes apresentam-se com uma frequumlecircncia e um valor meacutedio em um grupo determinado o que lhes daacute valor de normalidade E esta normalidade eacute verdadeiramente a expressatildeo de uma normatividade a constante fisioloacutegica eacute a expressatildeo de um optimum fisioloacutegico nestas condiccedilotildees determinashydas entre as quais eacute preciso conservar aquelas que o ser vivo em geral e o homo faber em particular se atribuem

Estabelecendo a independecircncia loacutegica dos conceitos de norma e de meacutedia ele formula a hipoacutetese de que esta ligaccedilatildeo pode ser explicada pela subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave norma as meacutedias tecircm por princiacutepio normativo haacutebitos humanos em relaccedilatildeo aos tipos e ritmos de vida Um traccedilo humano natildeo seria normal porque frequumlente mas frequumlente porque normal isto eacute normativo em um tipo de vida determinado 2

c) A negaccedilatildeo da doenccedila e a necessidade terapecircutica

A teoria vitalista soacute pode se afirmar negando a doenccedila e a morte A doenccedila soacute eacute apresentada do ponto de vista do doente atraveacutes da possibilidade que tem o ser vivo de tolerar as infraccedilotildees agrave norma habitual de instituir normas novas e novas situaccedilotildees Estas normas satildeo constantes fisioloacutegicas a serviccedilo de um equiliacutebrio oacutetimo A doenccedila na corrente vitalista retira o seu estatuto apenas de uma possibilidade de restauraccedilatildeo da sauacutede O patoloacutegico eacute somente uma negatividade momentacircnea O normal eacute a sauacutede Afirmando-se o princiacutepio vitalista pratica a denegaccedilatildeo da doenccedila e da morte No maacuteximo leva em conta a instabilidade relativa das constantes fisioloacutegicas e a importacircncia dos estados de falsos equiliacutebrios

10 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 102

11 CANOUILHEM O Le normal et le pathologique op cit p 111

1 C NCVILHCM O lA vmuC U Ce pUlflocoglque Op Cr p lU2

VoL I Nuacutemero 1 199120 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

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de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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adaptadores para a explicaccedilatildeo das doenccedilas e das mutaccedilotildees Um ponto de vista como este traduz uma filosofia otimista do vital o organismo se encaminha para a vida natildeo para a morte No entanto o paradoxo muitas vezes assinalado da medicina eacute o de ter que curar quando natildeo se pode mais curar isto eacute quando a natureza natildeo eacute suficiente Assim a filosofia vitalista do equiliacutebrio oacutetimo soacute pode se susshytentar quando se a afirma o ponto de vista contraacuterio segundo o qual natildeo se pode esperar nada de bom proacutepria natureza Eacute este uacuteltimo que fundamenta a necessidade terapecircutica (que desapareceria em uma perspectiva estritamente otimista do vital)

De fato G Canguilhem aponta a necessidade terapecircutica como ponto de partida de uma teoria ontoloacutegica da doenccedila sem duacutevida diz eacute agrave necessidade terapecircutica que eacute preciso atribuir a iniciativa de toda teoria ontoloacutegica da doenccedila Ele mostra tambeacutem que a necessidade terapecircutica se apoacuteia no fato de que natildeo se espera nada de bom da proacutepria natureza Ele finalmente que a necessidade terapecircutica que estaacute no ponto de partida da normatividade do ser vivo Na medicina o estado normal indica ao mesmo tempo o estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal pois o restabelecimento deste estado habitual eacute o objeto ordinaacuterio da terapecircutica3

Norma e conhecimento

o autor sustenta em toda sua obra a posiccedilatildeo vitalista a partir de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica autoacutenoma do vital e natildeo a partir da necessidade terapecircutica O otimismo dessa filosofia pressupotildee um otimismo diante do agir meacutedico a possibilidade de uma intervenccedilatildeo na ordem das coisas definida pela razatildeo meacutedica Eacute de fato esta uacuteltima que em defmitivo define normal o patoloacutegico e fundamenta princiacutepio da normatividade vital

Nessa perspectiva a doenccedila e o patoloacutegico definem o ponto de vista meacutedico em detrimento do ponto vista paciente G Canguilhem observa que a doenccedila eacute diferente de uma ausecircncia momentacircnea A doenccedila existe de fato em algum lugar pelo menos para o doente o patoloacutegico implica a noccedilatildeo de pathas enquanto sentimento concreto de sofrimento de impotecircncia e de vida contrariada no entanto ele conclui deste modo Mas o patoloacutegico eacute na verdade anormal isto eacute uma negatividade momentacircnea14 Segundo a razatildeo meacutedica as ideacuteias de doenccedila e de patologia natildeo podem ser compreendidas ao mesmo tempo sob o ponto de vista

13 CANGUILHEM G Le normal et ie pathologique op cit p 77

14 CANGUILHEM G Le normal et palhaogque ap cit pS5

A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

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de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

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morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

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II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

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de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 21

do meacutedico e sob o ponto de vista do doente Como diz J Chavreul 15 Natildeo se pode pretender salvar ao mesmo tempo o discurso meacutedico e o discurso do paciente ( ) Ao se estabelecer defmitivamente enquanto ciecircncia a medicina nos deixa subjetishyvamente divididos

Em outras palavras eacute a necessidade terapecircutica cujo campo de aplicaccedilatildeo eacute circunscrito pela medicina e agrave qual vem responder a queixa do doente que fundamenta a ontologia vitalista Nunca seria demais insistir como lembra C Lefort l6 no duplo caraacuteter da ideacuteia que eacute representaccedilatildeo e norma De um lado haacute a escolha cultural relativa agrave representaccedilatildeo da doenccedila como ontologia bioloacutegica isto eacute a afirmaccedilatildeo filosoacutefica da autonomia do vital Por outro lado haacute a normatividade de onde emana a accedilatildeo meacutedica normatividade que circunscreve o seu campo de atuaccedilatildeo a ordem meacutedica e atraveacutes desta a ordem dos corpos A representaccedilatildeo deste campo separado e autocircnomo do vital defme os limites da especificidade meacutedica assim como sua legitimidade A norma vital eacute a condiccedilatildeo de existecircncia de um campo autocircnomo do conhecimento a ordem meacutedica institui a ordem do ser vivo

e) Vitalismo e positivismo

Por sua importacircncia esta obra provocou um novo interesse pela corrente vitalista fortalecendo o ponto de vista meacutedico sobre a doenccedila quando a medicina parecia sofrer de uma espeacutecie de depressatildeo epistemoloacutegica em funccedilatildeo da conshycorrecircncia de outras filosofias da doenccedila oriundas da psicanaacutelise Estas podiam pretender dar um outro estatuto agrave doenccedila porque integravam o ponto de vista do doente e fundamentavam sua terapecircutica nos fatos A corrente vitalista baseandoshyse no neodarwinismo renascente que gozava de grande fama na eacutepoca das teorias da hereditariedade bioloacutegica podia tomar menos incerta a filosofia meacutedica articulando-a estreitamente aos resultados espetaculares da biologia humana G Canguilhem afirmava esta filiaccedilatildeo Dizer que a hereditariedade bioloacutegica eacute uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute admitir que haacute no ser vivo um logos inscrito conservado e transmitido Defmir a vida como um sentido escrito na mateacuteria eacute admitir a existecircncia de um a priori objeti vo de um a priori propriamente material e natildeo mais apenas formal Esta posiccedilatildeo que realiza um retomo ao positivismo do qual pretendia se afastar foi revelada por D Lecourt 17 Segundo ele o vitalismo

15 CHAVREUL 1 Lordre meacutedical Seui Le champ freudien Paris 1978

16 LEFORT CI Lesformes de IHistoire Essais danthropologie politique Gallimard 1978

J7 LrCUUIU U Pour une critique de eacutepisteacutemologie Maspeacuterio Theacuteorie 1972

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 10: A Lei e o Corpo

Vol 1 Nuacutemero I 199122 PHYSIS - Revista de Saude Coletiva

de C Ganguilhem toma-se uma filosofia da vida e ao mesmo tempo uma teoria do A que da vida conceito pela mediaccedilatildeo do conceito da vida natildeo nos parece de modo algum legitimada pela existecircncia material efetiva dos ADN ( )Curto-circuitando vida e conceito em nome deste a priori

natildeo estaacute tomando um no das empiristas do conhecimento empirismo especulativo sem duacutevida o logos deve dar conta de si mesmo e de sua concepccedilatildeo mas um empirismo assim mesmo com o perigo que se anuncia bem demais aqui de ver desaparecer a fonte objetiva do conhecimento

sumariamente as que ser ao positivismo criacuteticas que podemos dirigir a todos os campos do conhecimento para os quais a cientificidade eacute reivindicada o positivismo reduz a dimensatildeo histoacuterica dos fenocircmenos estudados a uma evoluccedilatildeo dotada de sentido exterior ao sujeito e preestabelecido linear e cronoloacutegico uma evoluccedilatildeo que leva o conhecimento do erro agrave verdade onde todas as verdades satildeo julgadas a partir da mais recente delas Os fenocircmenos entre os quais ele estabelece relaccedilotildees existem ontologicamente independentemente da que observador trava com eles O recurso agrave explicaccedilatildeo pela origem correlato da perspectiacuteva evolutiva nega a dimensatildeo possiacutevel do sujeito enquanto ator de sua proacutepria histoacuteria isto eacute sua liberdade Nesta perspectiva a eacute ilusoacuteria O discurso positivista separa julgamento valor e julgamento de conhecimento Estabelece um corte entre moral e conhecimento evitando questionar o sentido atraveacutes do conhecimento objetivo Fazendo isso ele hipostasia o ato de conhecimento cientiacutefico enquanto valor uacuteltimo produtor do uacutenico sentido Submetendo-se conhecimentos produzidos como fonte uacutenica verdade daacute um estatuto agrave razatildeo Nesta a razatildeo serve o interesse do sujeito isto eacute a conservaccedilatildeo de si conservadorismo do indiviacuteduo ou da espeacutecie conservadorismo social Criticando a razatildeo modema Horkheimer e este de misericoacuterdia razatildeo mais do que qualquer sistema para todo processo determinado desde iniacutecio toda esperanccedila eacute retirada natildeo da realidade mas do saber que no siacutembolo miacutetico ou matemaacutetico se apropria da realidade como esquema e a perpetua enquanto tal

Estas criacuteticas podem ser geralmente dirigidas ao positivismo quando ele se aplica a uma natureza que se deixa doar e reduzir Mas na medicina a presenccedila da

18 ADORNO T e HORKHEIMER M La dialectique de la raison Fragmenrs philosophiques Gallimard

A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

Vol 1 Nuacutemero 1 199126 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 23

morte a resistecircncia da mateacuteria e o fracasso sempre possiacutevel obrigaram durante muito tempo a uma modeacutestia maior A presenccedila do doente por detraacutes da doenccedila eacute urna evocaccedilatildeo constante do indetenninado da natureza A natureza faz o que quer e zomba de nossas generalidades que soacute podem se aplicar a ela uacutenica incomparaacutevel e sempre diferente no curso do desdobramento aventuroso de sua histoacuteria sem historiador 19

O vitalismo mesmo tendo G Canguilhem estabelecido sua filiaccedilatildeo ao posishytivismo natildeo se reduz a ele Isto eacute verdadeiro quando reconhece a necessidade terapecircutica quando se afirma enquanto filosofia isto eacute enquanto interrogaccedilatildeo fundamental Eacute verdadeiro sobretudo quando negando a morte e a presenccedila da morte na doenccedila ele afirma a criatividade do ser vivo defmindo a doenccedila como um outro procedimento da vida Enquahto filosofia o ponto de vista vitalista enquanto filosofia implica que a medicina seja concebida como arte isto eacute como uma praacutetica que reconhece a doenccedila em sua criatividade ao contraacuterio do ponto de vista cientificista atual da medicina que busca somente reduzi-la Nestas conshydiccedilotildeesa posiccedilatildeo vitalista pode preservar este elemento essencial a ideacuteia da inacesshysibilidade da vida e da impossibilidade de domaacute-la A ontologia vitalista conshycedendo um estatuto autocircnomo e separado ao ser vivo garante ao mesmo tempo a possibilidade de sua liberdade do misteacuterio ateacute mesmo do absurdo a ideacuteia de autonomia funciona de fato como um princiacutepio explicativo externo isto eacute como atestado inacessiacutevel agrave razatildeo Nisso ela se distingue das representaccedilotildees historicistas atuais da doenccedila que fazem desta uma histoacuteria predeterminada fazendo do doente o historiador de uma doenccedila que natildeo lhe pertence20 Nesta perspectiva a posiccedilatildeo vitalista pode ser aparentada agraves diversas filosofias do Ocidente que reconhecem como faz o pensamento miacutetico a dominaccedilatildeo da natureza ou de Deus - Eu O tratava Deus o curou dizia Ambroise Pareacute - enquanto o ponto de vista positivista pretende que a razatildeo cientiacutefica possa dominar o mundo A razatildeo se opotildee ao mito que reconhece a dominaccedilatildeo da natureza pretendendo a razatildeo dominar o mundo disseram M Horkheirner e T Adorno21

19 REGNIER A lA crise du langage scientifique Anthropos Paris 1974

20 Este princiacutepio de separaccedilatildeo essencial tem analogias com o princiacutepio de separaccedilatildeo do Direito eda Moral Ele tinha como efeito poupar dentro de certos limites (aqueles das representaccedilotildees) uma autonomia da pessoa e um certo espaccedilo de liberdade juridicamente protegido

H bullbullJgtORNO T e HOlKH~lMhK M La dialectique de la raison op cito

Vol 1 Nuacutemero I 199124 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

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Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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II - CAUSALIDADE E DESVIO

A revoluccedilatildeo cultural no seio da qual explodiu a noccedilatildeo de doenccedila se produziu no nosso entendimento em torno da necessidade de sentido e da busca das causas da doenccedila A medicina foi criticada por ser apenas sintomaacutetica deixando pendente a questatildeo do sentido por se interessar mais pelos sinais da doenccedila do que por suas causas concedendo agrave filosofia agrave religiatildeo a uma ideacuteia da natureza humana o encargo de responder a isso Dado o decliacutenio da filosofia e da religiatildeo nas representaccedilotildees contemporacircneas este sentido eacute hoje procurado na ciecircncia Uma certa perda de credibilidade da medicina eacute contemporacircnea de uma nova reivindishycaccedilatildeo cultural do sentido A medicina psicossomaacutetica (que busca nas desordens da psiquecirc a explicaccedilatildeo uacuteltima das desordens do corpo) a psicanaacutelise (que faz do sentido o seu objeto) e sobretudo a medicina preventiva por vocaccedilatildeo introshyduziram a questatildeo do sentido e da causa no domiacutenio da competecircncia meacutedica Eacute a partir da prevenccedilatildeo isto eacute de uma perspectiva causal que o lugar ocupado pela medicina no campo social e no domiacutenio das representaccedilotildees opera atualmente a sua mutaccedilatildeo

No entanto a ideacuteia de causa natildeo engloba necessariamente a de sentido Segundo B Saint-Semin22 a noccedilatildeo de causalidade pode ser encarada de dois pontos de vista radicalmente diferentes ou se supotildee que nossa razatildeo chegue diretamente agrave realidade em si - e entatildeo a palavra causalidade indica uma tentativa para se conhecer na verdade o ser e a razatildeo de ser das coisas - ou entatildeo se supotildee que o termo causalidade natildeo denote uma propriedade das coisas mas um modo de explicaccedilatildeo particularmente importante aliaacutes dos fatos que experimentamos No primeiro caso o ponto de apoio eacute um postulado metafiacutesico a razatildeo humana pode perceber o ser e a razatildeo de ser das coisas No segundo nos mostramos ao mesmo tempo mais modestos e mais criacuteticos considerando que o conhecimento comeccedila com a experiecircncia defrnimos a causalidade como um modo de organizar sisshytematicamente os fatos empiacutericos e lhes dar sentido Natildeo se faz por conseguinte da causalidade uma categoria ontoloacutegica mas conceito epistemoloacutegico isto eacute uma noccedilatildeo cujo sentido natildeo eacute analisado agrave luz dos seus usos metafiacutesicos mas sim de sua aceitaccedilatildeo nas ciecircncias

O ponto de vista positivista adota a concepccedilatildeo imodesta e ontoloacutegica afirmar que o processo cientiacutefico pode prescindir da perspecti va ontoloacutegica da causalidade eacute renunciar a levar em conta o sentido ou seja colocar em outro ponto a questatildeo do sentido O que natildeo eacute feito pelo raciociacutenio comtiano fundador do positivismo

22 REGNIER A La crise du langage scientifique op cito

A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 25

sobretudo em sociologia Negando a metafiacutesica ele a reintroduz em uma metafiacutesica da eficiecircncia cientiacutefica

Como diz W Riese23 analisando a causalidade em medicina o princiacutepio de causalidade eacute primeiramente um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo Eacute o princiacutepio organizador da experiecircncia que lhe deve seu caraacuteter sistemaacutetico e racional Eacute tambeacutem um princiacutepio de representaccedilatildeo do mundo de organizaccedilatildeo de suas representaccedilotildees Eacute uma representaccedilatildeo de um mundo a ser dominado Eacute-me impossiacutevel talvez mesmo intoleraacutevel fazer uma contabilidade dupla de meu orccedilamento intelectual e interpretar certos fenocircmenos por via causal excluindo os outros Natildeo vejo como por um tal processo chegar a uma orientaccedilatildeo segura e firme do meu espiacuterito no seio de um mundo que recusaria meu domiacutenio em princiacutepio domiacutenio cuja fraqueza traria necessariamente o desmoronamento do lugar ocushypado graccedilas aos seus esforccedilos pelo homem neste mesmo mundo

Este mito moderno de Prometeu eacute relativamente recente Nas filosofias antishygas o termo causalidade tinha uma significaccedilatildeo bem mais geral do que tem hoje Aristoacuteteles distinguia quatro formas de causa a causa formais que hoje se chamaria a estrutura ou o conteuacutedo conceitualde uma coisa a causa materiacutealis isto eacute a mateacuteria da qual eacute feita uma coisa a causa finais que eacute o objetivo de uma coisa e enfim a causa efficiens Somente esta uacuteltima corresponde mais ou menos ao que noacutes designamos hoje pelo termo causa Na medida em que o processo material ganhava em realidade o termo middotcausa se aplicava ao processo material particular que precedia o acontecimento a ser explicado e de uma certa maneira o provocava Eacute assim que a foacutermula da causalidade foi limitada e identificou-se finalmente ao fato de esperar-se que um acontecimento da natureza seja rigorosamente detershyminado e que por conseguinte o conhecimento exato da natureza ou de uma de suas partes seja suficiente pelo menos em princiacutepio para prever o futuro24

A medicina querendo consolidar o seu status cientiacutefico e ultrapassar a arte meacutedica devia renunciar ao sentido ou fazer dele o centro de sua posiccedilatildeo cientiacutefica recentemente adquirida na ideologia dominante graccedilas agrave biologia humana Tendo optado por considerar o sentido ela fez seu o processo positivista que confere agrave causa uma ontologia Eacute quando a medicina consegue operar a unificaccedilatildeo de seu ponto de vista filosoacutefico fundador sob a eacutegide da ciecircncia e do positivismo ao mesmo tempo no seu campo tradicional de intervenccedilatildeo (a medicina curati va) e nos novos campos (medicina preventiva) que se pode falar de medicalizaccedilatildeo da sociedade A continuidade estava estabelecida entre teleonomia da espeacutecie (em

23 RIESE W LA penseacutee causale en meacutedecine PUF 1950

24 HEISENBERG W La nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

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Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

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privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

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de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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biologia humana) ontologia vitalista (quando esta nega o doente para soacute falar da doenccedila) e todas as normas defInidas pelas ciecircncias sociais e epidemioloacutegicas A generalizaccedilatildeo possiacutevel sob o ponto de vista positivista das diferentes ciecircncias do homem e de tudo que vive quando confere a estas um denominador comum atra veacutes de sua relaccedilatildeo idecircntica ao objeto (relaccedilatildeo de efIciecircncia e de instrumentalidade submetida agrave instrurnen-talizaccedilatildeo econocircrnica nas praacuteticas gestionaacuterias em termos de custoefIcaacutecia) permite-lhes entatildeo intervir como instacircncia unifIcada e particular Eacute a partir daiacute aliaacutes que se abre a vasta perspectiva de interdisciplinaridade cientiacutefIca O termo medicalizaccedilatildeo eacute contudo restritivo na medida em que o ponto de vista descrito eacute adotado ao mesmo tempo e separadamente por cada uma das disciplinas em questatildeo medicina epidemiologia sociologia economia meacutedica psiquiatria Nos seus proacuteprios esquemas de anaacutelise cada especialidade pode utilizar como paracircmetros os resultados da especialidade vizinha A medicalizaccedilatildeo do social eacute acompanhada por uma penetraccedilatildeo das ciecircncias do homem no campo meacutedico normalmente de igual importacircncia por suas consequumlecircncias A medicina e as ciecircncias das quais ela procede nem mais nem menos do que as outras disciplinas que se interessam pelo homem tecircm o monopoacutelio da resposta - quanto ao sentido - agrave questatildeo das origens e do vir-a-ser A biologia a sociologia e a psicanaacutelise por exemplo tecircm sua proacutepria teoria da reproduccedilatildeo e da causa primeira Cada uma estaacute apta no seu proacuteprio campo a nos explicar os determinismos que nos fazem ser agir e vir-a-ser

Por sua concepccedilatildeo ontoloacutegica de causa a ideacuteia moderna e dominante do deshyterminismo tem a especifIcidade de pretender dar o sentido das coisas Por conseguinte ela institui a regra Sendo aplicada ao objeto sentido em todos os campos cobertos pelas ciecircncias do homem e do ser vivo ela funda a norma constitutiva da lei que rege todas as situaccedilotildees da existecircncia os comportamentos as relaccedilotildees entre os homens e que governa os estados da pessoa e de seu corpo

No interesse atual da sociologia da sauacutede pela etnologia ciecircncia que nos descreve as sociedades nas quais a doenccedila estaacute diretamente ligada a uma transgresshysatildeo social ou moral ver-se-aacute uma ilustraccedilatildeo do fato de que atraveacutes do fenocircmeno recente da medicalizaccedilatildeo do social estatildeo em jogo os valores centrais da nossa sociedade e a regulamentaccedilatildeo em geral das relaccedilotildees sociais Mais especifIcamente as ciecircncias do homem e do ser vivo tornaram-se partes fundamentais nas instacircncias de elaboraccedilatildeo da lei e de enunciaccedilatildeo dos valores Estas ciecircncias defInindo as leis do normal relativamente aos estados do corpo e agraves relaccedilotildees sociais contribuiacuteram para transformar a noccedilatildeo de doenccedila ao mesmo tempo em que a faziam explodir dando-lhe uma conotaccedilatildeo de desvio Com relaccedilatildeo agrave regra agrave ordem das coisas e dos seres humanos a doenccedila na sua representaccedilatildeo dominante tornou-se uma das c4tcgoria5 lia subversatildeo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 15: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 27

Eacutea hipoacutetese que noacutes tentaremos defender na continuaccedilatildeo deste artigo a partir de uma anaacutelise da evoluccedilatildeo dos fundamentos da responsabilidade e da relaccedilatildeo desta com o corpo Mostraremos que o direito liberal defInia um status duplo e dicotomizado da responsabilidade Um deles fundado sobre a propriedade o outro sobre a dependecircncia salarial A noccedilatildeo de infraccedilatildeo que valida a noccedilatildeo de responsabilidade tinha tambeacutem aiacute um status duplo Em um caso a infraccedilatildeo supunha um espaccedilo de liberdade no outro a infraccedilatildeo era um estado consubstancial relativo agrave situaccedilatildeo de dependecircncia A evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de responsabilidade eacute caracterishyzada pelo desaparecimento de seu fundamento a infraccedilatildeo em proveito da causa Neste sistema as leis produzidas pelas ciecircncias do homem e do ser vivo estatildeo em situaccedilatildeo de dar um conteuacutedo agrave noccedilatildeo de causa introduzindo uma nova concepccedilatildeo da infraccedilatildeo Esta concepccedilatildeo procede da fIlosofIa do sentido e da histoacuteria dominante nessas ciecircncias

1 Os fundamentos da responsabilidade o duplo status do direito liberal

O direito burguecircs poacutes-revolucionaacuterio instaurou uma ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o dever moral e o poder material A liberdade supunha a existecircncia de uma coisa material de uma fortuna que sancionava apoacutes tecirc-la verifIcado a autonomia da pessoa O exerciacutecio do direito de propriedade era a medida do grau de liberdade do qual se dispunha A liberdade era uma liberdade de proprietaacuterio Nessas condiccedilotildees a vagabundagem era um delito pois o vagabundo natildeo possuiacutea nada que lhe permitisse afIrmar medir e limitar simultaneamente sua liberdade25

Segundo R Savatier26 a Revoluccedilatildeo Francesa tinha prolongado por um patrimocircnio incorpoacutereo sua concepccedilatildeo de propriedade enquanto liberdade amplishyada da pessoa Os decretos de janeiro de 1791 e de julho de 1793 tinham inaugurado para as obras do espiacuterito a propriedade literaacuteria e artiacutestica Sob a propriedade era a pessoa que o direito entatildeo descobria No direito consequumlenteshymente a noccedilatildeo de pessoa era inseparaacutevel da propriedade material literaacuteria ou artiacutestica Desde entatildeo os atributos e os direitos da pessoa ampliaram-se considerashyvelmente sob o ponto de vista juriacutedico Isto soacute pocircde acontecer por eles terem sido separados da propriedade Os atributos da pessoa no seu trabalho assalariado foram defmidos Com a extensatildeo do salariado a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para se tornar o contrato de trabalho regido por um novo direito o direito do trabalho

25 LEVY T Le disir de punir Essai sur le priviLege peacutenal Fayard 1979

26 SA V A TIER R Les meacutetamorphoses eacuteconomiques et sociales du Droit priveacute d aujourdhui 3 ri Approfondissemem dun Droit renouveleacute Dalloz 1959

Vol 1 Nuacutemero 11991 28 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 16: A Lei e o Corpo

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Ateacute a deacutecada 1960 tradiccedilatildeo do direito civil diz R Savatier~7 nela

considerava a sauacutede como fazendo parte dos atributos juriacutedicos do estado da pessoa ou soacute a incluiacutea muito parcialmente Para este autor a proacutepria extensatildeo dos alribulose direitos da pessoa eacute inseparaacutevel dos perigos que nossa civilizaccedilatildeo inflige agrave pessoas Por causa das ameaccedilas com as quais a civilizaccedilatildeo contemporacircnea cerca por todos os lados a pessoa os juristas inteacuterpretes de uma necessidade primordial e instintiva da humanidade foram levados a reconhecer c asa1vaguardar os direitos do homem no seio desta civilizaccedilatildeo material por conseguinte hostil agrave pessoa Seu esforccedilo de promoccedilatildeo eacute em sentido amplo uma reaccedilatildeo de defesa

Quanto a estas constataccedilotildees podemos fazer vaacuterias observaccedilotildees O poder material exercido sobre a coisa adquirida ou produzida e os deveres que a ela satildeo ligados (o dever do bom proprietaacuterio e do bom de famiacutelia) satildeo sem duacutevida a expressatildeo da autonomia da vontadejaacute que este poder eacute garantido pela propriedade Do mesmo modo no trabalho livre da pessoa encontra-se a propriedade literaacuteria e artiacutestica Por outro lado o trahalho livre do assalariado instaura um corte radical entre a coisa material produzida e o poder da pessoa entre o princiacutepio da autonomia da vonlade o s(u exerciacutecio De rato a contrataccedilatildeo de serviccedilos saiu do Coacutedigo Civil para ser regida por um direito particular que responde a outras situaccedilotildees econoacutemishycas e a outros princiacutepios juriacutedicos que nagraveo as situaccedilotildees e princiacutepios que subentenshydem o Coacutedigo Civil O produto do trabalho livre natildeo eacute mais a expressatildeo da vontade autoacutenoma da pessoa a manifestaccedilatildeo de seu poder mas a de uma situaccedilatildeo de dependecircncia a dependecircncia que pelo contrato de trabalho liga o assalariado ao patratildeo c o transforma em mercadoria Os direitos ligados ao contrato de trabalho definem bem os atributos da pessoa mas de uma pessoa cujo status juriacutedico eacute distinto do status da pessoa que era descoberta pelo direito de propriedade Satildeo direitos que antes de mais nada consagram sua dependecircncia econoacutemica e juriacutedica e que organizam em seguida sua defesa diante dos possiacuteveis abusos do poder patronal

O direito agrave sauacutede oriundo do contrato de trabalho pertence a esta concepccedilatildeo defensiva c dependente quer se trate dos direitos da sauacutede no trabalho (poder de seleccedilatildeo do patratildeo proteccedilatildeo do trabalhador) ou fora dele proteccedilatildeo dos indiviacuteduos diante dos possiacuteveis abusos de poder do corpo meacutedico (a existecircncia da declaraccedilatildeo dos direitos do doente por exemplo) ou do poder regulamentar (ver debate em torno do sistema GAMIN) Os direitos do trabalho e o direito agrave sauacutede aparecem entatildeo como direitos puacuteblicos e privados de garantia ligados agrave dicotomizaccedilatildeo dos direitos da pessoa

27 SAV A TIEIlt R op cito

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 17: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 29

A contradiccedilatildeo percebida por R Savatier entre um direito material da pessoa sobre a coisa e o exerciacutecio social deste direito hostil agrave pessoa caracteriza o status duplo do direito liberal Em nome de um direito objetivo da pessoa firmando-se como um dos grandes princiacutepios gerais do direito e dos direitos do homem como a liberdade e a igualdade satildeo garantidos os direitos subjetivos opostos isto eacute a manutenccedilatildeo das situaccedilotildees econoacutemicas e sociais desiguais pelo dispositivo de conjunto das leis positivas

Para os teoacutericos marxistas do direito o caraacuteter juriacutedico da regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relaccedilotildees na sociedade de produccedilatildeo mercantil liberal A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos pressupotildee uma economia atomizada O viacutenculo juriacutedico eacute mantido pelos contratos concluiacutedos entre as diferentes unidades econoacutemicas privadas e isoladas A relaccedilatildeo juriacutedica entre os sujeitos eacute apenas o inverso da relaccedilatildeo entre os produtos do trabalho tornados mercadoria 28 A derrubada do sistema capitalista deve trazer consigo a supressatildeo do direito Se esta anaacutelise parece fundamentada no niacutevel econoacutemico onde se situa natildeo nos parece justo que por isso se reduza o direito agrave sua dimensatildeo econoacutemica Esta reduccedilatildeo traz com ela uma identificaccedilatildeo do direito com o seu componente subjetivo O direito eacute concebido a partir das noccedilotildees de interesse de conservaccedilatildeo Ora noccedilotildees como igualdade e liberdade satildeo mais amplas do que elas Atraveacutes do componente objetivo do direito eacute a possibilidade mesmo de existecircncia do poliacutetico e da criacutetica que se afirma Aliaacutes a dimensatildeo objetiva do direito eacute inseparaacutevel de sua funccedilatildeo simboacutelica a ideacuteia do direito objetivo indepenshydentemente dos interesses privados garantidos pelo direito positivo funciona como referecircncia universal baseado na proclamaccedilatildeo de um direito natural Em seu nome liberdades mais amplas e uma igualdade natildeo mais apenas formal podem ser e foram reivindicadas A igualdade natural e revelada pelo direito objetivo abre a possibilidade da garantia (de princiacutepio) pela lei uacutenica dos direitos positivos corshyrespondentes

A extensatildeo do salariado e a passagem ao estaacutegio monopolista do capitalismo tiveram por efeito modificar consideravelmente o direito positivo Esta evoluccedilatildeo se caracteriza pelo decliacutenio da autonomia da vontade pela explosatildeo da noccedilatildeo de contrato pelo desaparecimentoacute da responsabilidade baseada na infraccedilatildeo fundashymento do direito civil poacutes-revolucionaacuterio e ao mesmo tempo pela extensatildeo das obrigaccedilotildees de seguridade da socializaccedilatildeo obrigatoacuteria dos riscos E sobretudo aparecem privileacutegios que antigamente eram parte integrante e evidente do direito

28 PASUKANIS EB La theacuteorie geacuteneacuterale du Droit et te marxisme EDI 1970

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 18: A Lei e o Corpo

VaI 1 Nuacutemero 199130 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

privado que agora conseguem se cada vez mais desenvolvimento da economia dirigida (por exemplo nos bancos ou nas empresas de transporte) ou atraveacutes desenvolvimento das sociais (por exemplo nas casas de sauacutede ounas agecircncias de notiacutecias) e ateacute no jogo da funccedilatildeo puacuteblica Estes privileacutegios

por outro lado vez mais atributos de sociedades civis ou comerciais ao inveacutes de pessoas fiacutesicas efeito de uma socializaccedilatildeo elementar que despersonaliza no sentido profundo do termo os indiviacuteduos

JHabemlas29 descreve assim esta transfor-maccedilatildeo evoluccedilatildeo da sociedade capitalista e a apariccedilatildeo do fenocircmeno do feudalismo industrial tecircm por efeito

por puacuteblicas toda uma seacuterie de funccedilotildees ligadas ao poder discrionaacuterio privado Mas no quadro mais estreito destes direitos e obrigaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas fenomeno primordial a de um poder discricionaacuterio constitui tem por efeito secundaacuterio transformar esta perda em uma descarga de responsabilidade de caraacuteter puacuteblico Jaacute que os cidadatildeos natildeo tecircm mais possibilishydade de fundamentar a autonomia de sua vida familiar - nem no fato de dispor de uma propriedade privada nem em uma participaccedilatildeo na esfera puacuteblica - a indivishyduaccedilatildeo da pessoa segundo o modelo da eacutetica protestante nuo pode mais ser garantida pelas instituiccedilotildees O autor afirma que enquanto o Estado obedecia ao modelo liberal esfera das trocas do trabalho social isto correspondia aos interesses da burguesia - ficava nas matildeos da autonomia privada A evoluccedilatildeo da sociedade capitalista modificou limitando-a a esfera privada

O que caracteriza entatildeo a eacutepoca liberal do capitalismo do ponto de vista do status da pessoa eacute uma autonomia vontade que exerce a partir de um espaccedilo de poder e de liberdade fundamentado na propriedade privada Esta propriedade garante o espaccedilo privado da pessoa A autonomia juriacutedica tem o seu equivalente na esfera intelectual e moral ~Os filoacutesofos da Revoluccedilatildeo Francesa lembra G GurvitchlO afinnaram a confianccedila de que o homem pode lanccedilar matildeo de sua consciecircncia e de sua razatildeo para regulamentar ele mesmo destino da humanidade tal eacute a base de sua descoberta da eacutetica modema da ordem moral e juriacutedica essencialmente independente de todas as outras ordens afirmando~se em sua especificidade proacutepria Eles afirmam o princiacutepio da equivalecircncia de toda pessoa humana sem exceccedilatildeo reconhecida sua moral como um valor si ( ) a ideacuteia da liberdade criadora e espontacircnea que natildeo reconhece nenhuma ordem predeterminada anterionnente imposta do exterior a ideacuteia da soberania do direito

29 HABERMAS J L espace publico archeacutealogie de la publiciteacute camme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

30 OURVITCH Ljade du Drou sociai Sirey Paris 1932

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

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de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 19: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 31

diante do qual deve curvar-se qualquer espeacutecie de poder A ideacuteia de direito objetivo e natural era associada agrave de razatildeo objetiva e revelada As regras considerashydas como universais garantiam a individuaccedilatildeo objetivas elas permitiam o desenvolvimento da subjetividade abstratas eram garantias do mundo concreto 31

E Durkheim no mesmo sentido garantiu que o racionalismo natildeo era mais do que um dos aspectos do individualismo que era o seu aspecto intelectual

Esta autonomia concreta para os que gozaacutevam da propriedade no plano econocircmico e familiar abstrata e objetiva no niacutevel das representaccedilotildees do Direito da Razatildeo e da Moral tinha sua equivalecircncia no niacutevel do corpo A pessoa era o seu corpo dotado de uma vitalidade autocircnoma que achava em sua criatividade sua norma de funcionamento

2 O status duplo da infraccedilatildeo em mateacuteria de responsabilidade

A responsabilidade individual era no direito liberal baseada na infraccedilatildeo A infraccedilatildeo supunha para sua imputaccedilatildeo esta autonomia e esta liberdade que encontra vam para exercer-se uma natureza humana natildeo predeterminada como hoje tomou-se a pessoa

Mas a liberdade nos diz T Levy32 ligada agrave propriedade tinha como limite o corpo uacutenico inimigo da liberdade Eacute assim que ele daacute conta ateacute 1867 da repressatildeo pelo corpo isto eacute a prisatildeo por diacutevida assim como a existecircncia do delito de vagabundagem O que a lei diz ao vagabundo eacute que a pessoa fiacutesica em si mesma natildeo saberia constituir sua autonomia civil e social Por outro lado ela eacute suficiente para constituir sua autonomia moral e penal O direito isto poderaacute ser verificado aqui natildeo se confunde com a lei na ausecircncia de um bem material que defma a autonomia concreta da pessoa pelo bom e mau uso que ela faz desta autonomia dentro de um quadro de direito concreto (o direito civil) a tutela direta do Estado se exerce considerando que o indiviacuteduo disponha de seu corpo para exercer a liberdade Dispondo de bens os sujeitos podem trocaacute-los entre si por contrato sem intervenccedilatildeo do Estado (ou entatildeo tecirc-lo como terceiro fiador e simboacutelico) e engajar aiacute sua responsabilidade Os outros sujeitos soacute tecircm sua moral e seu corpo para engajar seja no quadro do direito penal como o vagabundo seja no quadro do direito social mais amplo

Resulta disso que a infraccedilatildeo reveste uma natureza dupla agrave luz da liberdade e da responsabilidade em certos casos ela supotildee a liberdade quando se dispotildee

31 HABERMAS J Lespace publico archeacuteologie de la publiciteacute comme dimension constitutive de la socieacuteteacute bourgeoise op cit 1978

32 LEV Y Th Le deacutesir de punir Essai sur le privillige peacutenal Fayard 1979

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 20: A Lei e o Corpo

Vol I Nuacutemero I 199132 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

de bens em outros eacute original ou consubstancial quando qualifica um estado como a vagabundagem Pode-se assim engajar a liberdade sem que haja meios de exercecirc-la

3 Da responsabilidade agrave garantia

Hoje o status da responsabilidade modificou-se e ao mesmo tempo modishyficaram-se os do corpo e da infraccedilatildeo Em direito a substituiccedilatildeo de um sistema de seguros generalizados para iliacutena responsabilidade baseada na infraccedilatildeo faz repousar a responsabilidade sobre a causa que se vai assegurar A ideacuteia de causalidade eacute assim substituiacuteda pela ideacuteia de imputabilidde como uma espeacutecie de sinocircnimo A passagem de um sistema de responsabilidade juriacutedica individual baseada na infraccedilatildeo a um sistema de responsabilidade sem infraccedilatildeo baseado em um direito coletivo de garantia tem por efeito fazer frente agrave regra de base da autonomia civil da vontade Pela autonomia civil satildeo substituiacutedas a obrigaccedilatildeo de seguranccedila e de proteccedilatildeo social deve-se lembrar insiste R Savatier que o advento universal de uma legislaccedilatildeo de seguridade social integra-se ao risco profissional obrigatoriashymente assegurado pelo patratildeo Questionar o advento e a extensatildeo da Seguridade Social exigiria entatildeo que este fenocircmeno fosse restituiacutedo ao seio do sistema de seguranccedila como fato social que se procurasse em quecirc os conceitos de garantia de risco de inseguranccedila (e as necessidades que dela derivam) assim como o conceito de proteccedilatildeo social substituiacuteram os de autonomia e de infraccedilatildeo de liberdade e de responsabilidade Que sentido tecircm estas transformaccedilotildees agrave luz das relaccedilotildees sociais e de suas representaccedilotildees Eacute sobretudo o segundo ponto que constitui aqui o objeto de nosso questionamento

4 Da causa juriacutedica agrave causa cientiacutefica

A anaacutelise do status da noccedilatildeo de causa deve permitir que apreendamos o caraacuteter dependente do direito e da ciecircncia na medida em que eacute precisamente atraveacutes da noccedilatildeo de causa que se passa do direito agrave ciecircncia enquanto instacircncia de defrniccedilatildeo da lei da relaccedilatildeo social com a pessoa e o seu corpo O abandono de um sistema de responsabilidade baseado na infraccedilatildeo que privilegia um sistema fundamentado na causa constitui nesse aspecto a indicaccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis de transformaccedilatildeo

1) A responsabilidade baseada no poder material defrnia um certo campo de liberdade Sucede-lhe uma ordem prescritiva em um quadro de dependecircncia A noccedilatildeo de infraccedilatildeo civil implicava o uso da liberdade a noccedilatildeo de causa descobre determinismos

2) A causa eacute tambeacutem a coisa isto eacute a objetivaccedilatildeo de si como meio de trabalho e coisa a ser assegurada

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

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contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 21: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 33

3) A causa eacute enflm uma maneira de acusar O enunciado da lei cientiacutefica eacute escrito por homens o que faz com que sua colocaccedilatildeo traga a discussatildeo Deve-se notar que a palavra grega alria significa indistintamente infraccedilatildeo e causa 33 Tratashyse de uma visatildeo pessimista da natureza humana que ela subentende O homem deve se defender de si proacuteprio exercendo sua responsabilidade e submetendo-se agraves nonnas defmidas pelas ciecircncias do homem e ao poder dos que as aplicam Sua responsabilidade eacute medida pelo seu esforccedilo de adaptaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo depenshydente garantida pela ordem cientiacutefica

Quais os riscos assegurados pelo patratildeo Tanto os riscos econocircmicos que ele assmne quanto os riscos que ele inflige aos seus empregados durante o trabalho A pessoa do empregado como meio de trabalho tem o mesmo status dos bens assegurados e do risco econocircmico Este sistema de garantia em dois niacuteveis - o risco econocircmico do patratildeo e o risco corrido pelo empregado sua pessoa fiacutesica sendo aiacute incluiacuteda - reforccedila e institui um sistema de dependecircncia em cadeia que vai ateacute o Estado (ele eacute o uacuteltimo a garantir este sistema de dependecircncia) tendo por base o salariado fazendo com que o risco corrido pelo empregado atraveacutes de sua produccedilatildeo de mais-valia seja a garantia do lucro de seu empregador

A medicina e as diferentes instituiccedilotildees que tratam do assunto participam deste sistema de garantia assegurando o bom estado da maacutequina No domiacutenio do trabalho a medicina ajusta o alor do indiviacuteduo no mercado agraves suas capacidades produtivas e o autentifica A relaccedilatildeo meacutedico-doente efetuada no quadro da esfera privada e contratual correspondia a uma demanda privada computaacutevel quando havia renda suficiente Hoje com as medicinas preventivas a demanda tomou-se social A prevenccedilatildeo em seus diferentes desenvolvimentos concorre para a edificaccedilatildeo das garantias puacuteblicas do status do trabalhador como meio de trabalho e do status familiar concedendo agrave famiacutelia apenas uma autonomia dirigida

5 A separaccedilatildeo do corpo

Com a responsabilidade a pessoa e o corpo mudaram de status juriacutedico As maacutequinas vivas tomam-se mais concessotildees duraacuteveis cujo tiacutetulo eacute protegido pelo

poder puacuteblico do que bens A liberdade perdeu seu valor juriacutedico Diversos e moacuteveis os direitos sociais substituiacuteram as obrigaccedilotildees que elas haviam criado 34

O corpo bem material por excelecircncia separa-se da pessoa para se tomar um atributo Eacute o que sublinha A David O ano 1967 ano do primeiro transplante de

33 KOJEVE A Esquisse dune pheacutenomeacutenologie du droit Gallimard Paris 1981

34 LBVY Th Le deacutesir de punir Essai sur te privilege peacutenal Fayard 1979

VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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VaI 1 Nuacutemero 1 199134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

coraccedilatildeo foi sem duacutevida uma data importante a da separaccedilatildeo com o COrpO3S O corpo natildeo pertence mais agrave pessoa a pessoa natildeo eacute um corpo ela tem um corpo dado a ela intercambiaacutevel e uma riqueza que pode ser dada e transplantada eacute simulaacutevel e se torna uma vestimenta preciosa poreacutem anocircnima Esta vestimenta tomou sua verdadeira quantidade pois compreende a quase totalidade do pensamento e em suma todo o pensamento executivo A informaccedilatildeo e os autocircmatos fizeram cair retumbantemente o pensamento executivo na mateacuteria estranha e cambiaacutevel O contrato de trabalho o contrato de empresa o contrato de ediccedilatildeo organizam alienaccedilotildees provisoacuterias ou definitivas de energia e de informaccedilatildeo contidas no corpo vivo e tambeacutem locaccedilotildees sem deslocamento e em tempo dividido da mateacuteria viva do corpo Mas haacute pouco tempo a cessatildeo de oacutergatildeos vivos (transplante) e a apariccedilatildeo de oacutergatildeos artificiais trouxeram a prova plausiacutevel do caraacuteter anocircnimo e intercamshybiaacutevel dos oacutergatildeos vi vos elementos de um patrimocircnio que se desloca e gira em torno de pessoas imoacuteveis e indivisiacuteveis36 Mais recentemente a lei de 12 de dezembro de 1976 relativa agravecoleta de oacutergatildeos trouxe uma inovaccedilatildeo fundamental Presumeshyse que - e se trata de presunccedilatildeo irrecusaacutevel- que doravante os vivos podem consentir que sejam retirados oacutergatildeos de seu corpo apoacutes sua morte O corpo anocircnimo e intercambiaacutevel estranho agrave pessoa afastou-se desta enquanto as maacutequinas ao contraacuterio aproximaram-se do corpo Elas prolongam substituem e eliminam este corpo bem amado oferecendo os mesmos serviccedilos passageiros e imperfeitos37 Esta identidade do homem e das coisas foi percebida por W Heisenberg 38 No futuro os numerosos aparelhos teacutecnicos seratildeo talvez tatildeo inseparaacuteveis do homem quanto a casaca do caramujo ou a teia da aranha Mas mesmo neste caso estes aparelhos seriam parte do organismo humano mais do que partes da natureza agrave sua volta

Este distanciamento da pessoa em relaccedilatildeo a seu corpo corresponde agraveperda de poder discricionaacuterio privado que se estenderia ao corpo e agrave sua assimilaccedilatildeo agrave coisa protegida O decliacutenio da autonomia da vontade em proveito de uma socializaccedilatildeo legal garantida pelo Estado instaura um sistema tutelar em relaccedilatildeo ao que eacute protegido segurado Assim acontece com o corpo Sob este ponto de vista o ser transforma-se em ser pertencido

35 DAVIDA Matiere machines personnes Bordas Etudes 3 Philosophiedes Sciences 1973 p 11

36 DAVID A Matiere machines personnes op cito

37 DAVID A Matiere machines personnes op cito

38 HEISENBERG W lA nature dans la Physique contemporaine Gallimard Ideacutees Paris 1962

A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

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Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

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contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 35

A passagem da autonomia agrave tutela estatal como distanciamento de si para com o corpo traduziu-se como se viu na evoluccedilatildeo do direito eacute concomitante ao desenshyvol vimento dos seguros e foi favorecido pela extensatildeo do ponto de vista positivista Objetivando o que analisa o positivismo instaura este distanciamento que confere ao objeto o status de coisa Pode-se dizer que as categorias positivistas datildeo ao seu objeto de conhecimento o status que as mercadorias tecircm no niacutevel da produccedilatildeo de bens O positivismo utilizado pelas ciecircncias do homem eacute o equivalente e a extensatildeo no niacutevel da gestatildeo de recursos humanos do que satildeo as mercadorias no niacutevel da produccedilatildeo segundo as mesmas regras de expropriaccedilatildeo e de separaccedilatildeo entre o homem e seu produto Eacute a extensatildeo ao corpo agraves diversas atividades e aptidotildees mentais fiacutesicas e sociais da relaccedilatildeo social capitalista - relaccedilatildeo que se aplica ao homem considerado como uma mercadoria O positivismo se tomou um instrushymento privilegiado de gestatildeo do social sendo este uacuteltimo por sua vez isolado como objeto

O encontro entre as ciecircncias do homem e as seguranccedilas acontece assim no momento de uma apreensatildeo comum do homem A objeti vaccedilatildeo do corpo e da pessoa do indiviacuteduo atraveacutes dos sistemas de seguranccedila sua reduccedilatildeo agrave bull causa-coisa encontram este tipo de objeti vaccedilatildeo operado pelas ciecircncias do homem funcionando em um esquema normativo e causa lista Estas ciecircncias participam diretamente da extensatildeo da tutela estatal substituindo o direito civil na defmiccedilatildeo das normas positivas e das necessidades a necessidade geradora da norma tomou o lugar da autonomia no exerciacutecio do direito civil Elas estabelecem as normas e as necessishydades em uma variedade infmita e quase exaustiva (por vocaccedilatildeo) de aacutereas de existecircncia Prescrevem o que deve existir em mateacuteria de relaccedilotildees humanas de adaptaccedilatildeo ao trabalho de sexualidade de pedagogia de sauacutede etc O intervenshycionismo cientiacutefico isto eacute a imposiccedilatildeo da lei positiva agraves condutas da existecircncia torna suspeitos a autonomia da vontade e o senso comum As tutelas profissionais cientiacuteficas e administrativas satildeo necessaacuterias ao indiviacuteduo para regulamentar sua conduta Assim as normas de vida os bull estilos de vida opostos agravesauacutede e ao desvio satildeo palavras chaves em tomo das quais se organiza o processo de socializaccedilatildeo e de tutelamento que anteriormente tinha a ver com a esfera privada Estas normas se distinguem essencialmente do direito liberal que substituem no seguinte este direito construiacutedo sobre o princiacutepio da autonomia da vontade era na sua concepccedilatildeo um direito miacutenimo e negati vamente defmido que preserva va assim um espaccedilo de liberdade da pessoa Liberdade essencialmente renegada pelo normashytivismo das ciecircncias do homem

Esta negaccedilatildeo da liberdade em proveito do determinismo propotildee uma represhysentaccedilatildeo pessimista da natureza humana natildeo muito diferente da de Satildeo Tomaacutes de Aquino ou de L uteIO segundo os quuis a queda enfraqueceu consideravelmente

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 24: A Lei e o Corpo

Vot 1 NUmero 1 199136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

senatildeo corrompeu completamente a natureza humana Estas representaccedilotildees fundashymentam a funccedilatildeo do Estado (ordenar o estado de pecado) e justificam o Estado com autoridade Poena et remedium peccati tal era o privileacutegio do Estado

Hoje o destino social psiacutequico bioloacutegico do indiviacuteduo eacute middotcoisificado e atado a uma histoacuteria social psiacutequica e geneacutetica uma histoacuteria que natildeo lhe pertence e que lhe deixa um sentimento de culpabilidade consubstancial A sua uacutenica infraccedilatildeo eacute existir como o vagabundo em um estado desviante por natureza frente agrave norma social corporal psiacutequica Sua uacutenica responsabilidade ou sua uacutenica liberdade eacute prescritiva consiste na busca aleatoacuteria de uma boa sauacutede de um eu que natildeo pertence de uma boa adaptaccedilatildeo profissional sociaL

Eacute neste sentido que F Basaglia disse que o indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente atraveacutes deste processo racionalizaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo das necessidades que o indiviacuteduo estaacute privado da possibilidade de pertencer a si mesmo (sua proacutepria realidade seu proacuteprio corpo ) Neste sentido o fato de pertencer-se transfonna automaticamente em ser pertencido jaacute que natildeo se trata nem mesmo da superaccedilatildeo de uma contradiccedilatildeo mas da racionshyalizaccedilatildeo em termos de produccedilatildeo da qual ele eacute o objeto Nesta dinacircmica o indiviacuteduo natildeo pode chegar agrave posse de sua proacutepria doenccedila mas vive sua inserccedilatildeo no mundo enquanto doente ele vive assim o papel passivo que lhe eacute conferido e que confirma a fratura entre ele e sua proacutepria pessoa40 A isso acrescentaremos que ao mesmo tempo indiviacuteduo vive sua inserccedilatildeo mundo enquanto desviante no sentido de que a fonte de normalidade e das necessidades estaacute situada fora do campo competecircncia meacutedico e enquanto doente no sentido de que esta nonnatividade produz a necessidade de ntervenccedilatildeo e de proacutetese social cuja necessidade terapecircutica constitui o modelo R Sennett41

analisando o decliacutenio do espaccedilo puacuteblico chega a constataccedilotildees da mesma ordem Ele mostra que uma sociedade cuja loacutegica consiste em absorver pessoas e questotildees que dizem respeito agrave adequaccedilatildeo de si proacuteprio no trabalho e em outras relaccedilotildees de desigualdade estaacute estruturada atraveacutes de uma imagem explodida do eu em dois entre o eu e o mim em um espelho que nunca reflete algo fixo O verdadeiro eu eacute aquele dos impulsos e das motivaccedilotildees eacute o eu ativo mas o eu em sociedade eacute passivo Ele conclui que o narcisismo eacute a eacutetica protestante dos tempos modernos Os indiviacuteduos procuram-se continuashy

39 BLOCH E Droit nalurel et dignireacute humaine Payot Paris 1976

40 BASAGLIA F e ONGARO F IA majoriteacute deacuteviante Paris 1976

41 SENNET Ro The tall ofPublic Man Knopf New York 1977

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 38 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 25: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 37

mente tentam achar um sentido para sua existecircncia em uma realidade que natildeo admite nenhum limite para o eu

A separaccedilatildeo entre a pessoa e seu corpo a objetivaccedilatildeo deste uacuteltimo seu destino como cauccedilatildeo viva da empresa constroem uma imagem da natureza humana enquanto natureza doentia Elas contribuem para desenvolver uma eacutetica terapecircutica fundamentada na proteccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a si mesmo O seguro obrigatoacuterio o garante contra si proacuteprio O fantasma coletivo da inseguranccedila que caracteriza hoje a imagem da relaccedilatildeo com o outro aparece como uma projeccedilatildeo da incerteza de cada um frente a si mesmo da atitude de defesa de cada um em relaccedilatildeo agrave sua pessoa de sua situaccedilatildeo histoacuterica como ser irresponsaacutevel e dependente de seu estado consubstancialmente doentio

DI - A ORDEM PENAL-CIENTIacuteFICA

Se o Direito pode ser defInido pelo conjunto das leis positivas que o constishytuem ele deteacutem igualmente uma funccedilatildeo simboacutelica oriunda da ideacuteia de sua origem convencional e consensual Esta funccedilatildeo se realiza sobretudo na ideacuteia de direito natural que o acompanha particularmente na de um direito natural igualitaacuterio Se todos os homens satildeo livres por sua proacutepria natureza nenhum eacute superior ao outro Logo por sua proacutepria natureza todos os homens satildeo iguais entre si O direito natural implica a salvaguarda ou restauraccedilatildeo da liberdade ou da igualdade naturais O uacutenico caminho possiacutevel para a sociedade civil quando ela quer conciliar-se com a liberdade e a igualdade naturais passa pelo consentimento ou mais precisamente pelo contrato que liga indiviacuteduos livres e iguais42 Daiacute procede o universalismo da lei

A comunidade de pensamento do Seacuteculo das Luzes com o pensamento grego reside nessa afIrmaccedilatildeo do direito natural igualitaacuterio Este pensamento opotildee ao costume agrave autoridade da tradiccedilatildeo a opiniatildeo arbitraacuteria do indiviacuteduo isto eacute o seu livre arbiacutetrio e o conceito de natureza enquanto conceito natural de valor Essencialmente individualista o direito natural se defme de modo mais estreito do que o direito positivo e de maneira negativa Seu uacutenico valor eacute impedir os danos reciacuteprocos Os direitos concretos se desenvolvem na liberdade permitida por um Estado miacutenimo agrave margem dos contratos concluiacutedos entre indiviacuteduos livres e iguais O direito eacute essencialmente privadoY

42 ZEMPLENI A Mal de so~ mal de lalltre opcit

43 O conjunto do direito burguecircs francecircs foi construiacutedo em tomo do direito civil e dos grandes principIos juriacutedicos que o fundamentam

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Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 26: A Lei e o Corpo

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Segundo A Kojeve44 a funccedilatildeo do Estado em relaccedilatildeo ao direito cuja essecircncia eacute ser privado eacute de intervir como um terceiro imparcial e desinteressado encarshynando a sociedade O direito puacuteblico e o direito penal na medida em que este uacuteltimo pertence ao direito puacuteblico estatildeo fora do direito Onde haacute um direito natildeo haacute direito puacuteblico no sentido constitucional A lei constitucional que fixa a estrutura do Estado propriamente dito nada tem a ver com uma lei juriacutedica Ou ainda as relaccedilotildees do Estado consigo mesmo estatildeo fora do domiacutenio do direito e mesmo da justiccedila Se a lei constitucional diz respeito ao proacuteprio Estado se ela eacute considerada como uma lei que regulamenta a estrutura do Estado enquanto tal ela com certeza natildeo eacute um direito pois natildeo deixa nenhum espaccedilo para a existecircncia de um terceiro Do mesmo modo para ligar seres livres e iguais natildeo haacute obrigaccedilatildeo juriacutedica possiacutevel entre o senhor e os indiviacuteduos submetidos ao seu poder A relaccedilatildeo salarial nessas condiccedilotildees escapa agrave obrigaccedilatildeo juriacutedica

A afirmaccedilatildeo do direito natural conteacutem implicitamente a ideacuteia do estatuto obshyjetivo da razatildeo Eacute a ideacuteia das noccedilotildees comuns da doutrina estoacuteica Aquelas que graccedilas agrave natureza de nosso pensamento satildeo deduzidas igualmente por todos da experiecircncia Elas fundamentam o acordo essencial de todos os homens o consenshysus gentium do direito natural ulterior e contecircm a mais certa das verdades Fazem do direito natural uma evidecircncia para todos4s O estatuto objetivo da razatildeo estaacute na origem da afmnaccedilatildeo do direito de critica e de suas possibilidades de expressatildeo J Habermas mostraraacute que este uso puacuteblico e comum do raciociacutenio permitiraacute agrave esfera puacuteblica burguesa constituir-se contra o poder do rei

Hoje a lei substituiu o direito tal como foi defmido acima e o direito social desenvolveu-se em detrimento dos direitos puacuteblico e pri vado o raciociacutenio desertou a cena puacuteblica seguindo um processo de socializaccedilatildeo e de estatizaccedilatildeo

Uma esfera social nasceu limitando os espaccedilos puacuteblicos e privados que ela absorvia A ideacuteia de direito natural aliaacutes combatida tatildeo logo difundida negada pelas relaccedilotildees de forccedila econocircmicas deu lugar nas representaccedilotildees dominantes ao historicismo46 do qual o positivismo eacute a forma mais moderna As situaccedilotildees de direito criadas pelos contratos foram substituiacutedas por direitos sociais publicamente garantidos os direitos universais foram sucedidos por um direito cada vez mais

44 KOJEVE W IA nature dans la Physique contemporaine Oallimard Paris 1981

45 OURVITCH O Eleacutements de sociologie juridique Aubier Paris 1940

46 O historicismo no sentido em que o emprega L Strauss eacute uma forma particular do positivismo filosofia que nega a metafiacutesica a eacutetica filosoacutefica e o direito natul q ue nega

igualmente a possibilidade de uma objetividade histoacuterica

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 27: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 39

amplamente estatutaacuterio - mudanccedilas que in fine comprometem as ideacuteias de igualdade e de liberdade (no sentido de que esta carrega em si os Direitos do Homem)

J Habennas descreve um processo duplo que tende a uma polarizaccedilatildeo progressi va da esfera social e da esfera privada em proveito de um poder de classe quase puacuteblico O prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos tem por corolaacuterio o processo inverso segundo o qual o poder social substitui o Estado em certas ocorrecircncias A base da esfera puacuteblica burguesa soacute comeccedila a se desmanchar a partir do momento em que se estabelece esta dialeacutetica de uma socializaccedilatildeo do Estado e de uma estatizaccedilatildeo da sociedade que se aflnnam ao mesmo tempo Podemos constatar entre o Estado e a sociedade a apariccedilatildeo de uma esfera social repolitizada que escapa agrave distinccedilatildeo entre o privado e o puacuteblico Ela dissolve tambeacutem este domiacutenio especiacutefico da esfera privada no seio do qual as pessoas reunidas em um puacuteblico regulamentavam entre si os assuntos gerais que tratavam de suas trocas em outras palavras a esfera puacuteblica sob sua fonna liberal47 Esta esfera eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e da substishytuiccedilatildeo do direito pela lei que este gerou nesse duplo processo de estatizaccedilatildeo da sociedade e de socializaccedilatildeo do Estado A socializaccedilatildeo do raciociacutenio foi acompanshyhada de uma apropriaccedilatildeo pelo Estado e por suas administraccedilotildees do conhecimento cientiacutefico como fonte de nonnatividade positiva e instacircncia de produccedilatildeo de leis com valor universal Isto feito as profissotildees que ocupam a esfera social (esfera soacutecio-sanitaacuteria e a da gestatildeo social em geral) devem o seu importante e recente desenvolvimento ao papel que lhes foi devolvido pelo Estado de executantes da lei que elas contribuiacuteram para enunciar

A razatildeo viu o seu estatuto transfonnado apoacutes ter pennitido por seu uso puacuteblico a constituiccedilatildeo de uma esfera puacuteblica criacutetica e a derrubada do poder real por seu proacuteprio uso no curso da edificaccedilatildeo da era capitalista liberal e da superaccedilatildeo desta com o desenvolvimento das teacutecnicas e das ciecircncias Socializando-se esse estatuto faz-se lei e instacircncia juriacutedica contribuindo assim para o prolongamento da autoridade do Estado a domiacutenios privados mais numerosos

Assim as ciecircncias do homem instituiacuteram o direito como novo princiacutepio de nonnatividade positiva trabalhando principalmente para substituir o direito pela lei

o conjunto dos contratos se toma cientiacuteflco ( ) Nenhuma economia dirigida funciona sem especialistas Eacute o aspecto mais coletivo da submissatildeo dos

47 HABERMAS I Lespace publico archeacuteologie de la publicjteacute comme dimension constitutive de la socteacuteteacute bourgeoise Payot Paris 1978

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

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significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 28: A Lei e o Corpo

Vol 1 Nuacutemero 1 199140 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

contratos agraveciecircncia Mas cada contrato em si jaacute estaacute submetido ao imperium desta 48

O mesmo acontece com o sistema probatoacuterio as fases da convicccedilatildeo iacutentima e da prova legal satildeo sucedidas pela da lei cientiacutefica Tanto no direito penal (atraveacutes do recurso como procedimento de prova aos resultados de ciecircncias anexas como a psicopatologia cliacutenica ou legal a psicologia experimental e a loacutegica) quanto no Direito civil e comercial (atraveacutes do recurso agrave periacutecia ao raciociacutenio dedutivo e induti vo) 49 Segundo J Delatte~ novas formas de avaliaccedilatildeo de responsabilidades

por profissionais das ciecircncias do homem se desenvolvem contra a corrente da instituiccedilatildeo juriacutedica sem substituiacute-la elas se inscrevem em complementariedade com a instituiccedilatildeo e defmem suas proacuteprias exigecircncias ao seu respeito A Justiccedila dos menores proveacutem essencialmente das instituiccedilotildees que se atribuem o direito e a competecircncia de cobrir o campo da prevenccedilatildeo e determinar suas normas de intervenccedilatildeo (serviccedilos sociais serviccedilos meacutedico-sociais e poliacutecia dos menores)

Isto agora jaacute eacute sabido o suficiente Parece-nos necessaacuterio no entanto insistir sobre vaacuterios pontos

1) A penetraccedilatildeo do poder cientiacutefico no domiacutenio juriacutedico que tem por efeito introduzir ao lado do discurso da lei o da norma eacute acompanhada de um fenocircmeno da mesma importacircncia social sempre que as administraccedilotildees responsaacuteveis por avaliaccedilotildees soacutecio-sanitaacuterias recorrem agraves ciecircncias do homem fora do domiacutenio juriacutedico cria-se um poder quase jurisdicional que se estende na medida da proliferaccedilatildeo dos indicadores sociais e de todas as leis de funcionamento social psicoloacutegico e bioloacutegico descobertas pelas ciecircncias do homem Estas leis que defmem as normas da esfera do que dependia anteriormente do Direito Civil e do Direito no sentido em que o entende A Kojeve aparentam-se com o Direito Penal Normativas elas estatildeo combinadas a um poder de sanccedilatildeo Condiccedilatildeo para a abertura de certos direitos elas limitam as capacidades de gozo dos indiviacuteduos

A medicina puacuteblica social e preventiva exerce um papel soacutecio-penal quando limita o exerciacutecio de direitos a partir da prova da existecircncia de certas doenccedilas a medicina estaacute em posiccedilatildeo jurisdicional quando aflige com a incapacidade os doentes que ela priva do direito de se empenhar em certas profissotildees de aceitar certos trabalhos Eliminando-os na entrada dessas profissotildees procedendo a exames perioacutedicos de sauacutede prevendo que o contrato de trabalho seraacute suspenso obrigatoshyriamente se certas doenccedilas aparecerem estabelecendo comissotildees de reforma para eliminar os profissionais doentes criam-se incapacidades

48 SA V ATIER R op cito

49 GORPHE A Lappreacuteciation des preuves enjustice Les deacutecisions de justice Sirey 1952

gtO EVANS-PRITCHARD EE Sorcellerie orades et magie chez lesAZQndeacute op cit pp86-94

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 29: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 41

Isto eacute verdadeiro tambeacutem para a medicina escolar (ver por exemplo o papel das comissotildees departamentais de educaccedilatildeo especial) Da mesma forma em sua alma e consciecircncia apoacutes observar a relaccedilatildeo matildee-crianccedila a assistente social ou o meacutedico de PMI (Proteccedilatildeo Matemo-Infantil) em funccedilatildeo de normas que podem diferir de uma para o outro decidiratildeo se uma crianccedila deve ou natildeo ser separada de sua famiacutelia Quando natildeo faz a lei a medicina participa da normalizaccedilatildeo como atesta a ofensiva da educaccedilatildeo sanitaacuteria particularmente atraveacutes da PM com a constituiccedilatildeo de grupos de mulheres graacutevidas ou de jovens matildees Aqui a socialishyzaccedilatildeo sob tutela meacutedica eacute um meio de aprendizado com duplo objetivo Ele estimula novos comportamentos desenvolvendo uma aptidatildeo para a convivecircncia dirigida Certas correntes da medicina liberal haacute pouco tempo atraiacutedas por este movimento de rearmamento moral querem se constituir em parte fundamental participando da educaccedilatildeo sanitaacuteria (ver as posiccedilotildees do Sindicato Nacional dos Meacutedicos de Grupo sobre a questatildeo)

A lei soacutecio penal tende entatildeo a dissolver a relaccedilatildeo juriacutedica criadora de direito no sentido ci vilista pri vado substituindo-as por uma relaccedilatildeo de dependecircncia tutelar difusa no seio da sociedade civipl relaccedilatildeo de dependecircncia do poder administrativo e do poder cientiacutefico unificados Ela se aparenta com o direito penal natildeo apenas sob o acircngulo da sanccedilatildeo mas tambeacutem porque se fundamenta nas ideacuteias de infraccedilatildeo de responsabilidade e de afastamento da Regra As palavras mestras da educaccedilatildeo sanitaacuteria do trabalho social e da prevenccedilatildeo soacutecio-sanitaacuteria - a responsabilidade dos indiviacuteduos - e sua autonomizaccedilatildeo ilustram bem este fenocircmeno No contexto da troca liberal a medicina reconhece a doenccedila responde ao pedido do doente para trazer um estar melhor A responsabilidade individual natildeo eacute posta em duacutevida no duplo sentido do termo (procura da causa procura da responsabilidade) a localizaccedilatildeo da doenccedila em um lugar que natildeo atinge o eu nem a identidade pessoal circunscrita em uma parte do corpo cuja norma de funcionamento eacute autocircnoma em relaccedilatildeo agravepessoa (cuja inviolabilidade deve ser preservada) natildeo coloca a pessoa em duacutevida Com a medicina preventiva a doenccedila como direito natildeo eacute reconhecida a sauacutede eacute prescrita a demanda eacutesocial e estatal Ela tem como objeti vo aleacutem do bull estar melhor conduzir agrave autonomia indi vidual que na praacutetica equi vale a uma adaptaccedilatildeo controlada A doenccedila diz cada vez mais respeito ao eu Eacute o que se pode constatar como prolongamento da medicina psicossomaacutetica derivado da ideacuteia de Groddeck segundo a qual a doenccedila eacute a expressatildeo de um conflito entre o id e o ego O intervencionismo meacutedico-social tende a arrancar a maacutescara - esta maacutescara que

Jl A reablUtaccedilao atual desta noccedilatildeo eacute justamente o sinal da realidade que ela encobre

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 30: A Lei e o Corpo

Vol 1 Nuacutemero 1 199142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

significava na sua origem etimoloacutegica a noccedilatildeo de pessoa e que preservava a sua individuaccedilatildeo - para descobrir os detenninismos que fazem a pessoa agir e que a afastam de um modelo ideal prescritivo por definiccedilatildeo inacessiacutevel Eacute nisto que a doenccedila se aparenta mais com o desvio

O vagabundo era puniacutevel com a prisatildeo porque natildeo dispunha de bens pelos quais responder Ele era responsaacutevel por natildeo ter laccedilos nem bens O vagabundo moderno constituiacutedo pela questatildeo social acumulando sobre sua pessoa diferentes motivos de desvio eacute tido como responsaacutevel pelos males de que eacute viacutetima Eacute a sua responsabilidade que o toma perigoso Sua infraccedilatildeo eacute ser desviante na origem de seu ser - origem social psicoloacutegica ou bioloacutegica O objetivo eacute justamente dar-lhe autonomia e responsabilizaacute-lo trabalhando sobre seu eu a partir de uma demanda presumidamente escondida por detraacutes do seu sofrimento ou do seu pedido de socorro

2) A lei soacutecio-penal apresenta em relaccedilatildeo agrave lei liberal pelo menos em seu enunciado de princiacutepio esta diferenccedila ela natildeo possui caraacuteter universal A unidade da Sociedade devia ser preservada pela lei uacutenica para todos fundada na igualdade revelada e natural A lei juriacutedica enquanto regra universal estaacute hoje em decliacutenio em proveito da lei cientiacutefica que retira seu alcance universal de sua eficiecircncia empiacuterica A lei juriacutedica universal continha um princiacutepio e uma fonte de inspiraccedilotildees e aspiraccedilotildees humanas a lei cientiacutefica eacute em primeiro lugar uma anna A validade do princiacutepio da regra juriacutedica podia ser verificada na experiecircncia cotidiana dos indiviacuteduos pelo uso comum de sua razatildeo O caraacuteter experimental e verificaacutevel da lei pelo ciacuterculo dos cientistas como siacutembolo de seu alcance universal institui o estatuto separado do conhecimento e aleacutem disso a diferenccedila entre os indiviacuteduos em funccedilatildeo de sua utilidade e de sua eficiecircncia social O princiacutepio experimental descobre a ordem coacutesmica a teleonomia de um mundo em luta perpeacutetua pela sobrevivecircncia ao mesmo tempo em que revela praticando-se as diferenccedilas naturais O direito agrave diferenccedila toma-se um princiacutepio fundador de unidade simboacutelica legitimando uma hierarquia naturalizada

Numerosos autores vem constatando haacute vaacuterias deacutecadas O decliacutenio da lei juriacutedica enquanto regra universal em proveito das praacuteticas administrativas e de um direito estatutaacuterio em raacutepido desenvolvimento Esse princiacutepio de diferenciaccedilatildeo social pela profissionalizaccedilatildeo tem o seu correspondente no niacutevel dagestatildeo do social na esfera soacutecio-sanitaacuteria A partir da produccedilatildeo de leis cientiacuteficas a medicina e ~ ciecircncias do Homem em geral participam da definiccedilatildeo de indicadores sociais da diferenccedila estabelecendo correspondecircncias estatiacutesticas entre pertences soacutecio-proflSshysionais e riscos de morbidez social psicoloacutegica e orgacircnica Fazendo isso elas contribuem para a diferenciaccedilatildeo de situaccedilotildees sociais naturalizadas para o tratamento sogial diferenciado que deve rcspomler a elas

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 31: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 43

No seacuteculo xvm as assistecircncias puacuteblicas satildeo consideradas uma correccedilatildeo necessaacuteria da desigualdade econocircrnica e social que contradiz de forma evidente demais os princiacutepios liberais de igualdade e de liberdade Segundo Condorcet a existecircncia da sociedade econocircrnica separada do Estado complica o problema da igualdade e coloca o problema da igualdade real distinta da igualdade formal a desigualdade de riqueza de situaccedilatildeo e de instruccedilatildeo testemunham desta separaccedilatildeo A igualdade real implica entatildeo o direito agrave ajuda positiva da sociedade As assistecircncias puacuteblicas satildeo uma diacutevida sagrada da sociedade 52

Este termo seraacute retomado pela Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em seu artigo 2 1 Trata-se de uma diacutevida tatildeo sagrada quanto o direito de propriedade ao qual os burgueses do seacuteculo xvm natildeo queriam renunciar e que contradizia a afmnaccedilatildeo do princiacutepio de igualdade entre os homens Eacute a diacutevida dos proprietaacuterios e dos grupos protegidos por sua instruccedilatildeo sua riqueza e sua situaccedilatildeo que natildeo quiseram se despojar de direitos adquiridos Ela seraacute estendida com a Seguridade Social agrave doenccedila agrave velhice e agrave maternidade e agravequeles que por sua situaccedilatildeo fiacutesica estatildeo momentaneamente menos aptos para se protegerem desses riscos

Eacutejustamente essa diacutevida sagrada assim como a contradiccedilatildeo consciente sobre a qual ela se apoacuteia que defmem o campo de intervenccedilatildeo das profissotildees cuja vocaccedilatildeo eacute proteger aqueles que satildeo viacutetimas da desigualdade de oportunidades E eacute justamente ela que estaacute na origem de sua situaccedilatildeo de seu discurso e de sua praacutetica divididas Divisatildeo ilustrada pelo duplo discurso da consciecircncia culpada e da autoshydenuacutencia por um lado da moralizaccedilatildeo e da responsabilizaccedilatildeo por outro Os trabalhadores sociais por sua proximidade com aqueles que ajudam satildeo particushylarmente sensiacuteveis a essa contradiccedilatildeo da qual sua profissatildeo eacute o produto Contrashydiccedilatildeo por eles repetida por sua proacutepria posiccedilatildeo social em relaccedilatildeo agravequeles que protegem quando ao mesmo tempo ensinam seus clientes a utilizar melhor os seus direitos legiacutetimos e por outro lado procuram responsabilizaacute-los O mesmo acontece com o socioacutelogo ou com qualquer outro profissional da gestatildeo do social que procura em sua praacutetica aproximar-se de seu objeto e cuja consciecircncia culpada soacute eacute comparaacutevel agrave obstinaccedilatildeo de denunciar as instituiccedilotildees de enclausurarnento e de normalizaccedilatildeomiddot

Para aliviar o peso da diacutevida a soluccedilatildeo considerada com frequumlecircncia consiste em devolver o fardo ao credor assim o discurso da Proteccedilatildeo Social tem como duplo o da educaccedilatildeo ciacutevica e da responsabilidade Jogando com os conceitos de igualdade de oportunidades e do direito agravediferenccedila ele reconhece a marginalidade

52 G URVITCH G Locircdcc DroU SOCial op elr

Vol 1 Nuacutemero 1 199144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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querendo ao mesmo tempo reduzi-la e evitaacute-la e contradiz o discurso sobre a igualdade de oportunidades atraveacutes dos dispositivos de seleccedilatildeo social e de caminhos que estabelece O universo da diacutevida sagrada eacute tambeacutem aquele mais sombrio do direito adquirido da auto-defesa e da inseguranccedila O favorecimento de tais noccedilotildees toma-se maior na medida em que afirma com menos clareza poliacutetica a eacutetica social que fundamenta a Proteccedilatildeo Social De fato o historicismo surge como o ponto de convergecircncia entre a crise do direito natural e a filosofia poliacutetica modema Esta crise pocircde estender-se agrave filosofia enquanto tal (pela uacutenica razatildeo diz E Bloch dela ter sido totalmente politizada ao longo dos uacuteltimos seacuteculos) O historicismo fazendo triunfar o ponto de vista subjetivista e relativista do pensashymento contribui para o enfraquecimento do pensamento poliacutetico no sentido em que este eacute a emanaccedilatildeo de uma cena puacuteblica na qual a criacutetica eacute feita reciprocamente por cidadatildeos igualmente dotados de razatildeo Este estatuto relativista do pensamento e o ponto de vista subjetivista da necessidade podem legitimar as ideacuteias de seguranccedila e de proteccedilatildeo Eles natildeo podem fundamentar a filosofia social de um sistema de real solidariedade que tem como objetivo a igualdade de oportunidades A noccedilatildeo de necessidade longe de desembocar em uma filosofia poliacutetica tende antes a fechar cada grupo de interesses e cada indiviacuteduo em tomo de sua singularidade e de seus direitos adquiridos Ela favorece a filosofia do lucro

A ideacuteia de igualdade enquanto ponto de vista eacutetico fundador poreacutem estaacute sempre na ordem do dia As ideacuteias de direito agrave diferenccedila e de igualdade de oportunidades satildeo a sua expressatildeo contemporacircnea Satildeo uma tentativa de superaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo formal que foi feita historicamente do princiacutepio de igualdade Elas soacute podem convergir para o sentido que lhes demos se as ciecircncias do homem e do ser vivo que contribuiacuteram para a difusatildeo do historicismo e do positivismo enquanto pensamento dominante na cena poliacutetica e filosoacutefica estiverem em condiccedilotildees de aceder ao estaacutegio filosoacutefico isto eacute a um pensamento livre que se dedica agrave procura das condiccedilotildees da possibilidade da poliacutetica e da histoacuteria

IV - O CORPO E A HISTOacuteRIA O ERRO E A CRIacuteTICA

Jaacute evocamos a apariccedilatildeo na nossa sociedade deste fenocircmeno cultural que faz do corpo o ponto de partida e de chegada da regra e do sentido Sentido sem histoacuteria contemporacircneo da sujeiccedilatildeo imposta pelo positivismo e pelo historicismo Aqui a poliacutetica eacute relegada a um princiacutepio de exterioridade (em relaccedilatildeo ao sujeito) caixa preta reguladora uni versaI e imutaacutevel do acaso e da necessidade da origem e do fim que tem como uacutenica fmalidade a sua manutenccedilatildeo indiferente agravenossa condiccedilatildeo de sujeitos mortais O corpo simplesmente por ser mortal e agraves vezes doente tende a concentrar em tomo de si a cena onde se desenvolve a possibilidade da histoacuteria

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como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

Vol 1 Nuacutemero 1 1991 46 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 33: A Lei e o Corpo

A Lei e o Corpo 45

como uacuteltimo lugar de resistecircncia de uma sociedade mais do que nunca pela anti-histoacuteria

J Patocka nos seus Essais Heacuteretiques 53 demonstra que a guerra como experiecircncia (a experiecircncia individual dofront) eacute a uacutenica experiecircncia de liberdade absoluta e soacute tem sentido em si mesma Todas as ideacuteias de socialismo de progresso de emancipaccedilatildeo de democracia soacute podem ganhar seu sentido pleno se dessa experiecircncia e a ela retomarem Parece-nos que a prova dessa transformaccedilatildeo do sentido da vida que se choca aqui ao nada a um limite intransponiacutevel onde tudo muda essa experiecircncia de liberdade apenas cOI1JO pode vivecirc-Ia em tempos paz quando sua vida estaacute ameaccedilada Ele eacute o uacutenico em posiccedilatildeo em um seacuteculo onde a guerra integra a paz sob o aspecto da desmobilizaccedilatildeo54 de colocar a questatildeo do sentido Eacute desse modo que ele se caracteriza como lugar de subversatildeo

Assim ao se afastar da norma de sauacutede ele questiona a relaccedilatildeo que liga o sujeito sociedade o sentido tal como definido pelas ciecircncias do homem e do vivo Como na sociedade Wolof ou na sociedade dos Zande o sentido encarnado na relaccedilatildeo social impotildee sua tirania a partir da doenccedila Na nossa sociedade como entre os Wolof existe uma defasagem entre o comportamento submetido agrave nomla e a doenccedila como sanccedilatildeo Na nossa sociedade a eventualidade eacute a inclusatildeo em uma determinada classe estatiacutestica de risco dependente de uma intervenccedilatildeo particular De fato a estatiacutestica natildeo diz nada sobre os casos individuais Ela daacute a lei geral mas natildeo a lei do determinismo em particular Segundo os casos a simples inclusatildeo em uma classe de risco legitimaraacute a intervenccedilatildeo social Por exemplo a uma puericultura no domiciacutelio de uma famiacutelia de risco para verificar em nome de um programa preventivo e de necessidades bem compreendidas que os comportamenshytos dos pais satildeo nonnais As mulheres graacutevidas enquanto gmpo de risco seratildeo convocadas em grupos para serem educadas aprender o que se deve ou natildeo fazer com uma crianccedila antes de serem novamente convocadas para as visitas obrishygatoacuterias poacutes-natais A eventualidade eacute tambeacutem a ausecircncia de um comportamento voluntaacuterio e intencional tal como o exige a lei penal para imputar a infraccedilatildeo penal ao autor de um delito eacute a premeditaccedilatildeo em funccedilatildeo da origem de um destino desviante em relaccedilatildeo agrave origem normal (pela hereditariedade bioloacutegica pelo trauma ou simplesmente pela origem social) que justifica uma intervenccedilatildeo social

De modo global o intervencionismo soacutecio-meacutedico pennite ler nas pessoas em seu ser ou sobre seu corpocirc estigmatizado pelo desvio a submissatildeo agrave lei soacutecioshy

53 PATOCKA I ampsais heacutereacutetiques sur la philosophie de IHistoire Verdier (Ed) Lagrasse 1981

54 PATOCKA 1 Essais heacutereacutetiques sur philosophie de IHistoire cU p 143

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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penal dos indiviacuteduos reduzidos a maacutequinas de produzir desejosas A infraccedilatildeo por ele estabelecida eacute a de natildeo desejar curar eacute o comprometimento da lei da produccedilatildeo Este intervencionismo culpabilizante condena aquele que atraveacutes desta nova forma de desvio coloca em jogo o seu corpo fonte uacuteltima de liberdade para desafiar a relaccedilatildeo social fazendo voltar ainda mais a fmalidade desta maacutequina desejosa contra a produccedilatildeo de sua proacutepria vida

A esperanccedila seja de redenccedilatildeo de cura ou de paz com sua consciecircncia supotildee o direito de criacutetica e a crenccedila de que a histoacuteria natildeo paacutera no uacuteltimo pensamento produzido O historicismo nega a histoacuteria e agrave criacutetica prefere a demonstraccedilatildeo dos especialistas A lei juriacutedica eacute acompanhada no direito liberal por direitos de defesa e de debates puacuteblicos e contraditoacuterios Nos domiacutenios de intervenccedilatildeo da lei soacutecioshypenal o segredo profissional (mas a interdisciplinaridade e a hierarquia interna deste sistema permitem conjunto da estrutura menos o interessado de saber tudo) a ausecircncia do interessado e a ausecircncia de defesa constituem a regra A criacutetica supotildee um laccedilo entre o uso puacuteblico do raciociacutenio e a constituiccedilatildeo de uma cena poliacutetica puacuteblica onde os interessados ou seus representantes podem debater sobre o que diz respeito ao seu futuro coletivo Ela pressupotildee este estatuto objetivo da razatildeo A necessidade deste lado foi esclarecida como vimos por J Habermas em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII a propoacutesito da apariccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico que permitiu a derrubada do poder real Ernst Bloch a propoacutesito da infraccedilatildeo traacutegica no teatro grego nos mostra que a esperanccedila estaacute ligada agrave possibilidade da criacutetica agrave possibilidade para o sujeito de desafiar um destino predeterminado A infraccedilatildeo traacutegica mesmo naquilo em que seu deacuteficit humano tem de mais visiacutevel estaacute ainda ligado ao que eacute legiacutetimo na accedilatildeo fatal ao que em outras palavras eacute melhor do que a ordem presente com a qual ela entra colisatildeo Fazendo aparecer isto a trageacutedia quebra a corrente da infraccedilatildeo da culpa e da expiaccedilatildeo pelo desafio e pela esperanccedila Ela retira do Deus do castigo a sua superioridade Mas para isso era preciso uma condiccedilatildeo exterior a de que a palavra criacutetica fosse exercida que o diaacutelogo e o discurso fossem firmados em outro lugar nas assembleacuteias do povo e princishypalmente no tribunal A imagem do procedimento penal penetrou na trageacutedia ela retomou o mito da infraccedilatildeo e da expiaccedilatildeo como um tipo de debate judiciaacuterio 55

A infraccedilatildeo predeterminada eacute entatildeo a negaccedilatildeo do direito de criacutetica e do princiacutepio democraacutetico carregado por ela A lei prescriti va se opotildee ao sujeito criador de sua histoacuteria reduzindo-o a sujeitar-se a uma lei que ele eacute incapaz de defmir O sujeito tutelado menor diante das instituiccedilotildees detentoras do nomos natildeo tem outro destino a natildeo ser submeter-se ao seu impeacuterio

~o BLOCH B Droit naturel et digniteacute humaine op cito

A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

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A Lei e o Corpo 47

Nessas condiccedilotildees o decliacutenio da cena puacuteblica e poliacutetica (haacute deacutecadas os juristas do direito constitucional se interrogam sobre as causas do enfraquecimento do papel poliacutetico dos parlamentos e sobre os remeacutedios a serem aplicados) assinala o empobrecimento da noccedilatildeo de pessoa como valor como sede da autonomia do pensamento da vontade e da criatividade

O nascimento de uma esfera social eacute o produto da profissionalizaccedilatildeo da sociedade e do prolongamento do Estado e natildeo a simples traduccedilatildeo juriacutedica de um direito social de uma organizaccedilatildeo social espontacircnea desejada por G Gurvitch e para cuja formalizaccedilatildeo segundo ele a sociologia juriacutedica teria podido contribuir Assim o debate em tomo das ciecircncias do homem para saber se e em que condiccedilatildeo elas podem ser portadoras de promessas de liberaccedilatildeo e gerar mais justiccedila social se reduz mais uma vez ainda ao velho debate que opotildee liberalismo e estatismo A alternativa eacute ainda opor um idealismo liberal cujascriacuteticas satildeo conhecidas demais a um prolongamento do poder do Estado atraveacutes de um controle social sem limites

O objetivo deste artigo consistia em mostrar que o liberalismo conduz com todos os males dos quais pode-se legitimamente acusaacute-lo um princiacutepio liberador no qual se inscreve hoje a batalha dos direitos do homem A afirmaccedilatildeo dos princiacutepios de igualdade e de liberdade carrega consigo a necessidade da categoria do poliacutetico em si categoria natildeo redutiacutevel agrave simples superestrutura organizacional produto histoacuterico direto e necessaacuterio do sistema capitalista A existecircncia do poliacutetico aparece ligada agrave ideacuteia de direito natural isto eacute agrave necessidade de dar agrave filosofia o seu lugar na organizaccedilatildeo social ponto de vista negado pelo historicismo positivista Tratava-se de mostrar que o ponto de vista filosoacutefico e o do direito natural natildeo satildeo redutiacuteveis a simples ideologias reflexos de situaccedilotildees econocircmicas de classe mas que a visatildeo que os homens tecircm do mundo ao seu redor as interrogaccedilotildees qu~ eles colocam participam do arbitraacuterio cultural e social isto eacute de uma possibilidade de criaccedilatildeo histoacuterica Neste sentido as representaccedilotildees de si mesmo da relaccedilatildeo de si com o outro de si com o mundo natural os modos de formalizaccedilatildeo destas representaccedilotildees participam deste niacutevel cultural criador

Nas nossas representaccedilotildees contemporacircneas o corpo ocupa um lugar peculiar pois de lugar de prova individual comum de fmitude e do sentido primeiro para o sujeito ele se tomou o terreno de aplicaccedilatildeo privilegiado da Lei das relaccedilotildees sociais e do sentido coletivo da vida em sociedade

Resta imaginar de que modo as novas praacuteticas contra-culturais em relaccedilatildeo ao corpo e suas novas medicinas as diversas experiecircncias de espaccedilos neutros no exterior das instituiccedilotildees ou agrave sua margem inauguradas por profissionais do setor meacutedico-social e portadoras de novas cenas de trocas entre sujeitos podem contribuir no seu niacutevel para abrir o caminho da filosofia e da cena poliacutetica Resta imaginar tambeacutem de que modo subvener O sentido instrumental que as ciecircncias e

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as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire

Page 36: A Lei e o Corpo

Vol I Nuacutemero I 1991 48 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva

as teacutecnicas projetam sobre o seu objeto em uma perspectiva de sujeiccedilatildeo a fIm de desviaacute-lo nesta mesmo direccedilatildeo

RESUMO

A Lei e o Corpo

Partindo do conceito do arbitraacuterio cultural onde se relativiza a categoria de enfermidade e se evidencia a inserccedilatildeo desta no campo da significaccedilatildeo o ensaio discute a problemaacutetica da autonomia do organismo e da sauacutede como constituinte da lei para estabelecer entatildeo as relaccedilotildees entre as categorias de causalidade desvio e ordem juriacutedica que se desdobra na discussatildeo entre corpo e histoacuteria

ABSTRACT

Law and the Body

Starting from the concept of cultural arbitrariness where the category of sickness is relativized and where its insertion in the realm of meaning is evidenced this essay discusses the issue of the autonomy of the organism and of health as components of law It goes on to establish relations between the notions of causality deviance andjudicial order leading intoa discussion ofthe body and history

RESUME

La Loi et le Corps

Cest agravepartir du concept darbitraire culturel ou la maladie est relativiseacutee en tant que cateacutegorie et ou son insertion dans le champ de la signifIcation est mis en eacutevidence que cet essai analyse la probleacutematique de I autonomie de I organisme et de la santeacute comme une des dirnensions de la loi li reproduit eacutegalement les relations existantes entre les notions de causaliteacute de deacuteviance et dordre juridique qui se deacutegagent de la perception que lon a du corps au long de Ihistoire